Impressões de uma noite clara
Quando o
sentimento asfixia a razão
“[Algumas pessoas pensam que] você decididamente deveria deixar seu discernimento
prático ser afetado por seus desejos. Infelizmente, a tendência humana a esse
raciocínio estende-se até a metafísica. Já ouvi inúmeras vezes pessoas dizerem
que seria intolerável se a existência do universo fosse um acidente sem sentido
e a vida não tivesse nenhum objetivo nem importância maior; portanto, tem de haver algum significado para isso
tudo. No mínimo com a mesma frequência, ouvi pessoas defenderem a crença em
Deus com base na fato de que essa crença proporciona consolo. Também nesse
caso, se eu lhes disser: “Mas pode ser
que não haja mesmo nenhuma importância em nada; afinal de contas, sabemos que
existem muitas coisas que não nos agradam, às vezes coisas que consideramos
apavorantes como a tortura e a morte”, alguém estará propenso a responder,
geralmente com raiva: “Você quer então que a vida não tenha sentido?”.
(ênfase no original, p. 36)
O excerto acima se topa
no livro Confissões de um filósofo
(2001), de Bryan Magee, que nos adverte de que a verdade independe do que
desejamos que seja verdadeiro. Logo, a seguir, confessa-nos Magee:
“O estudo da história ajudou muito a desenvolver em
mim um respeito pela verdade intragável. Ela me fez compreender com clareza a
percepção de que a verdade nada tem a ver com minhas preferências ou com aquilo
que eu considero que deveria ocorrer. Dizer que um determinado grupo de
indivíduos não pode ter aterrorizado e trucidado milhões de outras pessoas,
porque isso seria terrível demais de se imaginar, é simplesmente um erro cabal
se na realidade eles o fizeram. E dizer que foi uma atrocidade não altera o
fato em si. Uma realidade aterradora e horrenda não deixa de ser realidade por
esse motivo; e mais, não há nada que possa fazer dela uma não-realidade. O pensamento desiderativo é incompatível
com o pensamento sério, e qualquer um que se envolva com ele, está se recusando
a participar da busca da verdade”.
(ib.id. grifo meu)
O que o autor entende por
pensamento sério é o pensamento que, se desenvolvendo com argumentos
rigorosamente articulados, segundo as exigências da lógica, não se deixa
perturbar por nossos desejos, sentimentos, emoções. Um pensamento sério é o
pensamento que não recua em face da crueza da verdade, em face do receio de que
a verdade possa ser aterradora. A palavra “aterradora”, nesse caso, é já
expressão do sentimento que nos provoca o enfrentamento de uma verdade. Esse
adjetivo – “aterrador” – exprime uma valoração intensamente negativa sobre o
referente qualificado.
Aprendi que os seres
humanos e as bactérias possuem alguns genes que praticamente não mudaram desde
o ancestral comum. O DNA do homem e das bactérias apresenta uma estrutura
bastante semelhante. Sabe-se que o ancestral comum a todos os seres vivos
provavelmente tenha sido parecido com uma bactéria. Também é bastante
semelhante o DNA humano ao do chimpanzé.
Pergunto-me, reconhecendo
não ser eu um especialista em biologia evolutiva, nem versado na seara da
genética, por que aceito como verdadeiras as proposições acima referidas, quais
sejam as de que compartilhamos com as bactérias uma grande parte do material do
DNA e a de que os chimpanzés são nosso primos mais próximos, ou ainda por que
aceito como razoável a suposição de que o ancestral comum a todos os seres
vivos deve ter sido um organismo tão simples quanto uma bactéria, mas rejeito
como falsas, como invencionices, embustes, crenças como a de que Jesus
realmente ressurgiu dos mortos e ascendeu ao céu como um ser humano de carne e
osso. A razão é evidente: posso esperar que as proposições da biologia sejam passíveis de demonstração,
possam ser verificadas, confirmadas; posso esperar que um biólogo me faça ver
que elas descrevem verdades sobre o mundo. A palavra “evidência” significa
“desvelamento”, “desocultamento”, “tornar visível”, “iluminar”, “dar a ver, a
conhecer”, “remover o véu”. Evidências são aquilo que nos permite ver, que se
revela. Por ser extremamente absurda, fantástica, ficcional, a crença na
ressurreição de Jesus não é o tipo de coisa para a qual esperamos obter
evidências; certamente não é um fenômeno previsto pelas leis da física; tal
evento é extremamente improvável – para dizer o mínimo - , tendo em conta o que
sabemos sobre o modo como o mundo funciona. Se não fosse a fé, o senso comum
rejeitaria, sem relutar, essa crença esdrúxula, já que nossas experiências
ordinárias nos dão testemunho de que os mortos são enterrados e se decompõem. O que sobra são ossos que
podem ser exumados.
São raras as ocasiões em
que me surpreendo participando de debates calorosos sobre religião e fé; quase
sempre não sou eu que dou ensejo ao debate, mas são os crentes que o fazem, o
que não deixa de me ser agradável. Evidentemente, embora eu procure silenciar
por certo período de tempo – talvez por saber, de antemão, a que desfecho
levará a discussão (em geral, a discussão se encerra sob o peso sentencial do
imperativo “religião não se discute” ou seu aparentado sugestivo “é uma
discussão interminável”, que significa, na verdade, “é inútil levá-la
adiante”), sinto-me impelido a externar minhas posições. A quarta-feira passada
foi um desses dias em que se ensejou uma discussão sobre religião, fé, ciência
e bíblia.
De modo geral, com
algumas exceções, as evasivas, as fugas, o desencorajamento no modo como se
constroem os raciocínios lógicos, o desinteresse no acompanhamento do curso
argumentativo proposto pela parte polêmica são notáveis. Juízos de valor, que
certamente são indissociáveis do uso da língua (é simplesmente ingênuo
pretender “depurar” a linguagem de julgamentos de valor), acabam, não obstante,
por preencher as lacunas deixadas durante o desenvolvimento do discurso
apologético. Muita vez, por falta de um argumento válido ou sólido, os
apologistas/crentes que insistem em conservar a suposta imunidade da religião
ao debate racionalmente fundado, recorrem a juízos como “religião é
importante”, “a fé faz bem”, “acho importante crer em Deus”. Note-se que tais
enunciados, que exprimem atitudes valorativas, pretendem reduzir o debate a
questões de preferências subjetivas, inclinações pessoais ou juízos de valor.
Eles também servem para desencorajar do debate a parte conflitante. Também a
importância da religião é passível de ser discutida, não necessariamente para
rejeitá-la, mas justamente para melhor compreendê-la. O que não se pode
pretender é que a importância seja colocada como parte de um subjetivismo
a-histórico, transcendente, que se toma como um argumento (“eu acho importante,
logo...) para garantir a importância reivindicada para a religião. Por outro
lado, a insistência na importância da fé ou da religião sugere, ainda que
implicitamente, que há um poder benéfico e intrínseco à fé do qual os que a
abandonaram estão privados, não lhes restando senão um sentimento de desamparo.
Esse pressuposto também é passível de discussão. Como se vê, muitos são os
caminhos, as veredas, as bifurcações que se vão construído ao longo do debate;
muitas são as direções que podem tomar o debate, a cada nova contribuição das
partes envolvidas. Durante essa atividade, necessário se faz que os temas sejam
devidamente discriminados e que suas articulações, as bases em que se apoiam,
os argumentos com que eles se encarnam na discussão, sejam bem definidos.
Na quarta-feira, um caso
particular me chamou a atenção. Quando eu exemplificava fenômenos que
sinalizavam para imperfeições do mundo natural, que não se esperariam, caso
houvesse um Designer Inteligente, um Ser perfeito e bom na origem do Universo,
meu interlocutor lançou mão da seguinte analogia, que cito de memória: “o homem
criou o avião, mas ele cai e, ao cair, pode provocar mortes”. Esse argumento
pretendia refutar o argumento que lhe propus, segundo o qual, se o mundo foi
criado por um Ser perfeito e bom, não deveria haver falhas, como as que se
notam na acomodação das placas tectônicas. Essas falhas estão na origem dos
terremotos, os quais causam desastres e ceifam vidas inocentes. Meu
interlocutor não obteve sucesso e, portanto, seu argumento se demonstrou frágil
ou ineficaz, porque se baseava no pressuposto de que o homem e Deus se
equiparam como criadores. Acontece, contudo, que não pode ser esse o caso, sob
pena de a ideia de Deus, tal como nos foi legada pela tradição judaico-cristã,
perder qualquer significado. Podemos esperar que o homem, como ser imperfeito,
portanto passível de cometer erros e dotado de capacidades limitadas, crie
coisas que comportem falhas ou imperfeições; mas isso não se pode esperar de
Deus. Deus, como criador é infinitamente superior ao homem, tanto como agente
dotado de capacidades sobre-humanas, quanto como agente portador de
conhecimentos necessários à realização de sua obra. A aparelhagem cognitiva e técnica
de Deus é, se levamos em conta a crença em sua onipotência e onisciência,
qualitativamente imensurável. Se podemos, portanto, esperar que aviões sejam
falhos, já que seu criador é passível de cometer falhas, o mesmo não se pode
esperar de um mundo supostamente criado por um Deus de que se diz ser perfeito.
(...)
Mas a Revolução Agrícola,
que marca o início do período Neolítico, não parece ter representado, segundo
alguns estudiosos, o avanço que nós, atualmente, acreditamos que foi. A
Revolução Agrícola não levou ao aumento da felicidade humana. Se, por um lado,
devemos à agricultura o sustento de populações maiores do que as que se
beneficiavam com o modo de vida dos caçadores-coletores; por outro lado, ela
não melhorou a saúde, nem potencializou a felicidade humana.
Por razões evolutivas, o
aumento de populações é proporcional ao aumento de doenças que seus indivíduos
podem desenvolver. Consoante nota Dawkins, em A grande história da evolução (2009), “um parasita fará menos
questão de preservar a vida de seu atual hospedeiro se puder encontrar
facilmente novas vítimas para infectar” (p. 47).
Não há
dúvidas de que nossas mentes estão entre as coisas mais complexas que
conhecemos. Eu diria que são as coisas mais complexas que conhecemos. Não
admira, por isso, que haja pessoas que acreditem que nós devemos ser
obras-primas produzidas por um Design Inteligente. Por falar em acreditar,
reconheçamos a validade deste raciocínio: só podemos acreditar no que não
sabemos; uma vez que sabemos, então não precisamos mais acreditar. A crença
está onde o saber ainda não existe; uma vez que estejamos de posse do saber,
não precisamos mais acreditar. A obviedade desse raciocínio pode ser
surpreendente – que não haja dúvida disso! E será tanto mais coerente quanto mais
adiante eu levar este texto. Mas essa coerência não se dá, sem o gesto
interpretativo do leitor.
Um olhar cuidadoso sobre a vida e o modo como ela se tornou possível, por meio da evolução biológica, levar-nos-á a encontrar um grande número de ocorrências extremamente imprevisíveis, quando consideradas as alegações do Criacionismo. Sabe-se que o processo evolutivo é maciçamente extravagante e ineficiente. A seleção natural, que é o processo pelo qual se dá a evolução dos seres vivos – isto é, as diversas mudanças e adaptações graduais que eles foram sofrendo ao longo de gerações – opera segundo a lei de sobrevivência dos mais aptos, de tal modo que os inaptos, os que não se adaptam são descartados.
Um olhar cuidadoso sobre a vida e o modo como ela se tornou possível, por meio da evolução biológica, levar-nos-á a encontrar um grande número de ocorrências extremamente imprevisíveis, quando consideradas as alegações do Criacionismo. Sabe-se que o processo evolutivo é maciçamente extravagante e ineficiente. A seleção natural, que é o processo pelo qual se dá a evolução dos seres vivos – isto é, as diversas mudanças e adaptações graduais que eles foram sofrendo ao longo de gerações – opera segundo a lei de sobrevivência dos mais aptos, de tal modo que os inaptos, os que não se adaptam são descartados.
A
evolução produz modificações gradativas em estruturas preexistentes, de sorte
que ela lega aos organismos muitas funções inúteis, e até mesmo disfunções. Tome-se,
por exemplo, o ser humano. Nos seres humanos, as aberturas da respiração e da
deglutição são tão próximas que nós, com certa frequência, nos engasgamos. Mas
a disposição de tais aberturas não precisaria ser de tal ordem, e é razoável
que esperemos que não fosse, com base na suposição de que há um Ser racional,
onipotente e bondoso na origem da Natureza. Veja-se também nosso apêndice.
Atualmente, ele é inútil e está sujeito a infecções.
Quando
acometido de alguma infecção, ele é removido cirurgicamente, já que não faz
falta nenhuma. O canal de parto é muito pequeno, o que favorece o aumento de
lesões, ou até mesmo a morte durante o parto. Ainda
tendo em conta o fenômeno da evolução, é preciso reconhecer que quase todas as
espécies que já viveram na Terra foram extintas. A cadeia alimentar é uma rede
naturalmente estruturada de carnificinas. Cada museu de história natural é como
um refugo de experiências que fracassaram. Se
tivéssemos dado emprego a Deus, deveríamos lhe dar uma notícia desagradável,
mas necessária: VOCÊ ESTÁ DEMITIDO! A ineficiência, a extravagância e a
imperfeição são flagrantes quando nos dispomos a investigar os eventos da
evolução biológica e elas se tornam mais razoáveis na suposição de que existe
um mecanismo causal e cego, indiferente, sem mente e inteligência, sem poderes
e senso de moralidade, do que na suposição de que há na origem da vida uma
Inteligência poderosa e eficiente. Seria surpreendente se tal Inteligência
Superior escolhesse criar a vida de tal forma.
Estas
reflexões ainda germinais conduzir-nos-iam, sem dificuldades, para
considerações atinentes ao problema do sofrimento sem sentido e injustificável
no mundo. Por ora, cinjo-me a dizer que uma reflexão detida e séria sobre as
ocorrências do mundo leva-nos a compor um corpo de evidências que, consideradas
em conjunto, tornam o ateísmo extremamente mais racional e justificável do que
o teísmo. Finalmente, peço que consideremos o seguinte: obviamente, não
presenciamos o grandioso evento do surgimento do Universo e da vida; o que
encontramos são seus efeitos, seus vestígios, suas consequências e nós mesmos
somos esses efeitos. Quando consideramos esses efeitos, quando ponderamos sobre
eles, sobre sua forma, funções; enfim, quando consideramos seriamente as
ocorrências da realidade empírica somos levados a endossar, salvo por
desonestidade intelectual, a validade de uma postura ateísta em face da
existência. Daí que estou convencido de que o conjunto de evidências em favor
do valor de verdade das proposições e alegações do ateísmo é maior do que o conjunto de supostas evidências em favor de uma posição teísta.
A realidade do mundo faz a balança pender em favor da descrença. Mas o problema
maior não consiste em reconhecer e aceitar esse fato; o problema maior persiste
e reside em explicar como ainda é possível, apesar disso, continuar a viver
como cegos à procura da “luz no fim do túnel”. Não bastam o mal e a tragédia de
cada dia para fazer ver que não há luz alguma e que o túnel é uma miragem num
infinito deserto sem alma?
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