A questão dos universais
Um confronto entre Abelardo e Ockham
1.
Introdução
Neste ensaio, dedicar-nos-emos a discutir o problema
dos universais, ao qual dispensaram especial atenção os pensadores cristãos do
período medieval, a partir da consideração das respostas dadas a ele por Pedro
Abelardo (1079-1142) e Guilherme de Ockham (1300-1349). A escolha desses dois
pensadores, para fins de desenvolvimento da presente discussão, justifica-se
pelo cuidado com que eles se ocuparam do problema e pela complexidade na
elaboração de suas respostas (complexidade esta que se deixa depreender da
preocupação que tiveram tanto Abelardo quanto Ockham em fundamentar o problema
dos universais em suas respectivas teorias do conhecimento; e no caso
particular de Ockham, da preocupação que este teve em tecer considerações
acerca da natureza do signo, com clara ressonância em sua teoria do
conhecimento e no tratamento dispensado ao problema dos universais).
Relativamente ao problema dos universais, à posição
assumida por Abelardo foi associada, tradicionalmente, a designação conceitualismo; por outro lado, a
posição assumida por Ockham recebeu o nome de nominalismo. O fato de as duas posições terem merecido designações
diferentes leva-nos à conclusão de que as respostas dadas por esses dois
pensadores são essencialmente distintas.
Mas será que a distinção entre as duas opiniões, no que toca à problemática dos
universais, é de tal radicalidade, que conviesse assumi-las como duas
categorias doutrinárias diferentes? Mais do que constituir uma exposição
descritiva das respostas oferecidas pelos referidos pensadores ao problema dos
universais, este trabalho visa a patentear que a fundamentação daquela
distinção é, no mínimo, problemática. Ora, se a tradição consagrou as posições
daqueles dois pensadores como expressão de duas doutrinas distintas, é lícito
supor que há entre elas características distintivas que justifiquem tal
prática. No entanto, a questão que nos compete examinar sobremaneira é,
portanto, se há, de fato, características distintivas que, por si mesmas e em
decorrência de sua inegável clareza, justifiquem a postulação dos rótulos conceitualismo e nominalismo, à luz dos quais as duas posições são vistas como
teoricamente incomensuráveis entre si.
2. A herança aristotélica: considerações gerais pertinentes
ao problema dos universais
Esta seção é destinada à apresentação de conceitos
que entram a fazer parte da construção da teoria do conhecimento de Aristóteles
(384- 322 a.C). Sua teoria do conhecimento
estriba-se no princípio segundo o qual todo conhecimento possível deve
fundar-se na experiência, a qual compreende o conjunto das sensações. A
despeito de Aristóteles ter conferido às sensações um papel fundamental no
conhecimento, ele não pode ser considerado um empirista - não, certamente, sem alguma reserva; pelo menos,
não pode ser considerado um empirista radical, visto que este se recusa a se
comprometer com a afirmação de que uma coisa continua existindo quando fora de
nossas percepções. Ora, para Aristóteles, as coisas subsistem, ou seja, elas
são entes. Elas existem independentemente de nossas percepções. Para
Aristóteles, o real é o que existe independentemente da percepção sensível que
temos dele; ademais, o real tem uma unidade, a qual não é acessível pelos
sentidos. A realidade, segundo Aristóteles, não pode ser totalmente açambarcada
em nossa experiência sensível; mas podemos abarcar a totalidade do real pelo
pensamento.
Na medida em que Aristóteles assume que a realidade
precede e fundamenta a nossa percepção sensível, pode ele ser considerado um
realista: há uma realidade que subsiste independentemente de nossa percepção
sensível. Mas a própria subsistência só é possível pela postulação da
existência de algo que subjaz ao mundo deveniente e que é permanente em si
mesmo. Esse algo que subjaz ao fluxo das coisas sensíveis, que não é acessível
às nossas percepções sensíveis, é a substância.
Para Aristóteles, a ciência busca determinar o que é necessário, o que é
inteligível e imutável nas coisas. Se, por um lado, Aristóteles renuncia à
dicotomia metafísica do mundo - em mundo
sensível e mundo inteligível,
feita por seu mestre -, ele preserva a distinção entre o sensível e o
inteligível, reconduzindo este do mundo das Essências (mundo suprassensível)
para o mundo sensível, o único verdadeiramente existente. Nesse sentido, o
empirismo aristotélico pode ser qualificado de abstrativo (empirismo
abstrativo)[1],
visto que o conhecimento, embora passe necessariamente pelos sentidos, só se
consuma quando o intelecto penetra nas coisas (sensíveis) e apreende nelas o
inteligível.
2.1.
A ciência metafísica
A filosofia, por si mesma e considerada em sua estrutura, é o ser na sua
verdade, o ser que se eleva à manifestação da verdade, o ser que é verdade e
expressão. A verdade pertence ao ser por identidade; e por identidade também o
discurso sobre a verdade do ser pertence ao ser. A filosofia é o ser que se
expressa em sua verdade. Fica, assim, assentada a inseparabilidade e identidade
entre a filosofia e o ser. A palavra metafísica expressa essa inseparabilidade ou identidade
entre a filosofia e o ser. Em decorrência disso, a filosofia é original e
fundamentalmente metafísica.
De Aristóteles herdamos a distinção das ciências em três grandes
domínios: a) ciências teoréticas, que visam ao saber por si mesmo;
b) ciências práticas, que buscam o saber por meio do qual se possa
alcançar a perfeição moral; e c) ciências poiéticas, que têm em
vista o saber cuja finalidade é produzir determinados objetos.
Aristóteles atribuiu mais dignidade e valor às primeiras, chamadas teoréticas.
Essas ciências se constituem da metafísica, da física (em cujo âmbito se insere
a psicologia) e da matemática. É consabido, todavia, que o termo metafísica não
é criação aristotélica. Reza a tradição que o termo surge por ocasião da edição
das obras de Aristóteles feita por Andônico de Rodes, no século I. a.C.
Aristóteles usava, normalmente, a expressão filosofia primeira ou
mesmo teologia em contraste com a filosofia segunda ou física.
A posteridade veio a consagrar o termo metafísica, por ser considerado mais
significativo.
Consoante sugere a estrutura mórfica do vocábulo meta-física (‘para
além da física’), a metafísica aristotélica se ocupa das realidades que estão
acima das físicas, das realidades suprafísicas, ou transfísicas.
2.2. O domínio da metafísica
Pertencem ao âmbito da metafísica aristotélica quatro tipos de
preocupações: a) a metafísica se ocupa das causas e dos princípios primeiros ou
supremos; b) investiga o ser enquanto ser; c) indaga sobre a substância; d)
investiga a questão de Deus e a substância suprassensível.
A investigação metafísica teve seus precursores. Antes de Aristóteles,
toda a tradição que se estende de Tales de Mileto a Platão desenvolveu um
pensamento filosófico com preocupações, em última instância, metafísicas. Todos
os filósofos monistas da natureza – os pré-socráticos – estavam preocupados em
determinar uma causa ou princípio primeiro (a arché); e para alguns
deles, essa causa ou princípio era de ordem metafísica; claramente, nada
tinha de “físico” ou “material”. Entre aqueles, Parmênides, por exemplo,
identificou esse princípio com o ser, o puro ser, que é condição de
possibilidade da existência dos entes e de suas determinações. Platão, por seu turno,
desenvolveu uma ontologia das Ideias muito elaborada, chamando ao mundo das
Ideias ou das Formas Perfeitas a verdadeira realidade.
Podemos, desde já, numa primeira aproximação relativamente à
problemática sobre a qual estas reflexões pretendem lançar alguma luz, definir
a ousía ou a substância como o ser
fundamental ou o ser verdadeiro. Todavia, essa definição de substância, que
figura aqui para fins de esclarecimento do que estará em jogo na problemática
que constitui o escopo deste trabalho, pressupõe a superação do monismo
eleático e o compromisso com a demonstração de que existem muitos seres,
diversas formas e diversos gêneros de realidade. Uma breve digressão se faz
aqui necessária. Por gênero entende-se o conceito que engloba
outros conceitos, relativamente aos quais possui maior extensão; por espécie,
ao contrário, entende-se o termo que relativamente ao gênero possui menor
extensão e, consequentemente, maior compreensão.
Urge enfatizar que a investigação sobre as causas e princípios primeiros
conduz, necessariamente, à determinação de Deus. Deus é, pois, a causa e o
princípio primeiro, por excelência. Por isso, a pesquisa aitiológica,
isto é, a das primeiras causas e princípios desemboca estruturalmente
na teologia.
Para Aristóteles, a questão “o que é a substância?” implica a questão
“que tipos de substâncias existem?”. Aristóteles estava preocupado em
determinar se existem somente as substâncias sensíveis ou se também existem as suprassensíveis
ou divinas. É daí que se segue o problema teológico.
É necessário compreender por que Aristóteles usou o termo teologia como
equivalente de metafísica. Ora, quando se consideram as três primeiras
preocupações recobertas pelo âmbito da metafísica, não parece difícil inferir
que elas encaminham, necessariamente, a investigação para a dimensão teológica.
A pesquisa sobre Deus não constitui apenas um momento da pesquisa metafísica,
mas é o momento essencial e definitivo. Se não houvesse uma substância suprassensível,
afirma Aristóteles, não existiria a metafísica.
Em suma, a metafísica é a ciência livre por excelência, porquanto
encontra em si mesma o seu fim.
2.3 As quatro causas
Nesta seção, cumpre examinar quais são as causas primeiras de que se
ocupa a metafísica.
Aristóteles afirmou que essas causas devem ser, necessariamente, finitas
em número. Quanto ao mundo do devir, elas se reduzem a quatro causas: a) causa
formal; b) causa material; c) causa eficiente;
d) causa final. Vale notar que “causa” ou “princípio”, para
Aristóteles, significa o que funda, o que condiciona, o que estrutura.
A causa formal se identifica com a essência (forma, em Aristóteles, é
sinônimo de essência); a causa material é a matéria. Essas duas causas
constituem todas as coisas. Ou seja, todas as coisas são constituídas de forma
e matéria. As causas formal e material explicam as coisas sob o ponto de vista
de sua estaticidade, mas não as explicam quando as consideramos dinamicamente.
Essas causas não dão conta das questões “como nasceu?”, “quem a gerou?”, “por
que se desenvolve e cresce?”. Por isso, a resposta a essas questões suscita a
necessidade de recorrer à causa eficiente ou motora e à causa final, o telos.
Abaixo, apresenta-se, para cada uma das quatro causas, a sua respectiva
definição:
1) causa formal: constitui a forma ou essência das coisas.
Por exemplo, é a alma nos animais, a estrutura para os diferentes objetos de
arte. Em linguagem, quando se fala na forma de uma sentença está-se referindo à
sua estrutura interna, que resulta da articulação de suas unidades
constitutivas.
2) causa material: é aquilo de que uma coisa é feita. Por
exemplo, a matéria dos animais é a carne e os ossos; a matéria da esfera de
vidro é o vidro, e assim por diante.
3) causa eficiente ou motora: é aquilo de que provêm a
mudança e o movimento das coisas. Os pais são a causa eficiente dos filhos. A
vontade é a causa eficiente de várias ações humanas.
De passagem, noto que, por movimento, Aristóteles não entendia apenas a
transladação, mas também as transformações sofridas pelas coisas. O movimento
era compreendido, portanto, também em termos de alteração, aumento e
diminuição, geração e corrupção das coisas. Reale (2007) entende que a geração
e a corrupção são recobertas pela categoria da mudança relativamente à substância.
Mudança seria o termo genérico, e o movimento seria o termo para designar a
alteração, o aumento/ diminuição e a translação. Sem pretender nos deter em
controvérsia, pode-se dizer que, para os gregos, entre os quais se situa,
naturalmente, Aristóteles, movimento significa toda e qualquer alteração de uma
realidade. Movimento envolve mudança, que pode ser qualitativa (uma semente que
se torna árvore); quantitativa (um corpo que aumenta de volume ou
diminui); de lugar (a trajetória de uma flecha); ou em termos de geração ou
corrupção (nascimento e perecimento das coisas e dos homens).
4) causa final: constitui o fim ou o escopo das coisas
e das ações; é aquilo em função do qual uma coisa é ou advém. É o bem de cada
coisa.
O ser e o devir das coisas exigem, em geral, essas quatro causas. Essas
causas são imediatas; mas, além delas, são necessárias as causas ulteriores que
se encontram no movimento dos céus, e a causa suprema do Primeiro Motor Imóvel.
2.4. Os múltiplos sentidos do ser
“O ser se diz em múltiplos sentidos”, escreveu Aristóteles. Sabemos, com
base no que foi exposto, que a metafísica se define, para Aristóteles, como a
ciência do ser ou ainda do “ser enquanto ser”. Faz-se necessário compreender,
doravante, o que é o ser e o que é “o ser enquanto ser” no contexto do
pensamento aristotélico.
O que é, pois, o ser?
Essa questão nos conduz de volta a Parmênides, especificamente, e ao
eleatismo, de modo geral. Parmênides via o ser como absolutamente idêntico a si
mesmo. Do ser só se pode dizer que ele é. Por isso, o ser se definia de modo
unívoco, ou seja, o ser se entendia num único sentido. A univocidade do ser
implica também a sua unidade.
O eleatismo, pelo trabalho de Zenão, Melisso e a Escola de Mégara,
consagrou-se como uma doutrina do Ser-Uno que compreendia a totalidade do real.
A compreensão no Ser-Uno da totalidade da realidade acarretou a imobilização do
Todo. Todo movimento estava, portanto, excluído do Ser.
Aristóteles, por sua vez, identificou o erro que se acha na raiz da
doutrina eleática. A partir daí, ele formulou seu princípio que consiste na
originária multiplicidade de sentidos do ser. Eis a base de toda a sua
ontologia. O ser não tem um sentido unívoco, mas polívoco. Veja-se, então, como
Aristóteles, caracteriza o ser:
a) o ser não pode ser entendido univocamente, à maneira dos eleatas.
Também não pode ser entendido como gênero transcendente ou universal
substancial, tal como o compreenderam os platônicos;
b) o ser expressa originariamente uma multiplicidade de significados;
c) o ser não é um gênero ou uma espécie. É um conceito transgenérico,
além de trans-específico, vale dizer, é mais amplo e mais específico do que o
gênero e a espécie;
d) o ser não deixa de ter uma unidade. Todavia, essa unidade não é nem
de espécie nem de gênero. O ser exprime diversos significados – já o dissemos
-, mas todos os significados estão em uma relação precisa com um princípio
idêntico ou uma realidade idêntica. Assim, as diversas coisas das quais dizemos
“são” exprimem sentidos diferentes de ser, mas ao mesmo tempo todas implicam
uma referência a algo que é uno;
e) Finalmente, esse algo que é uno é a substância.
Daí se conclui que aquilo que unifica o ser é a substância. A unidade
dos vários significados de ser decorre do fato de serem expressos em relação à
substância.
A ontologia aristotélica, conquanto se ocupe do estabelecimento e
distinção dos vários significados do ser, não se reduz à fenomenologia, visto
que todos os diferentes significados do ser implicam a referência fundamental à
substância.
Vamos, agora, esclarecer o significado da fórmula “ser enquanto ser”.
Ela não significa, na interpretação de Reale (2007, p. 36), que se toma o ser
puro abstrato, unívoco, o ser em geral. Ora, uma vez que Aristóteles não
pensava o ser como uma espécie, tampouco como gênero, “ser enquanto ser” só
pode expressar a própria multiplicidade de significados de ser e a relação que
há entre eles e que faz com que cada um deles seja ser. “O ser enquanto ser” é
a substância e tudo mais que, de modos múltiplos, se refere à substância.
Antes de atacarmos a questão da substância, que até o momento foi apenas
esboçada, convém passar em revista a tábua aristotélica dos significados do ser
e sua estrutura.
2.5. A tábua aristotélica dos significados do ser
Cumpre-nos apresentar, doravante, quantos e quais são os significados do
ser, estruturados por Aristóteles em uma “tábua”. Atente-se, portanto, para o
elenco dos significados do ser, que se elucidam abaixo:
1) o ser se diz no sentido acidental, isto é, como ser
acidental ou casual. Por exemplo, quando dizemos “o homem é poeta”, o “ser
poeta” exprime um puro acidente, um puro acontecer.
Faz-se mister aqui dizer que por acidente
Aristóteles entende tudo aquilo que não pertence à essência ou à natureza de
uma coisa. O acidente não existe em si mesmo, mas somente em outra coisa. Assim,
por exemplo, a circularidade é a essência de um círculo, a saber, aquilo sem o
qual o círculo não é círculo. Mas o fato de o círculo ter a cor amarela é puro
acidente. A cor amarela é um atributo acidental do círculo.
2) Opondo-se ao ser acidental, há o ser por si. Nesse caso, indica-se o
que é por si, isto é, essencialmente.
A substância é um exemplo de ens per se, segundo
Aristóteles. Mas, além desta, todas as categorias - a substância, a qualidade,
a quantidade, a relação, o agir, a paixão ou o padecer, o onde e o quando – são
consideradas ser por si.
3) o ser é o verdadeiro e se contrapõe ao não-ser, que é falso. Trata-se
de um ser que podemos chamar de “lógico”. O ser verdadeiro indica o ser do
juízo verdadeiro, ao passo que o não-ser como falso sinaliza o ser do juízo
falso. Esse ser é puramente mental; portanto, só subsiste na razão.
4) Por fim, há também o significado de ser enquanto potência e ato.
Segundo Japiassú & Danilo (2008, p. 222), potência se define em oposição recíproca a ato. A potência é o estado virtual de
ser. O ato, por seu turno, é o fato de ser plenamente realizado. Assim, um ser
em ato é plenamente realizado; por outro lado, um ser em potência encontra-se
em estado de devir, de possibilidade de realizar-se, em estado de
potencialidade. Por exemplo, a planta é o ato da semente (a semente que se
realizou); por seu turno, a semente indica que a planta está em potência,
porque, enquanto semente, ela, a planta, ainda não se realizou.
Vejamos mais um exemplo. Quem vê é tanto quem pode ver, quem tem a
potência para ver, ou seja, a capacidade de ver, embora possa estar
momentaneamente com os olhos fechados, quanto quem vê em ato, quem
realiza a capacidade da visão. É preciso assinalar que, segundo Aristóteles, o
ser segundo a potência e o ser segundo o ato são extensivos
a todos os significados de ser, já contemplados. Pode-se, assim, haver um ser
acidental em potência ou em ato; um ser de um juízo verdadeiro ou falso em
potência ou em ato, e assim por diante.
Resumidamente, são os seguintes os significados de ser, ordenados do
mais forte ao mais fraco:
1) ser segundo as diferentes figuras de categoria;
2) ser segundo o ato e a potência;
3) ser como verdadeiro e falso;
4) ser como acidente ou ser fortuito.
Há que distinguir também os significados do não-ser, que são três:
1) não-ser segundo as diferentes figuras de categorias;
2) não-ser como potência;
3) não-ser como falso.
O ser acidental não apresenta um correlato não-ser, dado que, segundo
Aristóteles, é por si “estreitamente aparentado ao não-ser” (Metafísica, VI, 2, 1026 b20).
Totalizam dez as figuras de categorias propostas por Aristóteles. Elas
não apresentam significados idênticos de ser, mas veiculam significados
diferentes de ser.
2.6. As figuras de categorias
Segundo Aristóteles, as figuras de categorias (ou simplesmente
categorias) se dizem ser não em sentido unívoco. No entanto, seus múltiplos
significados supõem a referência a uma única e mesma coisa. Essa única e mesma
coisa, a última realidade, é a substância.
Todavia, a questão sobre o que são as figuras de categorias continua em
aberto. É necessário, portanto, esclarecê-la. Para tanto, retome-se a ideia de
que o ser se diz em múltiplos sentidos. São múltiplos os significados de ser. A
diversidade dos significados de ser, no entanto, funda-se numa unidade.
As categorias também precisam apoiar-se sobre uma unidade, a despeito de
serem diversos os seus significados, pois, senão, como poderiam reunir-se num
único grupo? O que torna possível inseri-las num único grupo é o fato de elas
apresentarem os significados primeiros e fundamentais do ser. Elas representam
os significados nos quais se divide originalmente o ser; são elas as supremas
divisões do ser. Aristóteles dirá que são os supremos gêneros do ser.
A verdade, no entanto, é que permanece insolúvel o problema que consiste
em saber como Aristóteles chegou até as categorias e a sua tábua. É provável
que o processo de dedução através do qual ele pôde propô-las tenha se servido
das pesquisas lógicas, linguísticas e, sobretudo, da análise fenomenológica e
ontológica. Mas esta é uma questão que não nos ocupará aqui.
Segue-se, pois, a tábua das categorias:
1. Substância ou
essência
2. Qualidade
3. Quantidade
4. Relação
5. Ação ou agir
6. Paixão ou padecer
7. Lugar ou onde
8. Quando ou tempo
9. Ter
10. jazer
Excederia os limites desta exposição o pretender esclarecê-las uma a
uma. Será bastante pontuar que todos os significados do ser pressupõem o ser
das categorias. Assim, por exemplo, o ato e a potência assumem tantos
significados diferentes quantas forem as categorias. Disso resulta que há uma
forma de ser em ato e uma forma de ser em potência segundo a substância; uma
forma de ser em ato e uma forma de ser em potência, segundo a qualidade, e
assim sucessivamente.
Não menos importante é observar que as várias categorias não se
equiparam em nível. Há uma diferença radical entre a substância e as demais
categorias. Todos os significados de ser pressupõem o ser das categorias; e o
ser das categorias depende completamente da primeira categoria, a saber, a
da substância.
Está pavimentado, pois, o terreno em que podemos situar e explorar o
problema, complexo, da substância. Passaremos a tratar dele na próxima seção.
2.7. O problema da substância
Com vistas a lograr um entendimento o mais satisfatório possível da
questão dos significados da substância na metafísica aristotélica, convém
começar recuperando o que os seus predecessores disseram a respeito dela.
Alguns viram a matéria sensível como a única substância. Platão,
a seu turno, viu nos entes suprassensíveis a verdadeira substância. O
senso comum, em contrapartida, identificou a substância com as coisas
concretas.
Aristóteles se debruçou sobre a questão com um propósito bem claro. Para
ele, tratava-se de determinar que substâncias existem. Existiriam somente as
sensíveis, como pretendia a solução dos naturalistas? Ou também existiriam as
suprassensíveis, como pretendiam os platônicos? É esta a questão última da metafísica
aristotélica. É esta a questão por excelência que ocupou o Estagirita. Ele
precisou empreender um retorno a Platão com vistas a decidir da validade ou não
da doutrina dos Princípios e da teoria das Ideias.
Entanto, de imediato, o problema que ocupou Aristóteles era o da
substância em geral. Que é a substância em geral? – esta é a questão que está
na raiz de sua usiologia. Seria a matéria? Seria a forma? Seria o sínolo? (o
sínolo é o composto de matéria e de forma).
Fique claro que só é possível determinar se só existe o sensível, ou se,
além deste, existe o suprassensível, depois que se resolver a questão sobre o
que é a ousía em geral. E a razão disso é a seguinte. Se o
exame encaminhasse a conclusão de que a ousía só é a matéria
ou o sínolo de matéria e forma, seguir-se-ia daí que a questão da substância
suprassensível se esvaeceria. Mas, se a conclusão a que se chegasse fosse a de
que a ousía é uma coisa diversa da matéria, então a questão do
suprassensível se imporia necessariamente.
Para tratar da substância em geral, Aristóteles partiu do que é
incontestável: a existência das
substâncias sensíveis. Estas são as únicas substâncias que conhecemos.
Portanto, antes de decidir se existe uma substância suprassensível e de tratar
da substância em geral, era preciso tomar como ponto de partida a existência
inegável das substâncias sensíveis.
2.8. A substância em geral
Tendo em vista tudo que se expôs acerca do sistema aristotélico, pode-se
inferir que o Estagirita entendia a ousía segundo três significados
diversos: 1) a forma; 2) a matéria e 3) o sínolo.
Vamos dilucidar esses três significados à luz dos quais se compreende a
substância em geral.
1) A substância é, num sentido, a forma.
A forma, para Aristóteles, não é extrínseca às coisas, não é a figura
exterior das coisas. É a natureza íntima das coisas, é a essência íntima delas.
Quando definimos as coisas, referimo-nos à sua forma ou essência, de modo que
as coisas são cognoscíveis na sua essência.
No que toca ao conceito de forma,
cumpre dizer que, para Aristóteles, ela é o princípio de determinação da
matéria; é o que faz dela uma coisa determinada; é também aquilo que, num ser,
é inteligível. A matéria e a forma só podem ser dissociadas pelo pensamento. Na
realidade, matéria e forma se apresentam unidas numa mesma coisa. A forma é
aquilo que, na coisa, é inteligível, é o que pode ser conhecida pelo intelecto
ou razão; é a essência, o definível. A matéria, por seu turno, é considerada
como aquilo que é passível de tomar forma para que se torne tal ou qual coisa.
Matéria e forma constituem os elementos centrais da física aristotélica.
2) A substância é, dentro de certos limites, a matéria de que se
constituem as coisas.
É evidente que a matéria sem a forma seria indeterminada, mas, se a alma
racional (a forma) não enformasse (dar forma a) um corpo (matéria), não haveria
um homem. É nesse sentido que a matéria é também fundamental para a
constituição das coisas e, portanto, é, num sentido restrito, a substância.
Aristóteles dirá que a matéria só é substância num sentido impróprio.
3) O sínolo, que é o composto de forma e de matéria, é também substância
Ora, todas as coisas sensíveis podem ser consideradas na sua forma, na
sua matéria, no seu todo. Mas é tão somente a título diverso que Aristóteles
considera a forma, a matéria e o sínolo substância.
A substância em geral, para ele, deve apresentar as cinco
características definidoras reunidas a seguir:
1ª) A substância não é inerente a outra coisa e não se predica
de outra coisa, mas é substrato de inerência e de predicação de todos os outros
modos de ser;
2ª) A substância só pode ser um ente que subsiste por si ou
separadamente do resto e que é dotado de uma forma de subsistência autônoma;
3ª) Só é substância o que é algo determinado. Não é substância
um atributo geral, nem algo universal ou abstrato;
4ª) A substância deve ser algo intrinsecamente unitário. Não
deve ser constituída de partes, nem deve ser uma multiplicidade não-ordenada.
5ª) Finalmente, só é substância o que é em ato.
Um exame que pretendesse determinar qual dos três significados,
anteriormente definidos, receberia a qualificação de substância, levar-nos-ia à
conclusão de que a forma, e somente ela, é a substância por excelência.
Ora, a forma não deve tomar seu ser de outro e não se predica de outro
(1). A forma pode separar-se, a princípio, da matéria, ou porque é ela que
fornece seu ser à matéria, ou porque existem substâncias que apresentam apenas
forma e não têm matéria (2). A forma é algo determinado e determinante (3). A
forma é unidade por excelência; é princípio que confere unidade à matéria da
qual é forma (4). Por fim, a forma é ato por excelência; é princípio que
confere ato (5).
Antes de pôr termo a esta seção, é
importante ter em conta o fato de que a forma aristotélica não é o
universal; não se confunde com as Formas platônicas que existiriam num
mundo à parte do mundo das coisas sensíveis. A forma ou eidos é
um princípio metafísico que estrutura a matéria. A substância é a forma pela qual a matéria recebe uma
determinação, vale dizer, se torna uma determinada coisa.
Segundo Japiassú & Marcondes (2008,
p. 260), Aristóteles considera a substância a categoria mais fundamental sem a
qual as outras categorias não podem existir.
É apenas a substância que é absolutamente primeira, tanto logicamente no
plano do conhecimento, quanto temporalmente. Com efeito, por um lado, nenhuma
das outras categorias existe separadamente apenas a substância. Por outro lado,
ela é também a primeira logicamente, pois na definição de cada ser está
necessariamente contida a de substância.
Aristóteles e os escolásticos distinguiram uma substância primeira, isto é, o sujeito do qual se afirma ou nega
algum predicado, e que não é ele mesmo predicado de nada, da substância segunda, que é uma
abstração, um tipo geral, aquilo que caracteriza uma classe de objetos, por
exemplo, homem, cavalo, pedra, etc.
Por fim, outros dois elementos sem cuja definição a compreensão do que
se seguirá tornar-se-ia lacunar são o universal
e o conceito.
Para Aristóteles, o universal recobre aquilo que se pode
predicar de várias coisas. Destarte, o universal é aquilo que se aplica à
totalidade, aquilo que é válido em qualquer tempo ou lugar. É sinônimo de essência, qualidade essencial existente
em todos os indivíduos de uma mesma espécie ou gênero, definindo-os como tais.
Assim, por exemplo, a animalidade é
comum ao homem e ao boi; e a racionalidade
é comum a todos os indivíduos da espécie humana. Por conseguinte, animalidade e racionalidade são considerados universais. O universal é, segundo
Aristóteles, aquilo cuja natureza é afirmada de diversos sujeitos; por outro
lado, o singular é aquilo que não o pode ser.
Na esteira de Aristóteles, o conceito
é definido como um conjunto de propriedades individualmente necessárias e conjuntamente suficientes, em relação às
quais as entidades individuais pertencerão ou não ao conceito. Como ideia geral
e abstrata sob a qual reunimos os diversos entes, o conceito se caracteriza
pela compreensão (intensão) e extensão. A compreensão recobre o conjunto de propriedades integrantes da
definição do conceito. Por exemplo, dado o conceito de “homem”, discriminamos
como parte de sua compreensão as propriedades animal, mamífero, bípede, racional, etc.[2] A extensão, por seu turno, recobre o conjunto de entes particulares
aos quais se estende o conceito. Por exemplo, o nome “flor” abriga uma série de
entes particulares como rosa, margarida,
violeta, etc., os quais compartilham entre si o caráter essencial da “flor”
(um universal).
Tendo lançado algumas luzes sobre o conjunto de pressupostos teóricos,
que, remontando a Aristóteles, serão vistos ou entrevistos na discussão do
problema dos universais relativamente ao tratamento conferido a ele por Abelardo
e Ockham, faremos, na seção seguinte, uma síntese do contexto teórico à luz do
qual a problemática se define e no interior do qual devemos situar as
contribuições de Abelardo e Ockham. A questão que pretendemos responder é a
seguinte: o que está em jogo no problema
dos universais? Nosso intento será esclarecer formalmente o problema e
assinalar seus principias desdobramentos teóricos, a saber, quais corpos
doutrinais vieram a se formar em decorrência da fecunda e acirrada discussão
sobre o estatuto ontológico dos universais - discussão que tanto animou os
espíritos dos pensadores cristãos ao longo do período que se estende do século
XI ao XV, conhecido como Baixa Idade Média.
3. O problema dos universais: uma contextualização teórica
Na Escolástica, a querela sobre os universais esteve entre os problemas
que mais interesse despertaram nos pensadores cristãos. Do embate caloroso de
opiniões, resultaram três principais correntes de pensamento: o realismo, o conceitualismo e o nominalismo.
O problema dos universais é prefigurado num comentário de Boécio (c.
480-c. 524) ao Isagoge, obra do
filósofo neoplatônico Porfírio (c. 232- c.305), a qual é, por sua vez, um
comentário ao tratado aristotélico das Categorias.
Depara-se-nos aí a questão que consiste em determinar se espécies (p. ex. cão)
e gêneros (p. ex. animal) têm existência real (isto é, fora do pensamento) ou
se são apenas conceitos. Dependendo da resposta dada a essa questão, outras
questões correlatas se seguem necessariamente. Se respondemos que os universais
existem realmente, cumpre determinar se são coisas materiais ou não; se
respondemos que só existem como conceitos, resta determinar se existem apenas
no espírito ou independentemente dele.
Coube a Boécio, portanto, com base no reconhecimento do problema dos
universais, já presente em Porfírio, identificar-lhe o desdobramento em cujo
horizonte se discriminam três questões fundamentais:
1)
Se existem ou não os universais;
2)
Se eles são corpóreos ou incorpóreos;
3)
Supondo que sejam incorpóreos, se estão
ou não unidos às coisas sensíveis.
As respostas dadas por Boécio podem ser subsumidas na concepção de um realismo moderado (Reale &Antiseri,
2003, p. 130). Em consonância com essa visão boeciana, o universal só existe no
intelecto e, por isso, é incorpóreo. Na realidade, ou seja, no mundo em que
vivemos, só existem os singulares (este homem, aquele cão, aquela árvore,
etc.).[3] Chegamos aos universais,
abstraindo dos entes singulares as características que lhes são comuns, a
saber, típicas da espécie ou do gênero.
Conforme já mencionamos, tradicionalmente, discriminam-se entre três
doutrinas que respondem de modo diferente ao problema dos universais: o realismo, o conceitualismo e o nominalismo.
Os proponentes do realismo que tem raízes no platonismo mantêm que os
universais são realidades abstratas existentes independentemente da mente
humana. Os universais existiriam em si mesmos. Por outro lado, os realistas
aristotélicos advogam que os universais são as formas, as quais existem apenas
nas substâncias individuais, embora possam ser concebidos pelo espírito humano
separadamente.
O conceitualismo, doutrina atribuída a Abelardo, no século XII, reza que
os universais são conceitos que só existem como ideias em nosso espírito. Para
os conceitualistas, os universais são apenas entidades mentais, sem nenhuma
contraparte sensível na realidade. Em outras palavras, o conceitualismo é a
doutrina segundo a qual as ideias gerais que servem para organizar nossas
experiências de mundo são tão-somente instrumentos intelectuais criados por
nosso espírito, sem nenhuma existência fora dele.
O nominalismo, por sua vez, em sua versão mais radical, é a doutrina,
associada sobretudo ao nome de Guilherme de Ockham, segundo a qual os
universais não têm nenhuma existência real, seja na mente humana (enquanto
conceitos), seja na realidade (enquanto formas substanciais); eles se reduzem
apenas a signos linguísticos, palavras, nomes, a flatus vocis (emissão vocal). Segundo essa concepção, o universal
caracteriza apenas o fato de usarmos um mesmo termo para nos referirmos a
objetos individuais diferentes. Há, deveras, muitas versões de nominalismo; e,
certamente, a concepção de universais como flatus
vocis não foi sustentada por Ockham, que – esperamos fique patente ao longo
de nossa discussão – está mais próximo dos conceitualistas do que a tradição
nos permite supor. Uma consulta ao verbete dedicado a Ockham, no Dicionário Básico de Filosofia (2008, p.
206), de Japiassú & Marcondes, evidencia o que nos parece deve ser
interpretado como uma descrição da concepção conceitualista e não nominalista, se
tivermos em conta sua versão mais radical: “Ockham defendeu, quanto à famosa
querela dos *universais, a posição de que universais são conceitos, entidades
mentais portanto, interpretando-os posteriormente como operações do intelecto e
não como existentes em si mesmos”. Boehner & Gilson (2012, p. 538), por sua
vez, chegam a declarar sua preferência pelo termo conceitualismo para caracterizar a posição de Ockham, o qual, em
decorrência disso, não se comprometeu (tanto quanto Abelardo) com uma visão
reducionista sobre os universais, à luz da qual estes não seriam mais que flatus vocis.
No respeitante à natureza e ao valor destes conceitos universais, Ockham
propôs uma teoria a que na Idade Média chamavam de nominalismo; a esta
denominação preferimos a de conceitualismo. A exposição mais pormenorizada
desta doutrina se encontra na segunda distinção de Ordinatio.
É indispensável dizer que considerar a interpretação ockhamiana dos
universais como uma versão do conceitualismo não redunda em dizer que não há
diferenças entre essa versão e a de Pedro Abelardo. Ver Ockham como um expoente
do conceitualismo, como pretende Boehner & Gilson, suscita a questão sobre
a pertinência descritiva do termo nominalismo.
Em última análise, está em questão aí se a designação nominalismo faz sentido ou não quando consideramos o fato de que ao
seu emprego subjaz o interesse de identificar um modo de pensar radicalmente distinto de outro. Cuidamos
– cabe insistir – que o fato mesmo de preferir o termo conceitualismo a nominalismo para caracterizar o pensamento de
Ockham, conforme fazem Boehner & Gilson, sugere que o termo nominalismo é, semanticamente, pouco
claro e, consequentemente, que suscita mais confusão do que compreensão.
Antes, contudo, de encaminhar uma discussão (que não logrará, de modo
algum, a exaustão) sobre o problema da adequação
descritiva do termo nominalismo,
com a qual, tradicionalmente, é caracterizado o pensamento de Ockham, é
necessário dar a conhecer o que nos disseram Abelardo e Ockham sobre os
universais. Com efeito, suas posições sobre essa matéria são claramente
distintas, e assinalar as diferenças entre as duas maneiras de interpretar os
universais é a tarefa que nos competirá realizar doravante.
4. O conceitualismo de Pedro Abelardo
Pedro Abelardo (1079-1142) acha-se entre os mestres que, no século XII,
notabilizaram-se pelo uso que fizeram da razão, com vistas à fundamentação da
fé cristã. Conquanto tenha sido acusado por outros eminentes teólogos de
exceder-se na interpretação racional dos dogmas da fé, a cuja defesa jamais se
esquivou, nomeadamente à defesa do dogma da Trindade, Abelardo nunca hesitou em
assumir a proeminência da autoridade sobre o uso da razão. Nesse tocante, ele
insistia em que a Salvação advinha da observância das Sagradas Escrituras, em
que a dialética devia estar a serviço da necessidade de refutação dos infiéis e
do esclarecimento das verdades da fé.
Seu legado mais importante é resultado de sua atuação como professor de
lógica, a qual lhe permitiu a produção de uma obra onde expõe “os dons
excepcionais que fizeram o sucesso de seu ensino” (Gilson, 2013, p. 339).
Seguindo a tendência comum à época, Abelardo, na condição de professor de
lógica, descobre a filosofia por ocasião do confronto com o tema dos
universais. Já vimos que são três as questões suscitadas pelos universais,
segundo o testemunho de Boécio. Vale aqui recordá-las: 1) se existem ou não os
universais; 2) se eles são ou não corpóreos; 3) sendo incorpóreos, se estão ou
não unidos às coisas sensíveis. A essas três questões, que já se encontravam em
Porfírio, Abelardo acrescenta uma quarta: os
gêneros e as espécies ainda significariam para o pensamento se os indivíduos
correspondentes deixassem de existir? Desceremos a considerações sobre o
modo como Abelardo responde a cada uma dessas quatro questões.
4.1.
A posição de Abelardo
Os indivíduos não se distinguem entre
si apenas em virtude de seus acidentes, mas também por suas essências. Os que
endossam essa posição entendem que cada indivíduo possui uma essência que lhe é
própria e, portanto, distinta da essência de qualquer outro indivíduo. Não há
nenhum indivíduo que compartilhe com outro a mesma forma e matéria. No entanto,
resta o problema que consiste em pretender conservar a universalidade das essências.
Houve quem pretendesse resolver essa
dificuldade, como, por exemplo, Guilherme de Champeaux, mantendo que as coisas
distintas são as mesmas não por compartilharem a mesma essência, mas por não
diferirem em relação a uma propriedade genérica. Assim, segundo Gilson (ibid.,
p. 342):
Um universal não é, como alguns
sustentam, uma “coleção” de indivíduos, pois está integralmente em cada um
deles. O universal é anterior aos indivíduos, que nele se dispõem como em sua
espécie; uma coleção é posterior aos indivíduos de que se compõe (...).
Não podemos perder de vista o fato de
que Abelardo rejeita a solução segundo a qual o problema dos universais se
reduz a uma função da linguagem. Ele sustentará, ao contrário, que as coisas se
prestam por si mesmas a que se lhes prediquem os universais. Abelardo endossa a
posição segundo a qual os universais não existem fora das coisas, mas, ao mesmo
tempo, busca fundamentar os universais nas coisas, lançando mão da noção de estado, a saber, a maneira de ser
própria de cada coisa. Segundo Abelardo, erram os que supõem que um universal,
como “homem”, por exemplo, tem uma realidade em si mesmo, porque ignoram que
apenas o “ser um homem” (ou seja, o estado de ser um homem) é uma realidade.
Assim, diz-se, acertadamente, na opinião de Abelardo, que “o cavalo” não
existe, o que significa dizer que carece de realidade ontológica; mas “ser um
cavalo” é uma realidade. Segue-se daí que é dessa realidade concreta que devemos
partir para dar conta da validade lógica das predicações. Em outras palavras,
uma vez que “ser um cavalo” constitui uma realidade, pode-se explicar por que
uma construção como “o cavalo é uma pedra” é logicamente inválida. O predicado
“pedra” não pode ser atribuído ao sujeito “cavalo”, porquanto o “ser um cavalo”
é uma realidade que não se presta a ser predicada com a forma “pedra”. É
evidente a impossibilidade de algo ser, ao mesmo tempo, um cavalo e uma pedra.
Não menos importante é ter em conta que
Abelardo rejeita o recurso à noção de essência, conforme nos dá testemunho
Gilson (ibid., p. 343): “Não recorremos a nenhuma essência, precisa Abelardo;
trata-se simplesmente do fato de que certos indivíduos se encontram, cada um
deles, no mesmo estado que outros indivíduos”. Abelardo advoga que esses
estados são as próprias coisas constituídas por tais ou quais essências. Ao
intelecto cabe, pois, identificar o que há em comum entre os entes que se
encontram no mesmo estado, designando essa característica comum com um nome.
Se recordarmos aqui a quarta questão proposta
por Abelardo em acréscimo às questões já colocadas por Porfírio, qual seja, se
os universais conservariam algum significado para o pensamento caso se
extinguissem os singulares que lhes correspondem, encontramos Abelardo a tecer
importantes considerações epistemológicas, as quais constituem os alicerces de
sua interpretação dos universais.
4.1.2. Considerações epistemológicas subjacentes à questão dos universais
A questão que ocupará Abelardo, no
domínio da epistemologia, tendo em vista o contexto mais amplo da discussão
sobre a significatividade dos universais, consiste em determinar como o
pensamento chega a apreender o universal, isto é, qual é o conteúdo do
universal no pensamento. Consoante Abelardo, a fim de responder a essa questão,
devemos atentar para o modo como se forma o conteúdo dos universais. Sua origem,
segundo ele, reside na percepção sensível. Somos dotados de órgãos sensoriais
que são afetados pelos objetos que se dão a nossa percepção. O que resta na
afecção de nossos órgãos sensoriais é uma imagem de cada coisa; e essa imagem
existe independentemente do objeto percebido, de sorte que “se a torre (...)
estiver destruída, ainda podemos imaginá-la” (Gilson, ibid., p. 344).
Há que distinguir qualitativamente as
imagens produzidas em nós por ocasião da percepção de objetos concretos das
imagens que nós produzimos quando imaginamos uma coisa (uma cidade, por
exemplo, que jamais vimos). Assim também, a imagem de um homem em geral,
formada em nosso espírito, se distingue da imagem de um indivíduo particular,
como, por exemplo, a de Sócrates. Segue-se daí que:
(...) minha
representação de um indivíduo é uma imagem viva, precisa, determinada em seus
detalhes; a de um universal é fraca, confusa e relativamente indeterminada: ela
só retém os elementos comuns aos indivíduos semelhantes de que é tirada. Um
universal, portanto, não é senão uma palavra que designa a imagem confusa
extraída pelo pensamento de uma pluralidade de indivíduos de natureza
semelhante e que estão, por conseguinte, no mesmo “estado”. (Gilson, ibid., p.
344).
A esta altura, é preciso dizer que
Abelardo pavimenta o caminho da lógica para a vinda de Guilherme de Ockham. De
acordo com Abelardo, deve-se distinguir cuidadosamente entre a coisa real e
singular, a atividade dos sentidos, a atividade do entendimento e a forma
produzida pelo entendimento. Uma vez que é engendrada pelo entendimento, a
forma é algo imaginado, “é comparável às entidades que vemos nos sonhos (...)”
(Boehner & Gilson, ibid., p. 301). Nesse sentido, Abelardo antecipa a
teoria da ficção dos escolásticos do século XIV, mormente a primeira teoria de
Ockham, muito embora se recuse a atribuir ao ser desses ficta a designação esse
objectivum.
Prossigamos examinando a teoria
epistemológica proposta por Abelardo com o fito de assinalar nela suas
consequências para a interpretação dos universais. Esta teoria calca-se sobre o
princípio de que todo conhecimento possível ao homem é o conhecimento dos entes
singulares. Nesse caso, há, de fato, intelecção; quando, no entanto, pensamos o
geral, encontramo-nos no domínio da opinião. Assim, só temos conhecimento
propriamente dito quando nossos sentidos são afetados pelos objetos dados à
nossa experiência sensível. Segundo Abelardo, só temos conhecimento dos
singulares; e dos universais, só temos opinião.
Abelardo não ousou negar a existência
das Ideias no intelecto de Deus, tampouco socorreu-se da lógica para examinar teses metafísicas.
Reduzindo o real ao individual e o universal ao sentido dos termos, acabou por
lançar, sem o pretender, as bases sobre as quais se estearia a crítica lógica
da metafísica, à qual ele insistiu em renunciar.
Os universais, para Abelardo, não são
mais que “o sentido dos nomes” (Gilson, ib.id., p. 345). É pelo processo de
abstração que o intelecto apreende os universais. Na realidade, matéria e forma
se apresentam unidas; é nosso intelecto que pode voltar sua atenção ora para a
forma, ora para a matéria, como se elas estivessem separadas. Nesse ato de
atenção seletiva é que consiste a
abstração. A abstração recobre a maneira como a atenção incide sobre as coisas,
tomando aquilo que não existe separadamente como algo à parte. O alcance das
ideias epistemológicas de Abelardo é lembrada por Gilson (ib.id., p. 346), nos
seguintes termos:
O conhecimento consiste em afirmar como
existindo junto o que existe junto; a opinião ou o erro consiste no fato de que
o entendimento compõe junto o que não se encontra junto na realidade. Essa
explicação da abstração se move, pois, num plano puramente psicológico, não
incompatível, decerto com a ontologia aristotélica do conhecer, mas que
permanece estranho a ela. Persistirá na escola agostiniana do século XIII e
receberá sua elaboração completa na doutrina de Ockham.
4.1.3. Abelardo contra Champeaux
A resposta oferecida por Abelardo ao
problema dos universais é balizada pela influência de dois outros teólogos: de
um lado, se acha Roscelino, de cujo nominalismo à luz do qual o universal se
reduz a um flatus vocis (emissão de
voz), ele se afasta; de outro lado, topa-se Guilherme de Champeaux, a quem
devemos o esforço para provar que o universal existe encarnado nas próprias
coisas – visão esta igualmente rejeitada por Abelardo.
Vamo-nos estender, doravante, sobre os
aspectos contrastantes entre a interpretação de Champeaux e a de Abelardo.
A teoria sustentada por Guilherme de
Champeaux prevê a hipótese segundo a qual o universal é uma res, ou seja, uma coisa, uma realidade
essencialmente idêntica nas diversas coisas. Assim, segundo Champeaux, o
universal existe por si mesmo e constitui a essência das coisas materiais. Essa
essência ou substância universal se diversificaria pelas formas dos indivíduos
pertencentes a uma mesma classe. É a essas formas que devemos a diferença entre
as coisas de uma mesma classe. Destarte, num conjunto de pessoas, haveria uma
substância que é a mesma em todas elas. O que distinguiria, nessa classe, um
Platão de um Sócrates são certos acidentes que seriam diferentes num e noutro.
A teoria de Champeaux também prevê que a substância “animal” é uma só e comum a
um conjunto de seres vivos. São as formas assumidas pela substância universal
que explicam as diversas espécies de seres vivos (por exemplo, homem, boi,
sapo, etc.). Portanto, segundo Champeaux, a substância universal é comum por
sua natureza, mas singular em ato; é incorpórea e não sensível na sua
universalidade, mas existe sensivelmente por força dos acidentes.
Abelardo rejeita totalmente essa visão,
cuidando ser ela incompatível com as evidências da física. Segundo Abelardo, se
concordamos com Champeaux na suposição de que, nos indivíduos, existe uma
substância universal como res
essencialmente idêntica e na suposição de que eles se distinguem tão somente
pelas formas, somos levados à admissão absurda da possibilidade de uma mesma
coisa poder assumir simultaneamente formas opostas. Por exemplo, a animalidade, essencialmente idêntica no
homem e no animal não humano, se apresentaria sob formas opostas: a
racionalidade e a irracionalidade.
Atento a esse problema, Champeaux propõe
uma segunda versão da teoria, a qual prevê que o universal, embora seja uma res, só é idêntica nos distintos
indivíduos sob o modo da indiferença. Abelardo reconhece que essa versão da
teoria constitui um avanço em direção à verdade, mas não um avanço suficientemente
radical. A segunda versão da teoria dos universais, proposta por Champeaux,
reza que cada indivíduo possui uma essência própria. Em outros termos, os
indivíduos são distintos tanto pela forma quanto pela matéria. Se, por um lado,
essa teoria elide a ideia de uma individuação pelas formas; por outro lado,
conserva a ideia de uma res
universal, que persiste idêntica mas sob o modo da indiferença. Assim, por
exemplo, dois homens, embora distintos por si mesmos, são idênticos quanto ao
ser homem, ou seja, não diferem quanto à natureza humana. Eles são singulares e
individuais no que toca à diversidade, mas substancialmente idênticos no que
toca à indiferença e às semelhanças.
Segundo Abelardo, o problema dessa
teoria repousa no modo como interpretamos o significado de indiferença. Se
tomamos indiferença na acepção de ‘ausência de diferença’ (in-diferença) – num
sentido negativo, portanto -, Platão não difere de Sócrates, visto que são
homens; todavia, pela mesma razão, se deve dizer que não diferem relativamente
a pedras (eles não são pedras). Se, por outro lado, tomamos indiferença no
sentido positivo, assumindo que Sócrates e Platão não diferem essencialmente,
porquanto compartilham o universal ‘humanidade’, incorremos na mesma
dificuldade da teoria precedente: como explicar que a humanidade seja comum a
Platão e a Sócrates se todos os homens se diferenciam tanto pela matéria quanto
pela forma? Em face dessa dificuldade e tendo em conta todo o exposto,
conclui-se que Abelardo nega que exista um universal ontológico. Não existe,
para ele, qualquer espécie de universalidade nas coisas.
4.1.4. A resposta de
Abelardo às quatro questões implicadas no problema dos universais
Vamos considerar separadamente as
quatro questões implicadas no problema dos universais, dando a conhecer a
resposta de Abelardo a cada uma delas. A primeira questão, conforme já
referimos, exprime-se nos seguintes termos: os
universais existem ou não como entes fora da mente ou do intelecto? Em
outras palavras, seriam os universais dotados de uma realidade ontológica?
Segundo Abelardo, os universais não
existem na realidade, mas tão somente como seres de razão; eles só existem no
pensamento, muito embora signifiquem
as coisas particulares designadas por cada nome particular. Em outras palavras,
o “homem” não existe como ente no mundo sensível, mas o termo geral “homem”
significa uma realidade que é significada no termo específico “Sócrates”, por
exemplo. Os universais só podem designar coisas realmente existentes em virtude
de sua significação nominal. Assim, eles não são ideias desprovidas de sentido.
Decerto, existem somente no intelecto como representação indeterminada daquilo
que representam; entanto, a representação do universal não é desprovida de
sentido, ou seja, não deixa de se referir à realidade de seres individuais. Mas
- deve-se frisar -, ao pensar o universal como uma representação dotada de
sentido, Abelardo não deixa de flertar com uma posição nominalista, ou seja,
com um visão do universal como um problema da linguagem. Se o universal não se
acha encarnado nas coisas, resta atribuí-lo aos nomes ou às palavras. A
universalidade, nesse caso, explica por que podemos usar esses nomes para
predicar de várias coisas individuais. Não obstante, Abelardo não adere a uma
forma forte de nominalismo que reduz o nome a mero flatus vocis. À questão por
que podemos usar o mesmo nome para se referir a vários indivíduos?,
Abelardo responde assumindo que o nome designa o estado de X. Assim, por exemplo, “o homem” designa o estado de homem comum aos indivíduos
distintos. É esse estado comum de ser homem que é a causa do nome comum “homem”
que se usa na predicação de todos os homens individualmente. Esse estado comum
não constitui nenhuma essência, tampouco o nome a representa. No entanto, esse
estado comum é postulado por Abelardo como fundamento ontológico para
justificar a atribuição de um mesmo nome a indivíduos realmente distintos.
Façamos aqui uma breve digressão, a fim
de lançar algumas luzes sobre o terreno teórico em que se estende a presente
discussão neste momento. Há dois problemas que se impõem à nossa consideração,
quando volvemos olhares sobre a posição de Abelardo: o primeiro problema
consiste na assunção, por parte de Abelardo, de uma condição ontológica (o estado de ser) que é ela mesma condição
de possibilidade para o emprego de um universal. O segundo problema toca à
noção de universal como flatus vocis,
que entra a fazer parte de uma versão mais extrema de nominalismo e que é
rejeitada por Abelardo em sua teoria.
Vamo-nos deter no exame do primeiro
problema. Se o universal é aquilo que se pode predicar de muitas coisas, o
universal é, do ponto de vista linguístico-cognitivo, uma forma categorial. Por categorização devemos
entender “o processo através do qual agrupamos entidades semelhantes (objetos,
pessoas, lugares, etc.) em classes específicas” (Ferrari, 2011, p. 31). A
linguagem – e nos referimos aqui especificamente à linguagem verbal – tem como
sua função mais básica a função
simbólica. Graças à função de simbolização, as coisas com as quais entramos
em contato no mundo são transformadas em conteúdos de nossa consciência e em
assunto de nossos discursos. O mundo experimentado pelo homem não passa a
integrar a sua consciência de modo bruto e caótico, mas de modo estruturado por
meio das categorias da linguagem, o que significa dizer sob a forma de
conhecimento. Assim, a linguagem é, antes de tudo, um sistema de categorias
através do qual o homem organiza o mundo em uma estrutura dotada de sentido. Em
suma, a linguagem cumpre duas funções basilares: 1) estrutura a experiência
humana do mundo em conteúdos significativos de consciência (função simbólica ou
representativa); 2) torna esses conteúdos comunicáveis no discurso (função
comunicativa ou interacional). Está claro que usamos a linguagem para
categorizar o mundo, para dar-lhe uma ordem, uma forma, uma estrutura. Conforme
sustenta Ferrari (ibid., p. 32):
(...) as línguas se relacionam com um
mundo desorganizado e, muitas vezes, caótico. Ao retratar um indivíduo que se
diferencia dos demais por ter adquirido uma memória prodigiosa, que lhe
permitiria lidar com um léxico bem mais extenso do que aquele disponível no sistema
linguístico de seus interlocutores, o conto lança luz sobre o fato de que não
há uma relação especular entre linguagem e mundo, mas uma relação
necessariamente mediada pela arquitetura cognitiva dos falantes, em termos de
suas características e restrições.
O conto a que alude Ferrari no excerto
supracitado é do escritor Jorge Luís Borges, intitulado “Funes, o memorioso”. O
conto narra a história de Irineu Funes que, após sofrer uma queda de cavalo,
passa a ter uma memória prodigiosa. Transcrevemos o fragmento do qual nos dá testemunho
Ferrari abaixo:
(...) sabia as formas das nuvens
austrais do amanhecer de trinta de abril de 1882 e podia compará-las na
lembrança às dobras de um livro em pasta espanhola que só havia olhado uma vez
e às linhas da espuma que um remo levantou no Rio Negro na véspera da ação de
Quebrado. Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada a
sensações musculares, térmicas etc. (Borges, 2007, apud. Ferrari, ibid.).
Para efeito de categorização do mundo, através da
linguagem, reunimos objetos, atividades ou qualidades em classes específicas.
Assim, atribuímos um nome, seja “árvore”, a um conjunto de objetos semelhantes
(mas não necessariamente idênticos). Como nossas estratégias de categorização
se prendem intimamente à nossa memória, criamos e utilizamos formas categoriais
como universais, a fim de evitar a sobrecarga da memória com um número infinito
de categorias. A sobrecarga da memória seria a consequência imediata, se
tivéssemos de criar uma palavra para cada ente em particular e distinto no
mundo. Consequentemente, o próprio sistema linguístico se tornaria pouco
eficiente para a interação social.
O segundo problema, anteriormente
assinalado, e que toca à noção de flatus
vocis encaminha-nos para a questão sobre a possibilidade de haver conceito
fora dos quadros da linguagem. Haveria possibilidade de formular conceitos, de
representá-los sem alguma forma de linguagem, nomeadamente sem a palavra? Essa
é uma questão que divide em grupos contrários psicólogos, filósofos e
linguistas. Não pretendemos aqui desenvolver uma tese em favor de uma das
posições que põem em desacordo os especialistas. Mas declaramos nossa anuência
à visão de autores como Leibniz, Ortega y Gasset, Fiorin[4] e Vygotsky, para os quais,
não há possibilidade de pensamento conceitual fora dos quadros da linguagem. A
título de exemplo, referimos o que nos diz Gasset, em seu O que é filosofia (1971, p. 83), acerca do conceito:
A teoria é um conjunto de conceitos –
no sentido estrito do termo conceito. E
este sentido estrito consiste em ser conceito um conteúdo mental enunciável. O
que não se pode dizer, o indizível ou inefável não é conceito, e um
conhecimento que consista em visão inefável do objeto será tudo o que os
Senhores queiram, inclusive será, se os Senhores querem, a forma suprema de
conhecimento, mas não é o que visamos sob o nome de filosofia. (grifo nosso).
Escusando deter-nos na concepção que
tem Gasset de filosofia, cumpre-nos chamar a atenção para o fragmento destacado
por nós em negrito. Segundo Gasset, o conceito “é um conteúdo mental
enunciável”. Sublinhe-se que a natureza do conceito, segundo Gasset, é ser um conteúdo mental, mas a condição de
possibilidade para que ele seja um conteúdo mental é que seja passível de
enunciar-se, de modo que “o indizível ou o inefável não é conceito”. De modo
algum, estamos a sugerir que o problema que consiste em saber como a partir de
impressões sensíveis chegamos a formular conceitos esteja assim resolvido. De
resto, Steven Pinker, que, rejeitando todas as versões modernas da Hipótese de
Sapir-Whorf, à luz da qual a língua determina radicalmente o pensamento,
assume, em seu Do que é feito o
pensamento (2008, p. 176), uma posição contrário à dos autores por nós
citados. Para Pinker, a língua não determina o pensamento, pelo menos não no
sentido de alterar de modo surpreendente o modo como pensamos. Por conseguinte,
Pinker, com base em estudos de psicólogos e cientistas da cognição por ele
citados, endossa a visão de que não precisamos da língua para formular
conceitos. Em linhas gerais – já que escapa à alçada desse trabalho um exame
detido das alegações de Pinker -, o autor está convencido, com base nos estudos
empíricos que cita, de que bebês a partir dos doze meses são capazes de fazer
distinções entre objetos permitindo a eles categorizá-los com base nas
diferenças reconhecidas (sem que eles ainda dominem o uso de sua língua
materna, muito embora consigam entender palavras). Para Pinker, é difícil
imaginar como um bebê poderia aprender palavras para uma coisa sem conseguir
antes distinguir as coisas em sua mente. Nas palavras do autor, contudo: “Não é
difícil imaginar como a aquisição da língua funcionaria se as crianças
conseguissem divisar alguns dos acontecimentos e intenções que as cercam e
tentassem mapeá-los em cima dos sons que saem da boca dos pais” (ibid.). Não
obstante, na linha subsequente, admite Pinker que “o modo como um fluxo bruto
de barulho pode criar conceitos na cabeça da criança, do nada, é um mistério”.
Estamos, portanto, envoltos no mistério da simbolização, fenômeno constitutivo
da nossa condição humana.[5] E, enquanto persiste o
mistério que consiste em saber como é possível que de uma sequência articulada
de sons (coisa material) se forme em nossa mente um conteúdo, um significado,
um conceito (coisa inteligível), ou ainda como uma sequência articulada de sons
pode evocar um significado, um conceito em nossa consciência, cuidamos
autorizados a assumir que a palavra funciona como um meio para a formulação de
conceitos.[6] Dada a sua possibilidade
de interiorização, a palavra opera como um meio de contato entre a nossa
consciência, povoada de palavras, e o mundo exterior, também construído de
palavras. Pela consciência, estruturada pelo signo, o homem percebe a si mesmo
na sua relação, entretecida de significados, com o mundo. Esse contato
consciente com o mundo é possibilitado pelas palavras.
Se concordamos com aqueles que entendem
não ser possível a produção e/ou a formulação de conceitos sem a palavra, então
as versões radicais do nominalismo baseadas na compreensão dos universais como
“puros” nomes, como flatus vocis se
revelam absurdas. Urge, contudo, retomar nossas considerações sobre as
respostas de Abelardo. Vejamos como ele responde à segunda questão, qual seja: os universais são corpóreos ou incorpóreos?
Segundo Abelardo, como nomes, os
universais são corpóreos, visto que dotados da natureza material-sonora. De
passagem, note-se aqui que Abelardo restringe o termo nome à parte significante (imagem acústica, estrutura sônica) do
signo. Todavia, acrescenta que, considerada a sua qualidade como termo que
significa uma pluralidade de indivíduos semelhantes, o universal é incorpóreo.
Portanto, as palavras (entenda-se enquanto unidades sonoras) são corpos; mas
seu significado é incorpóreo. Conclui Abelardo daí que os universais são
incorpóreos segundo o modo de significação.
No que tange à terceira questão – os universais existem nas coisas sensíveis
ou fora delas? -, Abelardo sustenta que os incorpóreos são de dois tipos:
há os que existem fora da esfera do sensível, como Deus e a alma, e há os que
existem no sensível como forma dos corpos. Na qualidade de formas dos corpos,
os universais subsistem nas coisas sensíveis; todavia, na medida em que, pela
abstração, designam as formas como separadas dos corpos sensíveis, se acham
para além dos sensíveis. Abelardo acredita poder assim conciliar as posições de
Platão e de Aristóteles: este sustentou que as formas só existem “encarnadas”
nas coisas sensíveis, o que, para Abelardo, é verdadeiro; aquele acreditava que
as formas existem independentemente do sensível, o que, para Abelardo, é
igualmente verdadeiro. Ora, como se depreende da resposta dada por Abelardo
acerca do modo de existência dos universais, o que ele rejeita é certamente um
realismo platônico, mas anui ao realismo aristotélico, segundo o qual os
universais são formas que, embora existindo nas substâncias individuais, podem
ser concebidos pelo intelecto separadamente.
No tocante à quarta questão,
acrescentada pelo próprio Abelardo ao grupo de questões legadas da tradição via
Boécio, a saber: os universais
subsistiriam caso as coisas individuais correspondentes deixassem de existir?
Para Abelardo, extintas as coisas correspondentes aos universais, estes
deixariam de existir apenas enquanto
nomes atribuíveis a várias coisas; mas a sua significação subsistiria, pois
que, malgrado o fato de não existir mais nenhum ente de uma classe determinada,
ainda se pode predicar dele “X não existe” (cf. A rosa não existe).
Segundo Abelardo, faz-se mister
distinguir entre denominação e sentido. Ao se ocupar dos universais,
Abelardo sempre se refere a nomes de coisas existentes, está claro; todavia,
se, por um lado, só podemos denominar coisas existentes; por outro lado,
podemos formar um conceito de coisas inexistentes.
As representações universais são, para
Abelardo, imagens, ficções do entendimento, as quais são semelhantes às coisas.
O entendimento, ao contrário dos órgãos sensoriais, dispensa o objeto corporal
como matéria para a sua atividade. Sendo incorporal, o entendimento se satisfaz
com uma coisa semelhante ao objeto corporal. O semelhante é produzido pelo
intelecto. O que o intelecto retém é sempre a imagem espiritual do objeto
corporal (por exemplo, uma torre).
(...) assim como o ato dos sentidos não é a própria coisa apreendida,
assim também o ato do intelecto não é a própria forma por ele apreendida. O
intelecto é um ato da alma e a forma é o efeito dessa atividade: uma coisa imaginada, uma res ficta. (Boehner & Gilson, 2012,
p. 301, ênfase no original).
Abelardo rejeita a
identificação do conceito com o ato do intelecto. A diferença entre conceitos
universais e conceitos particulares repousa sobre o fato de que, por um lado, o
conceito expresso por um nome universal é uma imagem comum ou indeterminada de
várias coisas; por outro lado, o conceito expresso por um nome particular é a
forma (essência), de certo modo singular, de uma só coisa. Em outras palavras,
pode-se dizer que, para Abelardo, o conceito universal é menos claro, mais
confuso que o conceito particular.
Todo saber universal
deve fundar-se no saber particular. Segundo Abelardo, o conhecimento universal
é verdadeiro apenas na medida em que decorre do conhecimento das coisas
sensíveis individuais; todo pretenso saber que não se funda na realidade das
coisas sensíveis individuais não é mais que mera opinião.
A proposta
conceitualista de Abelardo para dar conta do problema dos universais pode,
então, ser resumida nos seguintes termos: os
universais são consistentes com os nomes que expressam significados; e o
significado é a apreensão da realidade. Todavia, essa apreensão, que resulta de
um ato de compreensão, é uma representação, é um fictum, um objeto do pensamento.
5. O nominalismo de Guilherme de Ockham
Guilherme de Ockham (1300-1349) foi um franciscano
inglês e o principal representante do nominalismo no final da Idade Média. Além
de ter escrito comentários às principais obras de Aristóteles, sobretudo aos
tratados de lógica, Ockham produziu a Suma
logicae, obra que se tornou bastante influente em seu tempo. Ockham é
também conhecido por ter proposto seu princípio de economia, também chamado “a
navalha de Ockham”. Segundo esse princípio, não devemos multiplicar os entes
existentes além do necessário.
Antes de considerarmos a solução proposta por
Ockham para o problema dos universais, faremos uma incursão por sua teoria do
conhecimento e por sua teoria do signo.
5.1. A teoria do conhecimento de Ockham
Para Ockham, a razão não deve visar o abstrato como
objeto próprio, pois que o conhecimento a que ela deve aspirar é o conhecimento
intuitivo, ou seja, baseado na experiência sensível. É a evidência imediata e
intuitiva, não somente abstrata, que garante a verdade e realidade de uma
proposição.
É a existência do particular que se deve buscar.
Com vistas a impedir que a razão se ocupe do que é abstrato, deve-se assumir
que o universal é desprovido de realidade. O intelecto humano deve dedicar-se à
apreensão do particular. Para Ockham, portanto, a única realidade é o
particular. O universal existe apenas na mente do sujeito cognoscente. Essa
tese não é nova, conforme vimos quando do estudo da contribuição de Abelardo;
ela fora sustentada antes de Ockham desde o século XII.
Tudo o que é real fora do pensamento é um
indivíduo. No que toca ao estatuto do universal, Ockham acredita ter sido o
primeiro a negar-lhe existência, consoante ensina Gilson (2013, p. 793),
O que caracteriza a posição de Ockham é que ele parece ter-se
considerado o primeiro a não conceder ao universal verdadeiramente nenhuma
existência real. Portanto, ele acreditou ser o primeiro, não a querer fazê-lo,
mas a conseguir fazê-lo.
Ockham lança por terra toda pretensão de
reencontrarmos através do pensamento uma natureza comum real nas coisas –
natureza que seja una e idêntica, a despeito de suas determinações individuais.
Esperamos fique claro que a solução de Ockham dada ao problema dos universais é
mais radical que a de Abelardo.
A experiência, sustentará Ockham, nada nos ensina acerca das espécies,
porque as espécies jamais são objeto de intuição sensível; e a experiência se
reduz a uma intuição da qual não podemos duvidar. A razão, por sua vez, só pode
demonstrar a necessidade de uma causa somente se a experiência nos permitir determinar
a realidade dessa causa.
Todo saber seguro é aquele estabelecido com base na
evidência. Ockham tem uma predileção pela coisa individual, pela experiência e
pela observação, de modo que “em sua filosofia se percebe o sopro de um
espírito novo, disposto a empreender uma revisão crítica, objetiva e cabal do
patrimônio doutrinal recebido dos predecessores imediatos”. (Boehner &
Gilson, ibid., p. 536).
Estamos de posse de um saber evidente quando a
evidência de um juízo se segue mediata ou imediatamente do conhecimento dos
termos que o constituem. Nossa atenção deve concentrar-se, portanto, nos termos
de nossos juízos, já que é neles que devemos buscar a razão suficiente de sua
evidência. Há juízos suficientemente evidentes e necessariamente verdadeiros pelo
conhecimento que temos de seus termos; outros há, porém, para os quais tal
conhecimento não basta. Esses juízos se dizem, por isso, contingentes.
Faz-se mister, a esta altura, distinguir entre conhecimento intuitivo e conhecimento abstrativo. O conhecimento abstrativo é um saber
acerca de um objeto qualquer, que pode dispensar o recurso a conceitos
universais. Esse saber não pode servir de fundamento de um juízo evidente. O
conhecimento abstrativo prescinde da existência e da presença do objeto conhecido.
Por si só, um conhecimento abstrativo jamais pode assegurar-nos da existência
de uma coisa contingente.
Por seu turno, o conhecimento intuitivo permite-nos um conhecimento imediato do
objeto, além de servir de fundamento de um juízo evidente. Essa forma de
conhecimento é o único que nos possibilita determinar se uma coisa existe ou
não existe, se está ou não presente. Cabe enfatizar que o conhecimento
intuitivo não se realiza pura e simplesmente como conhecimento sensível. O que,
na realidade, temos é um conhecimento intuitivo intelectual dos objetos
percebidos intuitivamente pelos sentidos; a intuição intelectual é
indispensável para um juízo evidente, muito embora, de fato, ela não seja
possível sem a intuição sensível.
Ockham defende a primazia do conhecimento do
singular. Já vimos que, para Aristóteles, o intelecto só pode ter conhecimento
do universal, jamais do singular. Ockham, ao contrário, sustenta que nosso
conhecimento intelectual está baseado no singular, visto que o conhecimento
intuitivo precede o abstrativo, e somente aquele pode fundamentar a ciência.
(Boehner & Gilson, ibid., p. 538).
O objeto e o intelecto são suficientes para
explicar tanto a intuição sensível quanto o conhecimento abstrativo, que dela
decorre. A intuição sensível deixa uma marca, um vestígio de si mesma no
intelecto. Esse vestígio é a imagem, o correspondente ficcional e mental do
objeto dado na experiência sensível. Assim, “como há coisas semelhantes,
formam-se imagens comuns, que valem para todos esses objetos” (Gilson, ib.id.,
p. 800). A universalidade fica, portanto, reduzida a esse conjunto de objetos
semelhantes. A universalidade se engendra no pensamento em função da ação das
coisas individuais sobre o intelecto.
Ockham aceitará todas as proposições que se apresentam
como objetos de fé, porquanto calcadas na Revelação (disso não devemos
duvidar!); mas não admitirá que elas sejam tomadas como verdades demonstráveis.
Portanto, haverá nele um sentimento
vivíssimo da independência absoluta de um filósofo enquanto tal e uma tendência
extremamente acentuada a relegar todo o metafísico ao domínio teológico, e um
sentimento não menos vivo da independência do teólogo que, certo das verdades
da fé, dispensa facilmente o socorro caduco da metafísica (...). (Gilson,
ib.id.).
Consonante com o princípio segundo o
qual fora da intuição não há conhecimento certo, a teoria do conhecimento
proposta por Ockham tem como postulado a ideia de que as proposições são “como
matéria de que é feito o saber”. (Gilson, ib.id., p. 794). As proposições se
constituem de termos (pensamentos) que são os universais. Esses termos só podem
ser objeto de ciência, em proposições, porque dotados de significado. O termo
significa um objeto, porquanto “faz as vezes”, isto é, está no lugar deste
objeto na proposição. Chama-se suppositio
a essa função do termo que substitui na proposição o objeto dado na experiência
sensível. Há três casos de suppositio:
1º caso: o termo significa a palavra
que o constitui: o homem é uma palavra.
Aqui, “homem” faz as vezes (significa) da palavra “homem”. Trata-se de um caso
de suppositio materialis.
2º caso: o termo significa indivíduos
reais. Por exemplo: um homem corre.[7] Nesse caso, diz-se que um
indivíduo humano corre, uma pessoa corre. Chama-se a essa suposição suppositio personalis.
3º caso: o termo significa algo comum.
Por exemplo: o homem é uma espécie.
Aqui “homem” não significa um indivíduo, mas simplesmente uma comunidade, uma
classe. Chama-se a essa suposição suppositio
simplex.
A teoria da suposição foi a base para
todo o desenvolvimento da teoria semântica medieval. Os termos já são dotados
de significado quando tomados isoladamente. Eles sempre significam; mas, quando
se acham na estrutura proposicional, adquirem uma nova propriedade semântica,
que é a suposição.
Antes de considerarmos, em linhas
gerais, o que Ockham tem a nos ensinar sobre o signo, nomeadamente sobre o
signo linguístico, não nos podemos escusar de trazer à baila os dois modos sob
os quais se apresenta o conhecimento intuitivo.
Cremos esteja claro que o conhecimento
intuitivo, para Ockham, constitui a base do conhecimento humano, ou melhor, é o
próprio conhecimento experimental. Convém, agora, distinguir entre dois modos
sob os quais se apresenta o conhecimento intuitivo: 1) conhecimento intuitivo sensível; 2) conhecimento intuitivo intelectivo. Essa distinção já pode ser
entrevista em nossas considerações precedentes; mas somente a partir de agora
lhe esclareceremos o valor teórico conferido a ela por Ockham. Essa distinção
corresponde à distinção entre dois atos do intelecto: o ato apreensivo e o ato
judicativo.
O ato
apreensivo é aquele mediante o qual o intelecto apreende tanto um complexo
quanto um incomplexo. De passagem, notemos que um complexo é uma proposição
inteira (p. ex. O homem é um animal). Esse complexo pode ser um termo de um
complexo, como em “O homem é um animal é uma verdade científica”. Nesse caso, a
proposição (complexo) “O homem é um animal” preenche a posição de sujeito na
proposição complexa “O homem é um animal é uma verdade científica”. Por sua
vez, um incomplexo é um termo, como o constituinte “o homem”, na função de
sujeito da proposição “O homem é um animal”.
Pelo ato apreensivo, o intelecto
entende uma proposição e retém de modo direto o objeto existente. Por outro
lado, o ato judicativo habilita o
intelecto para julgar sobre a verdade de proposições existenciais, relativas ao
objeto apreendido. O ato de julgar pressupõe o ato de apreensão.
O conhecimento intuitivo sensível,
portanto, capacita o intelecto para apreender, de forma direta e imediata, os
mesmos objetos singulares apreendidos pelos sentidos corporais. Deve-se ficar
evidente que Ockham assume há um contato direto do intelecto com a realidade.
Sem essa apreensão direta, o intelecto não poderia formular juízos
contingentes. Com base no conhecimento das coisas individuais, podemos formular
proposições gerais, as quais constituem a base da ciência.
Quando um objeto sensível, por exemplo,
um “copo”, afeta nossos sentidos, produz-se, nesse contato, nessa afecção, um
conhecimento intuitivo desse objeto. Posteriormente, esse conhecimento
intuitivo nos sentidos causa um conhecimento intuitivo no intelecto. Resultam
daí o conhecimento intuitivo sensório e o conhecimento intuitivo intelectual do
mesmo objeto, a saber, daquele objeto individual (o copo) que atua sobre nossos
sentidos por meio de uma causa eficiente.
Ockham nega que o intelecto retenha
primariamente o universal. Na verdade, quando vemos um “copo”, nosso intelecto
adquire um conhecimento intuitivo
sensório e um conhecimento intuitivo intelectual causado pelo “copo”. Assim, o
intelecto, mediante o conhecimento intuitivo, conhece intelectivamente a mesma
coisa singular que é percebida pelos sentidos.
Quando um julgamento é produzido por
força do conhecimento intuitivo, são o conhecimento intuitivo sensório e o
intuitivo intelectivo que, conjuntamente, julgam sobre a verdade da existência
ou não existência do objeto que está sendo conhecido intuitivamente.
O julgamento não é, por si mesmo, um
conhecimento intuitivo, se bem que ele só é possível em virtude do conhecimento
intuitivo. O conhecimento intuitivo (que é o conhecimento direto e imediato que
o sujeito cognoscente tem do objeto singular que se dá à sua experiência
sensível) faculta o intelecto para conhecer o objeto de modo sensível e
intelectivo.
Jamais apreendemos um universal por meio
de um conhecimento intuitivo, mas sim por meio de um conhecimento abstrato, o
qual se segue ao conhecimento intuitivo. Para Ockham, o conhecimento intuitivo
torna possível ao intelecto conhecer direta e imediatamente o objeto singular sem precisar postular “espécies”.
Segundo Ockham escusa recorrer a
espécies, para explicar nossa capacidade de reter alguma coisa da qual tivemos
conhecimento intuitivo num momento anterior e na ausência dessa coisa. O
conhecimento intuitivo - ensina Ockham - produz no intelecto um hábito. Assim,
sempre que há conhecimento intuitivo de um objeto dado, o intelecto passa a
adquirir uma propensão para o mesmo tipo de ato. O recurso à ideia de “espécie”
torna-se, assim, supérfluo.
5.2.
O signo linguístico segundo Ockham
Sem pretender alongar-nos sobre este tema, procuraremos recolher dele os
elementos que nos parecem intimamente ligados à concepção ockhamiana dos
universais.
Na história do pensamento linguístico, o signo é definido como algo que
está por outra coisa. Dizer que o signo significa é dizer que ele remete a algo
fora de si. O signo, no sentido estritamente linguístico, é qualquer unidade
formada pela união de um significado (ideia, conceito) a uma imagem acústica
(que Saussure chamará, posteriormente, no texto do Cours, de significante).
Para ilustrar o que é o signo, Saussure se vale da unidade linguística que chamamos
de “palavra”. A palavra lobo, por exemplo, é um signo, porque
reúne o significado mamífero carnívoro da família canidae’ ao
significante /lobo/. É preciso frisar, no entanto, que o
significante, na concepção saussureana, não é o som em si, fenômeno material e
físico, mas “a impressão psíquica do som”. Portanto, significante e significado
são ambos faces do signo definidas a partir do domínio psíquico. O significante
não é a sequência sonora em si, mas a impressão psíquica que ela evoca no
falante.
Ockham seguindo uma tendência que se consagrará na semiótica toma o
signo em duas acepções. No primeiro sentido, o signo é tudo aquilo que, uma vez
apreendido, torna conhecida outra coisa. Todo signo significa; e significar
consiste numa relação que associa a cada signo vários indivíduos.
O segundo sentido de signo, mais estrito, recobre a noção de signo
linguístico. Nesse horizonte de sentido estrito, Ockham mantém que o signo é
aquilo que traz algo à cognição e que se caracteriza por uma função
suposicional, isto é, ele faz as vezes da coisa significada numa proposição. O
signo linguístico, dotado de função significativa, produz uma intelecção primária
(não necessariamente rememorativa). Por força de sua função suposicional, o
signo linguístico ocupa o lugar da coisa significada na estrutura
proposicional.
Acompanhando de perto Boécio, Ockham afirma existirem três tipos de
signos linguísticos, também chamados de termos: falados, escritos e mentais. A
esses três tipos correspondem três tipos de proposições: faladas, escritas e
pensadas. Consoante Ockham, os termos mentais, entendidos como conceitos,
intenções ou paixões da alma) integram proposições mentais e significam
naturalmente algo e o supõem. Os termos mentais e as proposições que eles
integram estarão na base da formulação da hipótese de uma linguagem mental, que
terá ressonâncias na Linguística moderna com a Gramática Universal de Noam
Chomsky e na filosofia e ciências cognitivas com a linguagem do pensamento de
Jerry Fodor. Assim, segundo Ockham, há signos linguísticos mentais (ou
conceitos) que são comuns às diferentes comunidades humanas. A significação dos
signos mentais é natural. Esses signos linguísticos mentais comporiam uma
Linguagem Mental, que difere da linguagem convencional, a qual varia de uma comunidade
de falantes para outra.
Uma das noções mais influentes desenvolvidas por Ockham e cujo alcance se
pode apreender em muitas áreas de seu pensamento é a de conotação ou significação
secundária. O núcleo de sua teoria da conotação recobre a distinção entre
termos absolutos e termos conotativos. Os termos absolutos comportam a)
significação primária determinada, ou seja, referem-se a cada um dos objetos
dos quais são verdadeiramente predicados. O exemplo típico é o termo “animal”,
que significa direta e definidamente o
homem, o asno, o gato e todos os animais. Ademais, os termos absolutos b)
não tem significação nominal, mas uma definição real.
Termos conotativos, por outro lado, exibem a) definição nominal e b) uma
significação primária e uma significação secundária. Os termos conotativos não
apenas significam as coisas das quais são verdadeiramente predicados, como
também significam outras coisas das quais não são predicados. O termo “branco”
é um exemplo de termo conotativo. Segundo Ockham, ele designa primariamente o
objeto branco, e só secundariamente a propriedade ‘brancura’ possuída pelo
objeto. Escapa à alçada deste trabalho uma discussão pormenorizada sobre esse
ponto; interessa-nos muito mais patentear a ideia de que o termo absoluto tem
relevância ontológica, na medida em que ele se forma a partir de nossa
experiência direta com as coisas que ele significa.
A teoria da conotação é, para Ockham, um dispositivo importante para a
redução ontológica, visto que, através dela, ele limita a necessidade de propor
certas entidades como reais.
Vamo-nos debruçar, doravante, sobre a resposta dada por Ockham ao
problema dos universais.
5.3.
Os universais segundo Ockham
Principiemos por assinalar a questão que esteve no centro da discussão
sobre o problema dos universais antes mesmo de Ockham: como explicar que seja possível ao pensamento formar as noções de
espécie e de gênero a partir de conjuntos de indivíduos aparentemente sem nada
em comum?
Ao se confrontarem com essa questão, tanto Abelardo quanto Ockham
concordam em acolher os seguintes dados principais em jogo:
1)
Uma vez que tudo o que é real é
individual, os gêneros e as espécies não são nada fora do pensamento;
2)
É certo que os indivíduos se prestam,
não obstante, a ser classificados pelo pensamento em gêneros e em espécies.
Levando em consideração o que já vimos a respeito da teoria do
conhecimento proposta por Ockham, não resta dúvida de que, para ele, a única
realidade que corresponde aos universais é, pois, a dos indivíduos. Vimos
também, quando nos ocupamos daquela teoria, que o termo encerra, além da função
significativa, uma função suposicional. O termo que significa indivíduos reais
encerra uma supposittio personalis (cf.
um homem corre).
A doutrina de Ockham destinada a dar conta do problema dos universais
repousa sobre a função de supposittio
personalis. Assim, os nomes comuns designam conceitos, isto é, significam
objetos confusamente conhecidos. Por outro lado, os chamados nomes próprios
designam um ser real e distinto de qualquer outro.
Segundo Ockham, o intelecto chega aos conceitos universais por meio do
processo de abstração da apreensão intuitiva de objetos singulares. Ockham nega
que haja nas coisas alguma espécie de universalidade correspondente aos
conceitos universais. Ele não nega a existência, fora do espírito, de objetos
correspondentes aos nossos conceitos. O que ele recusa é a crença em que exista
encarnado nas coisas algo que corresponda à universalidade dos conceitos. Ora,
para Ockham, a coisa real é essencialmente individual; e um universal existente
na realidade seria um absurdo. Assim, não existe, no mundo da experiência
sensível (no nosso mundo), um universal como “o homem”, mas tão somente homens
individuais.
Ockham rejeita também a opinião realista moderada, atribuída por ele a
Duns Escoto, segundo a qual existiria, em cada coisa individual, uma natureza
em si ou comum que, não sendo universal nem individual por si mesma, é
apreendida pelo intelecto como universal.
Em suma, Ockham recusa todas as posições daqueles que advogam a
existência de qualquer espécie de universalidade – de natureza, de essência, de
forma, etc. – que preceda à coisa individual ou dela seja diversa (Boehner
& Gilson, ibid., p. 539).
Para Ockham os universais são intelecções das coisas individuais. Se,
por um lado, ele foi consistente na sua rejeição de um universal encarnado nas
coisas; por outro lado, descurou da clareza ao tratar da natureza do universal
no espírito do sujeito cognoscente.
Nesse tocante, Ockham recusou, sem hesitar, a opinião segundo a qual o
universal é uma entidade mental, cujo ser consiste exclusivamente em ser objeto
de pensamento. Ockham se inclina a assumir a passividade do intelecto, no qual
a coisa deixa um vestígio de si mesma, uma imagem. Depois de alguma hesitação,
termina por endossar a teoria segundo a qual o universal é um acidente
espiritual da alma e, finalmente, atendendo no princípio de economia que lhe
proíbe multiplicar as coisas além do necessário, assume a teoria da intelecção.
De acordo com essa teoria, o universal não é mais que o pensamento real pelo
qual as coisas são pensadas. O universal é um acidente da alma. Ele é singular,
enquanto coisa espiritual e real; mas universal, enquanto predicável de muitos
indivíduos. Segue-se daí a conclusão a que dão assentimento Gilson &
Boehner (ibid, p. 540), nos seguintes termos:
Por onde se vê que Guilherme é injustamente acusado de nominalismo ou,
ainda, de ceticismo. Segundo ele, o ser conceptual não se reduz a simples
palavras, arbitrariamente aplicadas às coisas; os conceitos são conhecimentos
da realidade e se baseiam na realidade– não, certamente, numa substância
universal, e sim nas coisas individuais. Pelo
que sua doutrina deve ser chamada de conceptualismo realista. (grifo
nosso).
Segundo Ockham, a passividade do intelecto assegura a objetividade do
conhecimento. É suficiente, para a aquisição do conhecimento, que o intelecto
se confronte com um objeto particular. Sempre preocupado em preservar a
objetividade do conhecimento, Ockham recusa tudo o que poderia interpor-se
entre o intelecto e o seu objeto, mormente as chamadas espécies, concebidas
como meios de conhecimento. Tais meios são supérfluos, visto que bastam o
objeto e o intelecto para que o conhecimento seja possível.
6.
Considerações finais
Comecemos por notar que Abelardo e Ockham concordam em negar aos
universais qualquer estatuto ontológico. Para os dois pensadores cristãos, os
universais não existem como essências no mundo; para ambos, o real se reduz ao
individual. Abelardo, no entanto, chega a assumir que o universal não é mais
que o significado dos nomes. Particularmente importante é a sua crença de que
as coisas se prestam a ser predicadas com universais. Ainda que rejeite que o
universal por si mesmo tenha uma realidade, Abelardo advoga que somente são
reais os estados comuns, ou seja, “o estado de ser X” (por exemplo, o estado de
ser homem). Para Abelardo, é dessa realidade que devemos partir para explicar
como é possível ao intelecto chegar ao universal. Segundo Abelardo, é pelo
processo de abstração que o intelecto pode formar em si o universal. Os
universais são tão somente seres de razão; só existem no pensamento e só podem
designar coisas realmente existentes por força de sua significação nominal.
Nesse sentido, Abelardo não nega que os universais sejam dotados de
significado. Sua concepção de estados comuns explica por que podemos usar o
mesmo nome para se referir a vários indivíduos.
Guilherme de Ockham concorda com Abelardo na crença de que o universal é
desprovido de realidade, mas escusa a postulação de alguma instância
ontológica, como a de estado de ser,
que dê conta do fato de ser possível ao intelecto chegar aos universais. Uma
consequência radical de sua teoria do conhecimento é a redução da universalidade
ao conjunto de objetos singulares semelhantes. O universal se produz no
pensamento por força da ação das coisas individuais sobre o intelecto. Resulta
desnecessário recorrer à noção de espécies, porque a capacidade da linguagem
habilita os seres humanos a utilizar nomes para designar conjuntos de
indivíduos que se apresentam ao intelecto como dotados de características
semelhantes.
Procuramos problematizar a interpretação tradicional de Ockham como um
expoente do nominalismo, aludindo, para tanto, à posição de Boehner &
Gilson (2012). Em que pese a possibilidade de encontrar no pensamento
ockhamiano traços de uma compreensão conceitualista do problema dos universais,
não se segue que o conceitualismo de Ockham pode ser identificado com o de Abelardo.
Lembremos que Abelardo não chega a atingir o grau de radicalidade no tratamento
da questão a que chegou Ockham. Oportuno é ver que, em face da questão que
consiste em determinar se os universais existem nas coisas sensíveis ou fora
delas, Abelardo busca conciliar a posição de Platão com a de Aristóteles. Nesse
sentido, discriminando dois tipos de incorpóreos – os que existem fora da
esfera do sensível, a saber, Deus e a alma, e os que existem no sensível como
forma dos corpos -, Abelardo manterá que os universais subsistem nas coisas
sensíveis na qualidade de formas dos corpos; mas acresce que se acham para além
das coisas sensíveis, quando, pela abstração, designam as formas como separadas
dos corpos sensíveis. Por outro lado, mesmo quando Ockham parece aceitar a
ideia de que os universais sejam conceitos, ele recusa noções como “espécie” e
“forma”, que se interporiam entre o intelecto e o objeto. O caráter espiritual
do universal não depende de que ele seja concebido como forma que, pela
abstração, se separa das coisas sensíveis; e sua universalidade decorre do fato
de que usamos um mesmo nome para predicar de vários indivíduos.
______________________________________________________
7.
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PINKER, Steven. DO QUE É FEITO O PENSAMENTO. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.
REALE, Giovanni; ANTESERI, Dario. História da filosofia: patrística e
escolástica, V.2. São Paulo: Paulus, 2003.
_________________. Aristóteles. São Paulo: Edições Loyola,
2007.
[1]
“Empirismo abstrativo” é
uma expressão adotada pelo professor Rogério Soares da Costa (UERJ) à luz da
qual ele entende a teoria do conhecimento aristotélica.
[2]
Na Semântica Estrutural, um
ramo de estudo da Linguística moderna, tais propriedades do conceito serão
consideradas como semas, ou os traços
semânticos distintivos mínimos nos quais podemos decompor o significado de uma
palavra.
[3]
Na escolástica, a existência, sendo uma das divisões do
ser, designa simplesmente “o fato de ser”, o fato de ser realmente, de ter uma
existência substancial. É nesse sentido que devemos interpretar a ideia de que
os universais não existem realmente, como sustentam os conceitualistas e os
nominalistas. Dizer que os universais não existem significa dizer que eles
carecem de consistência ontológica, ou seja, eles só existem como seres de razão,
mas não são entes de um mundo “objetivo”.
[4]
FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. São Paulo:
Ática, 2005. Nesse livro, escreve o autor: “(...) se dissermos que o
caracteriza o pensamento humano é seu caráter conceptual, o pensamento não
existe fora da linguagem” (p.33).
[5]
É, no mínimo, discutível a
crença em que, no momento em que o bebê parece capaz de reconhecer diferenças
entre as coisas, ele está fazendo uma operação conceitual, visto que a
característica fundamental do conceito consiste em permitir ao ser humano a
libertação do contexto perceptual imediato, pelo concurso do processo da
abstração e generalização possibilitado pela linguagem. As distinções que o
bebê parece fazer podem ser ainda resultados de processos sensório-cognitivos,
mas ainda não propriamente conceituais, já que as distinções ainda não foram
organizadas sob a forma de uma representação mental “descolada” dos dados
sensoriais e passível de enunciação na ausência dos objetos sensíveis das quais
elas são características.
[6]
Segundo Peirce (1977), o
signo só pode representar seu objeto para um intérprete, e porque representa
seu objeto, produz na mente do intérprete alguma outra coisa (um signo ou quase
um signo), a qual está relacionada ao objeto não diretamente, mas por
intermédio do signo. Peirce chama interpretante
ao processo relacional que se produz na mente do intérprete. Assim, a partir da
relação de representação que o signo mantém com seu objeto, produz-se na mente
do intérprete um outro signo, que traduz o significado do primeiro (é o
interpretante do primeiro). Segue-se daí que o significado de um signo é outro
signo (seja uma imagem mental, uma palavra, uma ideia, um sentimento de
alegria, raiva, etc.), porque o que é criado por um signo na mente do
intérprete é sempre outro signo.
[7] Gilson (ib.id., p. 794) refere o enunciado o homem corre que, fora do contexto discursivo, autoriza a interpretação contrária à que ele propõe. O uso de expressões definidas formadas de artigo definido permite a recuperação de um referente já introduzido no texto e, por isso, já presente na memória do interlocutor/leitor como informação dada (cf. Dom Casmurro é um clássico da literatura brasileira. O romance, de autoria de Machado de Assis, já foi traduzido para muitas outras línguas). A expressão definida “o romance”, introduzida do artigo “o”, retoma “Dom Casmurro”. A par desse uso anafórico, o artigo definido pode integrar um sintagma nominal de valor genérico, como em “O romance é um gênero literário”. Por outro lado, o artigo indefinido, embora tenda a não favorecer a identificação do referente, serve, de modo geral, para a individualização desse referente. (cf. Ele alugou um apartamento na Barra). O problema do enunciado o homem corre, citado em Gilson, é que ele significa “todos os homens correm”, “o conjunto total dos seres humanos é caracterizado pela propriedade de correr”. A interpretação que ele autoriza imediatamente é uma interpretação do tipo genérica, à luz da qual “o homem” refere-se à classe, ao gênero e não a um indivíduo em particular. Nossa opção pelo enunciado “um homem corre” atende à necessidade de tornar possível uma interpretação do tipo "individuante".