quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Trabalho apresentado como requisito para a aprovação na disciplina EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO LINGUÍSTICO no curso de doutoramento / 2010

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O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NAS ABORDAGENS FORMALISTA E FUNCIONALISTA: UMA BREVE DISCUSSÃO


1. Introdução

“(...) é o ponto de vista que cria o objeto”

(Saussure)

 

As reflexões que se estenderão ao longo destas páginas se orientam pela admissão de que a pluralidade teórica da Linguística é necessária e inevitável, porquanto seu objeto de estudo – a linguagem – é heterogêneo, multifacetado e heteróclito. Rechaçamos, portanto, qualquer visão teórica que se pretenda reducionista ou radical e nos baseamos na lição de Neto, em Ensaios de Filosofia da Linguística (2004), segundo a qual cada teoria opera um recorte sobre a realidade, instaurando, assim, seu objeto observacional, o qual constitui “a “região” que a teoria privilegia como foco de sua atenção e é constituído por um conjunto de fenômenos observáveis” (p. 35). É na base do estabelecimento de seu objeto observacional que se erigirá o objeto teórico; este se define por um conjunto de entidades básicas, de pressupostos e de objetivos, além de se fundamentar numa metodologia específica. Veja-se, a título de esclarecimento, o seguinte passo de Neto:

 

“Teorias diferentes podem construir objetos teóricos distintos sobre um objeto observacional que é supostamente o mesmo, bastando para isso reconhecer entidades básicas, predicados e relações no objeto observacional”.

(p. 37)

 

 

Das palavras do eminente linguista, pode-se depreender que o objeto observacional diante do qual estão os gerativistas e os funcionalistas, por exemplo, é o mesmo, a saber, a linguagem. No entanto, o modo como ela será concebida, o aparato conceitual e metodológico de que lançarão mão para estudá-la, os objetivos perseguidos, os pressupostos em que se apóiam serão determinantes da diferença entre dois objetos teóricos – o dos gerativistas e o dos funcionalistas. Destarte, gerativismo e funcionalismo não se ocupam do mesmo objeto teórico. E devemos reconhecer, eticamente, que isso não constitui problema algum; problema há quando se notam atitudes que engendram rivalidades e menosprezo pelo trabalho do outro.

Conquanto nos alinhemos com a perspectiva funcionalista, acreditamos ser equivocada qualquer atitude ou posição que ignore a herança formalista da qual a Linguística moderna, desde Saussure, é devedora. Que a língua seja um sistema de signos, uma estrutura, um sistema de frases, um sistema simbólico responsável por estruturar a realidade, uma atividade intersubjetiva socialmente fundada, etc. – disso não temos dúvida. Resta avaliar as vantagens que nos proporciona a escolha de uma ou outra concepção.

 

1.2. Objetivo

 

Nosso intento é discutir de que modo as abordagens formalista e funcionalista se diferenciam, tendo como parâmetro orientador o conceito de competência.

Evidentemente, dada a natureza desta exposição, não se empreenderá uma discussão exaustiva; vamo-nos cingir aos aspectos fundamentais da distinção entre as duas abordagens, que estejam intrinsecamente relacionados ao conceito de competência.

Visto que os rótulos formalismo e funcionalismo recobrem um vasto espectro de teorias ou abordagens, será necessário fazer algum tipo de abstração. Como representante da abordagem formalista, consideraremos, para efeito de discussão, o gerativismo, tal como foi desenvolvido e propalado pelo seu maior expoente – Noam Chomsky (1957)[1]; por outro lado, vamo-nos ater ao funcionalismo desenvolvido e divulgado por Halliday.

 

 

2. Formalismo e Funcionalismo: uma breve discussão

 

 

Entendendo ser toda teoria um conjunto sistemático de enunciados e conceitos, portanto, um todo coeso e coerente, é lícito afirmar que cada conceito terá sua validade dentro do universo teórico específico no qual é desenvolvido. Ademais, a reflexão sobre um dado conceito permite-nos apontar caminhos que nos levarão ao reconhecimento das bases em que se estabelece a distinção entre duas (ou mais) correntes teóricas.

Para o que nos compete aqui, o conceito de competência é um grande indicador da distinção entre uma e outra corrente teórica. Vamo-nos ocupar, num primeiro momento, em defini-lo no interior do gerativismo; posteriormente, traremos à baila o modo como ele foi reinterpretado e desenvolvido na abordagem funcionalista.

 

 

2.1. A competência linguística no gerativismo

 

Em Estruturas Sintáticas (1980)[2], Chomsky se refere à competência linguística da seguinte forma:

 

“(...) capacidade de um falante do inglês para produzir e compreender novos enunciados rejeitando, simultaneamente, outras sequências novas como não pertencentes à língua”.

(p. 26)

 

 

Dispensando o fato de que neste trabalho, na medida em que constitui uma descrição do inglês, o autor trate da competência relativamente a uma comunidade linguística específica – a dos falantes de inglês, importa notar que esse conceito envolve duas espécies de conhecimento: um operacional; outro avaliativo. Assim, é a competência linguística de que todo falante nativo dispõe que lhe permitirá produzir (e compreender) enunciados em sua língua materna, bem como avaliar as construções dessa língua relativamente ao conjunto de regras previstas pela sua gramática.

 Destarte, serão consideradas gramaticais as construções que resultaram da aplicação das regras previstas pela gramática de sua língua materna; e agramaticais, as que não resultaram dessa aplicação. Evidentemente, a gramaticalidade não se resolve em polos opositivos, mas sobre uma gradação em termos de aceitabilidade.

Em Linguagem e Linguística – uma introdução (1987), Lyons apresenta aquilo que será um aspecto determinante da diferença de compreensão do conceito de competência nas abordagens gerativa e funcionalista.

 

“A competência linguística de um falante é um conjunto de regras que ele construiu em sua mente, pela aplicação de sua capacidade inata para a aquisição da linguagem aos dados linguísticos que ele ouviu à sua volta na infância (...)”.

(p. 173)

 

 

Note-se que o autor alude à relação entre a competência linguística e a hipótese inatista da aquisição da linguagem, segundo a qual a criança nasce com um programa, geneticamente determinado, chamado de Gramática Universal, que lhe permitirá, por um processo de desenvolvimento e maturação, o conhecimento e domínio de sua língua materna. A Gramática Universal é a própria faculdade da linguagem e constitui um conjunto de princípios e parâmetros, na base dos quais a criança irá operar com vistas a se tornar um falante competente em sua língua materna[3]. Os princípios constituem as regras “gerais”, isto é, comuns a todas as línguas; os parâmetros são as regras (ou valores) específicas de uma dada língua. Cabe à criança selecionar, a partir de um input (um conjunto determinado de produções linguísticas a que ela está exposta), a forma que um dado parâmetro tomará na língua em cuja aquisição ela se empenha.

Acrescente-se que a Gramática Universal pode ser vista como uma espécie de programa computacional, responsável pela produção dos enunciados linguísticos. Consoante essa perspectiva, a língua passa a ser considerada um conjunto de sentenças resultantes da operação das regras dessa gramática.

A competência linguística se desenvolve, portanto, na base de uma aptidão inata para a aquisição da linguagem. Na perspectiva gerativista, não é possível pensar a competência sem postular a existência de uma gramática universal inata que está inscrita na mente/cérebro do falante nativo. Nisso residem a coesão e a coerência a que nos referimos anteriormente: não podemos discutir o conceito de competência sem pensá-lo em sua relação com outros conceitos e sem situá-lo na totalidade do quadro teórico de que se origina. É a essa tarefa que nos dedicaremos doravante.

O conceito de competência linguística evoca o conceito de performance ou desempenho. A relação entre competência e desempenho, na forma como Chomsky a apresenta, deve ser pensada dicotomicamente. De um ponto de vista heurístico, a dicotomia competência/ desempenho tem o mesmo valor da dicotomia saussureana langueparole: visa a delimitar o objeto de estudo e, portanto, a determinar a área de interesse da ciência linguística. Tanto a parole saussureana quanto o desempenho chomskiano constituem domínios que estão fora da alçada da Linguística. Lyons dá-nos a saber a definição de desempenho.

 

Desempenho (...) é o comportamento linguístico; e é determinado não apenas pela competência linguística do falante, mas também por uma variedade de fatores não linguísticos que incluem, por um lado, convenções sociais, crenças acerca do mundo, as atitudes emocionais do falante em relação ao que está dizendo, seus pressupostos sobre as atitudes de seu interlocutor, etc. e, por outro lado, o funcionamento de mecanismos psicológicos envolvidos na produção de enunciados”.

 

 

É interessante ver a cisão entre o que diz respeito propriamente ao conhecimento do sistema de regras da língua (da sua gramática) e o que diz respeito ao uso desse sistema. O objeto de estudo do gerativismo será, pois, a competência linguística, e os modelos teóricos ou as gramáticas produzidas constituem hipóteses que visam a descrever e explicar essa forma de conhecimento inato e específico que todo falante nativo tem de sua língua materna.

Na medida em que é feita a separação rigorosa entre competência e desempenho, o primeiro conceito ganha coerência na sua relação com a ideia de um falante nativo ideal inserido numa comunidade linguística homogênea. A preocupação repousa em descrever a competência desse falante abstraído do contexto sócio-cultural; não de um falante concreto e específico, mas do falante-modelo concebido para representar a perfeição atribuída à competência linguística.

Sabe-se que o gerativismo privilegia o estudo da forma em detrimento do uso da língua, o que justifica o fato de ser considerado uma corrente representante do formalismo. No entanto, é preciso reconhecer que a forma (estrutura) é estudada de um ponto de vista interno, o que o diferencia, em parte, do estruturalismo, que se apóia num ponto de vista externo. Assim é que a estrutura da língua resulta da operação das regras da gramática internalizada do falante. A preocupação gerativista recairá sobre o componente subjacente, implícito, não-verificável imediatamente. É claro que não se pode ter acesso à competência linguística do falante nativo senão por meio de suas produções; mas tais produções não exibem tudo que é necessário para descrever e explicar essa competência. Para tanto, os linguistas gerativistas postulam a existência de um nível subjacente, chamado estrutura profunda[4], sobre a qual é calcada a estrutura superficial, dotada de configurações fonético-fonológicas e imediatamente perceptível auditiva ou visualmente.

Como não seja nosso objetivo fazer densa incursão nas especificidades da abordagem gerativa, cuidamos ser necessário retomar a questão central em torno da qual nossa discussão se desenvolve. A esta altura, cumpre notar que o modelo gerativo surge como reação à visão reducionista e mecanicista de linguagem comum aos behavioristas, dos quais o linguista Leonard Bloomfield foi um representante.

O conceito de competência linguística foi a solução encontrada por Chomsky para as dificuldades que permeavam a explicação da aquisição da linguagem pelos behavioristas. Tratava-se de uma explicação de base mecanicista, orientada por um modelo do tipo estímulo-resposta, com o qual era explicado também o comportamento de certos animais. Com o conceito de competência, Chomsky fez ver à comunidade científica a importância da criatividade no processo de aquisição da linguagem; e mais ainda: a criatividade, segundo o eminente linguista, é uma propriedade basilar que distingue os homens dos animais (e das máquinas).

Gostaríamos de pôr termo a essa seção insistindo em que a separação rigorosa entre competência e desempenho implica a necessidade de pensar o conhecimento linguístico inato como algo desvinculado de outras capacidades cognitivas humanas. Assim, cremos não incorrer em erro ao afirmar que a competência linguística é considerada uma forma de conhecimento autônomo.

 

 

2.2. A competência linguística no funcionalismo: uma perspectiva estendida

 

No artigo intitulado de Language, Context, and Text: Aspects of Language in a Social-semiotic Perspective (1989), Halliday e Hasan suscitam a questão sobre o conceito de função. Note-se o que nos ensinam os autores:

 

“In the simplest sense, the word ‘function’ can be thought of as a synonym for the word ‘use’, so that when we talk about functions of language, we may mean no more than the way people use their language, or their languages if they have more than one”.

(p. 15)

 

 

Como se vê, função identifica-se com uso. Pensar em função é pensar na finalidade com que a linguagem é usada, no papel que ela desempenha para os seres humanos. Para os autores, “people do different things with their language” (ib.id.).

Em An Introduction to Functional Grammar (1994), Halliday, no capítulo Clause as exchange, apresentará as quarto funções do discurso que considera primárias: offer (oferta), command (ordem), statement (declaração) e question (pergunta) (p. 69). Pensar a função é, então, pensar o que fazemos quando usamos a língua.

Num estudo exaustivo e minucioso, intitulado de A Gramática Funcional (2004), Neves, discutirá, no primeiro capítulo, a questão das funções da linguagem, preocupando-se, inicialmente, em nos oferecer um quadro sintético, mas não menos esclarecedor, das diferentes formas de se entender o conceito de função. Segundo a autora,

 

“(...) função pode designar as relações:

a) entre uma forma e outra (função interna);

b) entre uma forma e seu significado (função semântica);

c) entre o sistema de formas e seu contexto (função externa)”.

(p. 6)

(ênfase no original)

 

 

Claro está que a última concepção de função é a mais emblemática da perspectiva funcionalista, uma vez que ela nos permite entrever a necessidade de pensar a função em termos da relação entre língua e uso. Nessa relação é que reside a pedra angular do funcionalismo, que se pode exprimir no seguinte princípio: o uso exerce influência sobre a forma linguística. Na perspectiva de um funcionalista, as línguas têm a forma que têm em virtude do uso que delas é feito. Como o uso demanda a mobilização não só da competência linguística, mas também de outras formas de competência ou capacidades, a forma sofrerá pressões de ordem cognitiva e pragmática.

Convém ter em conta até aqui o deslocamento operado pela perspectiva funcionalista: da ênfase sobre a forma passa-se para a ênfase sobre a função; da preocupação com a forma passa-se para a preocupação com o uso. A forma passa a ser um meio para a realização das funções. Destarte, o objeto de estudo do funcionalismo é a língua em uso, ou seja, tomada na sua relação com o contexto sócio-cultural e com as funções às quais ela serve. Não estamos mais diante de um falante ideal, mas de um construtor linguístico social e culturalmente situado. É de se esperar que o conceito de competência linguística ganhe outra dimensão.

Em primeiro lugar, a preocupação com o uso linguístico e, consequentemente, com os fatores contextuais que o determinam impõe a necessidade de repensar o conceito de competência linguística. Os funcionalistas observaram que o uso da língua demanda outras formas de competências ou capacidades. Não basta ao falante nativo conhecer apenas as regras da gramática de sua língua materna, graças às quais é capaz de produzir e compreender enunciados nessa língua. Para ser bem-sucedido nas mais variadas situações comunicativas de que participa, além do conhecimento das regras dessa gramática, ele precisa utilizar suas produções linguísticas de modo adequado. Em suma, dispensando-se pormenores, a competência linguística é reinterpretada como competência comunicativa[5], a qual consiste na capacidade de o falante utilizar sua língua adequadamente para fins comunicativos. A competência comunicativa pressupõe a competência linguística, embora não exatamente nos termos como a concebe Chomsky; mas demanda dos especialistas a percepção de que usar uma língua é muito mais do que saber construir enunciados na base de um sistema de regras gramaticais.

A assunção do conceito de competência comunicativa implica o reconhecimento da importância de levar em conta a habilidade do falante para usar o seu conhecimento linguístico de acordo com as convenções sócio-culturais ou pragmáticas implicadas num contexto. Assim é que a competência comunicativa interage com outras formas de competências ou capacidades. Neves (id.), baseando-se em Dik, apontará quatro capacidades às quais a competência linguística está relacionada: a capacidade epistêmica, a capacidade lógica, a capacidade perceptual e a capacidade social. Todas essas formas de capacidade envolvem manutenção e mobilização de conhecimentos variados. A capacidade social é, particularmente, interessante, por estar intrinsecamente relacionada à competência comunicativa. Referimos o excerto em que Neves define essa capacidade abaixo:

 

“d) a capacidade social: o usuário não somente sabe o que dizer mas também como dizê-lo a um parceiro comunicativo particular, numa situação comunicativa particular, para atingir objetivos comunicativos particulares”.

(p. 77)

 

Deve-se ficar claro, pois, que pensar sobre competência à luz das abordagens formalista e funcionalista implica a necessidade de pensar o modo como elas entendem a aquisição da linguagem. Na medida em que a abordagem funcionalista contempla o papel do contexto e se preocupa com a descrição da língua em uso, a sua concepção de aquisição da linguagem será diferente da concepção formalista.

O paradigma formal advogará que a criança desenvolve sua competência linguística na base de um input desestruturado e empobrecido - trabalho este que será compensado pelo fato de ela ser habilitada inatamente para fazê-lo. A criança é pré-disposta geneticamente a adquirir qualquer língua com uma facilidade e rapidez notáveis. O paradigma funcional, a seu turno, destacará a importância do ambiente, do entorno social na aquisição da linguagem e, portanto, no desenvolvimento da competência linguística (entendida como “competência comunicativa”). Para o funcionalista, o input compreende um conjunto de dados linguísticos estruturado e adequado ao nível de desenvolvimento da criança.

O processo de aquisição de linguagem, na perspectiva funcionalista, se dá pelo desenvolvimento de necessidades e habilidades comunicativas da criança em situações reais de interação com a sua língua. Assim é que a competência linguística não constitui um conhecimento estanque, ou seja, não é separado de todo o complexo cognitivo que permite a aprendizagem pela criança de outras habilidades necessárias à sua vida social.

 

  3. Conclusão

 

Coube-nos patentear, nesta exposição, a importância de se compreender duas correntes teóricas, que, tradicionalmente, são avaliadas de uma perspectiva antagônica, tendo em conta a articulação de seus conceitos com o domínio teórico em que surgiram e se desenvolveram. Ademais, parece-nos conveniente considerar o contexto histórico em que tais modelos apareceram, o que implica também a consideração das motivações que os engendraram. 

Destarte, o gerativismo surge como reação a um modelo teórico de base behaviorista, predominante na primeira metade do século XX, que procurava estudar a linguagem na base de um processo comportamental do tipo estímulo-resposta, ou seja, a criança, num dado ambiente, adquiriria sua língua materna por mera repetição (ou reprodução) dos dados linguísticos a que estivesse exposta. O conceito de competência linguística tem o mérito de apontar a importância da criatividade humana, mormente no que toca à aquisição da linguagem. Chomsky observou que o modelo behaviorista não dava conta do fato de a criança produzir um número, teoricamente, ilimitado de enunciados que nunca teria ocorrido antes em sua experiência linguística, donde se segue que, para ele, a aquisição da linguagem independe de estímulo.

O funcionalismo, a seu turno, também surgirá por uma necessidade de dar conta de certas dificuldades encontradas pelo modelo gerativo. Assim é que muitas questões de que se ocupavam os gerativistas não poderiam ser explicadas satisfatoriamente sem a consideração do uso e do contexto. A crítica basilar dispensada pelos funcionalistas aos gerativistas repousa na tendência destes de fazer completa abstração do uso da língua, operando suas análises em frases apartadas de um contexto real de comunicação, de sorte que, não raro, tais frases eram forjadas pelo próprio analista.

É neste deslocamento de enfoque – da ênfase sobre a forma para a ênfase sobre a função (uso) – que devemos situar a compreensão do conceito de competência, nas duas abordagens em tela. Cremos, assim, que esse conceito, surgido no interior da abordagem gerativa, tem uma inegável importância para o desenvolvimento posterior da Linguística. Disso não se segue que ele será entendido do mesmo modo em outros modelos teóricos, que adotem, por exemplo, uma visão sociointeracional.

O modo como o conceito será entendido dependerá dos pressupostos na base dos quais a teoria foi construída. Na medida em que o funcionalismo adota a concepção de língua como ‘instrumento de comunicação’ (preferimos “lugar de interação”); na medida em que assume como escopo o uso, em que dá ênfase especial às funções comunicativas, em que entende a forma como meio de realizá-las; enfim, em que salienta a importância do contexto situacional e cultural na descrição e explicação do uso da linguagem, é esperado que a sua concepção de competência prescinda da natureza inatista reivindicada pelos gerativistas e que seja compreendida relativamente a outras formas de capacidade.

 

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4. Referências Bibliográficas

 

CHOMSKY, Noam. Estruturas Sintáticas. Lisboa: Edições 70, 1980.

 

CUNHA, Angélica Furtado da. Funcionalismo, in Manual de Linguística. Mário Eduardo Martelotta (org.). São Paulo: Contexto, 2009.

 

HALLIDAY, M. A.K. . An Introduction to Functional Grammar (2ª ed.). London: Edward Arnold, 1994.

 

__________ HASAN, R. Language, Context, and Text: Aspects of Language in a Social-semiotic Perspective. Oxford: Oxford University Press, 1989.

 

HYMES, Dell. On communicative Competence, in The Communicative Approach to Language Teaching. Brumft, C.; Johson, K. (orgs.). Hong Kong: Oxford University Press, 1991.

 

LYONS, John. Linguagem e Linguística: uma introdução. Rio de Janeiro: LTC, 1987.

 

MUSSALIM, Fernanda; Anna Christina Bentes. Introdução à Linguística: fundamentos epistemológicos (vol. 3). São Paulo: Cortez, 2005.

 

NETO, José Borges. Ensaios de Filosofia da Linguística. São Paulo: Parábola, 2004.

 

NEVES, Maria Helena de Moura. A Gramática Funcional. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 

SANTOS, Raquel. A aquisição da linguagem, in Introdução à Linguística: objetos teóricos. José Luiz Fiorin (org.). São Paulo: Contexto, 2004.

 

TRASK, R. L. Dicionário de Linguagem e Linguística. Trad. Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2008.

 

 



 

[1] Ano em que foi publicado seu trabalho revolucionário Syntactic Structures.

[2] Versão portuguesa traduzida por Madalena Cruz Ferreira.

[3] Trata-se da Teoria de Princípios e Parâmetros (Chomsky, 1981. apud. Santos, 2004: 221).

[4] Entende-se por estrutura profunda “qualquer representação abstrata da estrutura de uma sentença que os linguistas postulam para fins de análise”. (Trask, 2008: 98). Atualmente, ela é considerada um expediente analítico com o qual se podem expressar certas generalizações a partir da estrutura superficial.

[5] O conceito foi cunhado por Hymes (1991).

 


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

O que ama o amor - Um estudo sobre FEDRO

                        

Este texto constitui parte do trabalho final desenvolvido como requisito para a aprovação na disciplina Filosofia Antiga IV do curso de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro




O discurso de Lísias e o mito da Parelha Alada: uma análise de Eros e do Belo



1. O discurso de Lísias: a psicologia subjacente ao amor-paixão


Principiamos esta subseção destinada à análise do discurso de Lísias sobre o amor, lembrando o que, no início deste trabalho, procuramos sublinhar: para Platão, o discurso de Lísias não foi produzido por um verdadeiro filósofo. O amor de que fala Lísias está longe de ser o amor a que aspira o verdadeiro filósofo e ao qual devemos a força da verdadeira filosofia. Não obstante, Lísias não deixa de nos ensinar muito sobre a experiência amorosa humana, sobre o modo como o amor nos afeta, de tal sorte que podemos dizer que Lísias nos oferece uma psicologia subjacente à experiência do amor, mais precisamente do amor-paixão. Tal nos parece irrecusável a evidência dessa psicologia, que o discurso de Lísias sobre o amor encerra um ensinamento atemporal, de cuja ressonância nos dão testemunho pensadores como Lucrécio, Ovídio, Schopenhauer, Proust, Freud e Sartre que, em comum, cada qual à sua maneira, são céticos quanto às tendências do imaginário coletivo ocidental, devedor, nesse tocante, da tradição platônico-cristã, de fazer do amor uma fonte de felicidade plena e de realização humana.[1] De passagem, cabe dizer que a concepção moderna de amor romântico e do sujeito amoroso devemos a três matrizes históricas: 1) a mística cristã e o lirismo trovadoresco da Idade Média, no século XII; 2) a subjetivação como resultado de práticas do convívio interpessoal das Sociedades de Corte; 3) as ideologias que se formariam com as revoluções econômico-políticas e culturais nos séculos XVI e XVII, as quais, por sua vez, culminariam com a ascensão do capitalismo impulsionada pela Revolução Industrial ocorrida a partir do século XVIII. (Costa, 1998).
 Acresce-se que o discurso de Lísias, na medida em que busca oferecer uma psicologia inerente ao amor-paixão não deixa de fazer eco à nossa época, especialmente marcada pela liquidez dos relacionamentos humanos[2] - época nossa em que o amor atrai cada vez mais o interesse científico, tanto o das ciências humanas quanto o das ciências naturais.[3]
Nossa interpretação do discurso de Lísias sobre o amor não pretende sugerir que Lísias tenha-nos legado alguma “novidade” ao tratar do tema (em se tratando de um tema universal como este, há muito pouco de “novo” a ser dito). Interessa-nos é mostrar que o discurso de Lísias inscreve-se numa tradição discursiva sobre o amor que se desenvolveu como contribuição desmitificadora.
Comecemos por referir a tese de seu discurso. A tese nos parece ser a seguinte:

(...) de regra, os amantes se arrependem do bem que tenham feito, tão logo se extinga neles o desejo, ao passo que os outros, nunca lhes chega o tempo do arrependimento, pois não é sob a pressão de alguma necessidade, senão de deliberação refletida e pelo estudo de sua situação que promovem o bem do amigo no que neles estiver.[4]


Lendo, com acuro, a tese, percebemos que Lísias a constrói com base na oposição entre os amantes e os outros (que, adiante, se nos revelarão tratar-se dos que não amam). Os amantes constituem o objeto-de-discurso marcado pela qualificação semântica /euforia/, de sorte que diremos ser esse referente o termo /eufórico/; por outro lado, os não amantes são marcados pela qualificação semântica /disforia/ e dele diremos ser o termo /disfórico/[5]. Essa oposição marcada pelas categorias /euforia/ e /disforia/ é extensiva aos pares “amor” (amor-paixão) e afeição recíproca (philia). O amor-paixão é marcado pela qualificação semântica /disforia/ - é o termo disfórico -; e a “afeição recíproca” é marcada pela qualificação semântica /euforia/ - é o termo eufórico, conforme se pode ler em: “Os que não amam, ninguém pensa em censurá-los por tais encontros, pois todos sabem muito bem que semelhantes colóquios terão de ser fruto de afeição recíproca ou da necessidade de espairecer”.[6] Essa passagem contrasta com a que a precede, na qual Lísias exprime sua crença de que os amantes costumam ser mal vistos quando surpreendidos sozinhos com seus amados, pois que, nessa circunstância, parece aos outros que eles “acabaram de satisfazer seus apetites ou se acham em caminho disso mesmo”. (v. nota 42).
Antes de avançarmos na discussão sobre a psicologia do amor-paixão, convém atentar para a tese anteriormente referida, a fim de que nos lembremos de que o amor, para Lísias, é desejo. A questão que, inicialmente, fica em aberto no discurso de Lísias é justamente: desejo de quê? Conquanto a resposta pudesse ser deduzida da apreensão dos traços psicológicos do amante e da natureza do amor-paixão, os quais se deixam ver ao longo do discurso de Lísias, podemos inferi-la da seguinte passagem:(...) é comum entre os amantes cobiçarem apenas o corpo dos mancebos, sem lhes conhecer o caráter e os hábitos, de forma que não se pode ter certeza de que semelhante ligação sobreviva ao desejo”.[7] Ora, a visão de Lísias de amor – parece claro – é o antípoda da visão platônica do amor. O amor, em Lísias, é desejo de prazer sensível, desejo de posse do corpo do amado, com claro desinteresse pelos atributos de sua alma.
É importante dizer que o desenvolvimento do discurso de Lísias tem como focalização a figura do amante, a qual constitui o termo de valor negativo. O lugar do amado na relação amorosa é simplesmente negligenciado. Lísias está preocupado em mostrar quão perturbador e infeliz é o destino dos amantes e o fará com o propósito de convencer Fedro de que é melhor não se deixar apanhar pela armadilha do amor-paixão. Ao descrever o amor-paixão, Lísias fornece-nos uma descrição dos traços psicológicos típicos dos amantes.
Devemos notar, em primeiro lugar, que o amor-paixão é, para o amante, uma experiência de perda de si. Sob a pressão da paixão, o amante é incapaz de dominar a si mesmo; além disso, tende a ponderar os “prejuízos materiais que lhes possam ter causado sua paixão”[8] e a considerar todo o empenho dispensado na insistência com que procurou agradar ao amado, acabando por satisfazer-se na ideia de que nada mais de gratidão deve a ele. Em segundo lugar, os apaixonados se tornam mais suscetíveis a mágoas e a aborrecimentos:

Para eles, tudo é pretexto de se sentirem magoados, pois acham sempre que todos só pensam em prejudicá-los. Daí lhes nasce procurarem de toda a forma impedir que seus amados se aproximem de outras pessoas, de medo que os ricos os sobrepujam com o dinheiro, e com sua inteligência façam os instruídos melhor figura do que eles, com o que se põem de sobreaviso contra quem revela alguma superioridade a seu respeito.[9]


Sob o efeito do delírio[10] do amor-paixão, o amante se vê presa fácil das garras do ciúme. Porque dominado pela paixão do ciúme, o amante fará de tudo para afastar o amado de possíveis pretendentes, não sem um alto custo: ver-se destinado à solidão. Triste é, assim, o destino do amante: dominado pela paixão, cobiçoso do corpo do amado, nunca certo de que seu relacionamento subsista ao arrefecimento do desejo e não podendo evitar que outros o sobrepujem com suas riquezas materiais e seus dotes naturais, torna-se vulnerável ao ciúme. Ademais, porque movido pelo desejo, porque submetido às solicitações do amor-paixão, o amante experiencia um desequilíbrio interior - a harmonia de sua alma é rompida. O amante torna-se incapaz de julgamentos corretos. O excerto abaixo, em que Lísias nos mostra de que forma se manifesta o amor e busca convencer Fedro de que procederá de modo diverso ao modo como se comportam os amantes, a fim de obter a amizade dele, permite-nos entrever uma preocupação que é grega, por excelência: a censura da hýbris.

(...) o amor se manifesta do seguinte modo: o menor contratempo, que para muita gente nem seria digno de menção, aos olhos do amante infeliz é desgraça inominável, como, por outro lado, força os amantes venturosos a gastar elogios com o que não tem valor. Donde se colhe que os amantes são mais dignos de piedade do que de inveja. Por isso, se me escutares, em primeiro lugar não só não procurarei ao teu lado apenas o prazer transitório, como cuidarei dos teus futuros interesses. Sem deixar-me dirigir pelo amor, porém sabendo dominar-me, não suscitarei discórdias por motivos fúteis, e até em casos de maior gravidade, com relutância e muito pela rama manifestarei meu desagrado; desculparei as faltas involuntárias, como procurarei impedir as voluntárias. Dize: não são esses os sinais de uma amizade fadada a durar sempre? E se porventura imaginares que não pode haver amizade firme sem amor verdadeiro, reflete que nesse caso nunca faríamos conta dos filhos nem dos pais nem das mães, como também não teríamos bons amigos, pois nenhum dessas ligações se origina do amor, senão de sentimento de outra natureza. Mais, ainda: se for preciso conceder seus favores aos insistentes em suas solicitações, será mais razoável, acima de tudo, não entregar-se ninguém aos que tiverem maior merecimento, porém aos mais necessitados: quanto maiores forem os males de que os aliviares, tanto mais reconhecidos se mostrarão. Em tuas festas íntimas, também, não convides amigos, porém mendigos e famintos; serão sempre os mais atenciosos, acompanhar-te-ão por toda a parte, não sairão de tua porta; são esses os que mais se alegram e sabem ser reconhecidos, além de toda hora formularem votos para a tua felicidade. Sim, porém decerto o aconselhável não será favorecer os mais importunos, senão somente os mais capazes de demonstrar gratidão; não apenas os apaixonados, mas os merecedores de tão grande favor; não os que se propõem a gozar os encantos de tua mocidade, mas os que na tua velhice dividirão contigo seus haveres; não os que depois de alcançarem o que almejam, não falam noutra coisa, mas os que, de puro envergonhados, sabem calar na frente de terceiros; não os de afeição efêmera, mas os de amizade sempre igual a vida inteira; não os que, acalmado o desejo, só procuram pretexto para romper contigo, porém os que depois de perderem o viço, passam a dar provas de sua virtude muito própria. Guarda bem minhas palavras e considera que os amantes ouvem sempre dos amigos que sua paixão é viciosa, ao passo que os não apaixonados nunca foram acusados pelos parentes, por motivo dessas relações, de conduzirem mal os seus negócios.[11] (ênfases nossas).


Nesse momento de seu discurso, Lísias se propõe, de início, mostrar a influência negativa que sobre os amantes exerce o amor. O amor-paixão exaspera as emoções do amante infeliz em face do menor contratempo. Como torne seu julgamento distorcido, o amor-paixão leva o amante a importar-se com inconvenientes que, em condições outras, não seriam graves. O amante venturoso, por sua vez, também sofre da mesma tendência a exceder-se no modo de reagir. No seu caso, o excesso torna-o um adulador. Em qualquer um dos casos, vemos que o amor-paixão é desmesura (hýbris).
Lísias prossegue argumentando que, ao requestar a amizade de Fedro, agirá não com o intento apenas de usufruir o prazer transitório, caso em que se tornaria suscetível de hýbris, mas procederia segundo sophrosýne, isto é, de modo moderado, contendo seus impulsos e desejos. O que o discurso de Lísias parece encenar é a luta entre hýbris e sophrosýne, cujas contrapartes são, respectivamente, o amor-paixão e philia. Não estando sob o domínio do amor-paixão, aquele que não ama reage aos contratempos e manifesta algum desagrado moderadamente. Porque sua alma conserva-se em equilíbrio, está sempre disposto a desculpar as faltas involuntárias, como também estará apto para “evitar as involuntárias”. Quem assim procede, quem evita entregar-se às solicitações do amor está mais bem preparado para garantir uma amizade duradoura. Lísias é bastante claro ao sugerir que a amizade sólida pode realizar-se sem “amor verdadeiro”.
Tendo demonstrado a necessidade de evitar o apaixonamento, Lísias listará várias recomendações a Fedro, que devem ser seguidas caso não seja possível evitar atender aos apelos de alguns pretendentes. Ao fazê-lo, Lísias acena ao “agir razoável”. Esse agir razoável consiste em: 1) favorecer os mais necessitados e nunca aqueles que ostentam merecimento; 2) favorecer os que são capazes de demonstrar gratidão; 3) os merecedores dos favores concedidos; 4) os que continuarão companheiros na velhice; 5) os que são generosos; 6) os que são reservados; 7) os que conservam a amizade a vida inteira; 8) os que conservam a amizade após satisfazer seu desejo; 9) os que permanecem fieis à amizade, mesmo depois que o amigo perde a exuberância, a beleza. Ora, vê-se que essa conduta razoável de quem está sendo requestado supõe a capacidade de discernimento, que só pode ser conservada com a condição de nunca deixar-se dominar pelo amor-paixão.
Para terminar, gostaríamos de sublinhar que, no discurso de Lísias, o amor não tem qualquer vínculo com a vida virtuosa; ao contrário, o amante está sujeito a toda sorte de excessos e sua paixão é considerada viciosa. Se há – como acreditamos haver – alguma preocupação em oferecer uma orientação ética, Lísias o faz com base na contraposição entre amor e philia, de sorte que torna a philia a condição para o agir razoável. Porque tem em vista o estabelecimento de uma amizade verdadeira, o indivíduo deve proceder de modo tal, que possa dominar a si mesmo, evitando, assim, ceder às pressões do desejo.


1.2. O mito da Parelha Alada e seu complemento[12]: a filosofia como vida virtuosa


Ao nos debruçarmos sobre o mito da Parelha Alada, estaremos interessados, sobretudo, em patentear de que modo Platão maximiza a figura do filósofo e a importância da filosofia. Explicitar essa maximização, tendo sido, inicialmente, o objetivo fixado por nós para o desenvolvimento desta exposição, permite-nos também perceber o estabelecimento por Platão da unidade entre conhecimento, psicologia e ética. No mito da Parelha Alada, essa unidade torna-se ainda mais clara. A fim de que realizemos nosso intento, discriminamos os temas que demandarão nossa atenção especial: 1) quem é o amante; 2) o Belo em si; 3) o valor da vida dedicada à filosofia.
Tão logo terminado o relato do discurso de Lísias, Sócrates manifesta seu primeiro desacordo. Sócrates pensa que Lísias parece ter-se enganado ao sugerir que aquele que não corresponde ao amor de outrem não ama. Para Sócrates, é possível que ame alguma outra coisa. Ao contrário do que pensa Lísias, talvez haja várias espécies de amor. O segundo desacordo de Sócrates consiste em fazer notar a Fedro que Lísias supôs haver uma espécie apenas de delírio - uma espécie má. Ora, Sócrates mostra que os antepassados associavam ao delírio os maiores bens; ademais, o delírio, sempre que decorre de inspiração divina, é considerado algo belo. Sendo de origem divina e, portanto, belo, o delírio foi ligado a mais nobre das artes – manikê (mania). Essa arte permite-nos predizer o futuro.  Sócrates diz que há várias espécies de delírios. Entre essas espécies de delírios, está o delírio profético, inspirado por Apolo Delfo, o qual “ultrapassa em perfeição e dignidade a [arte humana] dos augúrios”[13]; o delírio purificador, inspirado por Dionisos, o qual “preservou seus participantes de calamidades presentes e futuras”, ensinando “ao homem verdadeiramente inspirado e possuído a maneira de libertar-se dos males do momento”[14]; o delírio poético, que provém das Musas “quando se apodera de uma alma delicada e sem mácula, desperta-a, deixa-a delirante e lhe inspira odes e outras modalidades de poesia (...)”[15]; e há o delírio erótico, inspirado por Eros e enviado pelos deuses “para a nossa maior felicidade”.[16]
Está claro, portanto, que nem todo delírio é um mal e que o amor, na medida em que é uma forma de delírio – o delírio erótico – e tendo sido enviado pelos deuses, não pode ser fonte de males, como pensara Lísias. Deve-se dizer, a esta altura, que Sócrates, ao contrário de Lísias, restituirá ao amado o valor que tem na relação amorosa. O amor não é destinado à satisfação egoísta do amante, mas à satisfação do amado, que agora encontra seu importante lugar na convivência com o amante. Na convivência que torna possível o amor, amante e amado se dedicarão ao benefício mútuo. O amor não leva os que dele são possuídos a desejar apenas a beleza do corpo um do outro, mas os faz tomar a beleza corpórea e aparente como sinal da beleza de suas almas.  
No excerto que se seguirá, colhido do mito da Parelha Alada, Sócrates dá-nos a conhecer quem é o amante e alude à teoria da reminiscência. Deve-se notar que, nesse trecho, o conhecimento se articula à virtude, isto é, o ter vivido virtuosamente é condição para que a alma consiga recordar-se do que viu quando vivia em companhia dos deuses.

Quando, à vista da beleza terrena e, despertada a lembrança da verdadeira beleza, a alma readquire asas e, novamente alada, debalde tenta voar, à maneira dos pássaros dirige o olhar para o céu, sem atentar absolutamente nas coisas cá de baixo, do que lhe vem ser acoimada de maníaca. Porém, o que eu digo é que essa é a melhor modalidade de possessão, a de mais nobre origem, tanto em quem se manifesta como em quem dele a receber. O indivíduo atacado de semelhante delírio, sempre que apaixonado das coisas belas, é denominado amante. Conforme disse há pouco, toda alma de homem já contemplou naturalmente a verdadeira realidade, sem o que não teria nunca adquirido essa forma; porém, não é igualmente fácil para todas, à vista das coisas terrenas, recordar-se das celestes, o que se dá tanto com as que as percebem de corrida como com as que tiveram a infelicidade de cometer alguma injustiça por influência de más companhias e de esquecer os mistérios sagrados contemplados naquela ocasião. Assim, são bem poucas as que conservam a lembrança do que viram. Sempre que essas poucas percebem alguma imagem das coisas lá do alto, ficam tomadas de entusiasmo e perdem o domínio de si mesmas. Porém não sabem o que se passa com elas, por carecerem de percepções suficientemente claras, pois em relação à justiça, à temperança e tudo o mais que a alma tem em grande estima, as imagens terrenas são de todo em todo privadas de brilho; com órgãos turvos e, por isso mesmo, com assaz dificuldade, é que as poucas pessoas que se aproximam das imagens conseguem reconhecer nelas o gênero do modelo original. Porém a Beleza era muito fácil de ver por causa do brilho peculiar, quando, no séquito de Zeus, tomando parte no coro dos bem-aventurados e os demais no de outra divindade, gozávamos do espetáculo dessa visão admirável e, iniciados nesse mistério que, com toda a justiça, pode ser denominado sacratíssimo, e que celebrávamos na plenitude da perfeição e livres dos males que nos alcançam no futuro, fomos admitidos a contemplar sob a luz mais pura aparições perfeitas, simples, imutáveis, puros também e libertos deste cárcere de morte que com o nome de corpo carregamos conosco e no qual estamos aprisionados como a ostra em sua casca.[17] (ênfase nossa).


Dizer que o viver segundo a virtude é uma condição para que a alma consiga recordar-se do que viu no séquito de Zeus não significa que essa condição lhe seja bastante, porque a recordação do modelo original encontra no próprio corpo em que reside a alma um obstáculo. Novamente, a imagem do corpo como cárcere, que vimos no Fédon, aparece aqui. O corpo, mesmo para as almas que não tenham cometido alguma injustiça, constitui um obstáculo para a recordação do modelo original a partir das imagens terrenas. Ademais, estas, como sejam cópias do modelo original, carecem da qualidade necessária que torne possível a recordação desse modelo (elas são “privadas totalmente de brilho”). A descrição do que sucede com as poucas almas que conseguem perceber alguma imagem do que contemplou outrora é análoga à experiência do prisioneiro que deixa a caverna para assomar à verdadeira realidade iluminada pela luz do Sol. A estrutura imagético-dialética é bem parecida: a queda num corpo é o aprisionamento na caverna. A vida terrena é a vida na caverna. Tal como o prisioneiro, que no mito da Caverna, consegue, libertando-se, contemplar, num movimento ascensional, a verdadeira realidade, a alma, presa no corpo, pode ter vislumbres das coisas celestiais. No entanto, ao contrário do prisioneiro que, depois de um instante de ofuscação, acostuma-se com a luz da verdadeira realidade, a alma, entusiasmando-se com a recordação do que contemplou, “perde o domínio de si mesma” e ignora o que se passa com ela. Essa perda de si e ignorância são consequência de seu estado atual, a saber, do fato de estar ela presa no corpo. A filosofia, nesse momento, ainda não despontou como o horizonte de possibilidade de purificação e ascensão ao Belo em si.
Retome-se, a fim de que possamos compreender a função da filosofia e qual é o estatuto do filósofo na narrativa do Fedro, a figura do amante e sua relação com o amado. O amante, segundo lemos no trecho acima citado, é um apaixonado das coisas belas, é aquele tomado de delírio erótico. Já vimos, ao apresentar a escalada do Belo no Fédon, que Eros é desejo do Belo e do Bem em si. O amante, em Platão, não quer apenas a satisfação dos belos corpos. É na beleza das almas que o amante e o amado descobrem o sinal da causa que as faz belas e boas. Assim, eles se descobrem almas imortais e aparentadas ao divino e à verdade.
Eros ou o delírio erótico é o conhecimento que os amantes alcançam da natureza imortal e da excelência (virtude) da alma dos amados. Atingindo esse conhecimento, eles são conduzidos ascensionalmente à origem dessa excelência. Destarte, eles são beneficiados com o saber através do qual descobrem que a alma bela e boa é aquela que já contemplou a Verdade em outra vida – na vida outrora vivida na companhia dos deuses. É por já ter contemplado a Verdade, que a alma é capaz de lembrar-se dela, e dela se lembrando, aspira a contemplá-la novamente.
Dissemos que, no mito da Parelha Alada, Platão articula, numa unidade, de modo mais claro, conhecimento, ética e psicologia. O primeiro elemento dessa unidade – o conhecimento – deixa-se entrever na caracterização socrática de Eros como força que impulsiona as almas à contemplação da Verdade. É sob o efeito do delírio erótico que elas são capazes de recordar a Verdade. Uma vez que amante e amado sejam imortais e perfeitos, amarão um no outro a verdadeira sabedoria. Assim, o amor que os move é a própria filosofia. Em outros termos, Eros, agora, é filósofo.
O mito da Parelha Alada, conduzindo-nos ao Princípio, narrando a origem das almas, a vida que viviam no séquito de Zeus, ajuda-nos a entender como é  possível a elas distinguir um desejo e amor virtuosos de um desejo e amor que não são senão doença ou vício. Lembremos que a Alma do Mundo, ou psykhé universal, sendo princípio de movimento – portanto, de vida – é responsável por governar a ordem universal. Quando perde suas asas, alguns fragmentos que se desprendem encontram morada em corpos que habitam a terra. Nossa alma nasce, pois, da perda das asas da Alma do Mundo; por isso, são capazes de recordar aquilo que outrora viram. Com o auxílio de Eros, que restitui às nossas almas as asas perdidas, conduz a nós, seres mortais, a retornar às alturas onde está a Verdade. Graças a Eros, a melhor parte da alma – a parte racional – conserva sua imortalidade.
Já vimos também que a alma humana se apresenta, para Platão, tripartida em alma apetitiva, alma irascível e alma racional. No mito da Parelha Alada, o cocheiro representa a parte racional da alma e está encarregado, por isso, de conduzir toda a alma ao seu destino, domando os impulsos danosos da parte concupiscente. O cocheiro – a parte racional da alma -, tendo visto o objeto amável, sente-se atraído para ele. Nessa ocasião, recorda-lhe a essência da Beleza e do Bem. Inicialmente, o cocheiro recua assustado; mas, sendo auxiliado pelo cavalo bom, é forçado a reter a lembrança do amado. Assim, imbuído de coragem, controla o carro, açoitando o cavalo de raça má para que obedeça.
A articulação da ética com a filosofia se faz pelo amor ao Belo em si. O amante, sendo a alma, pode fundir-se ao amado (o belo), alcançando, assim, a felicidade perfeita, porque, por força da influência de Eros, é capaz de recordar o Belo em si outrora visto. O amante é agora filósofo, aquele que reconhece, nas coisas belas, na multiplicidade do sensível, a unidade perfeita das Ideias. À medida que se vai lembrando do Belo em si, as asas de sua alma vão crescendo. Eros ou a filosofia restitui à alma as suas asas. A filosofia é, assim, delírio erótico, é delírio de inspiração divina, visto que ela, fazendo crescer o amante em sabedoria e em virtude, torna sua alma novamente alada.
Sendo alada, a alma pode, elevando-se, participar da natureza imortal do divino (é este seu desejo). Mas, como ainda está presa num corpo e, por isso, impedida de voar, ela deve voltar-se para a filosofia, exercitar-se nela, tomá-la como caminho que lhe permitirá a tão desejada ascensão. Pela ascensão, a visão da alma se desvia dos assuntos humanos e se dirige para as coisas celestes, mais elevadas.
No Fedro, é o Belo que permite a articulação entre psicologia e ética. Ora, a parte concupiscente da alma deseja as coisas perecíveis. Seu desejo é desejo de possuir unicamente. A parte concupiscente, possuindo o que deseja, nunca está saciada e, em pouco tempo, torna-se possuída por aquilo que então desejava possuir. A parte irascível, por sua vez, deseja também as coisas perecíveis, como a fama e a glória. Se ela mover-se para essas coisas sem comedimento, pode arruinar-se. Demais, seu modo de desejar é desejo de obter boa reputação a partir das opiniões favoráveis dos outros. O risco que se acha nesse anelo é que, sendo bem reputada segundo as opiniões alheias, incorra na desonra ou na vanglória. Somente a parte racional deseja os bens imperecíveis, quais sejam, a Verdade e o Bem em si. Ela não se move pelo desejo de possuir o que é mutável e imperfeito; não deseja obter boa reputação a partir da opinião alheia. Ela se move pelo desejo de participar da essência da Verdade e do Bem. É por isso mesmo que ela está apta para determinar a medida segundo a qual os desejos das outras partes da alma devem-se conduzir. Ela impõe limites ao modo de desejar das partes concupiscente e irascível da alma. Assim, pode torná-las virtuosas.
Eros é, portanto, a força que faz mover a alma, quer sua parte apetitiva, quer sua parte irascível, quer sua parte racional. A virtude, por seu turno, é determinada pela qualidade do objeto para cuja obtenção o amor impulsiona a alma. Sob o governo da parte racional, então, entregue ao exercício da filosofia, a alma torna-se capaz de fazer sempre uma escolha entre os objetos perecíveis da paixão e os imperecíveis da razão. A autarquia do indivíduo repousa no poder da parte racional ou da razão de governar as paixões, fixando para cada uma das outras partes da alma bons objetos e desejos.
Finalmente, a areté só pode ser conquistada pela luta entre desejos irracionais e desejos racionais. A virtude não pode ser alcançada sem que haja uma harmonia entre as partes da alma. Essa harmonia é garantida pelo governo da parte racional sobre as outras partes irracionais. Por conseguinte, a virtude, para Platão, é inseparável do conhecimento e da vida filosófica – que é a vida virtuosa. Levamos a cabo este trabalho, referindo um trecho emblemático da oposição socrática ao discurso de Lísias. O trecho se segue ao momento do discurso em que Sócrates compara o destino das almas que viveram afastadas da filosofia com o das almas que viveram “uma vida ordeira e dedicada à filosofia”[18].

São essas, jovem, as grandes e divinas bênçãos que te ensejará a amizade do teu apaixonado. Quanto à intimidade com quem não ama, aguada com a sabedoria mortal que se ocupa de interesses perecíveis e de nenhum valor, só gerará na alma do amado a mesquinhez que as multidões exalçam como virtude e que será causa de ela vir rolar durante nove mil anos em torno da terra, para acabar embaixo da terra como sombra privada de razão.[19]





[1] Muito embora o cristianismo tenha condenado os traços mundanos do amor romântico, cremos que os traços idealizadores que caracterizam essa forma de amor, tão profundamente marcante da cultura ocidental, podem ser rastreados numa longa tradição que, remontando a Platão, encontra no cristianismo fonte de longevidade. Se Platão concebeu o amor como caminho para aspirar ao que é puro e eterno, o cristianismo, dando continuidade a uma tendência que já se verificava em Platão, viria a maximizar a transcendência de Eros tornando-o a virtude suprema do mundo ocidental, encarnada na pessoa de Jesus. Com o cristianismo, o amor deve possibilitar a conquista da intimidade com a mais elevada bondade, beleza e verdade, que é o próprio Deus. (May, 2012).
[2] Veja-se, a propósito: Bauman, Zigmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Joge Zahar, 2004.
[3] Um exemplo disso é a possibilidade de o amor ser estudado tendo em vista a determinação da química do cérebro apaixonado. Ademais, não só neurocientistas se demonstram mais interessados em estudar a natureza bioquímica do amor, como biólogos e psicólogos evolucionistas tratarão de investigar a presença do amor na história evolutiva das espécies, buscando compreender o porquê de nós, seres humanos, amarmos. (Fisher, 2004).
[4] Fedro, 231a.
[5] As categorias /euforia/ e /disforia/ são categorias semânticas que estão na base da construção de um texto. Uma categoria semântica assenta-se sempre numa oposição. Cremos ser elas úteis para tornar nossa proposta de leitura do discurso de Lísias tanto mais clara quanto consistente com o objetivo por nós perseguido demarcar duas visões contrárias sobre Eros, a de Lísias e a de Sócrates. A categoria /euforia/ é um valor positivo que marca o modo como um determinado referente se inscreve ou é considerado (pelo autor) no texto, independentemente do sistema axiológico do leitor; por outro lado, a categoria /disforia/ é um valor negativo que marca o modo como um determinado referente se inscreve ou é considerado (pelo autor) no texto.  (Fiorin, 2005).
[6] Ib.id., 232b.
[7] Ib.id., 232e.
[8] Ib.Id., 231a.
[9] Ib.Id. 232c.
[10] Pode-se dizer que o amor tematizado por Lísias é uma forma de delírio negativo, concepção esta a que Sócrates irá se opor, conforme veremos.
[11] Ib.Id.233b-234b.
[12] Referimo-nos ao discurso de Sócrates que, retomando pontos essenciais do mito da Parelha Alada, mais claramente expressa a sua oposição ao discurso de Lísias.
[13] Ib.Id. 244d.
[14] Ib.Id. 244e.
[15] Ib.Id. 245a.
[16] Ib.Id. 245c.
[17] Ib.Id. 249e-250c.
[18] Ib.Id. 256a.
[19] Ib.Id. 257a.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

"Fazer o trágico passar do estado inconsciente ao estado consciente é uma impossibilidade: ou você tem consciência dele ou não tem consciência dele e jamais terá" (Rosset)

                                           
                             

                  Por um saber que impregne a sensibilidade

"Fazer o trágico passar do estado inconsciente para o consciente" - nisso consiste o projeto de uma "filosofia terrorista", segundo o filósofo trágico contemporâneo Clément Rosset. Rosset não crê na possibilidade de curar os partidários de ideologias de todo gênero, já que eles vivem encerrados em seu dogmatismo.
Em entrevista a Sébastien Charles, registrada no livro É possível viver como eles pensam (2006), Rosset responde, da seguinte forma, à sugestão de que seu trabalho Lógica do Pior, a considerar a impossibilidade de livrar o homem de suas posições dogmáticas, só convenceria os já convencidos.

"É impossível tirar os homens da ilusão impondo-lhes um saber que eles podem admitir no plano teórico ou abstrato, mas que não impregnará sua verdadeira sensibilidade".

Ora, "um saber que não impregnará sua verdadeira sensibilidade" é um saber que não é incorporado, que não exerceu nenhum efeito sobre a fisiologia desse homem que apenas o admite abstratamente. Esse saber que não integra à sensibilidade do homem é um saber ineficaz e estéril. Ineficaz e estéril porque não penetra sua estrutura sensível, porque não metamorfoseia seu modo de ser.
Suspeito de que essa experiência da não incorporação à sensibilidade de um saber seja uma experiência com que o professor, que pretende ensinar verdadeiramente a filosofar, se defronta, quer no nível básico, quer no nível superior de ensino. A experiência da incapacidade de o outro ser afetado fisiologicamente ou sensivelmente pelo saber suscita a questão sobre o que é ensinar a filosofar. Essa questão é tanto mais premente quando nos lembramos de que a experiência filosófica é, conforme mantém Sponville, "pensar sua vida, viver seu pensamento". Sponville, aliás, nos faz ver que não há demonstração filosófica e, se não há uma prova que dê sustentabilidade a uma ou outra posição filosófica que venhamos a assumir, o que então nos faz adotar uma posição em detrimento da outra? Trata-se, para mim, de uma evidência que reencontro nos filósofos que frequento: nosso passado, nossas experiências de mundo, as formas como somos afetados pelo mundo, nosso temperamento. É isso que nos fará tomar uma ou outra orientação filosófica, a assumir um ou outro modo de ser. Sponville nota que não fazemos uma escolha livre entre uma ou outra posição filosófica. Simplesmente, chega um momento em que temos a impressão de que "não posso pensar de outra maneira". Assim, se assumimos uma posição materialista, o fizemos por certo número de razões, que, no entanto, não precisam ser concludentes ou demonstráveis. Se, então, sou materialista, é porque não consigo pensar e sentir (pensar e sentir se fundem) de outro modo. Para Sponville, uma parte considerável da filosofia é tentar comunicar racionalmente certo número de quase evidências que nós trazemos em nós mesmos.
Voltando a Rosset, esse filósofo está convencido de que o homem não é capaz de enfrentar a ideia da morte. O homem que se vê em face de uma perda, por exemplo, de um grande amor, é lançado num estado de preparação para o grande desnorteio de se reconhecer detentor de um saber que não pode assumir. Ele sabe que morrerá, que morrerão todos aqueles que ele mais ama, mas não pode verdadeiramente assumir esse saber, isto é, incorporá-lo à sua sensibilidade. Freud – lembremos - ensinou que para o inconsciente somos imortais. Assim, vivem os seres humanos em seu cotidiano: como se jamais fossem morrer. Para Rosset, "se sua estupefação cessa, o homem não é mais trágico". O homem mediano  evita o confrontar-se com sua condição desesperadora: ver-se lançado no mundo para nele necessariamente morrer. Há algo de desesperador aí que ele vive evitando incorporar a sua sensibilidade (isto é, a sua capacidade de se deixar afetar, impressionar, sentir). Daí que, segundo Rosset,


"Todo filósofo, por mais ilustre que seja, que não concorde sobre este ponto com Cioran, Lucrécio, Nietzsche, Schopenhauer, etc., e que não passe pelo credo absoluto e sem nuance que afirma que o homem NÃO É CAPAZ DE ACEITAR PENSAR O QUE SABE, está para mim desqualificado de antemão. Posso lê-lo, é claro, porque escreveu coisas geniais sobre a relação entre a forma e matéria [vide. Aristóteles], sobre isto ou aquilo, mas para mim isso permanece da ordem do detalhe. O certo é que, quanto ao ponto que considero como fundamental, esse filósofo ainda tem tudo a aprender e está longe de desconfiar da profundidade do abismo que ladeia sem enxergar".