quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

O que ama o amor - Um estudo sobre FEDRO

                        

Este texto constitui parte do trabalho final desenvolvido como requisito para a aprovação na disciplina Filosofia Antiga IV do curso de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro




O discurso de Lísias e o mito da Parelha Alada: uma análise de Eros e do Belo



1. O discurso de Lísias: a psicologia subjacente ao amor-paixão


Principiamos esta subseção destinada à análise do discurso de Lísias sobre o amor, lembrando o que, no início deste trabalho, procuramos sublinhar: para Platão, o discurso de Lísias não foi produzido por um verdadeiro filósofo. O amor de que fala Lísias está longe de ser o amor a que aspira o verdadeiro filósofo e ao qual devemos a força da verdadeira filosofia. Não obstante, Lísias não deixa de nos ensinar muito sobre a experiência amorosa humana, sobre o modo como o amor nos afeta, de tal sorte que podemos dizer que Lísias nos oferece uma psicologia subjacente à experiência do amor, mais precisamente do amor-paixão. Tal nos parece irrecusável a evidência dessa psicologia, que o discurso de Lísias sobre o amor encerra um ensinamento atemporal, de cuja ressonância nos dão testemunho pensadores como Lucrécio, Ovídio, Schopenhauer, Proust, Freud e Sartre que, em comum, cada qual à sua maneira, são céticos quanto às tendências do imaginário coletivo ocidental, devedor, nesse tocante, da tradição platônico-cristã, de fazer do amor uma fonte de felicidade plena e de realização humana.[1] De passagem, cabe dizer que a concepção moderna de amor romântico e do sujeito amoroso devemos a três matrizes históricas: 1) a mística cristã e o lirismo trovadoresco da Idade Média, no século XII; 2) a subjetivação como resultado de práticas do convívio interpessoal das Sociedades de Corte; 3) as ideologias que se formariam com as revoluções econômico-políticas e culturais nos séculos XVI e XVII, as quais, por sua vez, culminariam com a ascensão do capitalismo impulsionada pela Revolução Industrial ocorrida a partir do século XVIII. (Costa, 1998).
 Acresce-se que o discurso de Lísias, na medida em que busca oferecer uma psicologia inerente ao amor-paixão não deixa de fazer eco à nossa época, especialmente marcada pela liquidez dos relacionamentos humanos[2] - época nossa em que o amor atrai cada vez mais o interesse científico, tanto o das ciências humanas quanto o das ciências naturais.[3]
Nossa interpretação do discurso de Lísias sobre o amor não pretende sugerir que Lísias tenha-nos legado alguma “novidade” ao tratar do tema (em se tratando de um tema universal como este, há muito pouco de “novo” a ser dito). Interessa-nos é mostrar que o discurso de Lísias inscreve-se numa tradição discursiva sobre o amor que se desenvolveu como contribuição desmitificadora.
Comecemos por referir a tese de seu discurso. A tese nos parece ser a seguinte:

(...) de regra, os amantes se arrependem do bem que tenham feito, tão logo se extinga neles o desejo, ao passo que os outros, nunca lhes chega o tempo do arrependimento, pois não é sob a pressão de alguma necessidade, senão de deliberação refletida e pelo estudo de sua situação que promovem o bem do amigo no que neles estiver.[4]


Lendo, com acuro, a tese, percebemos que Lísias a constrói com base na oposição entre os amantes e os outros (que, adiante, se nos revelarão tratar-se dos que não amam). Os amantes constituem o objeto-de-discurso marcado pela qualificação semântica /euforia/, de sorte que diremos ser esse referente o termo /eufórico/; por outro lado, os não amantes são marcados pela qualificação semântica /disforia/ e dele diremos ser o termo /disfórico/[5]. Essa oposição marcada pelas categorias /euforia/ e /disforia/ é extensiva aos pares “amor” (amor-paixão) e afeição recíproca (philia). O amor-paixão é marcado pela qualificação semântica /disforia/ - é o termo disfórico -; e a “afeição recíproca” é marcada pela qualificação semântica /euforia/ - é o termo eufórico, conforme se pode ler em: “Os que não amam, ninguém pensa em censurá-los por tais encontros, pois todos sabem muito bem que semelhantes colóquios terão de ser fruto de afeição recíproca ou da necessidade de espairecer”.[6] Essa passagem contrasta com a que a precede, na qual Lísias exprime sua crença de que os amantes costumam ser mal vistos quando surpreendidos sozinhos com seus amados, pois que, nessa circunstância, parece aos outros que eles “acabaram de satisfazer seus apetites ou se acham em caminho disso mesmo”. (v. nota 42).
Antes de avançarmos na discussão sobre a psicologia do amor-paixão, convém atentar para a tese anteriormente referida, a fim de que nos lembremos de que o amor, para Lísias, é desejo. A questão que, inicialmente, fica em aberto no discurso de Lísias é justamente: desejo de quê? Conquanto a resposta pudesse ser deduzida da apreensão dos traços psicológicos do amante e da natureza do amor-paixão, os quais se deixam ver ao longo do discurso de Lísias, podemos inferi-la da seguinte passagem:(...) é comum entre os amantes cobiçarem apenas o corpo dos mancebos, sem lhes conhecer o caráter e os hábitos, de forma que não se pode ter certeza de que semelhante ligação sobreviva ao desejo”.[7] Ora, a visão de Lísias de amor – parece claro – é o antípoda da visão platônica do amor. O amor, em Lísias, é desejo de prazer sensível, desejo de posse do corpo do amado, com claro desinteresse pelos atributos de sua alma.
É importante dizer que o desenvolvimento do discurso de Lísias tem como focalização a figura do amante, a qual constitui o termo de valor negativo. O lugar do amado na relação amorosa é simplesmente negligenciado. Lísias está preocupado em mostrar quão perturbador e infeliz é o destino dos amantes e o fará com o propósito de convencer Fedro de que é melhor não se deixar apanhar pela armadilha do amor-paixão. Ao descrever o amor-paixão, Lísias fornece-nos uma descrição dos traços psicológicos típicos dos amantes.
Devemos notar, em primeiro lugar, que o amor-paixão é, para o amante, uma experiência de perda de si. Sob a pressão da paixão, o amante é incapaz de dominar a si mesmo; além disso, tende a ponderar os “prejuízos materiais que lhes possam ter causado sua paixão”[8] e a considerar todo o empenho dispensado na insistência com que procurou agradar ao amado, acabando por satisfazer-se na ideia de que nada mais de gratidão deve a ele. Em segundo lugar, os apaixonados se tornam mais suscetíveis a mágoas e a aborrecimentos:

Para eles, tudo é pretexto de se sentirem magoados, pois acham sempre que todos só pensam em prejudicá-los. Daí lhes nasce procurarem de toda a forma impedir que seus amados se aproximem de outras pessoas, de medo que os ricos os sobrepujam com o dinheiro, e com sua inteligência façam os instruídos melhor figura do que eles, com o que se põem de sobreaviso contra quem revela alguma superioridade a seu respeito.[9]


Sob o efeito do delírio[10] do amor-paixão, o amante se vê presa fácil das garras do ciúme. Porque dominado pela paixão do ciúme, o amante fará de tudo para afastar o amado de possíveis pretendentes, não sem um alto custo: ver-se destinado à solidão. Triste é, assim, o destino do amante: dominado pela paixão, cobiçoso do corpo do amado, nunca certo de que seu relacionamento subsista ao arrefecimento do desejo e não podendo evitar que outros o sobrepujem com suas riquezas materiais e seus dotes naturais, torna-se vulnerável ao ciúme. Ademais, porque movido pelo desejo, porque submetido às solicitações do amor-paixão, o amante experiencia um desequilíbrio interior - a harmonia de sua alma é rompida. O amante torna-se incapaz de julgamentos corretos. O excerto abaixo, em que Lísias nos mostra de que forma se manifesta o amor e busca convencer Fedro de que procederá de modo diverso ao modo como se comportam os amantes, a fim de obter a amizade dele, permite-nos entrever uma preocupação que é grega, por excelência: a censura da hýbris.

(...) o amor se manifesta do seguinte modo: o menor contratempo, que para muita gente nem seria digno de menção, aos olhos do amante infeliz é desgraça inominável, como, por outro lado, força os amantes venturosos a gastar elogios com o que não tem valor. Donde se colhe que os amantes são mais dignos de piedade do que de inveja. Por isso, se me escutares, em primeiro lugar não só não procurarei ao teu lado apenas o prazer transitório, como cuidarei dos teus futuros interesses. Sem deixar-me dirigir pelo amor, porém sabendo dominar-me, não suscitarei discórdias por motivos fúteis, e até em casos de maior gravidade, com relutância e muito pela rama manifestarei meu desagrado; desculparei as faltas involuntárias, como procurarei impedir as voluntárias. Dize: não são esses os sinais de uma amizade fadada a durar sempre? E se porventura imaginares que não pode haver amizade firme sem amor verdadeiro, reflete que nesse caso nunca faríamos conta dos filhos nem dos pais nem das mães, como também não teríamos bons amigos, pois nenhum dessas ligações se origina do amor, senão de sentimento de outra natureza. Mais, ainda: se for preciso conceder seus favores aos insistentes em suas solicitações, será mais razoável, acima de tudo, não entregar-se ninguém aos que tiverem maior merecimento, porém aos mais necessitados: quanto maiores forem os males de que os aliviares, tanto mais reconhecidos se mostrarão. Em tuas festas íntimas, também, não convides amigos, porém mendigos e famintos; serão sempre os mais atenciosos, acompanhar-te-ão por toda a parte, não sairão de tua porta; são esses os que mais se alegram e sabem ser reconhecidos, além de toda hora formularem votos para a tua felicidade. Sim, porém decerto o aconselhável não será favorecer os mais importunos, senão somente os mais capazes de demonstrar gratidão; não apenas os apaixonados, mas os merecedores de tão grande favor; não os que se propõem a gozar os encantos de tua mocidade, mas os que na tua velhice dividirão contigo seus haveres; não os que depois de alcançarem o que almejam, não falam noutra coisa, mas os que, de puro envergonhados, sabem calar na frente de terceiros; não os de afeição efêmera, mas os de amizade sempre igual a vida inteira; não os que, acalmado o desejo, só procuram pretexto para romper contigo, porém os que depois de perderem o viço, passam a dar provas de sua virtude muito própria. Guarda bem minhas palavras e considera que os amantes ouvem sempre dos amigos que sua paixão é viciosa, ao passo que os não apaixonados nunca foram acusados pelos parentes, por motivo dessas relações, de conduzirem mal os seus negócios.[11] (ênfases nossas).


Nesse momento de seu discurso, Lísias se propõe, de início, mostrar a influência negativa que sobre os amantes exerce o amor. O amor-paixão exaspera as emoções do amante infeliz em face do menor contratempo. Como torne seu julgamento distorcido, o amor-paixão leva o amante a importar-se com inconvenientes que, em condições outras, não seriam graves. O amante venturoso, por sua vez, também sofre da mesma tendência a exceder-se no modo de reagir. No seu caso, o excesso torna-o um adulador. Em qualquer um dos casos, vemos que o amor-paixão é desmesura (hýbris).
Lísias prossegue argumentando que, ao requestar a amizade de Fedro, agirá não com o intento apenas de usufruir o prazer transitório, caso em que se tornaria suscetível de hýbris, mas procederia segundo sophrosýne, isto é, de modo moderado, contendo seus impulsos e desejos. O que o discurso de Lísias parece encenar é a luta entre hýbris e sophrosýne, cujas contrapartes são, respectivamente, o amor-paixão e philia. Não estando sob o domínio do amor-paixão, aquele que não ama reage aos contratempos e manifesta algum desagrado moderadamente. Porque sua alma conserva-se em equilíbrio, está sempre disposto a desculpar as faltas involuntárias, como também estará apto para “evitar as involuntárias”. Quem assim procede, quem evita entregar-se às solicitações do amor está mais bem preparado para garantir uma amizade duradoura. Lísias é bastante claro ao sugerir que a amizade sólida pode realizar-se sem “amor verdadeiro”.
Tendo demonstrado a necessidade de evitar o apaixonamento, Lísias listará várias recomendações a Fedro, que devem ser seguidas caso não seja possível evitar atender aos apelos de alguns pretendentes. Ao fazê-lo, Lísias acena ao “agir razoável”. Esse agir razoável consiste em: 1) favorecer os mais necessitados e nunca aqueles que ostentam merecimento; 2) favorecer os que são capazes de demonstrar gratidão; 3) os merecedores dos favores concedidos; 4) os que continuarão companheiros na velhice; 5) os que são generosos; 6) os que são reservados; 7) os que conservam a amizade a vida inteira; 8) os que conservam a amizade após satisfazer seu desejo; 9) os que permanecem fieis à amizade, mesmo depois que o amigo perde a exuberância, a beleza. Ora, vê-se que essa conduta razoável de quem está sendo requestado supõe a capacidade de discernimento, que só pode ser conservada com a condição de nunca deixar-se dominar pelo amor-paixão.
Para terminar, gostaríamos de sublinhar que, no discurso de Lísias, o amor não tem qualquer vínculo com a vida virtuosa; ao contrário, o amante está sujeito a toda sorte de excessos e sua paixão é considerada viciosa. Se há – como acreditamos haver – alguma preocupação em oferecer uma orientação ética, Lísias o faz com base na contraposição entre amor e philia, de sorte que torna a philia a condição para o agir razoável. Porque tem em vista o estabelecimento de uma amizade verdadeira, o indivíduo deve proceder de modo tal, que possa dominar a si mesmo, evitando, assim, ceder às pressões do desejo.


1.2. O mito da Parelha Alada e seu complemento[12]: a filosofia como vida virtuosa


Ao nos debruçarmos sobre o mito da Parelha Alada, estaremos interessados, sobretudo, em patentear de que modo Platão maximiza a figura do filósofo e a importância da filosofia. Explicitar essa maximização, tendo sido, inicialmente, o objetivo fixado por nós para o desenvolvimento desta exposição, permite-nos também perceber o estabelecimento por Platão da unidade entre conhecimento, psicologia e ética. No mito da Parelha Alada, essa unidade torna-se ainda mais clara. A fim de que realizemos nosso intento, discriminamos os temas que demandarão nossa atenção especial: 1) quem é o amante; 2) o Belo em si; 3) o valor da vida dedicada à filosofia.
Tão logo terminado o relato do discurso de Lísias, Sócrates manifesta seu primeiro desacordo. Sócrates pensa que Lísias parece ter-se enganado ao sugerir que aquele que não corresponde ao amor de outrem não ama. Para Sócrates, é possível que ame alguma outra coisa. Ao contrário do que pensa Lísias, talvez haja várias espécies de amor. O segundo desacordo de Sócrates consiste em fazer notar a Fedro que Lísias supôs haver uma espécie apenas de delírio - uma espécie má. Ora, Sócrates mostra que os antepassados associavam ao delírio os maiores bens; ademais, o delírio, sempre que decorre de inspiração divina, é considerado algo belo. Sendo de origem divina e, portanto, belo, o delírio foi ligado a mais nobre das artes – manikê (mania). Essa arte permite-nos predizer o futuro.  Sócrates diz que há várias espécies de delírios. Entre essas espécies de delírios, está o delírio profético, inspirado por Apolo Delfo, o qual “ultrapassa em perfeição e dignidade a [arte humana] dos augúrios”[13]; o delírio purificador, inspirado por Dionisos, o qual “preservou seus participantes de calamidades presentes e futuras”, ensinando “ao homem verdadeiramente inspirado e possuído a maneira de libertar-se dos males do momento”[14]; o delírio poético, que provém das Musas “quando se apodera de uma alma delicada e sem mácula, desperta-a, deixa-a delirante e lhe inspira odes e outras modalidades de poesia (...)”[15]; e há o delírio erótico, inspirado por Eros e enviado pelos deuses “para a nossa maior felicidade”.[16]
Está claro, portanto, que nem todo delírio é um mal e que o amor, na medida em que é uma forma de delírio – o delírio erótico – e tendo sido enviado pelos deuses, não pode ser fonte de males, como pensara Lísias. Deve-se dizer, a esta altura, que Sócrates, ao contrário de Lísias, restituirá ao amado o valor que tem na relação amorosa. O amor não é destinado à satisfação egoísta do amante, mas à satisfação do amado, que agora encontra seu importante lugar na convivência com o amante. Na convivência que torna possível o amor, amante e amado se dedicarão ao benefício mútuo. O amor não leva os que dele são possuídos a desejar apenas a beleza do corpo um do outro, mas os faz tomar a beleza corpórea e aparente como sinal da beleza de suas almas.  
No excerto que se seguirá, colhido do mito da Parelha Alada, Sócrates dá-nos a conhecer quem é o amante e alude à teoria da reminiscência. Deve-se notar que, nesse trecho, o conhecimento se articula à virtude, isto é, o ter vivido virtuosamente é condição para que a alma consiga recordar-se do que viu quando vivia em companhia dos deuses.

Quando, à vista da beleza terrena e, despertada a lembrança da verdadeira beleza, a alma readquire asas e, novamente alada, debalde tenta voar, à maneira dos pássaros dirige o olhar para o céu, sem atentar absolutamente nas coisas cá de baixo, do que lhe vem ser acoimada de maníaca. Porém, o que eu digo é que essa é a melhor modalidade de possessão, a de mais nobre origem, tanto em quem se manifesta como em quem dele a receber. O indivíduo atacado de semelhante delírio, sempre que apaixonado das coisas belas, é denominado amante. Conforme disse há pouco, toda alma de homem já contemplou naturalmente a verdadeira realidade, sem o que não teria nunca adquirido essa forma; porém, não é igualmente fácil para todas, à vista das coisas terrenas, recordar-se das celestes, o que se dá tanto com as que as percebem de corrida como com as que tiveram a infelicidade de cometer alguma injustiça por influência de más companhias e de esquecer os mistérios sagrados contemplados naquela ocasião. Assim, são bem poucas as que conservam a lembrança do que viram. Sempre que essas poucas percebem alguma imagem das coisas lá do alto, ficam tomadas de entusiasmo e perdem o domínio de si mesmas. Porém não sabem o que se passa com elas, por carecerem de percepções suficientemente claras, pois em relação à justiça, à temperança e tudo o mais que a alma tem em grande estima, as imagens terrenas são de todo em todo privadas de brilho; com órgãos turvos e, por isso mesmo, com assaz dificuldade, é que as poucas pessoas que se aproximam das imagens conseguem reconhecer nelas o gênero do modelo original. Porém a Beleza era muito fácil de ver por causa do brilho peculiar, quando, no séquito de Zeus, tomando parte no coro dos bem-aventurados e os demais no de outra divindade, gozávamos do espetáculo dessa visão admirável e, iniciados nesse mistério que, com toda a justiça, pode ser denominado sacratíssimo, e que celebrávamos na plenitude da perfeição e livres dos males que nos alcançam no futuro, fomos admitidos a contemplar sob a luz mais pura aparições perfeitas, simples, imutáveis, puros também e libertos deste cárcere de morte que com o nome de corpo carregamos conosco e no qual estamos aprisionados como a ostra em sua casca.[17] (ênfase nossa).


Dizer que o viver segundo a virtude é uma condição para que a alma consiga recordar-se do que viu no séquito de Zeus não significa que essa condição lhe seja bastante, porque a recordação do modelo original encontra no próprio corpo em que reside a alma um obstáculo. Novamente, a imagem do corpo como cárcere, que vimos no Fédon, aparece aqui. O corpo, mesmo para as almas que não tenham cometido alguma injustiça, constitui um obstáculo para a recordação do modelo original a partir das imagens terrenas. Ademais, estas, como sejam cópias do modelo original, carecem da qualidade necessária que torne possível a recordação desse modelo (elas são “privadas totalmente de brilho”). A descrição do que sucede com as poucas almas que conseguem perceber alguma imagem do que contemplou outrora é análoga à experiência do prisioneiro que deixa a caverna para assomar à verdadeira realidade iluminada pela luz do Sol. A estrutura imagético-dialética é bem parecida: a queda num corpo é o aprisionamento na caverna. A vida terrena é a vida na caverna. Tal como o prisioneiro, que no mito da Caverna, consegue, libertando-se, contemplar, num movimento ascensional, a verdadeira realidade, a alma, presa no corpo, pode ter vislumbres das coisas celestiais. No entanto, ao contrário do prisioneiro que, depois de um instante de ofuscação, acostuma-se com a luz da verdadeira realidade, a alma, entusiasmando-se com a recordação do que contemplou, “perde o domínio de si mesma” e ignora o que se passa com ela. Essa perda de si e ignorância são consequência de seu estado atual, a saber, do fato de estar ela presa no corpo. A filosofia, nesse momento, ainda não despontou como o horizonte de possibilidade de purificação e ascensão ao Belo em si.
Retome-se, a fim de que possamos compreender a função da filosofia e qual é o estatuto do filósofo na narrativa do Fedro, a figura do amante e sua relação com o amado. O amante, segundo lemos no trecho acima citado, é um apaixonado das coisas belas, é aquele tomado de delírio erótico. Já vimos, ao apresentar a escalada do Belo no Fédon, que Eros é desejo do Belo e do Bem em si. O amante, em Platão, não quer apenas a satisfação dos belos corpos. É na beleza das almas que o amante e o amado descobrem o sinal da causa que as faz belas e boas. Assim, eles se descobrem almas imortais e aparentadas ao divino e à verdade.
Eros ou o delírio erótico é o conhecimento que os amantes alcançam da natureza imortal e da excelência (virtude) da alma dos amados. Atingindo esse conhecimento, eles são conduzidos ascensionalmente à origem dessa excelência. Destarte, eles são beneficiados com o saber através do qual descobrem que a alma bela e boa é aquela que já contemplou a Verdade em outra vida – na vida outrora vivida na companhia dos deuses. É por já ter contemplado a Verdade, que a alma é capaz de lembrar-se dela, e dela se lembrando, aspira a contemplá-la novamente.
Dissemos que, no mito da Parelha Alada, Platão articula, numa unidade, de modo mais claro, conhecimento, ética e psicologia. O primeiro elemento dessa unidade – o conhecimento – deixa-se entrever na caracterização socrática de Eros como força que impulsiona as almas à contemplação da Verdade. É sob o efeito do delírio erótico que elas são capazes de recordar a Verdade. Uma vez que amante e amado sejam imortais e perfeitos, amarão um no outro a verdadeira sabedoria. Assim, o amor que os move é a própria filosofia. Em outros termos, Eros, agora, é filósofo.
O mito da Parelha Alada, conduzindo-nos ao Princípio, narrando a origem das almas, a vida que viviam no séquito de Zeus, ajuda-nos a entender como é  possível a elas distinguir um desejo e amor virtuosos de um desejo e amor que não são senão doença ou vício. Lembremos que a Alma do Mundo, ou psykhé universal, sendo princípio de movimento – portanto, de vida – é responsável por governar a ordem universal. Quando perde suas asas, alguns fragmentos que se desprendem encontram morada em corpos que habitam a terra. Nossa alma nasce, pois, da perda das asas da Alma do Mundo; por isso, são capazes de recordar aquilo que outrora viram. Com o auxílio de Eros, que restitui às nossas almas as asas perdidas, conduz a nós, seres mortais, a retornar às alturas onde está a Verdade. Graças a Eros, a melhor parte da alma – a parte racional – conserva sua imortalidade.
Já vimos também que a alma humana se apresenta, para Platão, tripartida em alma apetitiva, alma irascível e alma racional. No mito da Parelha Alada, o cocheiro representa a parte racional da alma e está encarregado, por isso, de conduzir toda a alma ao seu destino, domando os impulsos danosos da parte concupiscente. O cocheiro – a parte racional da alma -, tendo visto o objeto amável, sente-se atraído para ele. Nessa ocasião, recorda-lhe a essência da Beleza e do Bem. Inicialmente, o cocheiro recua assustado; mas, sendo auxiliado pelo cavalo bom, é forçado a reter a lembrança do amado. Assim, imbuído de coragem, controla o carro, açoitando o cavalo de raça má para que obedeça.
A articulação da ética com a filosofia se faz pelo amor ao Belo em si. O amante, sendo a alma, pode fundir-se ao amado (o belo), alcançando, assim, a felicidade perfeita, porque, por força da influência de Eros, é capaz de recordar o Belo em si outrora visto. O amante é agora filósofo, aquele que reconhece, nas coisas belas, na multiplicidade do sensível, a unidade perfeita das Ideias. À medida que se vai lembrando do Belo em si, as asas de sua alma vão crescendo. Eros ou a filosofia restitui à alma as suas asas. A filosofia é, assim, delírio erótico, é delírio de inspiração divina, visto que ela, fazendo crescer o amante em sabedoria e em virtude, torna sua alma novamente alada.
Sendo alada, a alma pode, elevando-se, participar da natureza imortal do divino (é este seu desejo). Mas, como ainda está presa num corpo e, por isso, impedida de voar, ela deve voltar-se para a filosofia, exercitar-se nela, tomá-la como caminho que lhe permitirá a tão desejada ascensão. Pela ascensão, a visão da alma se desvia dos assuntos humanos e se dirige para as coisas celestes, mais elevadas.
No Fedro, é o Belo que permite a articulação entre psicologia e ética. Ora, a parte concupiscente da alma deseja as coisas perecíveis. Seu desejo é desejo de possuir unicamente. A parte concupiscente, possuindo o que deseja, nunca está saciada e, em pouco tempo, torna-se possuída por aquilo que então desejava possuir. A parte irascível, por sua vez, deseja também as coisas perecíveis, como a fama e a glória. Se ela mover-se para essas coisas sem comedimento, pode arruinar-se. Demais, seu modo de desejar é desejo de obter boa reputação a partir das opiniões favoráveis dos outros. O risco que se acha nesse anelo é que, sendo bem reputada segundo as opiniões alheias, incorra na desonra ou na vanglória. Somente a parte racional deseja os bens imperecíveis, quais sejam, a Verdade e o Bem em si. Ela não se move pelo desejo de possuir o que é mutável e imperfeito; não deseja obter boa reputação a partir da opinião alheia. Ela se move pelo desejo de participar da essência da Verdade e do Bem. É por isso mesmo que ela está apta para determinar a medida segundo a qual os desejos das outras partes da alma devem-se conduzir. Ela impõe limites ao modo de desejar das partes concupiscente e irascível da alma. Assim, pode torná-las virtuosas.
Eros é, portanto, a força que faz mover a alma, quer sua parte apetitiva, quer sua parte irascível, quer sua parte racional. A virtude, por seu turno, é determinada pela qualidade do objeto para cuja obtenção o amor impulsiona a alma. Sob o governo da parte racional, então, entregue ao exercício da filosofia, a alma torna-se capaz de fazer sempre uma escolha entre os objetos perecíveis da paixão e os imperecíveis da razão. A autarquia do indivíduo repousa no poder da parte racional ou da razão de governar as paixões, fixando para cada uma das outras partes da alma bons objetos e desejos.
Finalmente, a areté só pode ser conquistada pela luta entre desejos irracionais e desejos racionais. A virtude não pode ser alcançada sem que haja uma harmonia entre as partes da alma. Essa harmonia é garantida pelo governo da parte racional sobre as outras partes irracionais. Por conseguinte, a virtude, para Platão, é inseparável do conhecimento e da vida filosófica – que é a vida virtuosa. Levamos a cabo este trabalho, referindo um trecho emblemático da oposição socrática ao discurso de Lísias. O trecho se segue ao momento do discurso em que Sócrates compara o destino das almas que viveram afastadas da filosofia com o das almas que viveram “uma vida ordeira e dedicada à filosofia”[18].

São essas, jovem, as grandes e divinas bênçãos que te ensejará a amizade do teu apaixonado. Quanto à intimidade com quem não ama, aguada com a sabedoria mortal que se ocupa de interesses perecíveis e de nenhum valor, só gerará na alma do amado a mesquinhez que as multidões exalçam como virtude e que será causa de ela vir rolar durante nove mil anos em torno da terra, para acabar embaixo da terra como sombra privada de razão.[19]





[1] Muito embora o cristianismo tenha condenado os traços mundanos do amor romântico, cremos que os traços idealizadores que caracterizam essa forma de amor, tão profundamente marcante da cultura ocidental, podem ser rastreados numa longa tradição que, remontando a Platão, encontra no cristianismo fonte de longevidade. Se Platão concebeu o amor como caminho para aspirar ao que é puro e eterno, o cristianismo, dando continuidade a uma tendência que já se verificava em Platão, viria a maximizar a transcendência de Eros tornando-o a virtude suprema do mundo ocidental, encarnada na pessoa de Jesus. Com o cristianismo, o amor deve possibilitar a conquista da intimidade com a mais elevada bondade, beleza e verdade, que é o próprio Deus. (May, 2012).
[2] Veja-se, a propósito: Bauman, Zigmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Joge Zahar, 2004.
[3] Um exemplo disso é a possibilidade de o amor ser estudado tendo em vista a determinação da química do cérebro apaixonado. Ademais, não só neurocientistas se demonstram mais interessados em estudar a natureza bioquímica do amor, como biólogos e psicólogos evolucionistas tratarão de investigar a presença do amor na história evolutiva das espécies, buscando compreender o porquê de nós, seres humanos, amarmos. (Fisher, 2004).
[4] Fedro, 231a.
[5] As categorias /euforia/ e /disforia/ são categorias semânticas que estão na base da construção de um texto. Uma categoria semântica assenta-se sempre numa oposição. Cremos ser elas úteis para tornar nossa proposta de leitura do discurso de Lísias tanto mais clara quanto consistente com o objetivo por nós perseguido demarcar duas visões contrárias sobre Eros, a de Lísias e a de Sócrates. A categoria /euforia/ é um valor positivo que marca o modo como um determinado referente se inscreve ou é considerado (pelo autor) no texto, independentemente do sistema axiológico do leitor; por outro lado, a categoria /disforia/ é um valor negativo que marca o modo como um determinado referente se inscreve ou é considerado (pelo autor) no texto.  (Fiorin, 2005).
[6] Ib.id., 232b.
[7] Ib.id., 232e.
[8] Ib.Id., 231a.
[9] Ib.Id. 232c.
[10] Pode-se dizer que o amor tematizado por Lísias é uma forma de delírio negativo, concepção esta a que Sócrates irá se opor, conforme veremos.
[11] Ib.Id.233b-234b.
[12] Referimo-nos ao discurso de Sócrates que, retomando pontos essenciais do mito da Parelha Alada, mais claramente expressa a sua oposição ao discurso de Lísias.
[13] Ib.Id. 244d.
[14] Ib.Id. 244e.
[15] Ib.Id. 245a.
[16] Ib.Id. 245c.
[17] Ib.Id. 249e-250c.
[18] Ib.Id. 256a.
[19] Ib.Id. 257a.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

"Fazer o trágico passar do estado inconsciente ao estado consciente é uma impossibilidade: ou você tem consciência dele ou não tem consciência dele e jamais terá" (Rosset)

                                           
                             

                  Por um saber que impregne a sensibilidade

"Fazer o trágico passar do estado inconsciente para o consciente" - nisso consiste o projeto de uma "filosofia terrorista", segundo o filósofo trágico contemporâneo Clément Rosset. Rosset não crê na possibilidade de curar os partidários de ideologias de todo gênero, já que eles vivem encerrados em seu dogmatismo.
Em entrevista a Sébastien Charles, registrada no livro É possível viver como eles pensam (2006), Rosset responde, da seguinte forma, à sugestão de que seu trabalho Lógica do Pior, a considerar a impossibilidade de livrar o homem de suas posições dogmáticas, só convenceria os já convencidos.

"É impossível tirar os homens da ilusão impondo-lhes um saber que eles podem admitir no plano teórico ou abstrato, mas que não impregnará sua verdadeira sensibilidade".

Ora, "um saber que não impregnará sua verdadeira sensibilidade" é um saber que não é incorporado, que não exerceu nenhum efeito sobre a fisiologia desse homem que apenas o admite abstratamente. Esse saber que não integra à sensibilidade do homem é um saber ineficaz e estéril. Ineficaz e estéril porque não penetra sua estrutura sensível, porque não metamorfoseia seu modo de ser.
Suspeito de que essa experiência da não incorporação à sensibilidade de um saber seja uma experiência com que o professor, que pretende ensinar verdadeiramente a filosofar, se defronta, quer no nível básico, quer no nível superior de ensino. A experiência da incapacidade de o outro ser afetado fisiologicamente ou sensivelmente pelo saber suscita a questão sobre o que é ensinar a filosofar. Essa questão é tanto mais premente quando nos lembramos de que a experiência filosófica é, conforme mantém Sponville, "pensar sua vida, viver seu pensamento". Sponville, aliás, nos faz ver que não há demonstração filosófica e, se não há uma prova que dê sustentabilidade a uma ou outra posição filosófica que venhamos a assumir, o que então nos faz adotar uma posição em detrimento da outra? Trata-se, para mim, de uma evidência que reencontro nos filósofos que frequento: nosso passado, nossas experiências de mundo, as formas como somos afetados pelo mundo, nosso temperamento. É isso que nos fará tomar uma ou outra orientação filosófica, a assumir um ou outro modo de ser. Sponville nota que não fazemos uma escolha livre entre uma ou outra posição filosófica. Simplesmente, chega um momento em que temos a impressão de que "não posso pensar de outra maneira". Assim, se assumimos uma posição materialista, o fizemos por certo número de razões, que, no entanto, não precisam ser concludentes ou demonstráveis. Se, então, sou materialista, é porque não consigo pensar e sentir (pensar e sentir se fundem) de outro modo. Para Sponville, uma parte considerável da filosofia é tentar comunicar racionalmente certo número de quase evidências que nós trazemos em nós mesmos.
Voltando a Rosset, esse filósofo está convencido de que o homem não é capaz de enfrentar a ideia da morte. O homem que se vê em face de uma perda, por exemplo, de um grande amor, é lançado num estado de preparação para o grande desnorteio de se reconhecer detentor de um saber que não pode assumir. Ele sabe que morrerá, que morrerão todos aqueles que ele mais ama, mas não pode verdadeiramente assumir esse saber, isto é, incorporá-lo à sua sensibilidade. Freud – lembremos - ensinou que para o inconsciente somos imortais. Assim, vivem os seres humanos em seu cotidiano: como se jamais fossem morrer. Para Rosset, "se sua estupefação cessa, o homem não é mais trágico". O homem mediano  evita o confrontar-se com sua condição desesperadora: ver-se lançado no mundo para nele necessariamente morrer. Há algo de desesperador aí que ele vive evitando incorporar a sua sensibilidade (isto é, a sua capacidade de se deixar afetar, impressionar, sentir). Daí que, segundo Rosset,


"Todo filósofo, por mais ilustre que seja, que não concorde sobre este ponto com Cioran, Lucrécio, Nietzsche, Schopenhauer, etc., e que não passe pelo credo absoluto e sem nuance que afirma que o homem NÃO É CAPAZ DE ACEITAR PENSAR O QUE SABE, está para mim desqualificado de antemão. Posso lê-lo, é claro, porque escreveu coisas geniais sobre a relação entre a forma e matéria [vide. Aristóteles], sobre isto ou aquilo, mas para mim isso permanece da ordem do detalhe. O certo é que, quanto ao ponto que considero como fundamental, esse filósofo ainda tem tudo a aprender e está longe de desconfiar da profundidade do abismo que ladeia sem enxergar".

domingo, 31 de janeiro de 2016

"Que significa o niilismo? Que os valores superiores se depreciam." (Nietzsche)

                                      







                       O niilismo: um estado patológico[1]

Este texto constitui um fragmento do trabalho intitulado “Uma abordagem semântica relacional do niilismo, da má consciência e o do ideal ascético na filosofia de Nietzsche”, por mim desenvolvido na disciplina Ética II do curso de filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).



O acontecimento da morte de Deus constitui, conforme vimos, um imperativo histórico. Com ele, passamos a viver num mundo ao qual falta qualquer profundidade que antes lhe servia de suporte metafísico. A vontade de poder permeia todos os acontecimentos do mundo, caracterizando o próprio mundo como superfície fenomênica. Não há mais um ‘em si’ como instância doadora de sentido ao mundo. Portanto, vimos que o niilismo é tanto a experiência da falta de sentidos normativos que orientavam as vivências humanas quanto a impossibilidade de ter acesso ao absoluto.
Também acenamos com o fato de que Nietzsche não pode ser alcunhado de “filósofo do niilismo”. Pretender fixar-lhe tal lugar é ignorar seu esforço combativo orientado para a superação do niilismo. Nietzsche foi quem melhor soube identificar as causas desse estado patológico da vida e de propor-lhe uma forma de tratamento. O acontecimento da morte de Deus, para Nietzsche, não apenas fez eclodir o desespero niilista, como também (e sobretudo) abriu o horizonte para a possibilidade de superação do niilismo. Para Nietzsche, o niilismo é a condição normal da nossa época, da época pós-moderna. É verdade que, num primeiro momento, Nietzsche reconhece que o niilismo é experienciado como consequência da derrocada dos valores superiores. Nietzsche, ao perguntar o que significa o niilismo, numa primeira aproximação, responde: “que os valores superiores se depreciam”[2]. Mas essa não é a experiência que tem o tipo forte. A experiência niilista que se segue da derrocada dos valores superiores mantidos até então pela instância metafísica representada por Deus acometerá um tipo vital específico. O trecho abaixo confirma essa nossa interpretação. Além disso, o trecho patenteia-nos que o grandioso evento da “morte de Deus” sequer fora ainda sentido pela maioria dos homens. É importante reter o seguinte: a crítica de Nietzsche ao niilismo remonta às raízes do niilismo, que não se encontram no acontecimento da “morte de Deus”. Nietzsche parte do reconhecimento de que o niilismo veio suprimir a questão sobre a finalidade da existência. O “para quê” da vida carece de sentido depois que o mal do niilismo envenenou o modo como o homem experiencia o mundo. No entanto, o que parece preocupar Nietzsche é justamente a questão sobre o que a necessidade de interpretar a vida à luz da categoria de finalidade encoberta. O niilismo, segundo Nietzsche, é um estado patológico que não atingiu ainda seu termo. Falta-lhe justamente um sentido para o qual ele possa tender. O acontecimento da morte de Deus não é o começo desse estado, para Nietzsche; mas um estágio extremamente importante para superá-lo. Por isso, o acontecimento da morte de Deus descerra um novo horizonte hermenêutico que permitirá fomentar novas formas de interpretação da vida que se destinem à superação do estado patológico do niilismo, cujas raízes é anterior a esse grandioso acontecimento.

- O maior acontecimento recente – o fato de que “Deus está morto”, de que a crença no Deus cristão perdeu seu crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Ao menos para aqueles poucos cujo olhar, cuja suspeita no olhar é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, algum sol parece ter se posto, alguma velha e profunda confiança parece ter se transformado em dúvida: para eles o nosso velho mundo deve parecer cada dia mais crepuscular, mais desconfiado, mais estranho, “mais velho”. Mas pode-se dizer, no essencial, que o evento mesmo é demasiado grande, distante e à margem da compreensão da maioria, para que se possa imaginar que a notícia dele tenha sequer chegado; e menos ainda que muitos soubessem já o que realmente sucedeu realmente sucedeu – e tudo que estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado; toda a nossa moral européia, por exemplo. Esta longa e abundante sequência de ruptura, declínio, destruição, cataclismo, que agora é iminente: quem poderia hoje adivinhar o bastante acerca dela, para ter de servir de professor e prenunciador de uma tremenda lógica de horrores, de profeta de um eclipse e ensombrecimento solar, tal como provavelmente jamais houve na Terra?... Mesmo nós, adivinhos natos, que espreitamos do alto dos montes, por assim dizer, colocados entre o hoje e o amanhã e estendidos na contradição entre o hoje e o amanhã, nós, primogênitos e prematuros do século vindouro, aos quais as sombras que logo envolverão a Europa já deveriam ter se mostrado por agora: como se explica que nós encaremos sem muito interesse o limiar deste ensombrecimento, e até sem preocupação e temor por nós? Talvez soframos demais as primeiras consequências desse evento – e estas, as suas consequências para nós, não são, ao contrário do que talvez se esperasse, de modo algum tristes e sombrias, mas sim algo difícil de descrever, uma nova espécie de luz, de felicidade, alívio, contentamento, encorajamento, aurora... De fato, nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que “o velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto “mar aberto”.[3]


Este aforismo tem insignes imagens que servem à expressão da significatividade do horizonte que se abre com o acontecimento da morte de Deus. Nietzsche o descreve como  “uma nova espécie de luz”, “uma nova aurora”, “como o nosso mar”, “mar aberto”. Todas essas imagens remetem ao horizonte descerrado pela “morte do velho Deus”. É justamente o mundo que se torna infinito novamente, que se torna suscetível de infinitas interpretações. Mas experienciar o acontecimento  da morte de Deus como “felicidade”, “alívio”, “contentamento”, “encorajamento”, como uma espécie de iluminação por uma nova aurora só é possível aos espíritos livres. Por isso, Nietzsche escreve sobre “as consequências para nós”, isto é, as consequências segundo uma interpretação que fixa um sentido sintetizador daquela “sequência de ruptura, de declínio, corrupção, cataclismo”. Ora, compreender o acontecimento da morte de Deus como algo capaz de produzir tal estado-de-coisas decorre de certo modo de conformação do mundo segundo um processo interpretativo de certo modo do relacionar agonístico entre vontades de poder. O tipo afirmador, o que é dotado de espírito livre, na medida em que é vontade de poder, valorará o acontecimento da morte de Deus, isto é, lhe imporá um sentido que sirva ao propósito de afirmar a vida, de intensificar a vida, de fortificá-la,; um sentido que possibilite quantificar ascensionalmente as forças da vontade. Esse tipo afirmador fixará um sentido que expressará consentimento pleno às consequências daquele acontecimento. O “mar está aberto”, e o tipo afirmador “quer que assim seja!”, não apesar dos perigos, mas por causa dos perigos que a imensidão do mar, que se lhe torna novamente acessível, lhe guarda. Porque os perigos, para o tipo afirmador, é condição de possibilidade para a ousadia, para o envidar de esforços corajosos destinados à regeneração da vida, à conformação de novos corpos vitais que sejam a encarnação de vontades de poder que amem o modo do destinar-se da vida.
Cumpre-nos, agora, responder à questão: como Nietzsche compreende o niilismo? Está claro que ele não ignora os modos como o niilismo é interpretado em seu tempo. Porque reconhece que o niilismo está ligado à depreciação dos valores superiores, Nietzsche discriminará entre duas formas de niilismo: um niilismo ativo e um niilismo fatigado (ou passivo).  Essa última forma de niilismo tornou-nos cansados do homem. Na Genealogia, lemos o seguinte:

- junto com o temor do homem, perdemos também o amor a ele, a reverência por ele, a esperança em torno dele, e mesmo a vontade de que exista ele. A visão do homem agora cansa – o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos cansados do homem.[4] (ênfase nossa).


O fato de o homem estar cansado de si mesmo – nisso consiste o niilismo fatigado. Essa forma de niilismo não mais ataca. Nietzsche fornecerá como exemplo desse niilismo fatigado o budismo[5]. Nietzsche, no entanto, também vê o cristianismo como uma religião niilista. Tanto o budismo quanto o cristianismo comungam da mesma empresa: lutam contra os sentimentos de inimizade e os consideram fontes de todo o mal. As duas religiões também ensinam a indiferença em relação à ostentação de felicidade. O budismo é uma religião marcada por uma profunda luta contra o desejo, que considera a causa de todo sofrimento. O problema é que lutar contra o desejo é lutar contra a vida. O budista quer separar-se da vida, quer alcançar a dissolução absoluta no nada (nirvana final)[6]. A vida, para ele, também não pode ser aprovada, por isso ele quer interromper a lei do samsara (do ciclo de nascimento-morte-renascimento). O homem que não conseguiu interromper o ciclo de renascimentos vive na condição de escravo. É necessário, então, que esse homem alcance a salvação, que, diferentemente da salvação cristã, é uma salvação que depende exclusivamente de si mesmo. O cristianismo também quer separar-se da vida, embora seja proibido ao cristão fazê-lo voluntariamente (tanto quanto para o budista). O fim supremo do cristão é a salvação, que envolve a possibilidade de libertar-se do mundo para fruir de uma nova vida no Reino de Deus. O cristão não é desse mundo; seu destino é viver para adorar a Deus na esperança de obter dele a salvação. Para Nietzsche, esse desejo de salvação próprio do cristão decorre de sua “profunda incultura” com relação ao objeto de seus desejos.
O budismo e o cristianismo creem que os instintos vigorosos da vida (e para Nietzsche tudo que é instinto é bom) não mais atendem à conquista da alegria, mas são causa de sofrimento. No budismo, o sofrimento é experienciado quando aqueles instintos motivam a ação. O conceito de carma no budismo supõe que o nosso destino é determinado por nossas ações. Assim, como todas as ações têm consequências, ações más (e pensamentos maus) acarretam uma série de renascimentos danosos. Portanto, o modo como se constituirá a vida em que o indivíduo renascerá é consequência direta do modo como agiu, se comportou, pensou na vida anterior. Para romper com o carma, para suprimir o ciclo de renascimentos, o budista deve viver segundo a instrução deixada por Buda. Em essência, deve viver de modo a evitar os excessos, a desmesura (hýbris). Toda forma de proceder que seja desmesurada produz desprazer. Para Nietzsche, o cristão, por sua vez, também crê que aqueles instintos causam sofrimento, na medida em que levam a inimizades. O ódio e a ofensa engendram desprazer, violentam “a paz da alma”; e o que mais aspira alcançar em vida o bom cristão é a paz da alma (“que a paz esteja convosco”).
O niilismo fatigado é sinal de fraqueza, para Nietzsche; é expressão de cansaço da vida, de esgotamento da vontade.

(...) de tal forma que os fins e valores preconizados até o presente pareçam impróprios e não mais se imponham, de sorte que a síntese dos valores e dos fins (sobre os quais repousou toda cultura sólida) se decomponha; e que os diferentes valores se guerreiem entre si; uma degradação...; que tudo o que alivia, cura, tranquiliza, atormenta,  venha em primeiro plano, sob roupagens diversas, religiosas ou morais, políticas ou estéticas etc.[7]

Esse trecho sugere que o niilismo constitui um estado de decepção quanto à pretensão de fixar uma finalidade para o “eterno vir a ser”. O niilismo parece ser consequência de se criar valores que, em vez de afirmar a vida, se destinam a condená-la. A decepção ou se relaciona com um propósito que, em todo caso, fora previamente determinado, ou, de maneira geral, decorre da percepção de que as crenças numa finalidade para a vida são insuficientes para lhes dar coesão. Nesse caso, segundo Nietzsche, “o homem não mais se apresenta como o colaborador e, menos ainda, como centro do “eterno vir-a-ser”.[8]
No que tange ao niilismo ativo, ele alcança o máximo de sua força destrutiva. Essa forma de niilismo é destruidora de todos os valores superiores em que se esteia a moral ocidental. Essa forma de niilismo é um estágio necessário para a transvaloração de todos os valores; mas ela deverá também ser superada, porque é necessário reconduzir o homem para a terra; é necessário reconciliá-lo com sua existência aqui no mundo. O homem acreditou por muito tempo que a finalidade da existência fora fixada por uma autoridade sobre-humana. Essa autoridade, ordenadora do mundo, é fonte de todos os valores supremos. Mas os homens que passaram a questioná-la e a deixar de crer nela buscaram outras instâncias de autoridade moral: a consciência, a razão, o rebanho, a história. Nietzsche observa que a emancipação da autoridade teológica tornou a necessidade de moral mais premente. A própria moral torna-se mais imperiosa; afinal, como poderíamos viver num mundo em que não houvesse nenhum preceito moral a orientar a convivência humana ou num mundo em que não houvesse preceito moral que nos proibisse atender aos apelos de nossos “cruéis instintos”?
Segundo Nietzsche, o niilismo também ensejou uma outra fase: a do fatalismo. Não se divisa resposta alguma para a questão do “para quê”. Não podemos querer um fim, muito embora ainda seja possível acreditar que “para alguma parte estamos indo”[9]. Posteriormente, a negação passou a ser a explicação da vida. Negar a vida significa destituí-la de qualquer valor: a vida é uma experiência absurda, destinada a suprimir-se.


Niilismo como condição psicológica

Nietzsche descreve o niilismo, tendo em vista seu aspecto psicológico, como uma experiência decorrente da necessidade de darmos “o sentido” a tudo que não se presta a recebê-lo. Ao pretendermos determinar “o sentido” para o mundo, constatamos que o mundo resiste a se deixar estruturar por esse sentido. Destarte, segundo Nietzsche,

O niilismo, como condição psicológica, aparecerá primeiramente, logo que sejamos forçados a dar a tudo o que acontece o “sentido” que aí não se encontra: dessa forma, quem procura acabará por perder a coragem. O niilismo é, pois, o conhecimento do longo desperdício da força, a tortura que ocasiona esse “em vão”, a incerteza, a falta de oportunidade de se refazer de qualquer maneira que seja, de tranqüilizar-se em relação ao que quer que seja – a vergonha de si mesmo, como se fôssemos ludibriados por longo tempo.[10] (ênfases no original).

Nietzsche não está negando que seja parte fundamental da condição humana a necessidade de produzir sentido. Já fizemos notar que a vida mesma nos força a valorar, a produzir sentido. O problema está em pretender doar ao mundo “o sentido”, isto é, um único sentido; é supor que o mundo se preste a acomodar-se à crença na unicidade do sentido. Ora, o sentido, segundo vimos, é um problema tratado por Nietzsche à luz de seu perspectivismo. Como a trama da realidade é resultado de um jogo agonístico de vontades de poder que se relacionam entre si e como cada vontade de poder interpreta, isto é, é produtora de sentido, existe sempre a possibilidade, a princípio, de perdurar um confronto entre múltiplos sentidos. No entanto, o próprio sentido é indicativo da preponderância, da hegemonia de uma vontade de poder, de uma força sobre as demais. Esse sentido indicador da hegemonia “apaga” a inerência conflitiva das relações entre as forças, isto é, pretende mascarar o aspecto deveniente, contraditório da dinâmica das relações entre as forças. Quer-se impor como único sentido possível, como o sentido último, absoluto que confere substancialidade ao mundo, que o sustenta e que serve de horizonte norteador das ações humanas. A propósito da origem desse sentido, Nietzsche dirá que pode ser fixado “pelo cumprimento de um cânone moral superior”; pode ser resultado do “aumento do amor e da harmonia entre os seres ou parte da realização do estado de felicidade universal; ou até a marcha para um não ser universal”[11]. O problema, segundo Nietzsche, é que essa necessidade de fixar uma unidade de sentido é parte da dinâmica deveniente do próprio mundo. Ora, o devir do mundo impossibilita atingir o objetivo pretendido, qual seja, sintetizar definitivamente toda a multiplicidade dos elementos do mundo. A alternativa é tão pouco favorável, isto é, pretender que exista uma instância metafísica que sirva de fundamento desse único sentido ordenador, estruturador do mundo é iludir-se quanto à possibilidade de o devir reger-se por uma unidade superior.
Na descrição do niilismo como condição psicológica, Nietzsche faz-nos ver ainda outros dois traços importantes. O primeiro dentre estes traços é que o niilismo é resultado da necessidade de estabelecer uma ordem, uma totalidade, uma sistematização em tudo o que acontece no mundo. Em uma palavra, o niilismo é consequência inevitável da necessidade que tem o homem de logicizar o mundo. Mas, “não existe semelhante totalidade”[12]. A totalidade a que Nietzsche se refere e em proveito da qual o indivíduo se sacrifica é a humanidade. Nietzsche nega que o sentido do mundo possa derivar da profunda dependência do homem em relação a um todo que lhe é infinitamente superior. Nietzsche não crê na humanidade como um “ente”. O homem já não encontra valor em si, tendo reconhecido que não há tal totalidade a lhe garantir um enraizamento ontológico no mundo. A necessidade que tem o homem de crer no todo objetiva assegurar o seu próprio valor.
O terceiro e último traço do niilismo como condição psicológica assenta em dois pressupostos: 1) o devir não possibilita a realização de nada; 2) o devir não encontra esteio e governo em alguma grande unidade à qual o indivíduo possa vincular inteiramente a sua existência. No primeiro caso, julga-se que, no mundo, em que tudo flui, tudo se transforma, tudo está destinado a não ser o que era, toda pretensão à realização está fadada ao malogro. Vida é desfazimento; no viver no mundo em fluxo perpétuo, os projetos humanos correm o risco de nunca realizar-se, ou, caso venham a se realizar, correm o risco de sucumbir à impermanência a que estão destinadas todas as coisas. No segundo caso, não havendo possibilidade de garantir um sentido de unidade em que a existência do indivíduo possa estear-se, ele vê-se arrastado também pela impermanência de todas as coisas. Resta-lhe inventar um mundo-verdade, um mundo que transcenda ao mundo deveniente. Mas, ao inventar esse mundo-verdade, o homem condena o mundo do devir; toma-o como uma ilusão.

Mas desde que o homem compreenda que este mundo somente foi edificado para responder às necessidades psicológicas e que este não tem absolutamente qualquer fundamento, nasce-lhe uma forma suprema de niilismo, forma que abarca a negação de um mundo metafísico – que exclui a crença num mundo-verdadeiro. Por este ângulo, admite a realidade do devir, como única realidade, proibindo qualquer desvio que leve a um além e a falsas divindades e não tolera mais este mundo embora não queira negá-lo.[13] (ênfase no original).


A leitura do excerto acima autoriza-nos dizer que o niilismo decorre do reconhecimento pelo homem de que o mundo metafísico ou o mundo-verdade é criação sua. Ademais, o homem reconhece que o criou para atender a necessidade que ele tem de crer que o sentido do mundo esteja assegurado por um “em si”. No entanto, como procuramos mostrar, o niilismo é uma experiência que não foi levada até as suas últimas consequências. O homem que reconhece que o mundo-verdade não existe, que sua criação atende a necessidades psicológicas suas, não renuncia completamente ao mundo do em-si e dos deuses.
As categorias de “finalidade”, “unidade” e “ser” responderam, na tradição, pelo anseio de conferir ao mundo fundamento. O mundo passou a ser concebido como uma ordem (cosmo), uma totalidade dotada de sentido que era mantida na postulação dessas categorias. Assim, “finalidade”, “unidade” e “ser” constituíram instâncias metafísicas doadoras de sentido ao mundo; a partir delas, o mundo recebia valor. Com o niilismo, suprime-se a estrutura metafísica que assegurava uma ordem de sentido ao mundo. Suprimida essa estrutura metafísica, o mundo deixa de ter valor. Ademais, passou-se a crer que o mundo não pode mais ser interpretado; e ignorou-se que o niilismo só levou à derrocada uma interpretação que se conservou hegemônica durante muito tempo, na história do ocidente. Segundo Nietzsche, da desvalorização daquelas categorias não se segue que estejamos justificados para desvalorizar o mundo. É preciso reconhecer que o niilismo deve sua causa à crença naquelas categorias. O niilismo, para Nietzsche, repousa em nosso inveterado hábito de medir o valor do mundo “de acordo com as categorias que se relacionam com um mundo fictício”[14]. A experiência do niilismo, antes de nos conduzir ao abandono num universo que não mais se importa conosco, antes de nos arrastar para o desespero, deve ser uma experiência vivenciada como a grande aurora, o instante decisivo em que nos apercebemos de que nos habituamos a ver os valores como imanentes à essência das coisas. Julgamos, falsamente, que as coisas possuem, em si mesmas, um valor. Acompanhemos o que nos escreve Nietzsche a seguir:

Conclusão: todos os valores pelos quais experimentamos até o presente tornar o mundo avaliável para nós, e pelos quais temo-lo precisamente desvalorizado desde que se mostraram inaplicáveis – sob o ângulo psicológico, todos estes valores são resultados de certas perspectivas de utilidade, estabelecidas para manter e aumentar as criações de domínio, mas falsamente projetadas na essência das coisas.[15] (ênfase nossa).


Tendo em conta o excerto acima, categorias como “finalidade”, “unidade” e “ser”, com as quais procuramos valorar o mundo, foram produzidas por princípios interpretativos que se tornaram hegemônicos (que assumiram a forma de perspectiva) com o propósito de assegurar a manutenção e o aumento do domínio de uma vontade de poder criadora. Desde que elas se demonstraram inúteis, o homem passou a experimentar uma perda de mundo. Com a experiência niilista, o homem descobriu que aqueles valores não existem como propriedades inerentes à constituição do mundo, mas foram projetadas por ele como se fossem propriedades essenciais do mundo. Tal descoberta leva o homem a condenar o mundo. No entanto, Nietzsche parece querer argumentar que o caráter desmitificador da experiência niilista, na medida em que torna o mundo infinito novamente, a saber, na medida em que descerra para o homem um novo horizonte de possibilidades de interpretação do mundo, aponta, por isso mesmo, o caminho a ser trilhado pelo homem para que possa superá-la.
O que o homem experiencia com a desvalorização dos valores que até então sustentavam a sua existência é caracterizado por Nietzsche como uma forma de niilismo radical: “(...) a convicção da absoluta insustentabilidade da existência, quando se refere aos valores superiores que se aceitam; acrescente-se ainda o sabermos que não temos o menor direito de fixar um além ou um “em si” das coisas.”[16]. Para Nietzsche, o que explica nossa convicção absoluta da ausência de sentido da vida é nossa crença na moral: “enquanto cremos na moral, condenamos a existência”[17]. Nossa fé na moral suprime-nos a vontade de viver. Enquanto continuamos a acreditar em que a existência não se sustenta sem um fundamento moral, a existência continuará a ser condenada. O pessimismo que daí se segue leva o homem a experienciar o niilismo extremo: não há mais sentido possível, não há mais valor que anime a vontade de viver. Toda a história da moral ocidental, para Nietzsche, se desenvolveu como negação da vida como vontade de poder, ou ainda, como falsificação da vida.
Nietzsche acredita que o niilismo ativo deve ser encorajado. É justamente essa forma de niilismo que deve estar a serviço do combate ao niilismo passivo ou fatigado. Como o niilismo passivo ou fatigado é um sintoma de uma longa experiência moral negadora da vida, cumpre servir-se do niilismo ativo como meio para a destruição dos valores superiores que levaram o animal humano a adoecer. Mas – sublinhe-se isto – o niilismo ativo constitui apenas um estágio da radicalidade do processo de transvaloração de todos os valores. Nietzsche não se satisfaz apenas com a demolição dos ídolos da tradição, dos valores superiores; em todo caso, é preciso pavimentar o caminho para o advento do além-do-homem.





[1] Este texto é parte de um trabalho acadêmico com o qual obtive, ao final do curso, a nota máxima.
[2] Vontade de Potência, Niilismo, § 2.
[3] A Gaia Ciência,  Livro V, § 343.
[4] Primeira dissertação, § 12.
[5] É preciso notar que, para Nietzsche, o budismo e o cristianismo são religiões de declínio, são movimentos niilistas (Nietzsche, 2011, § 135-136). Mas, em O Anticristo, ele reconhecerá que, em certos aspectos, o budismo mais ocupado da vida que o cristianismo. Por exemplo, Nietzsche ressaltará que o budismo é mais realista que o cristianismo; que o budismo coloca objetivamente os problemas da vida, que soube suprimir o conceito de “deus”, que não luta contra o pecado, mas contra o sofrimento, que, em suma, “ele se encontra além do bem e do mal” (Nietzsche, 2012, § 20 et.seq.).
[6] O nirvana é o estado em que todo o carma e a lei dos renascimentos são interrompidos. O nirvana é uma experiência que deve se dar no aqui e agora, no mundo, portanto. Quando o budista atinge o nirvana, consegue extinguir o desejo. Mas a forma última e definitiva do nirvana só se alcança com a morte, que é a extinção absoluta. Alguns budistas chamam-na de parinirvana. (Gaarder, Jostein et.al. O livro das religiões. Trad. Isa Mara Lando. Companhia das Letras: São Paulo, 2005).
[7] Nietzsche,  op.cit, loc.cit.
[8] Nietzsche, 2011. Crítica do niilismo, § 5.
[9] Ibid., p. 141.
[10] Ibid., p. 142.
[11] Ibid.
[12] Ibid., p. 143.
[13] Ibid., p. 143-144.
[14] Ibid., p. 145.
[15] Ibid.
[16] Ibid., p. 146
[17] Ibid.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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