sexta-feira, 25 de junho de 2021

"Não há nada de errado com aqueles que não gostam de política, simplesmente serão governados por aqueles que gostam." (Platão)

 


               

                      Preleções sobre política

Uma contribuição para o enfrentamento

do analfabetismo político brasileiro

 

 

                                                PARTE 2


 

3. A política e a filosofia: um retorno às origens

 

Tendo analisado o bolsonarismo como um movimento autoritário de viés fascista, com ênfase em sua recusa aberta do pensamento e do conhecimento, na primeira parte deste estudo, dedico-me agora, nesta segunda etapa, a trazer à baila a experiência política da Atenas do século V-IV a.C. A Grécia Antiga, berço da civilização ocidental, é o solo progenitor da política. A filosofia nasce com os antigos gregos, e coube a Platão (427-347 a.C.) ser o primeiro filósofo a nos legar um sistema de pensamento político. Em outros termos, a filosofia política nasce com Platão. O que me interessa, então, é revisitar esta herança tão rica e preciosa do pensamento político da Antenas de Platão e Aristóteles (384-322 a.C.), com vistas a colher desse solo os subsídios necessários ao desenvolvimento de um debate público, no Brasil de hoje, mais amplo, mais elaborado, fundamentado teoricamente. Este será o objetivo que perseguirei também na terceira parte deste artigo, quando me debruçarei sobre a política tal como pensada e vivida na era moderna. Buscarei acenar para as contribuições de Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes, mas avançarei reflexões sobre conceitos tais como o de Estado, Democracia, Sociedade Civil, Poder, Política, Cidadania, entre outros, que precisam ser, segundo creio, bem definidos e esclarecidos para quem quer que esteja disposto a recusar-se a reduzir a atividade política a um negócio de plutocratas e de políticos profissionais que agem em proveito próprio para perpetuarem-se no poder. Não que esta não seja uma experiência política muito familiar na história de nossa sociedade; é, aliás, uma percepção generalizada entre pessoas em outros lugares do mundo, conforme mostrarei. Vivemos numa época em que é cada vez mais patente aos estudiosos da política o recuo das democracias e a deterioração do sistema político em vários países do Ocidente. Esta é uma questão que não deixarei de considerar, muito embora não venha a desenvolvê-la em profundidade. Comecemos, pois, nosso retorno à filosofia política grega. Espero que o leitor colha daí lições valiosas para que a sua existência como zoon politikon possa tornar-se mais fecunda enraizando-se no solo do verdadeiro pensamento.

 

3.1. O idiota é, antes de tudo, um marginal

 

Os antigos consideravam idiotés aquele que só se ocupava da vida privada, que recusava a política, que vivia uma vida apartada da atividade política, que dizia não à política. Os jornalistas Álvaro Borba e Ana Lesnovski, criadores do canal do Youtube Meteoro Brasil, são também autores do livro Tudo que você precisou desaprender para virar um idiota, publicado pela editora Planeta do Brasil, em 2019. Neste livro, os autores nos ensinam que o idiota é, antes de tudo, um marginal, e prosseguem nos seguintes termos:

 

(...) Originalmente, o termo ídhios era usado de maneira depreciativa para definir aqueles que se apartavam da vida pública na antiga Atenas: o cara abria mão da vida em sociedade, com suas regras e anseios civilizatórios, e automaticamente era chamado de idiota. Esse é o idiota ancestral. (ibid., p. 11).

 

Mas quem é o idiota hoje? Segundo os autores, o idiota do século XXI está obcecado pela política. Portanto, parece que os idiotas migraram do reduto da vida privada, de onde vociferavam contra a política e contra aqueles que se ocupavam da vida política, para povoar as esferas por onde transitam as questões políticas. No entanto, não basta habitar essas esferas para deixarem de ser idiotas. Como nos fazem ver os autores,

 

 (...) É nessa contradição entre o sujeito apartado das questões da vida pública, mas em imensa proporção disposto a atuar diretamente sobre elas, que mora uma explosiva combinação comunicacional. Pois o idiota agora não está sozinho. Em grupo, em rede, conectado, ele não quer saber de política, mas participa dela continuamente. (ibid.).

 

Como é possível que participem continuamente da atividade política e continuem a se desinteressar dela? É que o idiota continua sendo hoje, tal como era na Antiguidade, um sujeito autocentrado, egoísta, preocupado exclusivamente consigo. O que difere o idiota da antiga Antenas do idiota das redes sociais como Facebook do século XXI é que o idiota antigo ficava fora da política. Hoje, o idiota tomou de assalto a política. Ele entende a política a partir de seu ego. Como observam os autores, “tudo é feito por ele, para ele, em nome dele”. (p. 12). Por isso, o idiota combaterá qualquer filosofia ou pensamento que considera a problematicidade das questões políticas a partir de valores coletivos. Como bem espirituosamente escrevem os autores, “se há um coletivo, o idiota se sente ameaçado em seu direito sagrado de ser idiota”. (ibid., p. 12). Repensar, portanto, a política começando pelos antigos gregos se faz ainda mais necessário hoje porque os idiotas infestaram a vida pública com sua artilharia e munições de ódio e desprezo pelo bem comum. E se puderam infestar as esferas da vida pública, sobretudo pelas redes sociais, é que se sentem hoje representados nas esferas de poder. E quando os idiotas representados seguem um líder idiota que governa em nome do poder contra os princípios constitucionais que regem um Estado Democrático de Direito, é a democracia que corre sério risco de extinguir-se. Como nos lembram os autores, “(...) no século XXI, não é com  tanques de guerra nas ruas e tiros de canhão que se mata uma democracia, mas elegendo alguém disposto a subverter as regras do jogo” (ibid., p. 16). É o que nos ensinam Levitsky e Zilblatt, em Como as Democracias Morrem (2018), “democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou primeiros ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder”. (p. 15). O idiota hoje não é bobalhão e importunador; ele é ameaçador e perigoso, ou porque está investido de mais poder político, ou porque seus modos de ser, pensar e viver encontram ressonância naqueles que hoje ocupam o poder de tomar decisões políticas que impactam significativamente nossas vidas. É oportuno lembrar que é no âmbito das significações que se dá a disputa pelo poder na atualidade. A guerra que travamos em torno do acesso ao poder e da limitação do poder daqueles que já o detêm é uma guerra semântica, em nossas sociedades democráticas modernas.

 

 

3.2. A política: uma experiência grega

 

Na Antenas em que viveram Platão e Aristóteles, a política era pensada como uma atividade pedagógica. A política visa à transformação de homens e mulheres em cidadãos. A política é paidéia. Essa é uma concepção de política que nos é estranha a nós, modernos. Na modernidade, a política passou a ser pensada/percebida como aquilo que diz respeito aos cidadãos, à gestão pública, ao governo e aos regimes de governo, à administração dos negócios públicos, e o governante é visto como gestor de uma grande empresa, que é a cidade, o município ou o país. Mas, como tentarei mostrar, é possível pensar a atividade política fora dos quadros do aparelho burocrata-adminsitrativo. É possível e necessário pensá-la como uma missão civilizatória, já que a política confere sentido humano ao mundo, confere significado para a vida dos seres humanos, seja como partes de uma coletividade, seja individualmente. É possível e necessário pensar a política como uma atividade libertária. Mas, por ora, nossa atenção será dispensada à concepção grega de política a partir das lições que nos foram legadas pela pena de Platão e Aristóteles.

O termo política foi cunhado com base na experiência da atividade social desenvolvida pelos homens na Pólis. Embora traduzido por cidado-Estado, o termo pólis designa melhor uma espécie de comunidade (koinonía). Como toda Kononía, a pólis possui seus próprios fins: é a comunidade cívica mais perfeita e adequada para a coexistência humana, lugar necessário do homem como ser racional. Para Aristóteles, o homem é um animal político  por natureza: ele está destinado naturalmente à vida na pólis. O homem é dotado de um instinto natural para a gregariedade. Aristóteles insiste em que a pólis é o lugar onde o homem poderá realizar a sua essência, porque a pólis é uma comunidade ordenada segundo a justiça e o bem comum. A finalidade precisa da pólis é a promoção do bem viver juntos, ou seja, do exercício de um modo de vida pautado pelos princípios da justiça e da virtude, pelo respeito à igualdade (isonomia) e à liberdade (eleutheros) dos cidadãos. Ser cidadão na antiga Atenas é diferente do que entendemos por cidadania hoje. Cidadão, na antiga Atenas, era o homem adulto, livre e nativo que gozava do direito de exercer a atividade política. Não eram cidadãos os metecos (estrangeiros residentes), os estrangeiros não residentes, as mulheres, as crianças e os escravos. Livres eram aqueles que não condicionavam sua vida à vida de alguém (como os escravos), ou que não condicionavam sua vida às necessidades materiais de subsistência. Igualdade é a condição daqueles que não estão sujeitos a relações assentadas em distinções hierárquicas (como marido e mulher), ou a relações baseadas no comando e na obediência (mestre/escravo; pai/filho).

A pólis será, portanto, a comunidade de cidadãos finalisticamente ordenada para o bem viver juntos (o bem comum). A autoridade desta comunidade é a política, o que significa dizer que a ordem política está baseada tanto na liberdade quanto na igualdade dos cidadãos. Para os antigos gregos, política e liberdade são a mesma coisa, conforme nos ensina Arendt, no seguinte excerto:

 

A “política”, no sentido grego da palavra, está, portanto, centrada na liberdade, com o que esta é entendida negativamente como o estado de quem não é dominado nem dominador e positivamente como o espaço que só pode ser criado por homens e no qual cada homem circula entre seus pares. Sem esses que são meus iguais, não existe liberdade, razão pela qual o homem que domina outros – e que precisamente por essa razão é diferente deles em princípio – é, de fato, mais feliz e invejável do que aqueles que ele domina, embora nem um pouco mais livre. Também ele se move em um espaço onde não há liberdade. (Arendt,  2016, p. 172).

 

 

Para os antigos gregos, portanto, quem domina e quem é dominado são ambos destituídos de liberdade. Isso pode parecer estranho para nós modernos, tão habituados que estamos a associar igualdade ao conceito de justiça, e não ao de liberdade. Hoje, definimos isonomia como “igualdade de todos perante a lei”. Mas, originalmente, isonomia não significava que todos os homens são iguais perante a lei ou que a lei é a mesma para todos, mas sim que todos têm o mesmo direito à atividade política. Na pólis, essa atividade era fundamentalmente dialógica, ou seja, assumia a forma de falar com os outros. Assim, isonomia é, essencialmente, o direito de falar e, como tal, é o mesmo que isegoria. Com Políbio, mais tarde, isonomia e isegoria passaram a dizer simplesmente isologia. Para os antigos gregos, quem falava sob o modo do mandar e quem ouvia sob o modo do obedecer não falava nem ouvia realmente; ambos não eram livres, porque estavam submetidos não ao diálogo, mas ao processo do fazer e do elaborar. As palavras funcionam aí como substitutas do fazer algo, de um fazer que pressupunha o uso da força e o ser coagido. Destarte, o déspota não é jamais livre, pois só conhece o mandar, o ordenar. Para falar, ele precisa de outros, seus iguais. Novamente é Arendt quem nos ensina o seguinte:

 

A liberdade não requer uma democracia igualitária no sentido moderno, mas uma oligarquia ou aristocracia muito estritamente limitada, uma arena na qual pelo menos uns poucos, ou os melhores, possam interagir entre si como iguais e entre iguais. Essa igualdade não tem, evidentemente, nada a ver com justiça. (ibid., p. 173).

 

 

Arendt chama de “preconceito moderno” a crença de que a política é uma necessidade imperiosa da natureza humana como a fome ou o amor. A filósofa lembra que “a política começa onde termina a esfera das necessidades materiais e da força física”. (ibid., p. 74). E ajunta que a política como tal existiu raramente e em tão poucos lugares, “que só umas poucas épocas extraordinárias a conheceram e a tornaram realidade”. (ibid.). Tornemos a considerar, contudo, a noção de pólis.

A pólis é uma associação política que reunia certo número de comunidades. A pólis era um estado federal, uma reunião de comunidades vizinhas, que compartilhavam entre si recursos e ambições. Em tempos de guerra, estavam submetidas ao poder dos mesmos chefes; nos tempos de paz, só admitiam um só soberano. Situada na tradição clássica, a política é uma ciência que pertence ao domínio da phrónesis (sabedoria prática). A política é de natureza normativa, pois que estabelece os critérios de justiça e do bom  governo, e examina as condições sob as quais o homem pode atingir a felicidade (o sumo bem) na sociedade, em sua existência coletiva. A pólis é uma comunidade organizada segundo a justiça e o princípio da autarkéia (autossuficiência, autogoverno). Ela é a consequência natural e necessária da atividade da razão prática, isto é, da capacidade humana de agir, em consonância com o verdadeiramente bom para nós e os outros, tendo em vista o bem viver juntos.

Convém, a esta altura, esclarecer por que Aristóteles considera o animal político que é o homem como um ser destinado a viver na pólis. Para entender isso, precisamos remontar à concepção de alma em Aristóteles. Concebendo a alma como enteléquia, isto é, ato primeiro e definitivo de um corpo, Aristóteles distingue nela três funções: a) a função vegetativa, como o nascimento, nutrição e crescimento; b) a função sensitiva, como movimento e sensação; c) a função racional ou intelectiva, como conhecimento, deliberação e escolha. Com base nessas três funções da alma, Aristóteles distingue entre uma alma vegetativa, uma alma sensitiva e uma alma racional ou intelectiva. Essa tripartição da alma feita por ele é resultado de sua investigação sobre os seres vivos em geral, no âmbito da biologia e da psicologia. A alma é o princípio da vida, e todos os seres vivos possuem, ao menos, uma alma. As plantas possuem apenas a alma vegetativa; os animais, por sua vez, possuem a alma vegetativa e a sensitiva; por fim, os seres humanos são constituídos de uma alma vegetativa, uma sensitiva e uma racional. A alma racional constitui a essência do homem. Também chamada de intelecto, ela é irredutível ao corpóreo; não se mistura com ele, consoante ensina Reale:

 

A afirmação de que o intelecto vem de fora significa que ele é irredutível ao corpo por sua intrínseca natureza, e é transcendente ao sensível. Significa que em nós há uma dimensão metaempírica, suprafísica e espiritual: é o divino em nós. (Reale, 2007, p. 89).

 

 

Os seres humanos, porque são compostos de uma alma vegetativa, de uma alma sensitiva e de uma alma racional, não devem viver apenas para satisfazer suas necessidades de natureza animal; devem, sobretudo, viver para o exercício do que há de mais elevado, do que é divino, em sua natureza – a razão, ou seja, a parte de nós que nos capacita para atingir o conhecimento verdadeiro. Ocorre, contudo, que não é suficiente apenas a razão para determinar nossas ações, ou seja, não basta saber o que é o melhor a ser feito. É necessário aprender a querer o que é racionalmente posto como verdadeiramente bom. Em outras palavras, é necessário que os fins que queremos alcançar por meio de nossas ações sejam fins moralmente bons. Aristóteles, por isso, afirma a utilidade da sabedoria prática (phrónesis) na determinação da ação. A phrónesis permite-nos o conhecimento dos princípios que orientam a conduta humana com vistas à felicidade (eudaimonia).

A pólis é, por natureza, anterior à casa e a cada uma de suas partes constitutivas; é governada pela justiça, cuja prática na pólis torna o homem o mais perfeito dos animais. Justiça significa ordem e racionalidade. Ela é um bem para a comunidade. Para Aristóteles, o homem injusto, o homem que vive apartado da justiça e da lei, é a pior de todas as bestas.

Vejamos, doravante, como Platão pensou a atividade política. Platão foi o primeiro dentre os filósofos a elaborar um sistema de pensamento político; e o fez com o propósito de definir a melhor forma de governo para a Pólis[1]. Aristóteles também estava interessado em determinar qual é a melhor politeia, ou seja, Constituição ou forma de Estado. Mas desse tema me ocuparei depois. Concentremo-nos na contribuição platônica para a determinação dos fins da política. Platão queria, portanto, determinar a melhor forma de governo da pólis. Para tanto, era necessário preparar gerações de filósofos em sua Academia para que se tornassem suficientemente aptos para o exercício das funções públicas. Mas também era necessário reunir um conjunto de reflexões teóricas que representariam o remédio a ser aplicado para a constituição de um novo corpo estatal. Ademais, Platão acreditava que esse corpo estatal deveria ser sustentado pela justiça e pela educação, os dois grandes pilares da filosofia política. Destarte, Platão vai propor a aproximação paulatina do filósofo, por meio da teoria (theoría), à realidade política, e sua prática (práxis), de modo que a maioria pudesse se conscientizar da necessidade de a pólis ser governada pelo rei-filósofo. Como político teórico, Platão teve o mérito de ter sido o primeiro filósofo que reuniu, numa síntese vasta e espantosa, a complexidade do funcionamento de todo um sistema político. Como filósofo, como estadista que pretendeu ser, raciona, viaja e elabora, a partir dos dados fornecidos pela experiência, a concepção sublime e original de um Estado Ideal. Expõe-lhe os amplos e sólidos alicerces; põe, a seu serviço, um grupo seleto de homens inteligentes e disciplinados, desapegados de interesses materiais, livres dos cuidados e do egoísmo da família.

Para Platão, a política é uma epísteme (ciência). E o político possui uma epísteme, ou seja, uma ciência que lhe é própria: a ciência das almas. Assim, segundo Chauí,

 

 

Graças às artes e ciências auxiliares, o político educa os cidadãos, urdindo os fios da Cidade (torce a natureza de cada um para que alcance a virtude que lhe é própria). Educados e urdidos os cidadãos, o político tecerá o tecido da Cidade, enlaçando os fios, isto é, criando laços de amor, matrimônio, companheirismo, solidariedade entre os caracteres opostos. Unirá moderados e enérgicos, velozes e intelectuais, impedindo laços entre os de mesmo caráter (pois tais laços não só enfraquecem o caráter pela repetição contínua dos mesmos traços como ainda os leva a formar partidos, facções e seitas e a lutar entre si). Aos cidadãos assim enlaçados, o político lhes atribui a função de fazer e aplicar as leis, distribuindo, segundo seus caracteres, as magistraturas, os cargos e funções públicas. O político é um artesão que fia e tece as almas para que realizem sua areté e a da Cidade. (Chauí, 2002, p. 314).

 

 

A analogia com a atividade do artesão, faz da política, para Platão, uma arte. Arte, em grego, se diz tékne (técnica). Mas, para Platão, o político não se define pela arte de tecer, e sim pela ciência dos laços. Se o político é um artesão, não seria ele um técnico? Deveras, o político pratica uma técnica, apenas na medida em que possui a ciência das almas humanas. Possuindo essa ciência, sua função é tecer os laços humanos. A ciência do político é a ciência dos caracteres humanos, dos seus acordos e desacordos, do que é bom ou excelente para cada um deles e do que os prejudica e os vicia. O político porta uma ciência diretiva, que tem de ser perfeita, não só porque recobre a totalidade dos homens que serão governados por ela, mas também porque é ela mesma a origem das normas, regras e leis. Assim, a ciência do político não se deixa determinar por nada mais além de si mesma. O político não apenas transmite ordens e as faz cumprir; ele as produz: o político é criador das leis fundadoras da pólis. O político, que possui, de fato, a ciência diretiva, ocupa-se da pólis inteira e a governa em sua totalidade. É importante atender no papel que desempenham as leis na constituição da ordem política para os gregos, no seguinte passo que nos dá a saber Chauí:

 

Normas, regras, ordens e leis criadoras não criam qualquer coisa: criam a vida coletiva, criam os viventes que irão viver juntos, produzem a alma da pólis ou a própria pólis como um ser vivo, pois dotada de alma (as leis, normas e regras). (ibid., p. 311).

 

Quão distante é a nossa concepção moderna de lei!. Nesse matéria, somos herdeiros antes dos romanos e do seu Direito que dos gregos. A lei para nós é comando; ela fixa limites, exige obediência e pune, na figura de seu guardião, o Juiz, aquele que a infringe. Claro é que a lei também é indispensável e necessária ao ordenamento político e jurídico de nossas sociedades atuais, mas não a percebemos como um dispositivo educativo. Faz-se mister acrescentar aqui alguns esclarecimentos. Por isso, interromperei, momentaneamente, o fio discursivo para estabelecer um contraste bem esquemático entre a política grega e a política romana.

O termo política designava (e, em alguns casos, ainda designa), em locais como na Pérsia e no Egito, a atividade própria do governante que comada autocraticamente o coletivo em direção a certos objetivos, quais sejam, as guerras, as edificações públicas, a pacificação interna, etc. Na Grécia Antiga, além dessas atribuições do soberano, lhe cabia, através da atividade política, reunir todos os membros da pólis de modo a formar uma totalidade ordenada e sólida. O que a política grega acrescenta aos outros Estados é justamente  o que nós, hoje, na pós-modernidade, e especialmente, no Brasil, estamos perdendo: a referência à comunidade, ao coletivo da pólis, ao discurso, à cidadania, à soberania, à lei. A política dos romanos difere fundamentalmente da política dos gregos por servir a fins manifestamente particulares (isso não nos parece bastante familiar?!). A política, na Roma Antiga, deveria servir aos interesses dos gens[2] originais que precisavam assegurar o seu monopólio sobre as riquezas saqueadas ou sobre a exploração da terra. A palavra pátria, tão fartamente repetida pelo discurso bolsonarista, revela ainda essa origem familiar. Ela se forma a partir de pater, que quer dizer “pai” no sentido de “pai de família”, aquele que exercia poder absoluto sobre os filhos, mulher, escravos. Os nobres romanos seriam os patrícios, ou seja, os proprietários. Além destes, havia os escravos e aqueles que só possuíam a sua prole, chamados proletários (do latim proletarius). O proletário era o cidadão romano pobre cuja única utilidade era gerar filhos. O bom governante era visto como um tutor. Assim pensava Cícero, para quem o bom governante deve resguardar os interesses de seus pupilos mais do que aos seus próprios. O Estado romano seria como uma espécie de administrador que tutela interesses dos patrícios, impondo aos demais os interesses destes, seja pelos tributos – “impostos” -, seja utilizando-se dos não proprietários como instrumentos de saque, como guerreiros. Na Roma Antiga, portanto, a atividade política, além de se caracterizar pela dominação do Estado, concernia à relação entre tutor e pupilos. Essa relação era mediada pelo direito romano. O direito romano garantia a não interferência do Estado na propriedade privada, nos interesses dos patrícios e a não intromissão do público, do coletivo na esfera do privado, do particular. Ora, não é difícil inferir daí que o Estado moderno, mais amplo e mais burocratizado, servindo aos interesses particulares e setoriais e os estendendo ao conjunto da sociedade, sem qualquer compromisso como agente de realização do bem comum – como Tomás de Aquino batizaria o bem supremo de Aristóteles -, tem seu modelo em Roma. A Roma Antiga não era uma pólis. A atividade política romana nada tinha que ver com as relações cidade-Estado, mas era, sobretudo, um jogo entre tutores e pupilos – militares, burocratas e burguesia – e suas práticas de manipulação, corrupção e repressão. A atividade política, em Roma, centrava-se na disputa pelo poder de tutela do Estado, o qual era uma instituição a serviço de interesses privados.

 

 

3.2.1. A pedagogia política

 

A política, no pensamento de Platão, é indispensável à condução dos negócios públicos e representa o conjunto dos cuidados para com os indivíduos e os cidadãos. Cabia à atividade política o papel de determinar o destino da pólis e de determinar a realização do indivíduo. Para Platão, não é o indivíduo que existe para o Estado, mas o Estado que existe em função do indivíduo. Platão mantém que a legislação é responsável pelas grandes transformações na vida cotidiana e na vida individual. A função da política é educar, preparar os cidadãos com vistas a conduzir a pólis ao melhor. A política, tal como concebida por Platão, deve estar em conformidade com a Natureza (phýsis), adequada aos fins e em conformidade com o Bem Comum. O grande propósito da política é a educação dos cidadãos para a vida justa na pólis.

Traduzido como República, Estado ou Constituição, a politeia diz respeito aos regimes de governo. Platão julga bom e justo um governo apenas: a aristocracia. Cuida desfavoráveis à pólis: a timocracia, a oligarquia, a democracia e a tirania. Aristóteles acompanhava Platão na rejeição à democracia. Na verdade, Aristóteles denunciou os riscos de cada um dos regimes então conhecidos. Propôs para os gregos a politia como o regime de governo mais conveniente, a qual permitiria a alternância de homens capazes de governar e ser governados segundo a lei, mesmo que não sobressaíssem na virtude política. A politia é um termo médio entre a oligarquia e a democracia. Na politia, governaria uma multidão suficientemente abastada, não pobre como na democracia, para poder servir ao exército e se destacar nas habilidades guerreiras. Para Aristóteles, a democracia era uma forma de governo que favoreceria demais os pobres, descurando do bem de todos. Nós, modernos, veríamos nessa concepção negativa de democracia não a democracia como a concebemos mas a demagogia.

O Estagirita definia a Politeia ou Constituição como uma ordem de magistraturas, que estabelecem o seu modo de distribuição e determinam qual é o poder supremo. Magistrado, provém do latim magistratus, e significa tanto a função de governar como a pessoa que governa. Na Antiguidade, o magistrado era um funcionário do Estado investido de autoridade. São magistrados também os membros que participam da administração política ou que integram o governo de um Estado, tal como o Prefeito, o Governador e o Presidente da República. É mais comum, no entanto, atualmente, o uso de magistrado para se referir a juízes, desembargadores e ministros. Cada Constituição, segundo Aristóteles, determina como deve ser distribuída a autoridade política na pólis, como deve ser distribuído o poder. Se este pertence a um só, temos a monarquia; se pertence a um grupo apenas, temos a aristocracia; se pertence a todos os cidadãos, temos a república. Todos estes três regimes políticos são convenientes, a menos que façam predominar o interesse geral sobre os interesses particulares. Mas todos podem correr o perigo de desvios, sempre que precisamente os interesses particulares se sobreponham ao interesse geral. Destarte, a monarquia pode degenerar em tirania; a aristocracia, em oligarquia ou despotismo dos ricos; e a república, em democracia ou tirania das massas.

 

 

3.2.2. A política, a leis e a função do Estado

 

A política depende das leis para realizar-se e ser praticada. Mas, para os antigos gregos, as leis não se destinam apenas a proibir e coibir; elas também servem ao propósito de estimular, incentivar, educar. Às leis cumpre a função de incitar o político a dispensar os cuidados devidos à coletividade como um todo, bem como aos cidadãos, considerados partes de uma totalidade ordenada. No tocante à função do Estado, cabe a este não somente prover os cidadãos com o mínimo necessário à sua subsistência, como também – e sobretudo – conduzi-los para o bem viver. A verdadeira missão da política reside na educação, e educar as almas é a função do Estado. As almas são educadas para servir aos fins maiores do Estado (o que, para muitos de nós, modernos, defensores do regime democrático fundado na liberdade e pluralidade dos indivíduos, pode nos soar como uma forma de servidão totalitária). Cada tipo de função fixada para um cidadão exige um tipo de educação. O bem-estar da pólis e do indivíduo é determinado pelas condições em que se estruturam as políticas do Estado. A verdadeira função do Estado é desenvolver as habilidades, as aptidões dos cidadãos, a fim de que se tornem os mais excelentes e virtuosos. No pensamento platônico tanto quanto no de Aristóteles, política, educação e ética são indissociáveis. Na obra de Platão, a educação e a cultura constituem os alicerces da construção dos espaços públicos, de sorte que a política e as leis se põem a serviço da realidade educacional e dos ideias de felicidade humana.

 

 

3.2.3. Política e Justiça

 

Também política e justiça são indissociáveis no pensamento político de Platão. A justiça só pode realizar-se no Estado. Quando Platão afirma que ao Estado compete o papel de prover o indivíduo das coisas necessárias à sua subsistência, fica patente que o Estado existe em função do indivíduo. Indivíduo e Estado não se opõem, mas completam-se e se devem auxílio mútuo. O Estado, contudo, deve incumbir-se de tutelar os direitos dos súditos e fornecer aos cidadãos os meios comuns indispensáveis à sua felicidade neste mundo.

Considerar a justiça como uma realização que compete ao Estado é rechaçar a crença de que a ordem política é instituída com atos de irracionalidade violenta. Para Platão, pelo menos, as coisas não se dão dessa maneira (ou não deveriam se dar). Para ele, o arbítrio, a ignorância, a guerra, a força, a violência não são modos de realização do poder nem os meios de ter acesso a ele, nem de conservá-lo. Platão advoga em favor da política justa, cuja conquista e manutenção se devem ao conhecimento. Essa é a base de suas meditações sobre o Estado ideal. O Estado é, para Platão, o meio suficiente para poder realizar a felicidade geral (essa concepção de Estado não corresponde ao modo como realmente o Estado se instituiu e funciona, conforme mostrarei na terceira parte deste trabalho). Para Platão, o Estado deve proporcionar o exercício da virtude maior, deve possibilitar o alcance do Bem Comum. Por conseguinte, o Estado é exclusivamente Estado ético. O mau governo não cumpre sua função; ele não representa aquilo que deve à coletividade.

A justiça, que se faz no Estado, só se realiza quando as partes exercem suas funções conforme lhes foram previamente determinadas. A pólis, para ser justa, tem de funcionar à semelhança de um organismo cujas partes realizam suas respectivas funções. A tarefa de cada um é definida pela política e pelo corpo de dirigentes políticos. Platão pensa a ordem da pólis por analogia com a estrutura da alma. A alma precisa ser governada pela parte racional. As partes da alma estão organicamente a serviço da razão. Nenhuma das partes se sobrepõe às outras. Também a estrutura da pólis deve ser governada pela razão, e não pela paixão. A pólis se organiza em partes que não suplantam umas as outras. Portanto, a ideia de igualdade entre todos os cidadãos repousa na atribuição de funções a cada qual e na realização por cada um dessas funções com vistas ao bom funcionamento do todo. As distinções estabelecidas entre as partes se fazem com base nas aptidões de cada uma e não em critérios aristocráticos. A justiça e a ordem de uma sociedade consistem na distribuição harmoniosa e equânime das atividades ou das funções, no funcionamento harmonioso dessas atividades sob o governo do rei-filósofo, a quem tem a capacidade de determinar o melhor destino para a pólis, porque só ele conhece a ideia do Bem e é guiado por ela. Somente o filósofo é o representante apto para transformar a política no espaço das preocupações mais importantes para o crescimento da alma humana. Somente ele é capaz de aproximar os mortais (os humanos) do imortal (o divino), ligando-os.

 

 

Palavras finais

Antecipando uma característica contrastante, que se esclarecerá melhor na última parte deste artigo, entre a concepção política da Antiguidade e a da Modernidade, convém atender nas seguintes palavras de Arendt:

 

(...) desde a Antiguidade, ninguém acredita que o sentido da política seja a liberdade (...), no mundo moderno, quer teórica, quer praticamente, a política tem sido vista como meio de proteção dos recursos vitais da sociedade e da produtividade de seu desenvolvimento livre e aberto. (ibid., p. 163).

 

Para Arendt, política e liberdade significam a mesma coisa, pois “a liberdade de partir e começar algo novo e inaudito” e a “liberdade de interagir oralmente com muitos outros e experimentar a diversidade que é a totalidade do mundo” são “a substância e o significado de tudo que é político”. (ibid., p. 185). Para Arendt, “a política se baseia no fato da pluralidade humana” (ibid., p. 144) e acrescenta “política diz respeito à coexistência e associação de homens diferentes”. (ibid., p. 145). Só há, portanto, possibilidade de liberdade, para Arendt, no interior do espaço político; fora da política, não há liberdade possível para o homem. Ser verdadeiramente livre é não ser determinado ou movido pelas condições da existência concreta.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ARENDT, Hannah. A promessa da política. Trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: Difel, 2016.

METEORO BRASIL. Tudo o que você precisou desaprender para virar um idiota. São Paulo: Planeta Brasil, 2019.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

REALE, Giovanni. Aristóteles. Trad. Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

 

 



[1] Os textos fundamentais em que Platão desenvolve uma discussão sobre a política são República, Político e Leis.

[2] Gens era um termo usado, na Roma Antiga, para referir-se à identidade familiar de um conjunto de famílias ligadas à aristocracia romana.




quinta-feira, 24 de junho de 2021

" Construir a democracia, inclusive no Sistema de Justiça, é superar o imaginário autoritário". (Rubens Casara)

 

                      



                      Preleções sobre política

Uma contribuição para o enfrentamento

do analfabetismo político brasileiro

 

 

                                 PARTE 1

 

1. Bolsonaro: o sintoma de um passado perverso

 

Em seu livro O Brasil dobrou à direita (2020), Jairo Nicolau apresenta-nos um recorte da conjuntura sociopolítica que poderia explicar a escolha de Jair Bolsonaro, um parlamentar medíocre, para ocupar o cargo de Chefe de Estado, nas Eleições de 2018. Deve-se ressaltar que esta é a conjuntura sociopolítica construída pelo discurso hegemônico, de ampla projeção na mídia. Na verdade, a perplexidade e as várias explicações para a eleição de Bolsonaro ocupam ainda hoje as análises dos estudiosos da política, que, quiçá, estejam de acordo quanto a um fato: “uma das mudanças mais profundas de 2018 é a vitória de um candidato de direita sobre o PT entre os eleitores de baixa e média escolaridade. Isso não acontecia desde a vitória de Fernando Henrique Cardoso em 1998.” (Nicolau, 2020, p. 52).

 

A conexão entre os resultados da Lava Jato e a vitória de Bolsonaro é apresentada no discurso corrente de maneira relativamente simples: 1) a Lava Jato investigou, denunciou e prendeu parte expressiva da elite política brasileira; 2) a corrupção passou a ser vista como algo endêmico, aumentando a rejeição aos partidos tradicionais; 3) os eleitores buscaram uma alternativa de um político que não estivesse envolvido em nenhuma das denúncias dos últimos anos e ao mesmo tempo expressasse uma quebra com o padrão de ação da elite política tradicional; 4) entre os nomes apresentados em 2018, o único que preenchia esses critérios era Bolsonaro. Nesse caso, pouco importava o fato de ele ter sido deputado federal por 28 anos, ter trocado muitas vezes de legenda e ter sido um parlamentar medíocre.

 

Sem considerar as motivações que levaram grande parte do eleitorado brasileiro a eleger Bolsonaro, Nobre (2020) não se esquiva de dar a sua explicação para o acontecimento. Segundo o filósofo, a eleição de Bolsonaro foi um efeito de uma coalizão por conveniência, que não deixou de ter impacto sobre o resultado das urnas. Para ele, essa coalizão se formou pelo acordo entre grupos muito diferentes entre si: evangélicos, lavajatistas e militares.

 

Mas mostram bem como a coalização que elegeu Bolsonaro foi uma coalizão de conveniência sem ter sido de maneira alguma casual. O sentimento de exclusão da arena política – em graus certamente muito distintos e por razões muito distintas também – que os uniu veio justamente com a possibilidade que viram de se estabelecerem (ou se restabelecerem, no caso dos militares) como atores políticos incontornáveis. (Nobre, 2020, p. 37).

 

 

Entre as razões correntes dos eleitores e a coalização orquestrada na cena política, não se pode olvidar o papel sobremaneira importante desempenhado pela grande mídia e pelas redes sociais no recrudescimento do antipetismo e no fortalecimento no senso comum[1] da necessidade de eleger um ator político que endurecesse as medidas de combate à corrupção e que – é claro – não estivesse ele mesmo envolvido em algum esquema de corrupção. E assim Bolsonaro foi eleito Chefe do Executivo, sem que grande parte do eleitorado conhecesse minimamente seu projeto político.

Não pretendendo, de modo algum, dar por encerrado o tema dos fatores que foram decisivos para a eleição de Bolsonaro, gostaria de me deter um pouco no perfil do eleitorado brasileiro que o elegeu, a fim de lançar por terra, de antemão, a crença de que a baixa escolaridade de grande parte desse eleitorado foi determinante para a escolha de um parlamentar que passou 28 anos de sua vida como deputado federal, tendo apenas dois projetos aprovados, o que, para um parlamentar que ficou tanto tempo ganhando dinheiro à custa dos pagadores de impostos que sobrevivem nestas terras com muito suor e lágrimas pelos seus que nelas vêm morrendo aos milhares cotidianamente, o faria ser rejeitado nos processos de seleção de meritocratas. Ora, o fato de ter ficado tanto tempo gozando das benesses de um cargo político sem fazer quase nada o credencia para ocupar um lugar na lista extensa do parasitismo político que contribui para inchar ainda mais a nossa já dispendiosa máquina pública.

O eleitorado brasileiro é formado por uma grande faixa de pessoas de baixa escolaridade. Nessa faixa, se topam indivíduos analfabetos, indivíduos que sabem ler e escrever ou que passaram poucos anos na escola, sem conseguir completar o ensino fundamental. Entre os que não conseguiram completar o ensino fundamental, se encontram, em grande proporção, indivíduos com mais de sessenta anos, que cresceram em um período da história do Brasil em que o acesso à escola era mais limitado. Por outro lado, é inegável que o eleitorado brasileiro vem-se tornando cada vez mais escolarizado. Em parte, isso se deve ao aumento do acesso à escola promovido pelas políticas de FHC e, especialmente, do PT, mormente nos dois mandatos do presidente Luís Inácio Lula da Silva; mas também se deve ao alistamento eleitoral de jovens com um nível de escolaridade mais alto (em geral, com o fundamental completo ou cursando o ensino médio). Estes jovens se beneficiaram do maior acesso das crianças à escola a partir da década de 1990. Houve também um declínio do número de eleitores analfabetos ou que cursavam apenas as primeiras séries do ensino fundamental. Uma vez que os eleitores menos escolarizados estão concentrados entre os cidadãos mais velhos, há uma tendência de redução gradativa desse grupo no cadastro eleitoral, quer por morte, quer por simplesmente não comparecimento às urnas (já que o voto é facultativo a partir dos sessenta anos).[2]

Embora ainda seja predominante o número de brasileiros com baixa escolaridade, o fator escolaridade não foi decisivo para a eleição de Bolsonaro, porque ele venceu a corrida eleitoral entre os eleitores de todos os três níveis: os de ensino fundamental, os de ensino médio e os de ensino superior. A confusão e a perturbação que pesam sobre os analistas políticos, envoltas numa atmosfera de perplexidade em face das razões por que contribuímos, enquanto sociedade, para eleger um candidato, então Presidente da República, tão politicamente medíocre e abertamente autoritário, talvez demorem muito tempo para esvair-se, mas isso não desencorajou os estudiosos de produzir inúmeros livros e artigos que pudessem lançar luzes sobre o imponderável do devir político. Talvez, hoje, esteja se formando um consenso na intelligentsia de que o autoritarismo de Bolsonaro encontrou eco numa parcela considerável da população que não conseguiu romper abertamente com o passado de violência, de arbítrio, de racismo e hierarquização que nos constituiu como sociedade histórica. Uma grande parcela da população brasileira permanece ainda servil a uma tradição autoritária que consagrou a crença no uso da força, que a acostumou ao medo da liberdade, que a deseducou com o ódio ao conhecimento, à vida intelectual, que a adestrou para o convencionalismo (para a adesão rígida aos valores da classe média, mesmo que contrários às conquistas civilizatórias), que a habituou à simplificação da realidade (a contentar-se com explicações simplistas e com ausência de reflexão), que a docilizou para a submissão autoritária, tornando-a acrítica em face de autoridades idealizadas, que lhe incutiu preconceitos contra personalidades intraceptivas (com pendor para a criação imaginativa, para as artes, para os produtos abstratos da afetividade), que a fez preocupar-se obsessivamente com a sexualidade alheia, que a tornou propensa à projetividade (disposição para crer em ameaças cuja origem se encontra em impulsos inconscientes). Num país que não conseguiu romper com o imaginário[3] perverso que se formou por experiências repulsivas como a escravidão e a ditadura militar, não surpreende ou não deveria surpreender que se escolhesse e ainda se apoie um presidente manifestamente autoritário e antidemocrático.

 

Doravante, concentrar-me-ei no que entendo ser o aspecto mais flagrante do bolsonarismo, enquanto movimento populista e ideológico, a saber, seu autoritarismo de viés fascista. Ao me ocupar desse aspecto, darei ênfase a um de seus modos de expressão: a promoção da demissão do pensamento. Além desta primeira parte, em que me devoto a discorrer sobre o fenômeno do bolsonarismo, cingindo minha análise a seu aspecto mais refratário ao conhecimento, ao pensamento crítico, este artigo inclui ainda outras duas partes. Na segunda parte, volvo olhares sobre o fenômeno político, buscando contribuir para a ampliação e aprofundamento do conhecimento raso que o senso comum de nossa sociedade tem dele. Tendo me apercebido, há algum tempo, de que o problema da política fica reduzido, no discurso do senso comum, à rejeição da corrupção e à defesa de políticos que alimentam a propaganda do antipetismo, meu propósito é descerrar a problematicidade do fenômeno político, fornecendo ferramentais conceituais que nos permitam pensá-la para além destes enquadramentos reducionistas. Nesta segunda parte, faço um retorno às origens da filosofia política, recuperando as contribuições de Platão e Aristóteles para a compreensão do que é a política. A terceira e última parte não é senão outro momento deste mesmo propósito. Nessa parte, esclareço conceitos fundamentais para uma sólida e fecunda discussão política e ilumino o contraste entre a compreensão dos antigos e a dos modernos sobre as instituições políticas. Ao cabo desse percurso, espero atingir o objetivo fulcral a que se destina este texto, qual seja: contribuir para esclarecer o debate político comumente toldado pelo analfabetismo político do senso comum.

 

 

2. O autoritarismo bolsonarista e a demissão do pensamento

 

Disposta a compreender a ascensão do neoconservadorismo no Brasil a partir de 2015, Lacerda (2019) advoga que é possível estabelecer uma relação de influência entre o neoconservadorismo nos Estados Unidos no fim da década de 1970 e o novo conservadorismo no Brasil que culminou com a eleição de Bolsonaro. Primeiramente, é preciso ter em conta o fato de que, segundo a autora, o governo de Jair Bolsonaro, iniciado em janeiro de 2019, é o resultado eleitoral do crescimento, no Brasil, de um neoconservadorismo ou de uma nova direita que se formou em torno da coalizão contrária às políticas de bem-estar social e ao avanço dos movimentos feministas e LGBTQIA+, e que arrebanhou uma parcela majoritária do evangelismo, integrantes da direita secular do Partido Republicano e intelectuais que apoiaram a eleição de Ronald Reagan em 1980. O neoconservadorismo esteia-se na tríade militarismo, absolutismo do livre mercado e família tradicional (leia-se família patriarcal). Além dessas características de base, o neoconservadorismo, de que o bolsonarismo é a versão brasileira atual e majoritária, se caracteriza também pelo idealismo punitivo e sionismo, o qual expressa a tendência do grupo da direita cristã a enfatizar os textos do Antigo Testamento e a apoiar o Estado de Israel em suas investidas contra a Palestina. Ademais, o bolsonarismo está econômica e ideologicamente alinhado com a racionalidade neoliberal. Aqui convém precisar o que devemos entender por neoliberalismo, no domínio da presente discussão. Consoante Dardot & Laval (2016, p. 34), o neoliberalismo “não é o herdeiro natural do primeiro liberalismo, assim como não é seu extravio nem sua traição”. Para os autores, o neoliberalismo não é uma ideologia ou um sistema de crenças, “é um sistema de normas que hoje está profundamente inscritas nas práticas governamentais, nas políticas institucionais, nos estilos gerenciais”. (ibid., p. 30). O neoliberalismo excede, portanto, a esfera mercantil e financeira, para estender a lógica do mercado além das fronteiras do próprio mercado. O neoliberalismo produz subjetividades que se convertem em dados contábeis, na medida em que submete os indivíduos à concorrência sistemática. Como assinalam os autores, “o neoliberalismo emprega técnicas de poder[4] inéditas sobre as condutas e as subjetividades”. (ibid., p. 21). Portanto, sem que possamos reduzi-lo à expansão espontânea da esfera do mercado e do campo de acumulação do capital, devemos compreendê-lo como uma forma de governamentalidade. Assim entendida, “a governamentalidade neoliberal escora-se num quadro normativo global que, em nome da liberdade e apoiando-se nas margens de manobra concedidas aos indivíduos, orienta de maneira nova as condutas, as escolhas e as práticas desses indivíduos”. (ibid., ênfase no original). Em suma, o neoliberalismo não é uma doutrina, mas uma racionalidade governamental que se expressa como o desenvolvimento da lógica do mercado normatizadora e generalizada, que se estende da esfera do Estado até o âmago da subjetividade.

Como se pode depreender do que até aqui se expôs, uma discussão sobre política que se pretende consistente, esclarecida e profunda não pode prescindir de reconhecer a sua complexidade fenomênica, que não é senão reflexo da complexidade do real. Demais, quem quer que queira compreender como opera o projeto antipolítico de Bolsonaro, deve tanto renunciar ao hábito de repisar os lugares-comuns, os slogans, os preconceitos, os despautérios da burrice generalizada, quanto abster-se de considerá-lo burro ou louco. A advertência que nos faz Nobre vem aqui a propósito:

 

 

É fácil chamar Bolsonaro de burro ou louco, ou das duas coisas. Só que isso não ajuda em nada a entender o que estamos vivendo. Pior, é uma maneira de dizer que não há nada para entender, é uma maneira de se desobrigar de pensar. E desobrigar de pensar é um dos grandes objetivos do projeto autoritário de Bolsonaro. Não bastasse isso, o xingamento despolitiza: como todo político autoritário, Bolsonaro se apresenta como não político. O xingamento diz que o atual presidente de fato funciona segundo outra lógica que não a da racionalidade política. (Nobre, ibid., p. 9).

 

 

 

 

Enumerem-se, pois, as três ideias importantes expressas nesse passo de Nobre: 1) o projeto autoritário de Bolsonaro tem como um de seus objetivos desobrigar de pensar; 2) o xingamento despolitiza, impede-nos de entender Bolsonaro como um autoritário, como um não político; 3) o xingamento, ademais, libera Bolsonaro da responsabilidade por seus atos e palavras, visto que burros e loucos não podem ser responsabilizados pelas burrices e pelas loucuras que proferem ou fazem. Segundo Nobre, também não devemos ignorar o fato de que Bolsonaro usa-se de uma tática política que lhe é bastante conveniente: a culpa que recai sobre si ele transfere para o outro. Se queremos compreender, portanto, adequadamente, o modo como Bolsonaro faz política, devemos procurar entendê-lo nos termos da política da guerra e da morte que a orienta. O que se espera de um cidadão crítico ou de qualquer pessoa a quem não falte o bom senso é que se esforce por compreender como a própria política virou guerra com a ascensão de Bolsonaro ao cargo de Chefe de Estado.

Se podemos dizer, com Nobre, que há nas falas e atitudes de Bolsonaro signos que desencorajam o exercício do pensamento, é que há nos silenciamentos que atravessam a sua fala a crença de que o real[5] é simples e não problemático. Acontece que não conhecemos a realidade diretamente e de modo transparente; nossa experiência do real já vem tramada pelos signos, pelas significações, pelas imagens que a constituem, ou seja, é tramada pela junção do imaginário com o simbólico. O mundo conhecido é um mundo significado, já ordenado pela função de simbolização da linguagem; e essa ordem simbólico-imaginária da realidade é complexa, se articula em muitos níveis de significação. Morin (2015) nos adverte sobre a necessidade do exercício do pensamento complexo, caso queiramos compreender a complexidade do real. Lembra o autor que complexus se diz do que é tecido junto. A complexidade é um tecido de constituintes heterogêneos intrinsecamente ligados. Destarte, nas palavras do autor:

 

(...) a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo do fenomênico. Mas então a complexidade se apresenta com traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza. (ibid., p. 13).

 

 

Esse tecido de acontecimentos de que fala Morin, esse emaranhado é da ordem do imaginário e do simbólico. Esse tecido é intertecido com significações, é feito da urdidura do imaginário-simbólico. Ora, se o real é complexo, se é problemático (porque jamais transparente, autoevidente, unívoco, seguro, posto como objeto de certeza), então necessitamos do pensamento complexo, caso queiramos, deveras, compreendê-lo nos níveis mais profundos e intricados de sua complexidade. Fazendo face ao modo de ser simplificador da política, Morin propõe um conhecimento complexo, não sem fazer a seguinte advertência:

 

A incapacidade de conceber a complexidade da realidade antropossocial, em sua microdimensão (o ser individual) e em sua macrodimensão (o conjunto da humanidade planetária), conduz a infinitas tragédias e nos conduz à tragédia suprema. Dizem-nos que a política “deve” ser simplificadora e maniqueísta. Sim, claro, em sua concepção manipuladora que utiliza as pulsões cegas. Mas a estratégia política requer o conhecimento complexo, porque ela se constrói na ação com e contra o incerto, o acaso, o jogo mútiplo das interações e retroações. (ibid., p. 13).

 

Decerto, ser capaz de pensamento complexo é um atributo que Bolsonaro não tem e que se recusa a tê-lo, preferindo confrontar-se com a complexidade da realidade antropossocial recorrendo à munição dos destemperos de seu autoritarismo, o mesmo autoritarismo com que insiste em simplificar justamente aquilo que não se presta a simplificações: o real, a vida, o mundo.

Antes de descer a pormenores sobre a questão do autoritarismo e, mormente, do autoritarismo do bolsonarismo, se faz mister fazer um recuo a fim de refletir com mais acuro sobre o contexto sociopolítico-econômico em que se inscreve o autoritarismo de nosso século. Consoante ensina Casara (2020a), “a racionalidade neoliberal, que transforma tudo e todos em objetos negociáveis, e só se preocupa com o lucro e a acumulação do capital, além de elevar o egoísmo à condição de virtude, produz um fenômeno: a dessimbolização, o desaparecimento dos valores e dos limites que condicionavam a civilização”. (grifo meu, p. 57). A dessimbolização a que se refere Casara designa, de um ponto de vista da psicanálise lacaniana, a perda do Nome-do-pai, que simboliza a Lei, o interdito. Assim, o mundo, na medida em que vai-se cada vez mais se dessimbolizando, torna-se um lugar onde valores democráticos como “verdade” e liberdade” se tornam moedas de troca e limites éticos e jurídicos lapidares do modo civilizado de vida são violados. Num mundo dessimbolizado, naturalizam-se tendências anarcocapitalistas que estimulam a absoluta livre concorrência, e a liberdade se reduz à liberdade de possuir, e todos os direitos se reduzem ao direito de propriedade. A dessimbolização liquidifica ou mesmo dissolve os laços de solidariedade social. Num mundo dessimbolizado, cresce o fanatismo religioso oportuno aos seus simpatizantes e propagandistas. Consoante Casara, “ a dessimbolização gera “assujeitos”, zumbis demitidos da faculdade de julgar e propícias posturas perversas, quando não psicóticas”. (ibid., p. 65). E ajunta: “a dessimbolização, em resumo: gera o bolsonarismo”. (ibid.). A violação dos limites civilizatórios torna-se objeto de gozo. Não raro, eles são ignorados em nome da satisfação pessoal. O absurdo é naturalizado. A lei simbólica (o limite externo) é substituída pela imagem construída individualmente da lei (lei imaginária). A dessimbolização leva à identificação com a figura de um líder carismático que passa a ocupar o lugar do Pai (sempre poderoso), a quem a obediência vem acompanhada da promessa de liberar o gozo irrestrito. Assim, as pessoas que o seguem anseiam por estar livres para expor seus preconceitos ou para recusar os direitos fundamentais do outro, o qual aparece imaginariamente como um concorrente ou inimigo a ser destruído. Segundo Casara, é a dessimbolização que leva pessoas a quem interessam as políticas sociais destinadas à redução da pobreza a votarem num candidato cuja agenda política se alinha com o fim dessas mesmas políticas. É também a dessimbolização que explica como mulheres que se afirmam feministas podem escolher votar em homens em vez de noutras mulheres feministas. Como pontua Casara, “na eleição de Jair Bolsonaro, a verdade perdeu importância diante de certezas, ainda que delirantes, de seus eleitores”. (ibid., p. 59). Outra consequência da dessimbolização, segundo Casara, é psicose social:

 

A dessimbolização leva, portanto, a uma espécie de psicose social. No caso brasileiro (como, antes, já tinha ocorrido nos Estados Unidos de Donald Trump), uma psicose gerada por uma propaganda sem compromisso com a verdade, com argumentos racionais ou com questões políticas concretas ou tangíveis, mas baseada em cálculos emocionais, na manipulação de ressentimentos, ódios e pulsões. Essa manifestação psicopolítica, capaz de produzir dominação sem que os dominados/zumbis percebam, utiliza-se da reiteração e escassez de ideias, frases feitas sem maiores complexidades, slogans e etiquetações que criam e demonizam inimigos imaginários (construções que se distanciam da realidade dos rivais políticos), ao mesmo tempo em que transforma o absurdo e o ridículo em capital político. (ibid., p. 66).

 

 

A hipnose social ou o que Casara também chama “zumbificação” é consequência da liquidificação das relações entre pessoas, resultante do modus operandi da racionalidade neoliberal. É o laço social que se dissolve à proporção que avança e domina todas as esferas da vida em comum o imperativo do gozo ilimitado e o processo de reificação de todo o entorno social que se reduz a mercadorias a serem consumidas. A esfera dialógica entre sujeitos é suprimida, e eles se tornam meros objetos de uma lógica que opera segundo interesses mercantis.

Para Casara, o bolsonarismo é um sistema de pensamento paranoico, porquanto limitado a produzir certezas delirantes, tais como o terraplanismo, o marxismo cultural e a conspiração comunista que, no senso comum, se amalgamam com preconceitos e xingamentos que reforçam a ignorância coletiva e a burrice desavergonhada. Estas e outras criações do imaginário psicótico e paranoico do bolsonarismo influenciam de modo significativo as decisões individuais e manipulam os arranjos do campo político e das forças eleitorais. Resta evidente, ao menos para mim, que os apoiadores de Bolsonaro são, em sua grande maioria, analfabetos políticos. Muitos deles podem ser considerados “burros”, porque defendem o indefensável e são incapazes de compreender as consequências danosas dessa defesa, seja para a sociedade a que pertencem, seja para si mesmos.

 

 

2.1. A personalidade autoritária e fascista

 

Ao contrário da personalidade democrática, que aceita bem os limites impostos aos seus desejos e ao exercício do poder, a personalidade autoritária recusa qualquer limite aos seus desejos e ao seu projeto de dominação.[6] O autoritarismo culmina com o culto à violência, carreia o ódio aos direitos humanos e ao conhecimento, dissemina e nutre o medo da liberdade, produz inimigos imaginários e reproduz um pensamento estereotipado e empobrecido, que se estrutura num discurso simplificador e repleto de clichês, slogans e frases feitas. O autoritarismo ou a personalidade autoritária naturaliza os preconceitos racial, social, de gênero, aceita de modo acrítico as fake news, mormente aquelas que confirmam seus piores preconceitos e suas crenças mais absurdas. Sobretudo, a personalidade autoritária não tolera qualquer limite legal, constitucional imposto ao poder e aos seus desejos de poder. O autoritarismo odeia o pensamento crítico. Odeia a razão, os direitos, os valores, as regras e práticas civilizatórias que balizam a esfera de atuação do poder. O autoritarismo também odeia os limites que lhes são fixados em seus desejos de dominação. Conforme escreve Casara, “(...) não raro, o autoritário passa a “defender o indefensável”, desde a  “prática de crimes para combater a criminalidade” à solução final administrada pelos nazistas no século passado” (ibid., p. 85).

Em seu estudo sobre o fascismo, Stanley observa o seguinte acerca do anti-intelectualismo da política fascista:

 

A política fascista procura minar o discurso público atacando e desvalorizando a educação, a especialização e a linguagem. É impossível haver um debate inteligente sem uma educação que dê acesso a diferentes perspectivas, sem respeito pela especialização quando se esgota o próprio conhecimento e sem uma linguagem rica o suficiente para descrever com precisão a realidade. Quando a educação, a especialização e as distinções linguísticas são solapadas, restam somente poder e identidade tribal. (Stanley, 2020, p. 48).

 

 

 

A propaganda fascista ataca as universidades e os sistemas educacionais que poderiam contestar sua ideologia. As técnicas empregadas pelo fascismo recriam a compreensão geral que a população tem da realidade, assim, construindo uma irrealidade com base na qual as teorias da conspiração e as notícias falsas ocupam o lugar do debate esclarecido e bem fundamentado. Em Como conversar com um fascista (2018), Tiburi, escrevendo antes do pleito que levaria Bolsonaro a ocupar a cadeira de Presidente da República, já denunciava o processo de destruição do outro e da política, notável em 2015, época em que fora publicada a primeira edição  do livro. Também aí Tiburi demonstra preocupação com o risco de o ódio tornar-se um fenômeno estrutural, a saber, um padrão normativo do que, nas práticas e relações sociais, se considera aceitável:

 

 

Podemos nos colocar a questão quanto ao risco de que o ódio se torne estrutural, que venha a dar base a todas as nossas relações. Nesse contexto, a política é destruída sistematicamente em duas linhas: pelos políticos que a transformam em burocracia; pelo povo que a negligencia e se desinteressa dela. Talvez a destruição da política seja a verdade oculta na razão de Estado atual. Todos sabem, mesmo que não tenham palavras para expressar, que a política foi transformada em burocracia e que os governantes garantem seu emprego eterno estimulando o ódio nacional ao poder público. Não há maneira melhor de destruir a política do que fazendo uso eficiente do ódio. (Tiburi, 2018, p. 29).

 

 

 

Urge que o leitor que me acompanha até aqui atente para a transformação da política em burocracia e para a perpetuação no poder dos governantes que incitam o ódio, um modus operandis típico da política brasileira. Essa representação da política como atividade burocrática e oportunista corresponde bem à experiência vivida cotidianamente pela população brasileira, em cujo imaginário, convive bem a repulsa às práticas de seus governantes, ao “jogo sujo da política”, e a certeza de que a política um emprego tão extremamente rentável quanto desejável.

Tiburi acrescenta que “para destruir o outro é preciso destruir a política. Para destruir a política é preciso destruir o outro”. (ibid.). A destruição do outro (da alteridade) é o meio eficaz de eliminar o sujeito de direitos e o direito dos sujeitos. A tática de humilhação e de aviltamento de pessoas ou populações inteiras inviabiliza a realização de uma sociabilidade e sociedade democráticas, alicerçadas no princípio constitucional de inclusão de todos os cidadãos. Tiburi lembra também que a personalidade fascista – e por extensão, a personalidade autoritária – tem compulsão à submissão e, ao mesmo tempo, à dominação. O fascista é submisso aos poderes e instituições, mas quer dominar os outros e eliminar os que pensam e agem de modo diferente. O fascista não está aberto ao diálogo e ao saber. Ele desconfia do conhecimento e nutre ódio por quem quer que demonstre saber algo que o afronte ou que invalide suas crenças. Sua conduta social se orienta pela ignorância e confusão. O fascista não hesita em recorrer a crenças irracionais ou antirracionais, e em criar inimigos imaginários, a fim de reforçar suas práticas de dominação.

Correlata à simplificação da realidade é a simplificação da linguagem característica do discurso autoritário. Em um de seus artigos reunidos no livro Minha especialidade é matar: como o Bolsonarismo tomou conta do Brasil (2020), o filósofo e escritor Henry Bugalho observa que Bolsonaro e o então Ministro da Educação Weintraub à época consideram que os cursos de Filosofia não servem senão para formar “comunistas malévolos”. A ignorância e opinião refratária à filosofia de Bolsonaro e Weintraub podem ser explicadas no passo abaixo de Bugalho:

 

Deveria ser impossível, mas é fácil na verdade entender o desprezo que o governo Bolsonaro nutre pela Filosofia. Temos um presidente que devolve respostas simples para os mais complexos problemas do Brasil e do mundo, repostas que satisfazem as inquietações de seus eleitores, hoje educados por meio de fake News no Whatsapp, sectários youtubers e pela tal mídia alternativa, um eufemismo para um jornalismo tosco que prescinde de um dos princípios mais elementares da ética jornalística: fundamentar-se no que seja factual, ou seja, restringir-se aos fatos. (ibid., p. 37).

 

 

Ainda segundo Bugalho, “neste universo de linguagem simplificada e rasa, qualquer resposta sofisticada e problematizadora é descartada como uma excentricidade de acadêmicos ideologicamente enviesados”. (ibid.). O autor lembra também o que eu deixei claro em outro texto meu, publicado neste blog: Bolsonaro sustenta uma retórica de governo “sem viés ideológico”, mas ignora que seus atos e falas são ideologicamente orientados. Como enfatiza Casara, numa época em que o empobrecimento da linguagem é uma das facetas do capitalismo digital, “tudo deve se apresentar como simples e direto para evitar os conflitos, as dúvidas e a percepção de que é possível ou necessário mudar” (ibid., p. 12).

O discurso de Bolsonaro e de seus apoiadores se produz com um arranjo de explicações demasiado simplistas dos acontecimentos humanos e do mundo. Essas explicações superficiais e simplistas interditam as investigações, os questionamentos, as reflexões detidas e profundas indispensáveis a uma compreensão refinada e abrangente da complexidade dos fenômenos humanos e do mundo. No processo de simplificação neoliberal da realidade, o bolsonarismo encontra um terreno sólido e fecundo para reproduzir a “lógica do gado”, em consonância com a qual a comunicação deve-se realizar por iguais e entre iguais num circuito cacofônico no qual o igual responde ao igual. Assim, quem ousa falar ou pensar diferente dos modos de produção do pensamento e da linguagem simplificadores, tem de ser calado, amordaçado simbolicamente, porque, no imaginário empobrecido do autoritarismo bolsonarista, o divergente, aquele que contradiz, que ousa verdadeiramente pensar, é representado como um inimigo, um resíduo inoportuno que precisa ser eliminado. Depreende-se daí ser forçosa a conclusão de que, como afirma Casara, “o fenômeno Bolsonaro não seria possível sem o empobrecimento subjetivo da população brasileira”. (ibid., p. 15).

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BUGALHO, Henry. Minha especialidade é matar: como Bolsonaro tomou conta do Brasil. Curitiba: Kotter Editorial, 2020.

 

CASARA, Rubens R.R. Bolsonaro: o Mito e o sintoma. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020(a).

 

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.

 

LACERDA, Mariana Basso. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre, RS: Zouk, 2019.

 

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Trad. Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2015.

 

NICOLAU, Jairo. O Brasil dobrou à direita: uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

 

NOBRE, Marcos. Ponto final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia. São Paulo: Todavia, 2020.

 

STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo. Trad. Bruno Alexander. Porto Alegre: L&PM, 2020.

 

TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2018.

 

 

 

 

 



[1] Por senso comum entendo um complexo de crenças, supostas certezas, concepções, preconceitos, ideologias, valores, símbolos; em suma, representações coletivas formadoras dos modos de pensar, agir e sentir que são gerais e permanentes numa sociedade ou num grupo social particular. O senso comum abriga saberes subjetivos que exprimem sentimentos e opiniões individuais ou de grupos, que variam de uma pessoa para outra, ou de um grupo para outro, dependendo das condições socioculturais em que vivem os indivíduos.

[2] Nicolau, op.cit.

[3] O imaginário é a matriz produtora de significações sociais, de representações, de símbolos, sem os quais seria impossível a instituição da ordem social. O imaginário abriga representações inconscientes que se formam a partir de imagens e outros fenômenos percebidos no meio social, cultural em que um indivíduo está inserido. O imaginário é o que torna possível o sentido. Ele prende-se à capacidade humana de representar coisas através do pensamento, permitindo a construção da ordem imagética do mundo. O imaginário constitui aquilo que uma pessoa percebe como objeto da realidade. O imaginário articula representações que se formam com base nos materiais simbólicos que estão disponíveis como parte do acervo de conhecimento partilhado numa sociedade ou comunidade. O imaginário é uma construção social e, como tal, fala-se em imaginário social, sempre que as significações, as imagens e os símbolos produzidos permitem a um grupo a construção de uma identidade e uma imagem de si, levando-o a respeitar os códigos de comportamento coletivamente sancionados, a identificar motivações e a estabelecer crenças comuns, como a crença no uso da força como meio de solução dos problemas – crença esta vigente na estrutura das sociedades autoritárias.

[4] O conceito de poder será discutido na PARTE 3 deste trabalho.

[5] Na psicanálise lacaniana, o real se distingue da realidade. O real é o que não pode ser simbolizado, é “o impossível de ser simbolizado”. A realidade, por seu turno, é a trama simbólico-imaginária.

[6] Nas relações de dominação, grupos particulares de atores sociais possuem poder de uma maneira permanente, em grau amplo, e o exercem de modo a excluir das esferas de poder outros grupos de agentes.