sexta-feira, 31 de julho de 2015

"Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz." (Epicuro)

                 
                        


                  Epicurismo e sua ética hedonista[1]

"Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo enquanto velho, porque ninguém é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz"
(Epicuro - Carta a Meneceu)


1. O prazer (hedoné)

O epicursismo[4] é a doutrina filosófica, cujo fundador foi o filósofo grego atomista Epicuro (341-270 a.C.), nascido em Samos, e que preconiza, no âmbito da moral, ser o bem o prazer, isto é, a satisfação de nossos desejos e impulsos de forma moderada. Foi justamente por fundar sua moral no prazer que Epicuro foi acusado por seus contemporâneos e pela posteridade de defensor da volúpia. No entanto, o próprio Epicuro não descurou de advertir que se deve buscar os prazeres moderados, afastando aqueles que não são nem naturais nem necessários.
Segundo Epicuro, o prazer é o soberano bem; e a dor, o soberano mal. A busca do prazer deve levar à ataraxia[5], isto é, ao estado de impertubabilidade da alma, pela supressão da dor. O prazer é o começo e o fim da vida feliz; e o prazer e a dor ensinam-nos o que devemos procurar e o que é necessário que evitemos. O bem viver, na visão de Epicuro, consiste em saber gerir bem os prazeres.
O prazer é o princípio da vida feliz, porquanto é o primeiro bem conforme à natureza e, por isso, é com base nele que usufruímos ou rejeitamos as coisas, em consonância com a sensação. O prazer é o fim, porque é desejado por si mesmo; é o prazer o bem que dá sentido a todos os bens.
A ética epicurista funda-se sobre a regra que consiste na busca do prazer e na necessidade de escapar a toda dor do corpo e a toda perturbação da alma. O caminho pelo qual alcançamos a eudaimonia, a vida feliz, envolve duas exigências: a ausência de dor e a ausência de perturbação na alma.
O prazer é o sumo bem, pois que a ele todos os seres vivos tendem, desde o nascimento. Todos os seres vivos buscam o prazer e se esforçam para escapar à dor por meio de uma inclinação natural. O prazer é um estado que envolve a carne[6] e é reclamado por ela. É necessário libertar a carne do sofrimento, a fim de que o prazer seja alcançado. Ao prazer se subordinam todos os valores e todos os bens espirituais. O prazer não é um estado passageiro ou fugaz, mas um estado permanente que supõe o equilíbrio das partes do corpo; é o estado que experimenta um corpo com saúde.
Uma vez que o prazer deve estar em conformidade com a Natureza (phýsis) e que sua busca é conforme à nossa natureza, todo prazer é rigorosamente físico, de sorte que os prazeres espirituais também o são, sobretudo porque, no epicurismo, a alma é dotada de corporeidade, conforme atesta o seguinte fragmento de Epicuro:

A alma é corpórea, composta de partículas sutis, difusa por toda estrutura corporal, muito semelhante a um sopro que contenha uma mistura de calor, semelhante um pouco a um e um pouco a outro, e também muito diferente deles pela sutileza das partículas, e também por este lado capaz de sentir-se mais em harmonia com o resto do organismo.[7]


Do trecho supracitado, não é custoso depreender que a física epicurista não admite a separação entre alma e corpo. Não só a alma é corpórea, como também há uma integralidade da alma com o corpo. A alma permeia toda a estrutura corporal. A alma traz em si a causa principal das sensações, mas estas não seriam possíveis se não estivessem integradas ao resto do organismo. Dessa integração resulta que, deteriorando o corpo, a alma também se dissolve.
Que as considerações precedentes não nos induzam a um erro que, de todo modo, parece ter-se consagrado na posteridade, qual seja, o que decorre da crença de que Epicuro pense ser todo e qualquer prazer um bem. O excerto a seguir, conquanto encerre o postulado básico da ética epicurista, suscitando-nos a crença verdadeira de que a vida feliz depende da busca do prazer, nem por isso deixa de nos advertir de que essa busca envolve um critério.

Chamamos ao prazer princípio e fim da vida feliz. Com efeito, sabemos que é o primeiro bem, o bem inato, e que dele derivamos toda a escolha ou recusa e chegamos a ele valorizando todo bem com critério do efeito que nos produz.[8]


Epicuro proíbe-nos de escolher todo e qualquer prazer, porque há prazeres pelos quais sofremos “maiores pesares”[9]. É necessário distinguir entre o prazer estável ou em repouso e o prazer em movimento. Os prazeres em movimento podem ser bons, como os que se experimentam na saciedade da sede e da fome, na proteção contra o frio, etc. Sucede, todavia, que esses prazeres precisam ser renovados, porque eles são movidos por carências que não cessamos de sofrer. Como, continuamente, sentimos fome, sede e frio, continuamente necessitamos do prazer sobrevindo à supressão dessas sensações.
Por outro lado, o prazer em repouso, porquanto não decorre de carências, é sempre experimentado sem a afecção prévia da dor, do sofrimento ou da perda. Por conseguinte, o verdadeiro prazer reside na serenidade ou tranquilidade da alma e do corpo.
No fragmento seguinte, colhido de Carta a Meneceu (2002, p. 39), Epicuro não só rejeita a possibilidade de escolher qualquer prazer, mas também nos lembra que, não raro, preferimos certos sofrimentos aos prazeres, sempre que àqueles sobrevêm prazeres maiores.

Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando deles nos advém efeitos os mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo. Portanto, todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem sempre ser evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem como se fosse um mal, ao contrário, um mal como se fosse um bem. (grifo nosso).


Esse trecho reclama alguns comentários, os quais, elucidando-o, assentam o terreno em que se situará o objeto de nossas próximas considerações. Urge notar, em primeiro lugar, que a natureza é sempre a medida para a determinação do que é bom e do que é mau. Os prazeres são um bem, porque todos os seres vivos tendem naturalmente a ele; a dor, por seu turno, é um mal, porque todos os seres vivos tendem naturalmente a esquivar-se dela. Não obstante, a qualidade dos prazeres pode variar segundo as circunstâncias, o que nos demanda a capacidade de avaliação que nos orienta na escolha daqueles prazeres que não carreiam dor futura. Analogamente, ainda que dores e sofrimentos sejam, naturalmente, um mal, ocasiões há em que devemos escolher suportá-los, se, após ponderação, ficarmos convencidos de que isso nos acarretará maiores prazeres.
Acresce-se, em segundo lugar, que, muitas vezes, deixamo-nos seduzir por coisas que se apresentam como um bem, perdendo de vista o mal maior que dele se seguirá. Isso se dá por nos deixarmos ceder à credulidade, à superstição e à ignorância. Cumpre-nos, na próxima seção, mostrar como a alma avalia os prazeres.

2. A avaliação dos prazeres pela distinção entre os desejos

Segundo Epicuro, a alma avalia os prazeres distinguindo, entre os desejos, aqueles que são naturais daqueles que, não sendo naturais, estão calcados sobre vãs opiniões. Acresça-se que, entre os desejos naturais, há os que são necessários à felicidade; outros, à própria vida; e os que, embora naturais, não são necessários para atingir as duas finalidades.
Constituem desejos naturais e necessários uma alimentação sóbria, uma habitação, uma veste que nos proteja contra o frio ou o calor, etc. Por outro lado, são desejos naturais não necessários os que variam os prazeres mediante a variedade da alimentação, da bebida, do vestuário, etc. Segundo Epicuro, tais desejos podem tornar-se imoderados muito facilmente, donde se segue a necessidade de disciplina constante para moderá-los. Por isso, a felicidade e a bem-aventurança dependem da ausência de dor e da moderação nos afetos. Epicuro é explícito ao rejeitar estar na posse das riquezas e na abundância das coisas, ou mesmo na obtenção de cargos e do poder, a felicidade; e igualmente claro é ao advertir os “incautos”, que insistiam em distorcer sua doutrina, de que eles estavam equivocados. Pode-se ler sobre as referidas rejeição e advertência no que se segue:

Quando dizemos, então, que o prazer é fim, não queremos referir-se aos prazeres dos intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade, como crêem certos ignorantes, que se encontram em desacordo conosco ou não nos compreendem, mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos do corpo e de perturbações da alma.[10]


Há que considerar, finalmente, os desejos não naturais e não necessários, que surgem de nossas vãs opiniões. Assim, acreditamos que o prazer se acha na riqueza ostensiva, na fama, na glória, na posse de poder. Para Epicuro, essa crença errônea se acompanha do medo e da perturbação: aquele que ostenta sua riqueza teme perdê-la; aquele que não a possui teme não conseguir obtê-la. No primeiro caso, o indivíduo se perturba com a possibilidade de se ver privado do prazer que acredita estar na posse da riqueza; no segundo caso, perturba-se por não conseguir usufruir o prazer que acredita haver nessa posse.
Consoante mantém Epicuro, a frugalidade dos desejos naturais necessários garante nossa independência, nossa autarcía (autossuficiência); por outro lado, a intemperança dos prazeres que decorrem da vã opinião não só nos impede a autossuficiência, como também nos torna prisioneiros da perturbação. Os desejos naturais e necessários nos livram da dor; os desejos naturais e não necessários, embora nos livrem da dor, podem acarretar danos. Finalmente, os desejos inaturais e não necessários são aqueles que não nos livram da dor e podem ainda nos causar prejuízos. Não há desejos inaturais e necessários, porquanto “inatural” e “necessário” são atributos mutuamente excludentes.
Para Epicuro, devemos ceder a um desejo que nos conduz à tranquilidade, estado sobre o qual repousa a felicidade, e devemos renunciar a um desejo que não nos permite fruir esse estado de tranquilidade. Ainda no que diz respeito aos desejos, é notável o fato de a doutrina epicurista antecipar aquilo que se tornaria um postulado da psicanálise freudiana: a insaciabilidade do desejo.
A experiência comum basta para nos assegurar de que o prazer obtido diminui gradualmente à proporção que nos acostumamos a ele. O termo científico para caracterizar essa experiência é adaptação hedônica. É no momento exato em que nos acostumamos a algo prazeroso que ele deixa de ser prazeroso. Ao estado de insatisfação em que nos encontramos, porque acostumados ao que é agradável, segue-se um novo desejo que demanda satisfação. Mas não tarda para que este estado de satisfação obtido ceda lugar à nova insatisfação, a que se segue outro desejo que reclama satisfação, e o processo se dá ad infinitum. Schopenhauer via aí uma trama que torna impossível a experiência de uma felicidade positiva e duradoura, porque nos vemos sempre suscetível à alternância entre o desejo, ao qual precede uma carência, a satisfação – no entanto, sempre temporária – e o tédio, no qual o prazer está destinado a se converter. O movimento desejo-satisfação (prazer)-tédio é cíclico, de modo que jamais atingimos a satisfação plena de nossos desejos, visto que, continuamente, somos lançados ao estágio inicial do ciclo: estamos permanentemente desejando e continuamente insatisfeitos.
Em  O mal-estar na cultura (2010), Freud soube bem reconhecer que, a despeito de o funcionamento psíquico ser comandado pelo que chama de programa do princípio de prazer, por força do qual somos impulsionados a buscar o prazer e desejamos permanecer nesse estado indefinidamente, toda permanência anelada não é mais que “uma sensação tépida de bem-estar” (p. 63). Após considerar só ser possível experienciar a felicidade como fenômeno episódico, escreve Freud, patenteando que seu pensamento se alinha com o ensinamento epicurista[11]:

Toda permanência de uma situação anelada pelo princípio de prazer fornece apenas uma sensação tépida de bem-estar; somos feitos de tal modo que apenas podemos gozar intensamente o contraste e somente muito pouco o estado.[12]


Parece claro que Freud está de acordo com o fato de que só nos é possível experienciar uma felicidade do tipo negativo, a saber, o estado em que não experimentamos dor (ou desprazer), em que não nos encontramos infelizes.
Retomemos, por algum instante, a contribuição de Schopenhauer, com vistas a assinalar que, a par da influência inconteste da mística hinduísta e budista em seu pensamento, influência de que os trechos que citaremos não deixam de dar testemunho, claros nos parecem também os traços da concepção epicurista sobre a felicidade. Pelo menos ao se ocupar dela, em sua obra A arte de ser feliz (2001), Schopenhauer demonstra sua afinidade com o pensamento epicurista no tratamento das condições para a vida feliz[13]. Senão, vejamos:


O meio mais seguro de não se tornar muito infeliz consiste em não desejar ser muito feliz, portanto em reduzir as próprias pretensões a um nível bastante moderado no que diz respeito a prazeres, posses, categorias, honra, etc., pois a aspiração à felicidade e a luta para conquistá-la por si só já atraem grandes desventuras. A moderação, por sua vez, é sábia e aconselhável, porque é facílimo ser muito infeliz, enquanto ser muito feliz não apenas é difícil, como também é totalmente impossível.[14]

Malgrado o pessimismo característico que atravessa profundamente o pensamento schopenhaueriano e que nos acautela do inconveniente na pretensão de ler Schopenhauer à luz do horizonte hermenêutico epicurista, sem matizar aqui e ali a medida da influência epicurista sobre seu pensamento, é clara sua anuência à regra da moderação dos desejos e dos prazeres. Essa anuência o aproxima do pensamento não só epicurista, mas dos gregos de um modo geral. Seu pessimismo exacerbado explica por que Schopenhauer realça muito mais as possibilidades de dor e sofrimento do que as de felicidade, no que ele se demonstra herdeiro da sabedoria oriental, sem, contudo, silenciar o pessimismo do pensamento grego.
A tese schopenhaueriana em A arte de ser feliz constitui um sinal evidente da influência epicurista: toda felicidade positiva é quimérica, enquanto a dor é real.[15] Por isso, embora acredite que a verdadeira satisfação é impossível e que, por extensão, a felicidade positiva seja irrealizável para o homem, a ele é possível uma felicidade negativa, que consiste em evitar a dor. Cumpre, aconselha Schopenhauer, “não desejar ser muito feliz, a fim de não se tornar muito infeliz”[16].
A efetividade da dor é o postulado central de toda metafísica schopenhaueriana e reaparece como elemento orientador de seu exame sobre a felicidade. No trecho abaixo, Schopenhauer assume a posição epicurista e a radicaliza, pelo menos sob o segundo dois aspectos seguintes: 1) para ele, o prazer é negativo – caso em que anui a um genuíno epicurismo, posto que não use a expressão “prazer verdadeiro” para referir-se ao prazer negativo; 2) embora ele não pareça admitir a possibilidade de discriminar a qualidade dos prazeres de acordo com as circunstâncias, aconselha-nos a abstenção dos prazeres como meio de assegurar a ausência maior de dor. Nesse último caso, Schopenhauer parece sugerir que uma vida que se obstine na busca de prazeres e alegrias poderá arrastar-se para um turbilhão de dores e sofrimentos que só se poderiam evitar abstendo-se daquela busca. É lícito supor que, para Schopenhauer, nessa abstenção de prazeres e alegrias, que leva a uma ausência maior de dor, reside o verdadeiro prazer e a única felicidade possível.


Justamente porque na vida a dor é predominante, enquanto os prazeres são negativos, quem faz da razão o fio condutor da própria ação e, portanto, reflete sobre as consequências e o futuro de tudo aquilo que se propõe fazer, muitas vezes deverá aplicar o sustine et abstine e sacrificar os prazeres e as alegrias para assegurar a maior ausência possível de dor em toda a vida.[17]


Schopenhauer não poderia ser mais grego, ao apelar para a necessidade de empregar a razão na condução da ação. Nesse apelo, ele deixa entrever um coro de vozes que, fazendo eco à tradição socrática, encontra herdeiros ao longo da história do pensamento filosófico.[18] No entanto, para Schopenhauer, uma ausência de dor que seja tanto mais confortante quanto verdadeira só se obtém à custa da abstenção dos prazeres, posição esta a que um epicurista muito provavelmente não anuiria.[19] Ademais, em consonância com o seu pessimismo e a despeito de aceitar o postulado da razão como meio de conduzir a ação, Schopenhauer nos adverte de que a razão não nos promete em troca uma existência “não marcada por muitas dores”[20]
Como não seja da alçada desse trabalho o ocupar-se com a discussão sobre a medida da consonância do pensamento schopenhaueriano com o pensamento epicurista, cingir-nos-emos a dizer (esperamos sem grande equívoco) que, sustentando articuladas entre si as teses: 1) todo projeto de vida deve pautar-se pela intenção de evitar a dor; 2) a única forma possível de felicidade é a de uma felicidade negativa -, o tratamento schopenhaueriano da questão da vida feliz se filia à tradição epicurista, ainda que se possa esperar, muito em virtude do teor de seu pessimismo, uma divergência em um ou outro momento. Conjugando ainda as duas teses referidas com o postulado segundo o qual “viver é sofrer”, que constitui a primeira das quatro Nobres Verdades budistas, Schopenhauer constrói uma doutrina que só nos promete a experiência de um estado relativamente menos doloroso. Uma vez atinjamos a compreensão dessa verdade schopenhauriana, poderemos desfrutar o bem-estar que a vida nos concede.

3. A relação necessária do prazer com a virtude

Não obstante Epicuro aderir à experiência de um prazer positivo, que se alcança pelos sentidos, que envolve a corporeidade do vivido[21], um epicurismo, em sua forma radical, sem jamais desprezar os prazeres do corpo, aspira à experiência de prazeres negativos, razão por que leva uma vida ascética. A ética epicurista se pauta por uma lógica severa, nesse sentido: somos felizes quando experienciamos a tranquilidade; só estamos tranqüilos quando livres da dor; e só ficamos livres da dor quando todos os nossos desejos estão realizados; e nossos desejos só podem ser satisfeitos caso sejam moderados.
Do exposto, segue-se que o epicurismo nunca é uma permissão para o excesso de indulgência; mas, ao contrário, é sempre um compromisso com a austeridade. Seus princípios éticos prescrevem disciplina e discernimento. O maior prazer ou o prazer verdadeiro se acha na ausência duradoura de dor.
Distanciando-se dos estóicos, para os quais prazer e virtude deviam ser mantidos em esferas separadas, em função do fato de acreditarem que os homens maus e infelizes também gozam de prazeres, os epicuristas advogavam que a virtude é um meio para o prazer. No epicurismo, o prazer é o único motivo para a ação, visto que é o único padrão pelo qual se pode julgar a equidade da conduta. Destarte, uma ação é moral se ela produzir mais prazer do que dor; e imoral, se produzir mais dor que prazer. Disso resulta que nossos julgamentos éticos não devem apoiar-se nas ações em si (está certo fazer X?), tampouco nas suas consequências para os outros. Nossos julgamentos devem levar em conta apenas as emoções que uma ação produzirá em nós (se fizermos X, nos sentiremos bem?). Evidentemente, o padrão ético é sempre relativo, quer às pessoas que executam uma ação, quer às circunstâncias em que o fazem.
No sistema ético epicurista, à luz do qual a virtude está intimamente ligada ao prazer, ela jamais é considerada em si mesma. Assim, dirão os epicuristas, somos virtuosos não porque, necessariamente, apreciamos a virtude, ou porque a virtude em si mesma é algo admirável, mas porque desejamos o prazer que ela proporciona. Para um epicurista, portanto, toda virtude, necessariamente, acarreta prazer. Onde há virtude há prazer e também felicidade.
Podemos compreender por que o epicurista pensa ser o prazer o único motivo para a ação virtuosa, considerando os dois casos seguintes. No primeiro caso, diz-se que ser corajoso é virtuoso, mas, dirá o epicurista, aquele que é corajoso, que exibe coragem, não o faz por estimar a coragem, mas em vista de viver sem ansiedade. No segundo caso, e de modo semelhante, quem é moderado não o é porque valoriza a moderação, mas porque lhe é cara a paz de espírito que a moderação lhe acarreta.
Cumpre também lembrar que tanto para os antigos gregos quanto para os antigos romanos, a moderação era um traço de caráter de amplo alcance: a força para agir moderadamente era extensiva a todos os tipos de situação; logo, moderação, para eles, era semanticamente muito mais extenso do que nosso uso moderno do termo, deveras estrito.
Em suma, Epicuro sustenta a superioridade dos prazeres negativos, que são estáticos (implicam inatividade) e se caracterizam pela ausência de perturbação da alma e do corpo. Esses prazeres são considerados completos. A felicidade não se alcança na busca do prazer cinético ilimitado[22], que consiste em satisfazer continuamente determinados desejos, mas na busca do prazer estático limitado, a saber, a ausência de dor. Essa forma de prazer se caracteriza pela ausência de desejos que demandam satisfação. Assim, desde que todo desejo está satisfeito, não resta dor alguma, e o limiar de todo prazer possível se nos desvela sem obstáculos. De tudo que dissemos, pode-se, seguramente, concluir que a ética epicurista é uma terapêutica: a) estando o corpo em bom estado, mas a alma perturbada, o epicurista prescreve a correção das falsas opiniões acompanhada da supressão dos temores desencadeados por elas; b) estando o corpo em mau estado, mas a alma sadia, o epicurista prescreve a supressão da dor física pela formação de imagens mentais prazerosas relativamente ao passado, ou pela projeção positiva dessas imagens relativamente ao futuro.




[4] De um lado, o epicurista situa a felicidade no prazer; de outro lado, para o estóico, a felicidade consiste na exigência do bem segundo a razão. Essa exigência do bem ultrapassa o interesse individual. Comum aos epicuristas e aos estóicos é a pretensão de atingir a ataraxia (estado de tranquilidade ou impertubabilidade da alma). A ética estóica combina serenidade autossuficiente e benevolente, estado este que leva o sábio a uma indiferença em relação à pobreza, à dor, à morte, com a promoção de uma ordem política e civil que espelhe a ordem do cosmo. O estóico celebra a apatia, que se caracteriza por ser um estado de ausência de sentimentos baseados em crenças erradas, ou seja, de sentimentos que nos levem a não conferir à virtude o seu devido papel. A rigor, apatia é ausência de paixões; é não ter ou experimentar sofrimento. Daí ser ela um estado em que somos indiferentes aos reveses da vida.
[5] Os epicuristas advogavam que a ataraxia pode ser alcançada pela busca dos prazeres “tranquilos” e pela satisfação dos desejos naturais. É necessário renunciar aos desejos supérfluos (ser rico, poderoso, etc.), cuja satisfação acarreta mais perturbação do que prazer. O sábio feliz se contenta com o estritamente necessário.
[6] “Carne” é o termo usado por Epicuro (ele escreve “a voz da carne diz”) para designar o sujeito da dor e do prazer, isto é, o indivíduo. Nesse sentido, a carne não é uma parte anatômica do corpo, nem é separada da alma. Não há prazer e sofrimento sem que se tenha consciência e sem que esse estado de consciência se reproduza na “carne” (Hadot, 2010, p. 170-171).
[7] EPICURO. Física. Coleção Os Pensadores. Trad. Agostinho da Silva et. al. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 16.
[8] Ibidem, p. 17.
[9] Idem.
[10] Idem.
[11] Não menos notável é a influência que sobre seu pensamento exerceu a filosofia de Schopenhauer. O pessimismo à moda schopenhaueriana instila-se nas páginas freudianas. Prova-o sua crença na impossibilidade de podermos experienciar uma felicidade positiva.
[12] Idem.
[13] Essa afinidade com o pensamento epicurista não deve obnubilar a presença de traços do modo de vida (sabedoria) estóico em seu pensamento. Dão testemunho da influência estóica sobre o pensamento de Schopenhauer, os fragmentos seguintes tomados, respectivamente, da Máxima 18 e da 19. Na máxima 18, lemos: “as coisas que dizem respeito ao nosso bem-estar devem ser enfrentadas somente com a capacidade de julgar que opera com conceitos e in abstracto, ou seja, a partir de uma reflexão fria e austera (...)” (p. 55). Na máxima 19, topa-se o seguinte: “Não permitir a manifestação de grande júbilo ou grande lamento com relação a algum acontecimnto, uma vez que a mutabilidade de todas as coisas pode transformá-lo de um instante para outro; em vez disso, usufruir sempre o presente da maneira mais serena possível: isso é sabedoria de vida” (p. 55 et.seq.)
[14] Máxima 36, p. 83.
[15] Ibidem, p. 84.
[16] Ibidem, p. 82.
[17] Ibidem, p. 85.
[18] Dessa miríade de vozes, entre as quais estão as dos cínicos, dos epicuristas, dos estóicos, Aristóteles é, sem dúvida, uma figura notável, cuja contribuição é evocada, várias vezes, por Schopenhauer no texto da Arte de Ser Feliz.
[19] Um epicurista não nos pede a abstenção dos prazeres, mas orienta-nos a fruir deles de modo moderado. Ademais, Schopenhauer não faz distinção entre os prazeres, tal como o exige a ética epicurista. A ataraxia não é um estado de abstenção de prazeres, mas a realização da forma de prazer mais pleno, qual seja, a da ausência de dor e perturbação.
[20] SCHOPENHAUER, Arthur. Op.cit., p. 85.
[21] Apesar de anacrônico, no contexto de nossa discussão, o conceito de corporeidade, tal como concebido por Merleau-Ponty (1999), parece servir bem para descrever o corpo no epicurismo, isto é, corpo como uma estrutura experiencial vivida, ou o corpo como constituído de estruturas físicas e experienciais vividas. “A corporeidade do vivido” indica que nossa relação com o mundo é primeira e fundamentalmente relação que se estabelece com o corpo, que, à luz dessa perspectiva, é um agregado de aspectos físicos, psicológicos e espirituais. O prazer e o sofrimento são, essencialmente, afecções que compreendem a estrutura experiencial do corpo.
[22] O problema com os prazeres cinéticos ou em movimento é que eles jamais se perfazem e sua busca depende da satisfação temporária de desejos que são, por natureza, insaciáveis. Por isso, embora possam ser bons em si mesmos, tais prazeres não garantem a ataraxia, estado permanente e feliz ao qual a ética epicurista pretende conduzir o homem. 

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Quando meus olhos fitaram os seus...

                      



                                              Um olhar
           Texto escrito num dia qualquer do ano de 2011

Um olhar, apenas. Mas um olhar cobiçoso, sedutor. Um olhar demorado, se bem que desviado para uma folha de papel. Logo, ele tornava. E era eu o alvo desse olhar. Esse olhar mirava-me, admirava-me. E eu me sentia irresistivelmente atraído por esse olhar, e eu retribuía o olhar. Um momento trivial da vida. Mas raramente com lirismo percebido...
Hoje em dia, dispensam-se os olhares; parte-se logo para beijos e colisões de corpos. Flertar é comportamento antiquado. O pessoal hoje fica. Não é que esse olhar me revelasse as regiões abissais e inebriantes da paixão ou os jardins floridos do amor. Não. Foi apenas um olhar.
Claro que não me basta o manter-se no nível do invólucro, da superfície corpórea; é preciso atingir as profundezas da alma. Mas foi apenas um olhar. De qualquer modo, o caminho para a alma passa pelo corpo, pelos gestos, pela voz, pelo olhar, pelo comportamento.
Então, fiquemos apenas com o olhar. Nada mais. Ainda que um olhar instantâneo, se bem que eu tenha sido alvo dele em outra ocasião. Nada muito significativo. Mas ontem, não. Ontem, esse olhar ficou, por algum momento, estacionado no meu. Senti-me inundado dele. Minha reação? A típica: olhei timidamente entusiasmado. Minha timidez impedia-me de dar um passo adiante. Ousar. Eu sei... não sei como agir nessas circunstâncias. Só sei agir depois, quando converso. Até dizer a primeira palavra, fico como eu estava: parado, apenas retribuindo o olhar. E ela me olhava e eu a olhava, e desviava o olhar e eu fazia o mesmo; em certo momento, ela desviou o seu e o meu ficou à deriva, sem terra firme onde se ancorar. E eu ainda a olhava e pensava: “e se...
Por que escrever sobre esse olhar? É que alguns olhares passaram por mim ao longo dos anos e eu não os notei (não os desnudei). E quem poderia garantir que em um deles não estivesse a satisfação de prazeres delicados? E quem poderia negar que um deles pudesse reservar-me a inspiração para compor novas páginas?
 Colher o dia, colher um olhar. Inspirar-se, animar-se, viver o instante, mesmo que ele não revele mais do que ele mesmo: uma presença que vivemos. Aquele olhar só me revelava o instante, apenas o instante irreproduzível; nele, não havia o futuro, nem ideais, nem projeções de um amor venturoso, nem projetos. Não havia promessas de eternidade, de longevidade, de felicidade abundante. Nele a brevidade bastava e ela encerrava uma única palavra: reciprocidade. Nossos olhares eram recíprocos, mas descompromissados. Aquele olhar trazia inteiro o presente e deixava o futuro suspenso. Nele não havia o futuro, a não-consciência, o não-existente. Nele só havia a vida inteira, só havia a consciência cheia de si. Nele, apenas a existência e toda a sua força libidinal. Mas notem: não era o olhar libidinoso, era a existência (a minha; talvez, a dela) mesma que se manifestava libidinal, ou seja, com toda sua energia para abranger o ser.
Era chegado o tempo de eu fazer minha palestra. Tive de ir... E ela ficou ali... E também ficaram os olhares com as suas hipóteses, com as suas promessas virtuais, com as suas possibilidades... com eles ficaram as dúvidas, os possíveis e os prováveis... A gratuidade do encontro de nossos olhares não resistiu à urgência da rotina e se perdeu no Tempo...
Mas foi apenas um olhar.

(BAR)



sexta-feira, 12 de junho de 2015

"A verdade última é desvelada lentamente por meio do desenrolar evolutivo da história das ideias" (Hegel)

                        
                                            
                                                 


                               A dialética hegeliana
                                e a crítica marxista

Neste texto, tenciono oferecer um recorte da dialética hegeliana, destacando suas propriedades, pressupostos e estrutura. Como seja meu objetivo oferecer um recorte, não estou interessado num exame exaustivo do tema, tampouco descerei a pormenores sobre o sistema hegeliano. A última seção deste texto é dedicada à contribuição da dialética marxista, que deve sua constituição e importância à dialética hegeliana.

1. Introdução

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um filósofo idealista alemão, nascido em Stuttgart, que elaborou um grande sistema metafísico que pretendia dar conta da lacuna entre aparência e realidade, negligenciada pelo idealismo transcendental de Kant. Hegel começa, portanto, de onde Kant parou.
Lembremos que, na metafísica de Kant, visto que a razão impõe certas categorias a priori à experiência, tudo que ela pode obter é um conhecimento sistemático dos fenômenos. A realidade por trás das aparências (do mundo fenomênico), que Kant denominou númeno, permanece incognoscível. Hegel, por seu turno, não aceitou o resultado a que chegou Kant. Para Hegel, é possível atingir a verdade absoluta, a qual se desvela lentamente no desenvolvimento evolutivo da história das ideias. Essa verdade absoluta é conceitual e não proposicional.
Hegel sustentou que a razão opera segundo um princípio fundamental que consiste em considerar falsas as contradições. Quando a razão está em face de uma ideia que envolve uma contradição, ela precisa levar adiante uma nova etapa no desenvolvimento do pensamento. A esse processo Hegel chamou dialética. Antes, porém, de atacarmos o tema da dialética hegeliana, considerem-se alguns aspectos do empreendimento filosófico de Hegel.
 A obra de Hegel é fortemente sistemática. Ela inclui, em um sistema integrado, todos os grandes temas e questões da tradição filosófica: ética, metafísica, filosofia da natureza, filosofia do direito, estética, etc. Para Hegel, atingir o saber absoluto é o objetivo final do desdobramento do espírito. A consciência crítica deve, pois, se auto-refletir, reconstruindo seu processo de formação.
Para Hegel, a reflexão filosófica deve começar pelo exame do processo de formação da consciência. Através da consciência crítica, de nossa situação histórica, podemos entender o próprio processo histórico, as leis da história, seu sentido e sua direção. Explicar a história é explicar o processo de desenvolvimento do Espírito. O Espírito é reflexão. O sujeito da história é o Espírito e seu objeto é também o Espírito. A cultura são as obras do Espírito, as quais, embora apareçam como coisas e fatos, são, na verdade, ideias, já que um Espírito produz ideias e não coisas.
Hegel entendia faltar ao sujeito kantiano uma imersão na história. O desdobramento do Espírito no mundo compõe a história. Hegel rejeita a visão dualista que assenta na oposição entre o fenômeno e o númeno. Nada deveria ficar de fora do escopo da atividade espiritual. Não se pode admitir a existência de algo externo ao Espírito. Hegel, portanto, rechaçou a noção de númeno e reelaborou a noção de fenômeno.
A Fenomenologia do Espírito tem como objetivo traçar a história do espírito humano, a elevação da consciência do conhecimento sensível ao saber absoluto.No Espírito Absoluto, o Espírito percebe-se idêntico a todo ser e qualquer realidade. Ele contempla-se a si mesmo. Fenomenologia, em Hegel, recobre o desenvolvimento do Espírito nas fases de produção do saber.
O espírito subjetivo é o espírito humano encerrado na subjetividade, a psicologia humana. O espírito objetivo exterioriza as categorias subjetivas. Dessa exteriorização resulta o mundo da moral, do direito, da história, da política, etc.
Para Hegel, o progresso da consciência é um produto da evolução histórica, cujo sentido só será conhecido no fim da história pelo filósofo que interioriza esse devir em seu pensamento.
Tudo é da ordem do Espírito: “o real é racional e o racional é real”, o que significa dizer que o real pertence ao domínio do Espírito, e o Espírito é a realidade. O Espírito, na medida em que se põe a conhecer as coisas, está construindo tudo o que existe; e, tomando consciência disso, reconhece-se como construtor de tudo, chegando a identificar-se com o próprio mundo. Esse é o saber absoluto. O saber absoluto é atingido quando o Espírito alcança o saber máximo de si mesmo. O conhecimento absoluto, segundo Hegel, é o “Espírito conhecendo-se a si próprio, sob a forma de Espírito”.
Em filosofia, o idealismo, movimento de que é representante Hegel, funda-se nas seguintes teses:

1a tese: Real é só o que tem um ser independente de qualquer outro;
2a tese: Aparência é  ser que depende de outro ser;
3a tese: Existência é o que pode ser imediatamente apresentado à consciência. Está no tempo e no espaço, se é físico; e , no tempo, se é psíquico;
4a tese: O real é somente o universal;
5a tese: O real não tem existência. O real é o universal e, portanto, um ser lógico;
6a tese: Existência é aparência;
7a tese: O real, sendo universal, é também pensamento, mente, inteligência, razão. Mas essa mente, pensamento, inteligência e razão é objetiva e abstrata; não existe na subjetividade;
8a tese: Este real é o ser último, princípio e fonte de todos os seres, o Absoluto, do qual o universo procede e pelo qual se explica;
9a tese: O real é o primeiro princípio como prioridade lógica e não cronológica.

Por fim, para Hegel, o ser é ser puro, é nenhuma determinação. O ser é idêntico a si mesmo. É imediatez indeterminada. O ser é a indeterminação pura e o vazio puro. O ser é o nada, nem mais nem menos que nada. A Ideia, por seu turno, é uma mente absoluta; é Deus em si mesmo. Essa mente absoluta preexiste ao universo. É Deus antes de se manifestar, aparecer. Sua manifestação é a Natureza, a antítese da Ideia. A Ideia é real, mas não existe. A Ideia precisa manifestar-se como Natureza para ter existência.
No Espírito, a Ideia não será apenas em si, mas também para si. O Homem é o elemento do Espírito; é ele que existe na natureza e, ao mesmo tempo, é um ser espiritual.

2. A lógica na filosofia de Hegel

Antes de nos debruçarmos sobre a dialética de Hegel, é indispensável compreender o que é a lógica para Hegel. Para ele, lógica é ontologia. É a ciência da ideia pura. Seu objeto é o pensar, mas o pensar como expressão da verdade. A lógica é o método próprio da filosofia. Ela não se ocupa de formas vazias, mas de conceitos densos e complexos. A lógica para Hegel é a ciência pura e ela tem como pressuposto a ciência do espírito desvelada, ou seja, a fenomenologia. Esta é responsável pela identidade entre pensar e ser.
A lógica hegeliana é uma lógica dialética alicerçada sobre a negação. A negação é tomada como positiva, no sentido de que ela não redunda numa nulidade, no nada abstrato. Essa negação não é negação absoluta, mas a negação de um conteúdo determinado por meio da afirmação de outro conteúdo determinado. A negação se resolve num resultado. Esse resultado é um conceito, mais rico do que o negado e do que aquele que lhe foi contraposto, visto que ele é a unidade das determinações (síntese) que se acham em um e outro, ou seja, no resultado e no conceito negado.
No início da lógica, o ser e o nada compõem uma unidade dialética. Nessa unidade, está a origem de todo o movimento que progride até seu ponto final, a saber, a Ideia Absoluta. A lógica assume como ponto de partida o puro ser, que é o conceito mais abrangente e mais abstrato, também mais vazio. O ser é completamente indeterminado e coincide com o nada. O ser e o nada é o mesmo. Na origem, a lógica encerra tanto o ser quanto o nada; mas o nada não é puro nada, é uma região do ser, um outro ser, portanto, o nada é.

3. A dialética hegeliana

A dialética de Hegel inicia-se com uma tese, que se toma, inicialmente, por verdadeira. A reflexão revela que há um ponto de vista, com igual pretensão de legitimidade, que se impõe como uma contradição da tese. Essa contradição é a antítese. Esses dois pontos de vista incompatíveis – tese e antítese – produzem uma nova posição conciliatória, chamada síntese. A síntese torna-se, então, tese, em face da qual, mais tarde, aparecerá uma antítese, à qual se seguirá uma nova síntese, e assim sucessivamente.
Esse processo gradual e necessário do pensamento é uma progressão em direção à verdade absoluta; no domínio da realidade, esse processo conduz ao Espírito Absoluto. O processo dialético de Hegel conclui-se com uma grandiosa concepção metafísica da mente universal.
Crítico da separação entre forma e conteúdo operada pela lógica clássica, Hegel defende que não há realidade objetiva independente do pensamento. Acrescenta que o pensamento é a realidade objetiva, e a realidade objetiva é o pensamento. Disso se depreende, com Hegel, que a lógica, sendo o estudo do pensamento, deve ocupar-se da realidade, mas não da realidade do mundo natural. Seu idealismo absoluto assenta na proposição de que a realidade se encontra no pensamento racional. A mente ou o pensamento racional é a realidade última. Portanto, a lógica é o estudo dessa realidade última em sua forma pura, a saber, abstraída das formas particulares que ela assume nas mentes finitas dos seres humanos ou no mundo natural.
Outro postulado do idealismo absoluto hegeliano, que têm importantes consequências para a lógica, consiste na assunção de que a razão molda o mundo, de sorte que o estudo do pensamento racional revelará, forçosamente, os princípios segundo os quais o mundo foi moldado.
A dialética hegeliana se apresenta sob seis formas:

1) dialética do ser: afirma-se a identidade entre o ser e o nada. O ser e o nada é o mesmo. Ser e nada é um;

2) dialética da essência: a essência é o ser enquanto aparecer indeterminado em si mesmo;
3) dialética do conceito: o conceito é a unidade dialética de ser e essência;

4) dialética da relação entre ser, essência e conceito: a essência nega o ser, o qual se torna aparência. O conceito é a negação da primeira negação; nesse sentido, é o ser recuperado, enquanto mediação e negatividade infinitas do mesmo em si próprio.

5) dialética do ser, da essência e do movimento do conceito:  o processo dialético do transformar-se em outro situa-se na esfera do ser e o aparecer em outro é o processo dialético na esfera da essência.O movimento do conceito é desenvolvimento, mediante o qual ele se torna aquilo que já está contido em si próprio.

6) dialética da ideia absoluta: a lógica representa o movimento próprio da ideia absoluta e lhe serve de expressão. A Ideia existe no pensamento puro, no qual a diferença é e permanece completamente transparente. Como expressão, a lógica é exterior à ideia e, por ser exterior, ela desaparece como expressão.

3.1.  A dialética do senhor e do escravo

A dialética serve a Hegel como método pelo qual ele lê e interpreta a história e explica a Modernidade como período em que a Europa conhece o avanço industrial, ao longo do qual se institui o poder republicano. Hegel se notabilizou também como o inventor da dialética e como filósofo que seria tanto influente no desenvolvimento do pensamento de Marx quanto “superado” pelo próprio Marx.
A fenomenologia deve mostrar que o desdobramento das formas da consciência de liberdade redunda no conhecimento real do que verdadeiramente é, ou seja, do Absoluto. A fenomenologia significa o aparecimento do espírito que percorre o mesmo caminho percorrido pela consciência do indivíduo, transitando do orgânico para o cultural. Quando o espírito se determina, surge a consciência de algo, consciência que é relação com algo. No momento em que o indivíduo se torna autoconsciente, toma consciência do outro. Esse momento é ilustrado pela dialética do senhor e do escravo.
O senhor, que dominou o escravo, acaba por se tornar ele mesmo escravo, porquanto, por ter-se acostumado a ser servido, é incapaz de fazer por si mesmo qualquer coisa. O senhor não se realiza como autoconsciente, porque necessita do outro, que é também autoconsciente, e, como o escravo, na relação com o senhor, se reduziu à coisa, a objeto, não é reconhecido pelo senhor como consciência. Hegel acredita que, através do trabalho, o escravo chega a formar consciência de si, tornando-se capaz de atribuir a si mesmo um significado.
Importa entender que a dialética do senhor e do escravo termina em frustração, uma vez que o senhor, tornando o escravo o seu objeto, perde aquilo de que precisa para continuar a se afirmar. Ele não poderia mais afirmar-se diante de um objeto que, como tal, é incapaz de reconhecer essa afirmação. Da perspectiva do escravo, que foi reduzido a objeto, o processo também se frustra; pois, na verdade, ele não se realiza completamente. O escravo sabe não ser completamente um objeto. Conquanto esteja alienado de sua atividade e do produto dela, visto que tudo se destina ao senhor, ele ainda se percebe como um espírito. Ora, é o escravo quem trabalha e quem transforma a natureza.
Para Hegel, liberdade é conhecimento de si pelo Espírito. Liberdade não é possibilidade de fazer o que se quer. A liberdade é liberdade da consciência, do Espírito. E o Espírito é tanto mais livre quanto alcança um alto nível de conhecimento de si. Ele é tanto mais livre quanto mais consciente está do fato de que suas decisões são as que estão em consonância com a razão – que é uma força necessária e universal. A própria consciência se vê como necessária e universal.

3.2. Demonstração do método dialético na história universal

Nesta seção, cumprir-me-á elucidar como o método dialético interpreta a história universal. Na obra Filosofia da História, Hegel demonstra que um imenso movimento dialético domina a história universal desde o mundo grego até o presente.
A Grécia era uma comunidade assentada sobre a moral tradicional; era uma sociedade harmoniosa na qual os cidadãos se identificavam com a comunidade e não pensavam em agir contrariamente a ela. Essa comunidade tradicional constitui o ponto de partida do movimento dialético, a saber, a tese.
O próximo movimento é o da revelação da inadequação da tese. Na Grécia antiga, é o questionamento de Sócrates que põe a nu tal inadequação. Os gregos apreciavam o pensamento independente; todavia, quem pensa de modo independente da comunidade é inimigo mortal da moral tradicional. Doravante, a comunidade baseada no costume entra em crise, em face do princípio do pensamento independente. Não resta senão o desenvolvimento desse princípio, para o que o surgimento do cristianismo foi determinante.
A Reforma acarreta o reconhecimento do direito supremo à consciência individual. A harmonia da sociedade grega é extinta em proveito da liberdade. Esse é o segundo momento do pensamento dialético. É o oposto ou a negação do primeiro. Trata-se da antítese.
Sucede que o segundo momento também se revela inadequado. Afinal, a liberdade é demasiado abstrata e estéril para servir de base para uma sociedade. O exercício dessa liberdade culminaria com o terror da Revolução Francesa. Nem a harmonia tradicional nem a liberdade abstrata do indivíduo são satisfatórias para o bem-estar social. Disso resulta o terceiro momento da dialética, que consiste na síntese.
Na visão de Hegel, em Filosofia da História, a síntese, no movimento dialético total, é a sociedade alemã de sua época. Hegel via essa sociedade como harmoniosa, porque era uma comunidade orgânica, sem deixar de preservar a liberdade individual; e a preservava, porque era uma sociedade que exibia uma organização racional.
Todo movimento dialético termina com uma síntese, mas nem toda síntese representa o fim do movimento dialético, tal como o pretendido por Hegel. A síntese, certamente, reconcilia tese e antítese, mas pode revelar-se unilateral em algum outro aspecto. Por isso, a síntese se tornará tese de um novo movimento dialético.
Cumpre ainda ilustrar o movimento da dialética hegeliana no âmbito do pensamento. Na obra intitulada de Lógica, o método dialético é aplicado às categorias abstratas com as quais pensamos. Hegel principia com o conceito mais indeterminado e vazio: o ser, ou a simples existência. O puro ser carece de objeto que o torne apreensível pelo pensamento. O ser, diz Hegel, é pura indeterminação e vacuidade. É inteiramente vazio. O ser, de fato, não é nada.
A primeira tese é, portanto, o ser. O ser se transforma em sua antítese, que é o nada. O ser e o nada são ambos opostos e o mesmo; sua verdade reside nesse movimento de atração e repulsão entre os dois. Esse movimento é o devir. Acompanhando o que se disse acerca da dialética hegeliana, até aqui, não será custoso concluir que o devir é a síntese.


4. O trabalho dialético: a contribuição marxista

A Hegel devemos a afirmação: “A verdade é o todo”. O que significa dizer que a verdade é o todo? Significa que, se nós não virmos a totalidade, incorreremos no descuido de atribuir um valor exagerado a uma verdade limitada. Isso estorvaria nossa compreensão de uma verdade mais geral.
A dialética marxista está assentada no pressuposto segundo o qual o conhecimento é totalidade; e a atividade humana em geral é um processo de totalização, que jamais atinge uma etapa definitiva.
Embora tenha sido influenciado pela filosofia de Hegel, Marx deve muito aos materialistas Epicuro e Demócrito. O materialismo clássico exerceu uma significativa influência no desenvolvimento de sua crítica ao pensamento de Hegel. Marx se propôs revisar a filosofia idealista de Hegel. Em vez de assumir que o Espírito é responsável pelo mundo, Marx sustentou que o que é determinante de cada época da história são os modos de produção. O modo de produção é a forma como o homem organiza o trabalho. A história, no quadro do materialismo histórico, é estudada tendo em conta a relação do homem com a necessidade de organizar o trabalho.
O modo de produção passa a ocupar o lugar do Espírito. Marx não se ocupou com o desdobramento da filosofia; preferiu mostrar o desenvolvimento da sociedade e da economia. A tese básica do materialismo histórico consiste em que as ideias são produto de mecanismos materiais. As ideias, as concepções, a filosofia, a religião, não passam de manifestações mentais dos homens, ligadas ao modo como eles organizaram a maneira de produzir e reproduzir a sociedade e suas vidas individuais. Marx acreditava que uma vida ética só poderia ser alcançada pela supressão, na vida social, da ideologia.
Volvendo nossa atenção para a contribuição marxista no domínio da dialética, é necessário ter em mente o fato de que o ser humano percebe ou cria objetos que são partes de uma totalidade. Em cada ação levada a efeito, o homem lida, inevitavelmente, com problemas interligados. Por conseguinte, a fim de resolvê-los, ele precisa formar certa visão de conjunto deles: é com base nessa visão de conjunto que podemos avaliar a dimensão de cada elemento do estado-estado-de-coisas sobre o qual nos debruçamos.
É evidente que a visão de conjunto é sempre provisória e nunca pode pretender esgotar a realidade a que se refere. A realidade é sempre mais complexa do que o conhecimento que dela podemos ter. Há sempre alguma coisa que escapa às nossas sínteses.
A síntese é, portanto, a visão de conjunto que permite ao ser humano descobrir a estrutura significativa da realidade com a qual se defronta, numa dada situação. A totalidade é essa estrutura significativa desvelada pela visão de conjunto.
No entanto, a totalidade é mais do que as partes que a compõem. A totalidade tira sua razão de ser do modo como estão articulados os seus elementos. Esse modo de articulação lhes dota de características que não possuiriam isoladamente. Não menos importante é reter que há totalidades mais abrangentes e totalidades menos abrangentes. Estas, evidentemente, integram-se às primeiras.
Do que precede, infere-se que trabalhar dialeticamente com o conceito de totalidade supõe sempre a necessidade de determinação do nível de totalização exigido pelo conjunto de problemas com os quais lidamos. Outrossim, é impreterível não esquecer que a totalidade é apenas um momento de um processo de totalização.
A dialética se define, assim, como uma maneira de pensar que se elabora em função da necessidade de reconhecimento da constante emergência do novo na realidade humana. A dialética nunca pode deixar de rever suas sínteses, sob pena de negar a si mesma.
Sem pretensão à exaustão, cumpre, no entanto, frisar que a modificação do todo é mais complicada que a modificação de cada uma das partes. Cada totalidade muda de um modo que lhe é específico. As condições de mudança variam em consonância com o caráter da totalidade e do processo específico do qual ela é um momento.
Veja-se um exemplo de como podemos operar com totalizações. Se eu estou interessado em estudar a realidade política atual do Brasil, o nível de totalização exigido nessa tarefa implicará a visão de conjunto da sociedade brasileira, à luz da qual se discriminam a sua economia, a sua história e as contradições atuais. Se, por outro lado, estou interessado em aprofundar minha análise, com vistas a compreender a situação do Brasil no âmbito mundial, necessitarei de um nível de totalização mais abrangente. Esse nível deverá encerrar uma visão de conjunto do capitalismo, da sua gênese, da sua evolução, dos seus conflitos no mundo contemporâneo, etc. Do que se expôs, segue-se que o conhecimento, nessa perspectiva dialética marxista, é sempre totalizante e que a atividade humana é um processo de totalização.
A dialética hegeliana (que, em grego, é diálogo, é pensamento e palavra (lógos) divididos em polos contraditórios) trata a história como processo temporal movido internamente por divisões e contradições, cujo sujeito é o Espírito como reflexão. A dialética hegeliana – insistimos – é idealista, porque seu sujeito é o Espírito, e seu objeto também é o Espírito. As obras do Espírito (a cultura),embora apareçam como fatos e coisas, são ideias. Um espírito produz ideias e não coisas.
O idealismo hegeliano assenta na proposição segundo a qual a história é o movimento de oposição, negação e conservação das ideias, e essas ideias são a unidade do sujeito e do objeto da história, que é o Espírito.

Marx, posto que conserve o conceito de dialética como movimento interno de produção da realidade, cujo motor é a contradição, legado por Hegel, demonstra que a contradição não é a do Espírito consigo,não é a de sua face subjetiva com sua face objetiva, não é a de sua exteriorização em obras e sua interiorização em ideias. Para Marx, a contradição se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais e essa contradição chama-se luta de classes.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Deflacionismo e modalização

                                Resultado de imagem para Lógica




                                          A Sophia linguística
                               Pela necessidade de ruptura com o senso comum


1. Um breve recorte histórico

Embora sob o domínio das especulações filosóficas por mais de dois mil anos, as questões linguísticas passaram a fazer parte, pelo menos com a publicação da obra Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure, em 1916, da alçada da Linguística, que então, na letra de seu próprio pai, deveria ser uma ciência autônoma. É bem verdade que a Linguística, enquanto ciência, já existia a partir  dos últimos anos do século XVIII e que o impacto da publicação do Curso de Saussure só se deu no fim da década de 1920. Também é verdade que a Linguística moderna, cujo pai é considerado Saussure, não seguiu, com fidelidade, os passos determinados por seu fundador, para o qual o objeto de estudo desta ciência deveria ser a Langue, ou seja, a língua tomada em si e por si mesma (e isso tem mais que ver com seu desenvolvimento revisionista-crítico do que com uma mera infidelidade às teses saussurianas). Quero dizer que, ao longo das décadas, ficou claro aos linguistas que a língua não se reduzia a um sistema de signos autônomo, que seu estudo, caso pretendesse fornecer um modelo descritivo adequado da realidade linguística,  deveria contemplar fatores de ordem social que influenciam o uso da língua.
A Linguística é, hoje, reconhecidamente uma ciência, que dispõe de um objeto e métodos próprios. Nas décadas seguintes – no Brasil, especialmente as de 1960 e 1970 – à publicação do Curso, os modelos formalistas (estruturalismo e gerativismo) se tornaram os modelos hegemônicos. Em comum, têm eles o interesse pela forma da língua, a saber, por sua estrutura, sem qualquer consideração de variáveis sociais que influenciam o uso que os falantes fazem da língua. Na década de 1970, nos Estados Unidos e na Europa, linguistas houve que reatualizaram princípios funcionalistas, que já encontravam repercussão em trabalhos de linguistas anteriores a Saussure – trabalhos produzidos no final do século XIX.  As teorias funcionalistas trouxeram em seu bojo o interesse fundamental não mais pela forma dos enunciados, mas pelas funções a que serve o uso da língua. Embora diversas, as teorias funcionalistas estão de acordo no tocante à primazia da função sobre a forma: o uso da língua influencia a forma assumida pelos enunciados – eis o postulado central do funcionalismo. Os modelos funcionalistas inscreveram a dimensão social da linguagem no horizonte de interesse dos estudos linguísticos. O uso da língua, que é o verdadeiro escopo de investigação dos modelos funcionalistas, é de natureza fundamentalmente social. Mas o uso da língua não só exibe uma face social; exibe também aspectos cognitivos. Foi então que década de 1980 conheceu a chamada virada cognitivista nos estudos linguísticos. Toda ação, inclusive as ações linguísticas (estas objeto de estudo da Pragmática), é acompanhada de processos cognitivos. Não tardou para que se eliminasse a separação clássica entre processos de ordem cognitiva e fenômenos sociais, ou seja, entre o que acontece no interior da mente dos usuários da língua e o que acontece no exterior dela. Com base no postulado segundo o qual a cognição é produto das nossas ações e de nossas atividades sensório-motoras, surgiu a perspectiva sociocognitivista-interacionista, então preocupada em compreender como os processos cognitivos acontecem em sociedade, e não somente nos indivíduos. Essa perspectiva incorpora aspectos sociais, culturais e interacionais à compreensão daqueles processos.
Como se vê, a Linguística, hoje, é uma ciência pluridisciplinar, estando em constante diálogo com disciplinas tais, como a sociologia (sociolinguística), a psicologia (psicolinguística), a História, a Psicanálise (as Análises do Discurso) e a própria Filosofia. A interdisciplinaridade que atravessa o campo da Linguística é, em última instância, uma consequência da natureza do próprio objeto de estudo dessa ciência: a língua, que se revelou aos estudiosos como uma realidade heterogênea e heteróclita. Língua é, fundamentalmente, uma prática social, uma atividade intersubjetiva, uma realidade sócio-histórica. A língua só existe no uso, nas práticas linguajeiras de que participam sujeitos históricos.

2. O Deflacionismo e sua questão linguística

Mesmo consciente de que não se pode esperar que todos os filósofos profissionais ou estudantes de filosofia manifestem adequado domínio teórico na exposição de suas intuições linguísticas costumeiras, é lícito deles exigir o cuidado no emprego que fazem de certas noções com vistas a expressar aquelas intuições. Esse cuidado se expressa numa preocupação com a exatidão na definição do significado dos termos empregados. Um caso ilustrativo disso é o uso da noção de “ênfase” para explicar a ocorrência de construções como “é verdade que”, em enunciados como (a) É verdade que dois mais dois são quatro. É sinal de prática teórica ingênua o explicar o uso de “é verdade que” como uma marca de ênfase, como se, na falta de uma compreensão melhor desse uso, se pudesse dizer acertadamente que essa expressão é um recurso de que se vale o falante para marcar ênfase. Tal modo de proceder metalinguisticamente acaba por converter a noção de “ênfase” numa espécie de dispositivo ad hoc, além de ignorar o fato de que se pode marcar a ênfase por meio de atividades epilinguísticas (quando o produtor do texto opera conscientemente ajustes em seu texto a fim de melhor expressar as possibilidades de sentido: p. ex., o uso repetido de “tudo”, em “Coma tudo, tudo, tudo!”, marca ênfase, se comparado com a forma do enunciado correlato “Coma tudo”.), ou por meio de recursos supra-segmentais, como entonação, altura da voz ( p. ex.: na pronúncia do “NÃO”, em “NÃO quero!”).
Concentremo-nos, doravante, na questão linguística prevista na posição do deflacionismo, a fim de esclarecê-la sem recorrer a explicações simplistas que apelam para a noção de ênfase. Começo por esclarecer o que sustenta o deflacionismo.
Em epistemologia, o deflacionismo mantém que a verdade não é uma propriedade substancial da proposição. O deflacionismo pretende dessubstantivar a verdade. Em última instância, pode-se dizer que o deflacionista dessencializa a verdade, destitui-a de qualquer carga metafísica. O filósofo deflacionista sustenta que a verdade não é, absolutamente, um predicado, não é uma propriedade “real”. A verdade é redundante, porque o que se fala sobre a verdade é algo puramente formal.
Vejamos como o deflacionista defende sua posição. Ele diz que, numa proposição como (b),
(b) É verdadeiro que dois mais dois são quatro.

a expressão em itálico “é verdadeiro” não constitui um predicado substancial da proposição. Ela figura no enunciado por razões pragmáticas, performáticas, subjacentes ao uso da linguagem. Cabe esclarecer, portanto, o que significa dizer que a expressão “é verdade” deve sua ocorrência a fatores pragmáticos.
À luz de uma abordagem pragmática da língua, ou seja, uma abordagem que leve em conta o uso da língua e, portanto, os usuários da língua, seus propósitos sociocomunicativos, e o próprio contexto comunicativo, observa-se que o falante que produz “é verdadeiro que”, ou “é verdade que” marca, em seu enunciado, uma atitude epistêmica, que se expressa na forma de adesão ao conteúdo do enunciado. Essa adesão a, ou comprometimento com, engajamento com o conteúdo do enunciado tem um evidente efeito argumentativo. Portanto, do ponto de vista argumentativo, o falante, ao usar “é verdadeiro/ verdade que p”, está marcando seu comprometimento, seu engajamento com certa orientação argumentativa na produção de seu próprio discurso. É claro que esse engajamento só pode ser descrito quando consideramos o enunciado como parte de uma totalidade discursiva e não isoladamente. Tome-se, portanto, o seguinte evento interacional, no qual dialogam os interlocutores A e B:

A – Pedro disse que a irmã dele não estava em casa ontem. Mas acho que ele não disse a verdade.
B – Não sei se você foi até à casa dele para verificar, mas é verdade que ela ia sair ontem.

Note-se que o falante B, ao usar o marcador “é verdade que”, compromete-se com o conteúdo do que enuncia, dá, por assim dizer, “a cara a tapa”. Esse comprometimento se expressa também em relação à orientação argumentativa assumida por seu discurso, pois que B procura argumentar contrariamente à suspeita levantada pelo falante A. Este lança dúvida sobre à confiabilidade do que disse Pedro (“talvez ele não tenha dito a verdade”), mas B argumenta que A pode estar equivocado ao levantar desconfiança contra Pedro, porque “é verdade que ela ia sair”. Em outros termos, B assegura que está de posse do conhecimento de que Lúcia poderia não estar em casa, pois ia sair. É claro que, na prática linguística, os usuários da língua não atuam e nem sempre estão interessados em assegurar-se das fontes de seus conhecimentos sobre as ocorrências do mundo. Para o analista da linguagem, não está em questão determinar se B está justificado para dizer “é verdade que ela ia sair”, mas sim reconhecer que quem diz “é verdade que...” está se comprometendo com uma posição argumentativa, está manifestando sua completa adesão ao conteúdo comunicado. Isso tem consequências sociointeracionais. A teoria das faces verá no uso de “é verdade que” um recurso que expõe à ameaça a face positiva do próprio falante. Ou seja, quem diz “é verdade que” põe em risco sua imagem sociocultural positiva, pois que assume dispor de uma fonte de conhecimento que, se, posteriormente, verificar-se não ser uma fonte de saber, pode atrair para si alguma forma de depreciação social. Ele pode passar-se por mentiroso, malicioso, enganador, etc. É claro que o falante pode se defender contra uma suposta acusação de insinceridade. Suponhamos que A saiba que Lúcia não saiu, mas estava em casa, na cama com muita febre. Se A acusasse B de mentiroso porque disse, com alto grau de confiabilidade, que Lúcia ia sair, B pode defender-se dizendo que ele se comprometeu com a possibilidade de Lúcia sair, mas não com o fato de ela ter saído. Ora, B ouviu dizer (suponhamos da própria Lúcia) que no dia em questão Lúcia pretendia sair. Assim, B marcou sua adesão ao conteúdo do seu enunciado, que expressava um saber de que ele, B, dispunha.
Em suma, do ponto de vista pragmático, expressões como “é verdade que” não marcam ênfase. São, na verdade, modalizadores epistêmicos, pois que marcam uma adesão do falante ao conteúdo do seu enunciado em termos de um saber disponível. Assim, a diferença entre “eu sei que” e “eu acredito que” é de grau de modalização. Quem diz “eu sei que p” afirma um grau de adesão maior ao conteúdo do enunciado, afirma estar de posse de um saber do qual a proposição subsequente à conjunção “que” é expressão. Quem, por outro lado, diz “eu creio que”, marca um grau de adesão mais frouxo. Lembro que usamos “eu creio que” para marcar nossa expectativa ou desejo de que se realize o estado-de-coisas descrito na oração completiva. Por exemplo, quem diz “eu creio que o Brasil será campeão da Copa América”, expressa uma expectativa, uma confiança em que o estado-de-coisas descrito será realmente o caso.
Argumentativamente, modalizar enunciados é uma prática extremamente desejável e eficaz para que atinjamos os objetivos perseguidos. Sempre que não dispomos de evidências suficientes para fundamentar um saber, convém lançar mão de expressões do tipo “talvez”, “é provável que”, “parece que”, etc.  Modalizar  enunciados é um bom expediente para que nos protejamos dos ataques de nossos interlocutores; é um recurso de que dispomos para proteger nossas faces e as faces de nosso interlocutor. Imagine-se que num debate filosófico A sustente (c):

(c) A - É certo que Nietzsche foi um metafísico.

Mas B, discordando, afirme (d):

(d) B – Não é verdade que Nietzsche foi um metafísico.

A questão de ter sido Nietzsche um metafísico ou um antimetafísico é discutível na filosofia. E argumentos favoráveis a uma e outra tese podem ser sustentados e encontrar apoio entre os especialistas. O que interessa é notar o seguinte: por um lado, o valor de verdade da proposição “Nietzsche foi um (anti)metafísico” é dependente de disputas interpretativas autorizadas pela própria obra nietzschiana ( uma e outra interpretação pode ser autorizada pela obra do filósofo); por outro lado, os defensores de cada uma das posições marcam uma forte adesão ao conteúdo de seus enunciados, isto é, uma forte adesão à orientação argumentativa conferida ao seu discurso.
Certamente (note-se o uso desta forma modalizadora!), o uso da construção “é verdade que” (ou “é verdadeiro que”) tem um efeito de sentido que não se pode ignorar. Certamente, essa construção cumpre uma função discursiva; mas, para o deflacionista, não há uma diferença substancial epistemológica entre dizer “é verdade que p” e, simplesmente, “p” (p. ex. dois mais dois são quatro).

Para o deflacionista, portanto, afirmar p é afirmar que p é verdadeiro, e que se crê que p; e crer que p é crer que p é verdadeiro. É também crer que temos razões para crer em p (ou seja, estamos justificados para p).

sábado, 16 de maio de 2015

"(...) é preciso necessariamente concluir, de tudo o que disse antes, que Deus existe: pois ainda que a ideia de substância esteja em mim por ser eu mesmo uma substância, eu não teria, porém, a ideia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não houvesse sido posta em mim por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita" (Descartes)

                           
                    


                              O Deus cartesiano
                         No caminho da autonomia secularizadora



Introdução

Atendo-se à Revelação, o teólogo do século II, Orígenes, preconizava que o mundo foi criado por Deus, ou melhor, pelo Lógos. Para a filosofia cristã, Deus é o ser verdadeiro que, segundo Clemente de Alexandria, teria sido entrevisto por Platão. Santo Agostinho, o maior pensador da Antiguidade posterior cristã, pensava Deus como a Verdade e a Luz Imutável, a cuja busca consagrou grande parte de sua vida, após a conversão ao cristianismo. Para Agostinho, todas as coisas foram criadas por Deus e constituem elas reflexos da sabedoria divina.
Em linhas gerais, a doutrina de Deus da filosofia cristã pode ser descrita como se segue:

1) O Novo Testamento adotou completamente a fé no Deus do Antigo Testamento, de sorte que, para os cristãos, Deus é o fundamento absoluto do Ser. Ao mesmo tempo, é também o Deus vivo e pessoal, livre e onipotente da criação, da revelação e da salvação. Esse Deus é infinitamente superior ao mundo e incognoscível, muito embora seja tão próximo e familiar que torna possível ao homem estabelecer uma relação íntima e pessoal com ele. É assim que o homem se aproxima de Deus, reconhecendo-o e percebendo-o.

2) Há duas novidades que merecem destaque na concepção cristã de Deus. A primeira diz respeito à crença em que Deus atua não só na história do povo de Israel, mas também na história de toda a humanidade. O cristianismo enfatizou a universalidade da ação salvífica de Deus, que transforma a história humana numa história sagrada. A segunda novidade consiste na afirmação de que Deus é amor. Acresce-se a isso a convicção de que Deus é Pai, Pai de amor, que se comisera dos homens, que põe sua onipotência a serviço do amor, dando testemunho desse amor na pessoa de Jesus Cristo, o qual é concebido como o próprio Deus que se fez carne para salvar a humanidade de seus pecados.

3) Finalmente, a compreensão cristã de Deus abriga a natureza trina de Deus: Pai, Filho e Espírito. Essa doutrina, ainda que contida nas epístolas paulinas e no Evangelho de Mateus (28:19), só viria a consagrar-se como conteúdo de fé nos concílios da Igreja dos séculos IV e VI, após árduos conflitos. A doutrina da Trindade, como ficou conhecida, não se limitando ao pensamento teológico, penetrou o pensamento filosófico até a Idade Moderna. Essa doutrina não obnubila a natureza una de Deus. O Deus único vive na trindade de pessoas e sua unidade encerra, originalmente, a multiplicidade. Um mundo plural de coisas finitas só poderia provir de um Deus que encerra em si uma multiplicidade. É porque Deus é a plenitude infinita do Ser, da vida, inclusive da vida espiritual-pessoal, e do amor, que ele se basta a si mesmo. Para ser Deus, ele não necessita do mundo nem dos homens.

Conquanto se admita que a antropologia cartesiana tem raízes em Agostinho, o Deus de Descartes é distinto do Deus de Santo Agostinho (e poderíamos dizer de grande parte dos autores cristãos da tradição). Duas são as questões que me ocuparão, portanto: qual é a natureza do Deus cartesiano? e qual estatuto tem esse Deus em sua antropologia?


2. A verdade eterna: o cogito agostiniano

Intentando responder aos céticos, para os quais a verdade incondicionalmente válida parece inalcançável, Santo Agostinho sustentará que encontramos a verdade em nós mesmos. Para demonstrá-lo, ele nos faz ver que quem duvida sabe que duvida, sabe que esse saber é verdadeiro e tem certeza disso. Há, pois, um saber na dúvida, um saber que não é elidido pela dúvida. Mesmo duvidando, sei que duvido, que penso, que vivo e procuro a verdade segura. Ora, vê-se que Agostinho, antes mesmo de Descartes, chegou à certeza imediata do ato espiritual da reflexão existente por si (Posto que me engane, sou).
Não devemos daí concluir que o cogito cartesiano resulte de mera apropriação do cogito agostiniano. O cogito cartesiano inscreve-se num horizonte hermenêutico outro e específico. Convém, no entanto, deter-nos um pouco mais em Agostinho, antes de contemplar o cogito cartesiano.
Se encontramos a verdade em nós mesmos, então não só encontramos o saber sobre nós mesmos, mas também o saber sobre a verdade geral e necessariamente válida. Encontramos não só verdades contingentes factuais, mas também verdades necessárias da razão, leis do pensamento e do ser, que, estando em nosso pensamento, fornecem-lhe as normas. Agostinho retoma isso especialmente de Platão. O que é propriamente verdadeiro, para Agostinho, não é o fato singular na transitoriedade dos acontecimentos, mas a verdade eterna. Essa verdade eterna é imutável. Donde provêm, pergunta Agostinho, as “verdades eternas”, como as das leis lógicas, matemáticas, éticas e metafísicas? Não poderiam elas provir da experiência sensível, porquanto a experiência sensível é mutável. Há normas, em que se funda nossa experiência, que não poderiam provir dos sentidos. Assim, por exemplo, podemos apreender a ideia de unidade, mas não podemos tirá-la da multiplicidade das impressões sensíveis; essa ideia é anterior a estas impressões. A unidade é uma verdade eterna que governa nosso pensamento. Seria o nosso pensamento a origem dessa ideia? Agostinho dirá que não, pois também nosso pensamento está em constante mudança. Seguindo, em parte, Platão, Agostinho assumirá que há ideias eternas que constituem condições normativas anteriores ao pensamento. Mas, ao contrário de Platão, tais ideias eternas não subsistem por si mesmas, mas demandam um fundamento incondicionado e imutável de sua validade. Tal fundamento Agostinho identifica com Deus, “a verdade eterna mesma”. As ideias eternas são ideias no pensamento de Deus.
Uma primeira distinção entre o cogito agostiniano e o cartesiano deve ser já salientada: em Agostinho, o saber sobre o próprio pensar prende-se à experiência viva de si mesmo. Na medida em que penso e vivo, que penso na vida concreta, é que sei e tenho certeza de mim mesmo. Sucede diferente com Descartes, em cuja filosofia o ego cogitans (eu pensante) é um sujeito puro que, sem mundo e incorpóreo (aparentemente), se contrapõe à objetividade.


3. O cogito cartesiano

Não sem razão Descartes é apontado como o pensador que marca a etapa antropocêntrica da filosofia ocidental. Descartes é quem marca filosoficamente a passagem do Medievo para a Modernidade. Ele foi, por um lado, o último medieval; e, por outro, o primeiro “moderno”. Tendo-se dissipado a certeza produzida pela hermenêutica cristã, coube a Descartes restituir os fundamentos da construção do cogito. Descartes trouxe-nos de volta à consciência a finitude e a contingência humanas, exatamente no momento em que se esvaiu a certeza oferecida pela fé cristã. Sua antropologia é devedora da filosofia agostiniana: também Descartes enfatizou a relação entre conhecimento e vontade, mas o fez sem o fundo cristão que sustentou a visão harmônica da época de Agostinho. Com Descartes, põe-se em primeiro plano a problemática do conhecer e as aporias da metafísica da subjetividade. Seu interesse consiste em assegurar-se do eu (quem sou e como conheço) antes de propor o modo pelo qual se pode chegar ao mundo e a Deus. Descartes supõe a existência de um sujeito emancipado de uma ordem objetiva e da ordem cósmica. Abre caminho para a liberdade e para o afastamento do determinismo. Em cena, irrompe o eu autônomo e conquistador que pretende assegurar-se de si mesmo e encontrar um lugar seguro onde possa restabelecer sua relação com Deus e com o mundo.
O cogito ergo sum desembocará num solipsismo monista: afirma-se um eu desmundanizado e contraposto ao mundo empírico. Descartes parte do eu como evidência ôntica. Esse eu adquire consciência de si por auto-reflexão. O cogito cartesiano é puro, é o da consciência humana, transcendente à experiência de um eu empírico; é um eu solipsista que não se reconhece como parte de um nós nem como enraizado na tradição.
Com a hipótese do gênio maligno, ou seja, de um Deus que possa nos enganar, Descartes deixou entrever o abandono da confiança medieval em um Deus responsável pela verdade e o fundamento do ser, como também afirmou uma postura radical de autonomia secularizadora. A partir de então, deve-se assegurar da veracidade do próprio Deus. A hipótese do gênio maligno, inspirada em Ockham, põe em xeque a veracidade de Deus como o que torna possível ao entendimento humano atingir a verdade. Em contrapartida, mantém-se a consciência certa do eu, a partir da auto-reflexão do cogito. Duvida-se de tudo, mas nunca de si (porque Deus, sendo infinitamente bom, não pode fazer com que eu duvide de minha existência pensante). É importante reter que não é mais Deus a garantia última da verdade, mas o eu auto-suficiente que se fia das ideias claras e distintas.
Descartes não fez senão lançar as bases da crítica religiosa posterior, reivindicando a autonomia do cogito face à heteronomia do homem religioso que confia em Deus. Assim, se preparou o terreno para Voltaire, o qual estendeu a dúvida à justiça de Deus (o problema da teodiceia). A isso acresça-se que, submetendo ao crivo racional a afirmação de Deus e à busca por certezas sólidas, Descartes pavimenta o caminho que trilharia Feuerbach para contestar a existência e a essência de Deus.
É preciso enfatizar, no entanto, que Descartes não era ateu, tampouco duvidava da existência de Deus. O seu Deus, no entanto, não é um Deus a quem se devem dirigir orações. Deus é necessário ao pensamento; é uma ideia inata no homem, o qual tem em Deus seu fundamento último. Nesse sentido, Descartes continua a tradição do argumento ontológico. Se é verdade que a reflexividade interiorizante encontra no cogito seu fundamento último, não deixa de descobrir a necessidade de Deus que é o substrato ontológico que provoca no homem a ideia de Deus. Descartes não chega a levar a efeito a dúvida radical. Por outro lado, Deus é quem garante a veracidade do homem e, em última instância, é responsável por estabelecer a relação entre o homem e o mundo.
É chegado o momento em que o estatuto de Deus se esclarece: o postulado de Deus, na antropologia cartesiana, torna possível estabelecer a correlação do cogito com a realidade. Afinal, Deus é o ser perfeito que não pode nos enganar. Trata-se de um Deus a que Descartes recorre pela necessidade de explicar o homem. Sem Deus, não se pode afirmar absolutamente a verdade. É verdade, por outro lado, que Descartes reconhece a finitude do cogito que não pode ser a origem das ideias do infinito e da contingência, a qual não permite que se alcancem as certezas absolutas. Ao mesmo tempo, conserva o ideal de chegar a essas certezas e afirma o eu como fundamento absoluto e indubitável.
Quando ponderamos sobre a autonomia do cogito cartesiano, tendo em conta a postulação de Deus, notamos que ela sofre um abalo: pois o cogito precisa assumir a ideia de Deus como colocada em si mesmo pelo próprio Deus, a fim de assegurar-se de si mesmo enquanto cogito. O sujeito está, portanto, constituído por uma ideia que ele mesmo não produziu - circunstância esta que faz eco ao pensamento de Agostinho e de Anselmo.
Se, por um lado, Descartes assume Deus como fundamento da confiança na razão humana; por outro lado, fornece uma imagem humana de Deus, para, em seguida, postulá-lo como fundamento das elaborações do cogito. Em certa medida, Deus só é, enquanto eu tenho a ideia de Deus; mas a ideia de sua perfeição e onipotência é que garante a existência de Deus fora de meu pensamento.
Em Descartes, pode-se dizer que parece subsistir muito pouco do Deus bíblico criador, Pai do amor e de infinita benevolência; se há algo dele, não é mais que uma imagem pálida de sua transcendência. O Deus cartesiano é um Deus do pensamento, um Deus que é postulado pela racionalidade, a fim de assegurar a certeza do eu pensante e da existência do mundo.