domingo, 3 de maio de 2020

"A vida do insensato é ingrata, encontra-se em constante agitação e está sempre dirigida para o futuro" (Epicuro)


007 – Filosofia como modo de vida, com Eduardo Ferraz Franco ...



A morte não é nada para nós
Meditações sobre a morte a partir de Epicuro



1. Primeiras palavras

“A morte – escreveu Schopenhauer – é o gênio inspirador, a musa da filosofia...  Sem ela, dificilmente ter-se-ia filosofado”[1]. Mas Schopenhauer não faz senão ecoar uma máxima enunciada pela voz de Sócrates há cerca de 2.500 anos, ao ensinar que a filosofia é um exercício de preparação para a morte. Para os gregos, portanto, aprender a morrer é aprender a viver. Ao contrário de seu discípulo Platão, Sócrates, no âmbito da razão, não dispunha dos meios necessários para demonstrar a imortalidade da alma, porque carecia das categorias metafísicas indispensáveis para tanto. Mas, mesmo em face da morte, mesmo estando o homem na ignorância acerca de sua sorte depois da morte, Sócrates ensinou ser possível a ele a felicidade e a total autonomia da vida virtuosa. Ao homem virtuoso mal algum pode lhe suceder, uma vez que a virtude –que, para Sócrates, é ciência, conhecimento – é a radical defesa contra todo mal. Assumindo que a psykhé (lat. anima), a alma, é a essência do homem, Sócrates advogou que o bem viver consiste no domínio de si nos estados de prazer e dor. A isso Sócrates chamou enkráteia. Caberia a alma (psykhé) tornar-se senhora dos instintos, das necessidades da animalidade em nós. Enkráteia é, assim, liberdade (eleuthería), ou seja, domínio da razão sobre os instintos animais em nós. Juntamente com a enkráteia, a vida virtuosa depende do exercício da autarquia, a saber, a independência das necessidades animais, instintivas. A autarquia é a autonomia da virtude e do homem virtuoso, a autossuficiência do lógos (a razão) humano. Em suma, virtude, para Sócrates, é ciência: não é possível fazer o bem sem conhecê-lo. O conhecimento do bem, para Sócrates, não só é condição necessária, mas também suficiente para ser virtuoso. Portanto, para Sócrates, na impossibilidade de determinar racionalmente o que é a morte, deve a filosofia ser “a arte de viver”, ou seja, uma sabedoria prática destinada a tornar o homem virtuoso e feliz, a despeito do fato de ser a morte seu destino último inevitável.
Pretendo, neste texto, discutir a tentativa epicurista de liberar o homem do terror da morte, partindo do seguinte alvitre que Reale faz acerca do problema da morte como problema eminentemente filosófico. Pondera Reale o seguinte:

“(...) é justo reconhecer que nenhuma filosofia, e não só a epicurista, jamais soube responder, no nível do puro lógos, aos problemas da morte e do mal, porque morte e mal são o irracional, que a razão – sozinha – pode, no máximo, esconder, calar ou negar, mas não penetrar e explicar”. (Reale, 2011, p. 255).

Assumindo, com Reale, que nenhuma filosofia conseguiu responder de modo satisfatório ao problema da morte, isto é, nenhuma filosofia conseguiu libertar totalmente o homem dos terrores da morte, procurarei examinar a resposta epicurista, dando a conhecer os pontos que restam insolúveis.



2. Helenismo: contexto sócio-histórico


A helenização cultural de Roma ocorreu entre 167 e 146 a.C., período em que Roma destrói Catargo e domina a Grécia, com a tomada de Corinto. O domínio de Roma durou 23 séculos. O helenismo recobre o período que se estende do império helenístico de Alexandre a Roma republicana e imperial, contra a qual se formaram continuamente ligas de cidades gregas fiéis à Macedônia que lutavam sem cessar. Desde o início da dominação, em 167 a.C., até a derrota final, entre 90 e 82 a.C., vicejaram as escolas do epicurismo, ceticismo e estoicismo.
Consoante ensina Reale (2011, p. 11), “os filósofos da era helenística são substancialmente moralistas, grandes moralistas; são pregadores de um credo ético, são, a seu modo, apóstolos e missionários”. Pode-se, assim, discriminar os seguintes temas recorrentes no pensamento grego a partir de Sócrates até o helenismo greco-romano:
1) a ideia de que a felicidade se encontra na alma; portanto, no exercício do pensamento;
2) a relação entre corpo e alma;
3) a noção de que do conhecimento e da sabedoria deriva a virtude;
4) a ideia de que a felicidade nasce da virtude, entendida como moderação das paixões;
5) a afirmação do caráter cívico da felicidade, pois ela é inseparável da noção de justiça, que, por sua vez, é produto da virtude e da sabedoria.



2.1 Epicurismo


A primeira das grandes escolas helenísticas surgiu em Atenas nos fins do século IV a.C. O epicurismo recebe esse nome de seu fundador Epicuro. Muito embora a primeira escola já existisse, em sua forma embrionária, há alguns anos antes, visto que Epicuro ensinou em Colofônia, em Mitilene e em Lâmpsaco, a transferência da escola para Atenas (que ainda era a capital da cultura Hélade) marcou o seu ingresso efetivo na vida espiritual da grecidade.
Nascido em Samos ou em Atenas, durante a primeira Olimpíada 109, ou seja, em 341 a.C., Epicuro (341-270 a.C.) já se aproximara da filosofia antes de vir a Atenas, quando contava 18 anos. Foi graças ao seu encontro com Nausífanes, um filósofo atomista, que Epicuro tomou contato com o pensamento do também atomista Demócrito. Epicuro era um homem culto, conhecia os desdobramentos históricos do pensamento grego. Sua filosofia estribou-se sobre o atomismo de Leucipo e Demócrito; mas só chegou a desenvolver o materialismo atomista, depois que este tinha sido alvo das críticas dos idealistas clássicos. Epicuro se viu, por isso, obrigado a revisar as posições dos atomistas que o precederam à luz de tais críticas e em consonância com as mudanças que aconteceram na vida grega durante a sua carreira.
A concepção da phýsis proposta por Epicuro coincide com um materialismo baseado na negação clara e explícita do suprassensível, do incorpóreo e do imaterial. Epicuro é, de certo modo, o primeiro materialista da história do pensamento ocidental a formular de modo teoricamente consciente o próprio materialismo. O materialismo, para ser considerado como tal, deve negar abertamente a existência de outra realidade além da matéria.
Antes de dar a saber os elementos fundamentais do materialismo epicurista, convém salientar que a filosofia ética de Epicuro inspira-se na ética socrática. Na verdade, uma das características da filosofia da era helenística é o retorno a Sócrates e ao socratismo (Reale, 2011.). Em Epicuro, isso é bastante evidente não só na primazia dada por ele aos problemas éticos em geral, mas também na própria concepção da filosofia como uma terapêutica da alma. É certo que a ética epicurista é uma terapêutica, já que se baseia no cálculo dos prazeres mediante o raciocínio vigilante, que visa a afastar os impulsos instintivos e determinar o que é preciso evitar, rejeitando as falsas opiniões. A ética epicurista esteia-se no uso regrado dos prazeres, o qual visa a colocar a natureza humana em harmonia com a Natureza, ou seja, com a totalidade ordenada do Cosmos (a Razão Universal). A concepção de filosofia como “arte de viver”, ou seja, como sabedoria prática (phrónesis), é uma herança socrática no pensamento de Epicuro. Epicuro inspirou-se, todavia, mais na letra do que no espírito de Sócrates, ao definir a filosofia como uma ‘terapêutica espiritual’ que cura os males da alma e ao declarar todo o mais como verborragia inútil. Há, de fato, uma diferença clara e fundamental entre a ética epicurista e a ética socrática. A fim de esclarecê-la, devemos começar por reconhecer que a filosofia ética, a partir de Sócrates, fixou definitivamente o objetivo da ética. A ética tem de estabelecer a essência do homem, a sua areté específica e deve exercitá-lo em seu modo de viver para que alcance esse bem que o torna feliz. De Sócrates a Aristóteles, passando por Platão, há pleno acordo quanto a qual é o bem moral do homem, a saber, a atualização da sua essência, a realização plena do que ele é. Sócrates, Platão e Aristóteles concordam em que a felicidade se alcança sempre e somente por meio da completa realização da essência do homem, qual seja, a alma ou psykhé. Epicuro comungava formalmente dessa concepção ética, mas distanciava-se desses seus predecessores no tocante à determinação da essência do homem, ou seja, na determinação do próprio fundamento da ética. Sócrates, Platão e Aristóteles identificaram a essência do homem com a alma. A alma, do latim “anima” – sopro vital -, por oposição ao corpo, é um dos dois princípios do composto humano. A alma é o princípio da sensibilidade e do pensamento, é o que faz o corpo vivo uma coisa distinta da matéria inerte. Ela é o princípio da vida que anima todo o corpo e move cada uma das partes dele. Aristóteles considerava-a o “ato primeiro de um corpo natural”. Socrátes, por seu turno,  identificava a alma com a razão, com a consciência pensante, com o eu pensante, com a personalidade intelectual e moral; em suma, para Sócrates, o homem é essencialmente a sua alma, que o distingue de todos os demais seres; a alma é a marca do divino em nós. Platão discriminava três partes ou funções da alma: a conservação do corpo, a proteção do corpo e a produção do conhecimento. Situada no baixo-ventre e destinada à conservação do corpo, acha-se a parte apetitiva ou concupiscente da alma. Essa parte é responsável por levar o corpo a buscar comida, bebida, prazeres, sexo. Como se vê, ela impele o corpo a buscar tudo quanto é indispensável à conservação dele e à geração de outros corpos. Por seu turno, a parte irascível ou colérica, situada acima do diafragma na cavidade do peito, é responsável pela emoção de raiva contra tudo quanto seja prejudicial e possa causar sofrimento ao corpo. Ela incita o indivíduo a combater as ameaças à vida. Assim é que à parte irascível da alma cabe proteger o corpo. Em comum, ambas as partes da alma – a apetitiva e a irascível – têm o fato de serem mortais e irracionais. Finalmente, a parte racional (noûs, o intelecto) da alma cumpre a função de dominar as outras duas partes, harmonizando-as com a razão. É esta parte da alma que é imortal e que faz o homem habitar na proximidade com o divino.
Identificando a essência do homem com a alma, Sócrates, Platão e Aristóteles advogaram ser o bem supremo do homem os bens da alma racional ou do espírito. Todos três rejeitaram o prazer do corpo como um bem. Para Epicuro, ao contrário, o prazer é o valor, o bem e o fim. Diz Epicuro “o prazer é princípio e o fim da vida feliz” ( Epicuro, 1988, p. 17). Ora, a assunção do prazer, um bem material, como início e fim da vida feliz é coerente com a visão epicurista da alma ou da essência humana como algo material.
Epicuro também se afasta de Sócrates, Platão e Aristóteles no modo como eles hierarquizaram as partes da filosofia. Sócrates e os socráticos, na verdade, rejeitaram a ontologia e a cosmologia e reduziram a filosofia unicamente à ética, à doutrina da sabedoria. Já Platão e Aristóteles elegeram a ontologia (que se torna metafísica) como um domínio teórico essencial da filosofia, sobre o qual a ética deve ser fundada. Platão mantém a superioridade da ontologia ou da doutrina das primeiras causas ou princípios da realidade sobre a ética. Em Aristóteles, essa superioridade se faz em nível temático. Epicuro, por sua vez, afirmando a necessidade da ontologia como fundamento da ética, inverte a hierarquia platônico-aristotélica  e afirma ser a ética superior à física (ontologia). Em Epicuro, a phrónesis, ou sabedoria prática, tem primazia sobre a ciência e a sophia.  
O helenismo descobre o indivíduo. Epicuro propõe uma virtude do homem privado. O novo éthos, contrariamente ao tradicional enraizado na pólis, esteia-se sobre o indivíduo; é o éthos do indivíduo. Sócrates, Platão e Aristóteles ensinavam, contrariamente a Epicuro, a virtude política: o homem coincide com o cidadão. Sócrates ensinou nas praças públicas e nos ginásios; Epicuro, por sua vez, escolheu um edifício com um Jardim. No Jardim, gozava-se do contato com a natureza e vivia-se longe do tumulto da vida política, que, para Epicuro, é “inútil afã”.
Em suma, é inegável que o epicurismo propõe, antes de tudo, uma terapêutica (a filosofia se apresenta como uma terapêutica), de modo que o fim da filosofia é curar a doença da alma e ensinar o homem a viver o prazer. O filósofo não é quem sabe apenas pensar e constituir sistemas; é, sobretudo, quem sabe viver e morrer de acordo com seu pensamento. Epicuro é, nesse tocante, bastante socrático. No epicurismo, tanto quanto no estoicismo, a física, a ética e a lógica estão intimamente ligadas e afinadas com o interesse de determinar a vida boa ou a maneira de viver mais elevada, a melhor. Tanto para os epicuristas quanto para os estoicos, a física é estudada em função da ética, muito embora as soluções físicas adotadas pelos estoicos são, na maioria dos casos, exatamente opostas às dos epicuristas.



2.2. O materialismo epicurista

Partindo da aceitação das posições fundamentais do materialismo, Epicuro as codifica em doze princípios elementares:

1) a matéria não é criada, mas eterna;
2) a matéria é indestrutível;
3) O universo ou o a totalidade cósmica consiste de corpos sólidos e vazio;
4) Os corpos sólidos são simples ou compostos;
5) O número de átomos é infinito;
6) A extensão do vazio é infinita;
7) Os átomos estão sempre em movimento;
8) A velocidade do movimento dos átomos é uniforme;
9) O movimento é linear no espaço, vibratório nos compostos;
10) Os átomos são capazes de se desviar levemente em qualquer ponto do tempo e do espaço;
11) Três qualidades caracterizam os átomos: o peso, a forma e o tamanho;
12) A quantidade de formas distintas não é infinita, mas apenas inumerável.



2.2.2. Os corpos e o vazio

O Todo, ou a totalidade da realidade, é constituído apenas dos corpos e o vazio. A existência dos corpos é garantida pelos sentidos, ao passo que a existência do vazio se infere da existência do movimento, porque, para que haja movimento, é necessário que exista o espaço vazio ao longo do qual os corpos possam deslocar-se. O vazio não é o absoluto não-ser; mas sim um “espaço”, uma “natureza impalpável” (ibid., p. 15). A realidade, tal como a concebe Epicuro, é infinita. É infinita como totalidade, mas também é infinita a multidão dos corpos e infinita a extensão do vazio. Eis a tese fulcral do ontologia epicurista:

“(...) nada provém do nada, pois que então tudo nasceria sem necessidade de sementes. E, se se dissolvesse no nada tudo o que desaparece, todas as coisas seriam destruídas, anulando-se as partes nas quais se decompunham. E também é certo que o todo foi sempre tal como é agora e será sempre assim, pois nada existe nele que possa mudar-se. Com efeito, mais além do todo não existe nada que penetrando nele produza a sua transformação”. (ibid.).

Segundo Epicuro, todo o universo é corpo e vazio (espaço). Alguns corpos são compostos; outros, ao contrário, simples e absolutamente indivisíveis. Esses corpos absolutamente simples e indivisíveis são os átomos. Somente os átomos são os elementos originais. A fim de explicar como os átomos podem encontrar-se e se juntar para a constituição dos corpos compostos, Epicuro cunha o conceito de clínamen ou declinação. O clínamen é o desvio da direção dos átomos. Os átomos podem, desviando uma distância mínima da linha reta (já que Epicuro entendia o movimento dos átomos como o de uma queda no espaço infinito devido ao peso deles), em algum ponto do tempo e do espaço, chocar-se uns com os outros.
 A admissão da existência dos corpos indivisíveis ou átomos torna-se necessária, porquanto, assim, evita-se a admissão de uma divisibilidade ao infinito dos corpos, o que levaria à dissolução das coisas no “não-ser, o que, para Epicuro, é absurdo. Portanto, como bem ratifica o epicurista Lucrécio (sobre quem direi algumas palavras mais adiante), “a matéria é eterna”. (ibid., p. 34). É também Lucrécio quem retoma a tese central da ontologia epicurista: “Nada, portanto, volta ao nada; tudo volta, pela destruição, aos elementos da matéria”. (Ibid.).
O fundamento da admissão da existência dos átomos é, pois, o princípio eleático (e precisamente, zenoniano) da impossibilidade da divisão ao infinito, o que dissolveria o ser no nada. Mas – deve-se frisar – claro é que o princípio segundo o qual nada nasce e nada perece só vale para os átomos (bem como para o cosmos como um todo). A geração e a corrupção atingem os corpos compostos, mas sob o modo como entendiam os filósofos eleatas: a geração é a união das coisas que são; e a corrupção é a dissolução ou separação nas coisas que são. Em outras palavras, não há gênese (criação ex nihilo) nem destruição total do que é.
Consoante Epicuro, “a alma é corpórea, composta de partículas sutis, difusa por toda a estrutura corporal” (ibid., p. 16). A alma, portanto, para Epicuro, como todas as outras coisas, é um agregado de átomos. Esse agregado é formado em parte por átomos ígneos, aeriformes e sutis, os quais constituem a parte irracional e alógica da alma. Epicuro também divide a alma em partes: uma irracional e a outra racional. A parte racional da alma é constituída de átomos “diferentes” dos outros. Tais átomos não são nomeados por Epicuro. A alma, portanto, não é eterna, mas mortal. Conclusão esta que se segue necessariamente de sua natureza material, bem como da premissa básica do materialismo epicurista, segundo a qual tudo que existe são corpos e o vazio. Ora, o conceito de imortalidade só faz sentido se supusermos existir uma instância suprassensível, imaterial, incorpórea. Mas Epicuro, que não é nem platônico nem aristotélico, sequer pode compreender o que significa o conceito de “incorpóreo”. No entanto, na medida em que o filósofo do Jardim distingue entre uma parte irracional e uma parte racional na alma, termina por permitir que penetre de modo sub-repitício o esquema da psicologia de Platão e Aristóteles. De qualquer forma, para Epicuro, a alma é um corpo sutil, de modo que, morto o corpo, os átomos que constituem a alma dispersam-se, e a sensibilidade, o sentimento, o pensamento e a consciência desaparecem. Por isso, a morte é definida por Epicuro como “privação da sensibilidade”. (Ibid., p. 13).
Tendo em vista a definição de aporia como ‘dificuldade irredutível, seja numa questão filosófica, seja numa doutrina’, a psicologia epicurista encerra uma dificuldade lógica intransponível. Senão, vejamos. Por um lado, apesar de afirmar que só existem corpos e de assumir que a alma é material, Epicuro diz que os átomos que constituem a alma diferem daqueles que constituem o corpo: os átomos da alma são mais sutis e aeroformes. Por outro lado, Epicuro não consegue explicar como é possível a unidade da alma, que é a unidade de consciência, ou o “eu”, “a pessoa”, já que essa unidade não resulta da agregação e da soma das partes da alma, porque é original e não composta. Com a fisicidade e o mecanicismo, Epicuro não dá conta da espiritualidade, da individualidade real, porque a imaterialidade do seu ser, do seu agir não se deixa reduzir à simples manifestação mecânica da matéria.



3. A ética epicurista

Acerca da filosofia, escreve Epicuro a seu interlocutor: “Deves servir à filosofia para que possas alcançar a verdadeira liberdade”. (Ibid.,). Qual é a verdadeira liberdade para Epicuro? A resposta salta evidente: a autárkeia, ou autossuficiência, domínio de si. É livre quem encontra em si mesmo o princípio (arkhé) de sua existência e de sua ação, e possui por si mesmo o poder para agir e julgar. A virtude é conformidade com a Natureza (a totalidade ordenada do Cosmos ou Razão Universal), é autárkeia, ataraxia ou tranquilidade. A virtude é a técnica de viver prazerosamente. A ética epicurista é, pois, uma terapêutica. Como terapêutica, a ética de Epicuro baseia-se no cálculo dos prazeres por meio do raciocínio vigilante, que visa a dominar os impulsos instintivos e a determinar o que é preciso evitar, rejeitando as falsas opiniões. A ética epicurista é um hedonismo ético, que elege a temperança (sobriedade, virtude da moderação, do comedimento) como critério de limite dos prazeres para que possamos viver em conformidade com a Natureza (a ordem do Cosmos, a Razão Universal).
O prazer é um bem; a dor, um mal. O princípio e o fim da vida feliz é o prazer, mas o sumo bem é o prazer da ataraxia, ou seja, da ausência de dor e perturbação da alma e do corpo. Phrónesis é a sabedoria prática, a prudência ética, inteligência razoável. É a qualidade ética mais alta própria do sábio. É a phrónesis que servirá de critério, do grego Kriterion, ou seja, de padrão que permite efetuar o cálculo dos prazeres. Com base na phrónesis (virtude suprema), deve-se distinguir entre tipos de desejos e prazeres:

a) prazeres naturais e necessários:

Ex: comer quando se tem fome; beber quando se tem sede (tais prazeres visam à conservação da vida).

b) prazeres naturais, mas não necessários:

Ex: prazer ou desejo do amor/ desejo sexual; beber bebida refinada, vestir-se de modo elegante; comer comidas refinadas.

c) prazeres não naturais e não necessários:

Ex: prazeres ligados às opiniões dos homens, prazeres vãos como desejo de riqueza, de poder, honra, fama, etc.

O sábio, portanto, contentando-se com os prazeres reunidos em a), escolhe sempre os prazeres catastemáticos ou estáveis, que levam à ausência de dor e perturbação da alma e do corpo (ataraxia). Nas palavras de Epicuro, “os filósofos afirmam que nada é tão necessário quanto o saber reconhecer bem o que não é necessário, e considero que a maior riqueza entre todas as riquezas é a autarquia, e que nada é tão nobre quanto o não ter necessidade de nada”.
Não obstante, Epicuro reconhece que há três coisas que ameaçam o prazer como bem supremo: 1) o fluxo do tempo que devora o prazer; 2) a ameaça da dor que pode sempre chegar; 3) a emboscada da morte.



4. A morte não é nada para nós


“A morte é a privação da sensibilidade”, afirma Epicuro.
Lucrécio, que viveu em Roma entre os anos 99 e 55 a.C, conheceu a doutrina de Epicuro e sentiu-se maravilhado com seus ensinamentos, os quais lhe pareciam fornecer a chave para desvelar os segredos do universo e para descerrar o acesso para o homem à vida feliz. Acolhendo o ensinamento de Epicuro, Lucrécio dedicou-se à tarefa de libertar os romanos da religião que os oprimia com mais força do que outrora oprimia os gregos.
Seu poema Da natureza das coisas tem uma inestimável importância literária. Com ele, Lucrécio se notabilizou como um dos maiores poetas da língua latina. Se o filósofo usa a linguagem do lógos, o poeta acresce ao lógos as tonalidades persuasivas dos afetos, do sentimento, tingindo o lógos de imagens e intuição fantástica. É a magia da arte que transfigura a filosofia, fazendo-a aninhada no coração. Através da poesia, Lucrécio possibilita ao leitor a experiência da espessura dramática da mentira heroica, quando canta o inesquecível desejo humano de eternidade. O canto poético de Lucrécio é uma espécie de confissão de que não há modo de dar sentido a uma vida que seja apenas uma breve estação feita para o nada. Nesse sentido, Lucrécio torna a mensagem epicurista mais emocionante e mais verdadeira.
Lucrécio matou-se em 55 a.C. Seu poema, confeccionado nos intervalos de ataques de loucura, ficou inacabado e foi completamente revisado para publicação por um irmão de Cícero, chamado Quinto, segundo testemunham certas fontes. Outras fontes, no entanto, asseguram que aquela tarefa coube ao próprio Cícero, que nutria profunda admiração ao poeta do materialismo. Lucrécio, seguindo as pegadas de Epicuro, também oferecerá sua resposta ao problema da inexorabilidade da morte. Todavia, considerar-se-á, em primeiro lugar, a lição de Epicuro. Atente-se para o que ensina Epicuro, num trecho famoso de Carta a Meneceu:

“Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminado o desejo de imortalidade. Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo portanto quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado. Então o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui”. (Epicuro,  2002, p. 27-29).



A primeira parte do argumento baseia-se na asserção do experiencialismo, segundo a qual todo mal e todo bem residem na sensação, ou seja, na experiência de prazer (o bem) e na de sofrimento (o mal). Como a morte é a privação das sensações, ela não pode ser nem um bem nem um mal, porque bem e mal residem na sensação. Prossegue o filósofo assegurando-nos de que, se aceitarmos o fato de que não podemos experienciar a própria morte, de que, por isso mesmo, não há nada de terrível nela, poderemos fruir serenamente a vida efêmera, sem desejar que ela se estenda indefinidamente e sem desejar a imortalidade. Epicuro também nega que o tempo em que nos angustiamos com a possibilidade de nossa morte futura possa nos afligir, porque se a morte no momento em que nos chega não pode ser um mal, tampouco poderia nos atormentar enquanto a esperamos. Por fim, a etapa fundamental do argumento consiste em estabelecer uma relação disjuntiva (ou...ou) entre o indivíduo e a morte, ou seja, enquanto o indivíduo está vivo, a morte está ausente; quando a morte o atingir, é ele que estará ausente.
Portanto, a morte é um mal somente para aquele que nutre opiniões falsas sobre ela. Dado que o homem é um composto de alma e um composto de corpo, a morte não é mais que a dissolução desses compostos. E, nessa dissolução, os átomos dissipam-se por toda parte, a consciência e a sensibilidade cessam totalmente, e assim, sobram do homem apenas os restos que se dissolvem. Para Epicuro, a morte, em si, não deve nos amedrontar porque, quando ela nos chega não sentimos nada, já que, no “depois” da morte, nada resta de nós, visto que nosso corpo e nossa alma dissolvem-se totalmente.
Epicuro, adotando o mesmo esquema eleático de raciocínio, nega que possa haver algo de intermediário entre o viver e o morrer, entre o ter consciência e o não ter consciência, e pensa, portanto, a morte não como processo, duração, mas como o estado de morte, o instante no qual a vida cessa para dar lugar à morte. Mas não seria justamente a passagem (o intermediário) que Epicuro nega que aterroriza o homem?
Volverei a considerar a resposta de Epicuro, a fim de lhe desnudar problemas mais  sérios. Antes, porém, é oportuno ponderar sobre a resposta oferecida por Lucrécio:

“Que tens tu, ó mortal, que te abandonar de tal modo a dores tão excessivas e amargas? Por que choras  e te lamentas sobre a morte? Efetivamente, se a vida anterior te foi agradável e se todos os prazeres não foram como acumulados num vaso furado e não correram e se perderam inutilmente, por que razão não hás de, tolo, retirar-te da vida como um conviva farto e aceitar com equanimidade um repouso seguro? Mas se tudo aquilo de que gozaste se perdeu em vão e a vida te pesa, porque busca aumentá-la mais, para que tudo de novo tenha um mau fim e desapareça sem proveito? Não seria melhor pôr fim à vida e ao tormento? Não posso imaginar e inventar agora coisa alguma que te agrade: tudo é sempre o mesmo”. (Lucrécio, 1988, p. 75).


Para Lucrécio, quem soube viver bem e não tem o que lamentar pode, quando chegar a hora da morte, partir como o hóspede que se saciou no banquete. Por outro lado, quem não soube viver bem, é inútil que continue a viver, porque continuaria a viver mal. Em ambos os casos, a morte não é um mal. Evidentemente, poderíamos perguntar por que o conviva deve, inexoravelmente, ausentar-se do banquete, sem qualquer apelo, quando lhe é imposto, e considerar-se hóspede saciado, mesmo quando o banquete está apenas no início, ou ainda não terminou. 
Tanto Epicuro quanto Lucrécio não sabem explicar por que a morte, considerada uma lei inexorável, não é absurda.  Tanto em Epicuro quanto em Lucrécio o mal é velado e a morte é negada. Ao sustentar que, enquanto existimos, a morte está ausente, e que, quando estiver presente a morte, nós é que não existiremos mais, Epicuro nega justamente o momento trágico da morte, que não é o nada do não ser mais, mas o momento da vida que cessa. É justamente em face do momento em que o ser é tragado pelo não ser, é justamente diante desse aniquilamento do ser que a razão permanece tragicamente em silêncio.
Considerem-se, na próxima seção, alguns outros problemas com a tese epicurista “a morte não é nada para nós”.



4.1. Outros problemas na abordagem epicurista da morte


Em princípio, malgrado as insuficiências da abordagem epicurista do problema da morte – que tratarei de evidenciar nesta última seção deste estudo – para o espírito grego e, e de modo especial, para os filósofos helenistas, o pensamento da morte iminente transformará de maneira radical a maneira de agir, fazendo que se tome consciência do valor infinito de cada instante. É desse modo que se justifica a meditação sobre a morte. É, em essência, o que significa o apotegma “aprender a morrer é aprender a viver”. Aos antigos, e de modo especial, aos epicuristas e estoicos, não lhes escapava à consciência a compreensão de que tudo que existe está destinado à dissolução. Assim, sou levado a meditar sobre a morte, sempre já dada, iminente, como uma lei fundamental da ordem universal.  O filósofo, portanto, está, sem cessar, perfeitamente consciente, não só do que faz, mas também do que pensa (lógica vivida), e do que é, de seu lugar no cosmo (física vivida).
Vimos que o argumento apresentado por Epicuro com vistas a nos libertar dos terrores da morte baseia-se no seu experiencialismo. A primeira asserção do experiencialismo é que todo mal e todo bem residem na sensação. Como a morte é a privação da sensação, a morte não pode ser um mal (tampouco um bem). Ora, para que um estado-de-coisas possa ser considerado como um bem ou como um mal para um indivíduo, é necessário que este indivíduo possa experienciá-lo, o que não é o caso da morte. O experiencialismo exige também a existência de um sujeito da experiência. Assim, a morte de uma pessoa não pode lhe ser um mal, porquanto ela já não existirá no momento em que a morte lhe chegar.  Epicuro concebe a morte em termos de estado de morte. O indivíduo que se encontra na condição de morto não experiencia a própria morte. Novamente, quando a morte está presente, eu mesmo é que estarei ausente. A morte é privação de toda sensação.
Mas, então, mesmo que aceitemos o argumento de Epicuro, mesmo que admitamos que não podemos ter a experiência de nossa própria morte, será que a morte não pode ser considerada um mal? Será que Epicuro consegue nos aliviar da angústia que nos assalta fazendo-nos estremecer de temor e perplexidade em face do absurdo da morte, ou seja, em face desse destino último inevitável, inelutável, inexorável? Consideremos, pois, o primeiro contraexemplo que parece demonstrar que a privação da experiência é um mal. Tomemos o caso de uma pessoa que, repentinamente, entra em coma. Ainda que ela não possa ter experiências ruins, tendemos a considerar seu estado um mal (porque, estando em coma, ela está privada da companhia das pessoas amadas, está privada de realizar seus projetos, suas possibilidades). Consideremos, agora, o caso de uma pessoa que sofreu um grave acidente num lugar e tempo (L1) dados. Devido a graves lesões, ela perdeu irreversivelmente as funções cerebrais superiores e não se lembra nem do acidente nem da vida anterior ao acidente.  Seu estado pós-traumático, ou seja, seu estado atual e irrecuperável a condena a viver numa condição semelhante à de uma criança pequena. Mesmo que essa pessoa não esteja consciente das perdas de suas funções cerebrais superiores, tendemos a concordar que um mal lhe aconteceu. O estado atual em que se encontra essa pessoa é um mal relativamente ao estado anterior ao acidente, e as consequências do acidente são males relativamente à possibilidade de o acidente nunca ter acontecido. Nesses dois exemplos, há um mal que não decorre da experiência de uma dor ou sofrimento, mas da privação dos bens, das possibilidades, das experiências que essa pessoa ainda poderia ter. Por analogia, o mal da morte para uma pessoa reside na privação dos bens, dos possíveis, das alegrias que ela poderia ter ou realizar se houvesse continuado a viver. A morte, ao contrário do que supunha Epicuro, pode ser considerada um mal porque ela nos priva de nossos desejos, interesses, projetos. Em outras palavras, a morte impede-nos de realizar os objetivos que estabelecemos para a nossa vida. A morte interrompe os nossos projetos. Se, como ensina Heidegger, o homem, é poder-ser, é projeto, a morte é um mal porque nos deixa insatisfeitos e irremediavelmente inacabados.  Como acertadamente observou Schopenhauer ( 2013, p. 70), “em regra, apenas o fim total, o fim de todos os fins, é o que desejamos que nos ocorra o mais tarde possível”,
Que sentido podemos dar à vida por meio da busca do prazer, se a morte nos deixa sempre com aspirações não realizadas? A morte é um mal porque é aniquilamento sempre possível de minhas possibilidades. A morte priva o indivíduo de todas as suas possibilidades e mais particularmente da própria possibilidade de ser um “eu”. Eis o que me parece ser o momento decisivo do argumento contra Epicuro, e que Schopenhauer soube intuir, ao dizer “após a morte, serás o que foste antes de nascer” (ibid., p. 31). É Schopenhauer também quem reconhece que “certamente, a morte deve ser vista como o verdadeiro sentido da vida” (Schopenhauer, 2014, p. 63) – intuição esta a dos antigos também: tudo que existe está destinado irremediavelmente à dissolução! Schopenhauer aqui nos põe face a face com o âmago do absurdo: “o estado em que a morte nos coloca se nos apresenta como um nada absoluto; porém isso significa apenas que ela é algo sobre o qual nosso intelecto – esse instrumento surgido apenas para servir à vontade – é totalmente incapaz de pensar”. (ibid., p. 62). Cada indivíduo é um destino único e uma biografia; é uma individualidade insubstituível. É isso que será destruído pela morte. Assim, a morte é, para o próprio indivíduo, antes de tudo, uma privação de sua existência, condição necessária e fundamental para a realização de suas possibilidades, seus projetos, interesses e desejos. A morte é um mal porque implica a percepção de que tudo estará definitivamente acabado para nós. É claro, pode-se argumentar, que nem sempre a morte é vista como um mal. Para uma pessoa que sofre uma doença dolorosa e que se encontra em estado terminal, a morte lhe será até um bem, já que a livrará de uma condição insuportável. Mas isso não torna a morte menos absurda, já que estar jogado no mundo para necessariamente morrer é absurdo. É o que parece dar razão à revolta de Pessoa: “Tão supérfluo tudo! Nós e o mundo  e o mistério de ambos”.
Ainda contra Epicuro, podemos dizer que a morte é um mal e absurda, porquanto, considerando-se seu caráter de destino inexorável e sua imprevisibilidade ameaçadora, a morte torna o indivíduo consciente de sua finitude, o faz mergulhar num sentimento de desespero no instante em que intui ser sua vida fútil e absurda, porque todos os seus esforços, projetos, desejos e realizações pessoais se lhe afiguram como insignificantes e vãos. Dada a sua imprevisibilidade ameaçadora, a morte pode privar o indivíduo das suas possibilidades de modo prematuro. A morte, como bem notou Sartre, é um mal, porque priva o indivíduo, de forma irreversível, da possibilidade de atribuir um sentido as suas experiências passadas e a sua vida. Ela cristaliza o indivíduo eternamente no momento em que se achava quando ele morreu e o coisifica eternamente desde o momento em que se torna um cadáver. O mal e o absurdo da morte, na opinião de Sartre, residem na redução do para-si morto a um em-si, condição esta em que o sentido de suas realizações passadas fica irreversivelmente entregue à liberdade e ao bem querer daqueles que sobreviveram e que desfrutam uma vitória sobre o para-si morto.
Ora, se uma vez estejamos mortos, tudo está definitivamente acabado para nós, resta absurdo e é um mal que, na condição de morto, ou seja, privados de qualquer sensação, consciência e memória, privados do acesso a nossos estados mentais passados e futuros, as nossas vivências e experiências anteriores à nossa morte nunca tenham acontecido. Deveras, para o morto, ele mesmo nunca existiu, o que me leva a concordar com a impressão de Schopenhauer, ao comparar a vida a um sonho:

“(...) a vida pode ser vista como um sonho, e a morte como o despertar. Mas então a personalidade, o indivíduo pertence à consciência que sonha, e não a que está em vigília; eis por que a morte se apresenta como aniquilamento. Em todo caso, a partir desse ponto de vista, a morte não deve ser considerada a passagem para um estado totalmente novo e estranho, mas, antes, apenas o retorno ao estado que nos é próprio desde a origem e do qual a vida foi somente um breve episódio”. (Schopenhauer, 2013, p. 34).


Note-se que a analogia entre a vida e o sonho, proposta por Schopenhauer, proíbe que depreendamos do “despertar pela morte” o significado “acordar num novo estado de vida”. Ele é claro em dizer que “a personalidade, o indivíduo pertence à consciência que sonha”. A vida consciente é viver, experimentar-se como quem vive um sonho que acabará definitivamente com o retorno ao estado inorgânico ou ao nada, que é o aniquilamento a que o indivíduo é reduzido com a morte. Seguindo, então, a intepretação de Schopenhauer, e admitindo que a morte é a negação pura e simples do ser, o puro e simples não-ser do ser, e que ela implica necessariamente o desaparecimento de um eu consciente de si mesmo pleno de desejos de autoexpressão, ela é um mal e, sobretudo, absurda, porque condena irreversivelmente à nulidade e à insignificância tudo o que o indivíduo experimentou (suas vivências de alegrias, dissabores, sua labuta diária, as exigências que cumpriu, os aborrecimentos diários, etc.) no tempo transcorrido até a sua chegada. O morto, enquanto morto, encerrado na mais completa e definitiva indiferença em relação a tudo o que acontece no mundo e aos sobreviventes em cuja companhia deixou de encontrar-se, e privado do acesso às suas vivências passadas, não sabe e não pode saber de sua existência; portanto, quando consideramos o morto entregue a esse estado de completa e definitiva ignorância com relação a sua vida antes que a morte o privasse dela, devemos concluir que o seu estado atual de ‘não existência’ é semelhante ao estado de ‘não existência’ anterior ao nascimento. Novamente, devemos ouvir Schopenhauer e assentir em sua intuição: “após a morte, serás o que foste antes de nascer”. É justamente em face dessa intuição que a razão recua e que o absurdo a dilacera. É porque a morte nos reduz ao estado do nada anterior ao nascimento, da não existência prévia ao nascimento, que a vida – esse breve episódio perturbador do silêncio do nada- sendo como um fenda, uma “rachadura” que, dividindo o nada, se parecendo a um sonho breve entre dois “nadas”, resiste às nossas pretensões de a explicar racionalmente e insiste em esmagar nossas tentativas de lhe dar um sentido humanamente razoável e satisfatório. O absurdo da morte, que espelha o absurdo da vida, parece residir no fato de que ele é vivido subjetivamente como precariedade e insuficiência da vida, que não parece ser mais do que uma imagem onírica do nada ou – se preferirmos – da pregnância e predomínio do inorgânico que, pela morte, reivindica a restauração definitiva do silêncio do nada, que avança inexorável e “se quer” eternamente imperturbável.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu).  São Paulo: Editora UNESP, 2002.
_________. Antologia de Textos de Epicuro. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Coleção Os Pensadores.

LUCRÉCIO. DA NATUREZA DAS COISAS. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Coleção Os Pensadores.

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a morte: pensamentos e conclusões sobre as últimas coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

__________. As Dores do Mundo. São Paulo: Edipro, 2014.

REALE, Giovanni. Filosofias helenísticas e Epicurismo. São Paulo: Edições Loyola, 2011.






[1] SCHOPENHAUER, Arthur. As Dores do mundo. São Paulo: Edipro, 2014, p. 85.

domingo, 12 de abril de 2020

“O que foi dito sobre deus é ou ininteligível ou perfeitamente contraditório; e por esta razão deve ser uma hipótese absurda para todo homem de bom senso.” (Paul Henri Holbach)


Arte Barroca - Características, vertentes do Barroco e principais ...


Deus – um problema de lógica
O argumento da impossibilidade


Ponho-me a escrever este texto num período histórico em que o mundo enfrenta a pandemia de covid-19, enquanto o homem comum, tão habituado que está a acolher, de modo acrítico, os significados culturalmente compartilhados, dá novo vigor aos seus costumeiros apelos a Deus, a quem pede misericórdia e proteção. Por mais indiferente que eu procure ser ao comportamento religioso padrão desse tipo humano, custa-me silenciar meu espanto em face da incapacidade que tem esse tipo humano em aceitar raciocínios simples que colocam suas alegações de fé no conjunto das crenças falsas acerca do mundo. Um exemplo de raciocínio simples e completo, para cuja aceitação a maioria dos indivíduos que professa sua fé no Deus teísta parece inapta, é o silogismo. O silogismo é um raciocínio completo, explícito e composto de três juízos, dos quais dois são premissas; e o terceiro, a conclusão. Um exemplo de silogismo é o que se segue:

1. Todos os pernambucanos são brasileiros.  (premissa maior)

2. João é pernambucano.  (premissa menor)

3. João é brasileiro.  (conclusão)

 

Escusando-me de me deter em explicações especializadas, chamo a atenção para o fato de que, se assumirmos que 1 e 2 são verdadeiros, somos obrigados a aceitar como verdadeira a conclusão 3. Ora, se todos os pernambucanos estão inseridos no grupo dos indivíduos que são brasileiros, e se João é pernambucano, então (logo, portanto), João é brasileiro. Creio não haver dificuldade para a compreensão desse raciocínio, que é bastante simples. Agora, busquemos ver se uma das alegações sobre Deus passa no teste silogístico. Note-se este outro silogismo:

1. Todas as coisas que existem na natureza foram criadas por Deus.

2. Vírus são coisas que existem na natureza.

3. Vírus foram criados por Deus.

 

Se eu aceito a verdade de 1 e 2, então tenho de aceitar a verdade de 3. Trata-se de um raciocínio válido do ponto de vista lógico. Não obstante, ele acarreta um problema desconcertante para a fé no Deus teísta – problema este de base empírica: o problema do Mal. Sabemos que vírus são microrganismos patogênicos, ou seja, são capazes de causar doença e sofrimento. Como, então, explicar que um Deus sumamente bom e onipotente possa ter criado tais microrganismos que causam dor e sofrimento? É o paradoxo de Epicuro (341-270 a.C), posteriormente ampliado por Hume, sobre o problema do mal que se deixa ouvir aqui:

1. Deus quer eliminar o mal, mas não pode; 2) Deus pode eliminar o mal, mas não quer; 3) Deus não pode e nem quer; 4) Deus pode e quer. Se aceitamos 1), então Deus não pode ser onipotente; se aceitamos 2), então Deus não é bom; se aceitamos 3), então Deus é mau; se, finalmente, aceitamos 4), somos forçados logicamente a explicar por que há tanto sofrimento gratuito no mundo. Epicuro quer-nos mostrar que qualquer uma das alternativas é indesejável.

Não será, contudo, o Problema do Mal que tomarei para escopo de minhas reflexões. Sobre este problema já dissertei alhures, e vários textos dedicados ao tratamento dessa questão se topam neste blog. O que me interessa neste texto é mostrar a ilogicidade, a contraditoriedade inerente ao conceito do Deus teísta, ou seja, do Deus das três “Religiões do Livro”: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Essas três tradições de fé monoteísta compartilham um único texto sagrado (a Bíblia hebraica); e o cristianismo e o islamismo proclamam ainda livros adicionais, a saber, o Novo Testamento e o Alcorão. Estes livros são considerados como revelações da palavra de Deus. Tais textos, associados a séculos de crença popular e reflexão teológica, formaram o conceito que vêm à mente para mais da metade dos crentes quando ouvem a palavra “Deus”. O termo teísmo, usado desde o século XVII, designa a crença num Deus como Ser que é o princípio originário de todas as coisas. O Deus teísta é o Ser como causa do mundo, segundo Kant. Ao me ocupar em explicitar a ilogicidade intrínseca das tramas semânticas do conceito do Deus teísta, sinto-me obrigado a delimitar o domínio teórico à luz do qual a ideia de ‘conceito’ será pensada. A questão premente e inicial será então: o que estou entendendo por ‘conceito’ ao me referir ao ‘conceito de Deus’?

 

1. A visão clássica de conceito

 

Conceito, segundo Aristóteles, é uma ideia substancial, expressa por um substantivo, à qual se associa uma série de categorias ou acidentes. De acordo com a concepção clássica, o conceito visa à essência das coisas, ou seja, àquilo pelo qual as coisas não podem ser diferentes do que são. Tanto Platão quanto Aristóteles entendiam o conceito como lógos que circunscreve a substância ou essência necessária de um ser. Essência  é aquilo que permanece o mesmo, independentemente das mudanças ou acidentes. A essência é o ser mesmo das coisas, aquilo que a coisa é ou o que faz dela aquilo que é.

Além de abrigar uma ideia substancial, ao conceito se predem acidentes ou categorias. Aristóteles distinguiu 10 categorias, entre as quais estão a de ação, hábito, lugar, quantidade, paixão. Assim, ao conceito [CAVALO] pode-se associar a categoria [trotar], numa relação predicativa como “cavalos trotam”. Na visão clássica, os conceitos têm uma natureza binária: ou bem o conceito aplica-se a um ente, ou bem não se aplica. Se dois entes quaisquer são exemplares de um conceito, eles o são de modo igualmente apropriado, isto é, um conceito não se aplica mais ou melhor a um ente que a qualquer outro. Destarte, por conceito entende-se uma lista de propriedades necessárias e suficientes. Os conceitos são, portanto, absolutamente precisos. Assim, se todos os homens são mortais, não há nenhum homem mais mortal ou tipicamente mortal que qualquer outro. Na concepção clássica, os conceitos consistem em conjuntos de atributos ou propriedades individualmente necessários e conjuntamente suficientes. Destarte, para ser representado num conceito, um ente deve possuir cada uma das propriedades que o constituem e a posse de todas essas propriedades deve ser suficiente para que o ente seja um exemplar desse conceito. Por exemplo, uma vez que [animal] e [racional] são atributos ou traços semânticos do conceito [homem], para que um ente seja considerado “homem”, é necessário que seja animal e racional. Na concepção clássica, os conceitos são estáveis. Eles são constitutivos de nosso conhecimento – do conhecimento conceitual. Conceitos são ferramentas com as quais pensamos. Também é sobre conceitos que recai o ato da reflexão. No ato da reflexão, tornamos os conceitos mais eficazes, mais adaptados para seus fins, uma vez que é na reflexão que eles são transformados, passando a fazer parte de nós mesmos como sujeitos do conhecimento.

A concepção clássica de conceito é, contudo, insuficiente para dar conta do processo sócio-cognitivo-interacional de construção de conceitos. Ademais, a concepção clássica não reconhece que a cognição é o resultado das nossas ações e de nossas capacidades sensório-motoras. Por conseguinte, o que entenderemos por “conceito” se alinha com o Realismo Experiencilista associado com a abordagem sociocognitivo-interacional da linguagem.

 

2. Realismo experiencialista: conceitos como modelos cognitivos

 

O realismo experiencialista enfatiza a experiência humana e assume a centralidade do corpo humano nessa experiência a fim de explicar o funcionamento da cognição humana. De acordo com esta teoria, a investigação da mente humana não pode ser separada do corpo. A experiência, a cognição e a realidade são concebidas a partir da ancoragem corporal. De acordo com esta perspectiva filosófica, os conceitos são produtos de uma construção sócio-interacional-cognitiva de significados. Os conceitos são dinâmicos; formam-se e mudam em consonância com as diversas formas de interação humana com objetos de ação, de conhecimento, com signos e significados culturais; e, sobretudo, formam-se e mudam nas relações intersubjetivas, em situações sócio-históricas de construção coletiva de significados e de negociação interpessoal desses significados. Os conceitos, portanto, existem sempre numa contextualidade, a qual recobre as práticas discursivas, os domínios de conhecimento e de cultura. Todo conceito é dotado de uma materialidade (é parte de textos, suportes, instituições, atividades, práticas linguísticas historicamente condicionadas).

A cognição, por seu turno, é um fenômeno situado. Não há limite claro entre o que acontece dentro e fora da mente. Os processos cognitivos resultam de relações complexas entre ações sociais e atividades mentais internas. As tarefas que realizamos conjuntamente com os outros constituem rotinas culturalmente determinadas que organizam os processos cognitivos dos indivíduos em conformidade com exigências socialmente fixadas. A emergência e desenvolvimento dos conceitos se dão nas atividades nas quais os homens se engajam com vistas a construir sentidos para a suas experiências de mundo.

O corpo não só delimita a experiência, mas também estrutura a cognição. Conceitos rudimentares como o de ‘contato’, ‘contêiner’, ‘equilíbrio’ resultam da experiência pré-conceitual. Tais conceitos não são meras abstrações, mas constituem esquemas imagéticos derivados de experiência sensório-motora.

Longe de negar que exista um mundo físico objetivo independente de nós, o realismo experiencialista mantém que o acesso à realidade é limitado por nosso ambiente biofísico e pela natureza de nossa estrutura corporal. Destarte, a radiação infravermelha, por exemplo, emitida por alguns corpos é invisível ao  olho humano, porquanto o comprimento de onda dessa radiação é maior do que o da luz que somos capazes de enxergar. Quando consideramos a percepção da cor, sabemos que o sistema visual humano tem três tipos de fotorreceptores, os quais diferem daqueles de animais como esquilos e coelhos (que apresentam dois tipos) e de pombos (que têm quatro tipos). Essa diferença influencia nossa experiência no tocante às cores a que temos acesso no espectro cromático. Ademais, enquanto temos dificuldade para enxergar à noite, as cascavéis realizam atividades noturnas, como a caça. Esses animais conseguem detectar visualmente o calor emitido por outros organismos, porque são capazes de enxergar a faixa infravermelha. Tais exemplos patenteiam que as características do aparelho visual dos seres humanos – um dos aspectos de sua estrutura corporal – determinam a natureza e a extensão de sua experiência nesse domínio.

Em consonância com o realismo experiencialista, a linguagem não reflete a realidade, mas interage com os sistemas perceptuais e cognitivos moldados pelas práticas culturais na construção humana da realidade. O realismo experiencialista mantém que a forma e a configuração de nossos corpos e cérebro determinam necessariamente uma perspectiva particular - entre várias possíveis – sobre o mundo. 

Na abordagem sociocognitiva, conceitos são um feixe de modelos cognitivos dotados de uma estrutura interna. Cada expressão linguística põe em evidência um aspecto do conceito em consonância com o contexto sociocognitivo. Na produção e desenvolvimento dos conceitos, destaca-se a importância do background cultural, que consiste na forma de vida da sociedade – forma de vida que inclui mudanças de costumes e mudanças tecnológicas.

O que torna possível a compreensão do que é o conceito ou dos aspectos do conceito instanciados pela expressão linguística é a experiência que o indivíduo tem, enquanto sujeito sócio-histórico, em sua vida cotidiana, com os diferentes aspectos do ente designado pelo conceito (p. ex.,  o conceito de ‘água’ será resultado da experiência que o indivíduo terá com  a fluidez, a clareza, a impureza desse elemento, ou com o fenômeno da chuva, etc.). Muitos de nossos processos cognitivos têm por base a percepção e a nossa capacidade de atuação sensório-motora no mundo. Portanto, há processos cognitivos que acontecem em sociedade e não exclusivamente ‘na mente’ dos indivíduos.

Em síntese, são três os postulados do Realismo experiencialista:

 

1) O pensamento enraíza-se no corpo, de modo que as bases de nosso sistema conceitual são a percepção, o movimento corporal e as experiências físicas e sociais;

 

2) O pensamento é imaginativo, de sorte que os conceitos que não são diretamente ancorados em nossa experiência física empregam metáforas, metonímias e imagética mental, que não mantém uma relação especular com a realidade;

3) O pensamento tem propriedades gestálticas, o que significa dizer que os conceitos apresentam uma estrutura global não atomística, ou seja, não se limitam à mera reunião de traços de significados organizados segundo regras específicas.

 

As palavras ou os signos de modo geral são o meio para a formação dos conceitos; mas, como não há uma relação especular entre a linguagem e o mundo, essa relação é sempre mediada pela arquitetura cognitiva dos actantes sociais, tendo em conta as restrições e características dessa arquitetura. Assim, segundo o realismo experiencialista, a razão humana não é um componente transcendental, mas algo que se constitui a partir da natureza de nosso organismo biológico e dos fatores que contribuem para a nossa experiência individual e coletiva, tais como herança genética, características do ambiente, a natureza de nosso comportamento e modo de ser sociais, etc.

O realismo experiencialista, assentado na hipótese da base corpórea da cognição, mantém que as experiências vividas pelos indivíduos através de seus corpos em ação servem de fundamento para a cognição, influenciando as atividades cognitivas tais como a percepção, a formação de conceitos, a imagética mental, a memória, o raciocínio, a linguagem, as emoções e a consciência.

Assim, por exemplo, considerando um esquema imagético como versões esquemáticas de imagens, concebidas como representações de experiências corporais, tanto sensoriais quanto perceptuais em nossa interação com o mundo, formamos os conceitos de dentro-fora, que, em conjunto, constitui um esquema imagético. Na base desse esquema está o domínio “contêiner”. Domínios são experiências perceptuais, conceitos, complexos conceituais e sistemas elaborados de conhecimento. Domínios como ‘contêiner’, ‘trajetória’, ‘força’ e ‘equilíbrio’ são responsáveis pela estruturação da experiência ancorada no corpo. É com base nesses domínios que é possível formular frases como “Ele jogou o lixo fora” e “Guardei o carro na garagem”.

  

2.1. O conceito de Deus como uma forma de modelo cognitivo

 

O conceito do Deus teísta se formou e se ainda desenvolve, com certa dinâmica reflexiva, em práticas intersubjetivas e institucionais, discursiva e historicamente condicionadas, com base em experiências individuais e coletivas delimitadas por relações com o entorno biofísico e pelo background cultural dos indivíduos que são socialmente posicionados como autoridades na promoção da fé em Deus. Como a constituição do conceito de Deus só indiretamente está ancorada em experiências físicas com o mundo, visto que não se tem experiência sensível de Deus, assumo que o conceito canônico de Deus foi gestado pela imaginação, a qual é condicionada por experiências sócio-históricas dos hebreus com guerras, exílio, impérios, deuses estrangeiros, artefatos culturais (como a escrita, por exemplo) e experiências físico-corpóreas com o ambiente natural, como, por exemplo, com o deserto. Como bem lembra Debray (1004, p. 38), “Deus é impensável sem a escrita essencialmente e sem a roda secundariamente”. A roda diminui, em certo grau, a dependência do homem em relação ao espaço; e a escrita, em relação ao tempo. Ainda segundo Debray, “o homem descende do símio, mas Deus descende do signo” (ibid., p. 39).

 Embora o que os crentes saibam a respeito de Deus tenha sido sedimentado por uma tradição bíblica e teológico-filosófica ao longo de séculos, o conceito de Deus, como todo conceito, é marcado por uma contextualidade e dinamicidade, de modo que pode sofrer algum tipo de customização. Por exemplo, em nossas sociedades de mercado, os fiéis, muitas vezes, vivenciam sua fé como alguém que participa de uma relação mercantil. Com base  no modelo cognitivo das relações de mercado, Deus é imaginado como um mercador com quem o fiel negocia favores e milagres. A relação imaginária entre o crente e seu Deus fica regulada por motivos e interesses pragmáticos.

Uma vez que eu tenha assumido que a imaginação desempenha um papel importante na formação do conceito de Deus, parece-me imperioso justificar por que lhe confiro esse estatuto. É o que farei doravante.

Vimos que um dos postulados do realismo experiencialista é que o pensamento é imaginativo, de sorte que muitos conceitos que não se formam pela ancoragem corporal diretamente dependem, para se constituir, de metáforas, metonímias e imagens mentais. O pensamento imaginativo parece, então, está essencialmente implicado na constituição do conceito da divindade de um modo geral. Escusa lembrar que o Deus bíblico é referido na Bíblia com o emprego de metáforas. Diz o salmista “o Senhor é a minha rocha, a minha fortaleza e o meu libertador, o meu Deus é o meu rochedo...” (Salmos 18:2). As metáforas da “rocha”, da “fortaleza” e do “libertador” se baseiam nas experiências hebraicas tanto com o ambiente biofísico quanto com o jugo e o exílio.  Em Isaías (40:11), Deus é representado como “pastor” que cuida do seu rebanho. É a experiência com o modo de vida pastoril, tão comum nas sociedades antigas do Oriente Próximo, que é ativada para a constituição desse modelo cognitivo de Deus. Deus é o pastor de seu povo. Ele tem a missão de reunir o gado e impedir sua dispersão. Deus prometeu uma pastagem às suas ovelhas – a Terra Santa. Jeová é para o homem o que o homem é para seus animais. Aqui o esquema imagístico para Deus funda-se no modelo pastoril. Modelos constituem simplificações ou idealizações da experiência e se formam levando ao extremo caracteres ou atributos dos objetos empíricos. Assim, “cada povo cria deuses à sua própria imagem”, como ensina Debray:

 

“(...) um povo de oradores inventa um Olimpo eloquente e rixoso. Um povo de pastores escolhe como instrumento de coesão e independência, um grande pastor celeste, substituído, nos planos inferiores, por pastores de carne e osso, profetas e monarcas, Moisés e Davi. A metáfora pastoril dos poderes supremos era corrente nas sociedades antigas, o Egito e a Assíria. O povo hebreu parece ter adotado o sistema de metáfora, adequado a pastores de pequenos rebanhos”. (ibid., p. 73).

 

 

Armstrong (2008, p. p. 94) também salienta o poder do pensamento imaginativo na formação do conceito de Deus, quando nos ensina que “(...) a concepção de Deus foi muitas vezes um exercício de imaginação. Os profetas refletiam sobre sua experiência e achavam que podiam atribuí-la ao se que chamavam de Deus”. É oportuno aqui lembrar que os profetas de Israel não eram adivinhos. Eles não falavam de acontecimentos de um futuro distante, como sugerem algumas interpretações correntes e historicamente inadequadas em nossos dias. Vale reiterar que os profetas bíblicos lidavam com o futuro imediato e não prediziam o que iria acontecer muitos séculos depois. Eles estavam tão só levando a palavra de Deus a pessoas que viviam em sua própria época. Os profetas também falavam dos sofrimentos de seus contemporâneos e forneciam uma justificação para eles sem pretender que ela se convertesse num princípio explicativo universal. A profecia hebraica tinha como propósito fazer uma crítica social e religiosa. Para os profetas, Deus é que punia o seu povo com sofrimentos sempre que esse povo se afastava Dele.

No primeiro livro de Samuel, Deus é referido como “Senhor dos Exércitos”, uma metáfora cunhada com base na experiência bélica dos hebreus com os filisteus. Os dois livros de Samuel recobrem o período que vai de aproximadamente 1030 a.C até o final do reino de Davi (972.a.C). Todo o segundo Livro é dedicado ao reinado de Davi, a cuja descendência o profeta Nathan promete uma Aliança eterna. Os Livros do profeta Samuel reúnem documentos diversos, possivelmente compilados a partir do início do século VII, conquanto somente um século depois tenham sido incorporados na forma definitiva em que se encontra na Bíblia. Conta-se que os israelitas, sob o comando do rei Saul, escolhido por Samuel, organizou um pequeno exército com apenas 3.000 homens para expulsar os filisteus. Como Deus é intervencionista, conta-se que ele causou o pânico entre os filisteus, quando um grupo de filisteus abandonou seu acampamento depois que Jônatas e seu escudeiro mataram vinte homens filisteus. A crença dos autores bíblicos na participação de Deus no curso da história é flagrante também quando se relata que Saul fica aborrecido com o silêncio de Deus, depois que lhe pediu orientação para continuar na luta contra os filisteus em fuga.

Também a experiência com o Deserto constitui um esquema imagético para a composição do conceito de Deus no Antigo Testamento. O Deus que aprecia as naturezas hostis, as temperaturas extremas e as pedras é símbolo da confiança na superação dos limites. Como pondera Debray,

 

“(...) se olharmos um mapa histórico, veremos que o Grande Outro só se apresentou, em pessoa, nos reinos da Ausência, que não configuram um meio uniforme e sim abstrato. Ele rejeita as baixas planícies, as margens pantanosas dos rios (...)” (ibid., p. 69)

 

 

 

Deus anuncia-se “lá onde nada separa o céu da terra. Onde o homem, exilado dos seus mundos familiares, descobre-se nu e quase supérfluo, insignificante”. (ibid.). É na desolação do deserto que “os céus nos contam a glória de Deus” e “as insignificâncias das glórias humanas, a comédia dos pontetados, o destino dos impérios”. (ibid.). A experiência dos hebreus com o caráter inóspito do deserto é o domínio com base no qual o esquema imagético de Deus como o Único, o Grande Unificador Federativo será constituído. Deus é, então, “o único ser capaz de costurar um tecido social mais exposto do que em outras partes às rupturas e até à divisão tribal”. (ibid., p. 70).

Tendo em vista o exposto,  a imaginação entra a fazer parte na constituição do conceito do Deus judaico não sob a forma grosseira de conjunto de sintomas delirantes, mas incrustada em experiências concretas, corpóreos e históricas, com a pedra, com o deserto, com as guerras, etc. É preciso ter em conta o fato de que por imaginação, desde Aristóteles, entende-se a faculdade de evocar ou produzir imagens, independentemente da presença do objeto a que se refere. Sartre a pensará como “consciência desrealizante”, porquanto a imaginação se dirige a um objeto não real. A imaginação, para ele, transcende o existente em direção ao ausente e elabora um mundo alternativo. Kant, por sua vez, pensará a imaginação como uma faculdade reprodutiva, que traz de volta ao espírito uma intuição empírica anterior. Não estou, portanto, negando à imaginação a função transgressora e criadora, “poetizante”, da qual nos lembram Baudrillard, Deleuze e Guattari. Decerto, a imaginação é o estímulo para que o pensamento conceitual pense mais além, é o estímulo sem o qual o conhecimento filosófico ficaria engessado no momento presente. Sem embargo, é igualmente certo que a tradição definiu, de modo geral, a imaginação como a faculdade criativa do pensamento mediante a qual se produzem imagens (representações mentais) de objetos inexistentes, entre os quais incluo Deus. A tradição distinguiu entre imaginação reprodutiva, que produz imagens daquilo que percebemos e a imaginação criadora, que produz imagens do que jamais vimos. Deus é um complexo conceitual produzido pela imaginação criadora. A imagem não é cópia do objeto real, mas seu processo de formação é um processo mimético da percepção. Quando, por exemplo, formamos o conceito canônico de Deus, ou seja, do Deus judaico-cristão, a imagem que produzimos se compõe de elementos de objetos reais. Os cristãos falam em um Deus pessoal, num Deus que é pai, num Deus capaz de amor, num Deus que se fez carne na pessoa de Jesus Cristo, etc. O divino no imaginário judaico-cristão é antropomorfizado. O conceito de Deus é, pois, produzido pela imaginação criadora, sempre condicionada por experiências históricas concretas, cujo modelo último é o homem e seus modos de ser no mundo. As experiências que os homens fazem de si mesmos com base nas relações de seus corpos com o entorno biofísico e histórico são o cadinho donde eles recolhem as qualidades imaginariamente projetadas e combinadas para compor o conceito de Deus. Como a imaginação se caracteriza por transcender os limites da experiência possível, em Deus, as qualidades humanas são representadas de modo superlativizado, superdimensionado.

 

3. O argumento da impossibilidade

 

Passo, agora, a desenvolver, um dos argumentos ateus mais notáveis dentre os que visam a demonstrar a impossibilidade da existência do Deus teísta. O chamado argumento da impossibilidade busca mostrar que o conceito tradicional de Deus é marcado estruturalmente por contradições, de sorte que sua existência é logicamente impossível. Tradicionalmente, Deus é definido como um Ser necessário, onisciente, onipotente e moralmente perfeito. Também é concebido como o Criador livre do mundo e se diz dele que é imutável e transcendente. Alguns argumentos da impossibilidade incidem sobre um só atributo do complexo conceito de Deus, por exemplo, tentando mostrar que a noção de onisciência é, em si mesma, logicamente incoerente; outros argumentos atacam a combinação de atributos, mostrando, por exemplo, que não é logicamente possível que um ser seja onisciente e criador livre. Se qualquer das formas de argumentação for bem-sucedida, poderei mostrar que não pode haver um Deus tal como imaginado na tradição teísta.

Uma observação se faz aqui necessária. É sempre possível ao teísta rejeitar o argumento da impossibilidade alegando que o Deus que se mostrou impossível não é o Deus em que ele acredita. Se o teísta acabar por defender um Deus que é capaz de conhecimento, sem ser onisciente, pode furtar-se a alguns argumentos, mas sob o preço de ficar com um Deus perculiarmente ignorante. Se o teísta, por exemplo, afirmar que seu Deus é poderoso, mas não é onipotente, esse Deus pode parecer cada vez menos digno de receber tal título honorífico. O teísta também pode optar pela vagueza; algumas vezes também pode apelar para concepções bastante abstratas de Deus, que chegam a beirar os modos como o divino é pensado na mística oriental. Uma reação bastante frequente, talvez, não é a redefinição do conceito de Deus, mas o refúgio na vagueza, no uso contínuo do termo “Deus” em flutuações semânticas que carecem de qualquer especificação. Mas recorrer à vagueza só consegue afastar as críticas ateístas à custa da diluição do conteúdo tratado. Se a noção que um crente tem de Deus for vaga o bastante para se furtar a todos os argumentos da impossibilidade, então nem para ele é claro o objeto de sua crença – nem se o que toma como uma crença pia tem realmente conteúdo.

 

3.1. A impossibilidade da Onipotência

 

O mais famoso argumento contra a crença na existência de um Deus onipotente é o argumento da pedra. O argumento se estrutura com base na seguinte questão: poderia Deus criar um pedra tão pesada que nem ele mesmo conseguisse levantá-la? Devemos aqui recordar que a onipotência, como qualidade do conceito do Deus teísta, é definida como a capacidade que tem Deus de realizar tudo, de fazer tudo. Como ensina o Catecismo da Igreja Católica (2000, p. 80-81), “(...) nada lhe é impossível e Ele dispõe à vontade de sua obra, Ele é o Senhor do universo, cuja ordem estabeleceu, ordem esta que lhe permanece inteiramente submissa e disponível”. Ou ainda: “Deus criou tudo, governa tudo e pode tudo”. (ibid., p. 81).

1) Se a resposta à referida questão for “sim”, ou seja, Deus pode criar tal pedra, então há algo que Deus não poderia fazer – não poderia levantar a pedra;

 

2) se a resposta for “não”, há algo que Deus não poderia fazer – não poderia criar tal pedra.

 

Em qualquer caso, a razão se vê diante de uma antinomia ao tentar elucidar a onipotência de Deus. Em qualquer caso, há algo que Deus não poderia fazer. Segue-se que há coisas que nenhum Deus pode fazer; nem ele nem qualquer outro ser (já que podemos substituir o signo “Deus” por qualquer outro) poderia ser onipotente. Se a onipotência designa a capacidade para fazer qualquer coisa, tudo, então há um argumento mais simples a favor da ideia de que não pode haver um ser onipotente. Bastaria dizer que nenhum ser, nem mesmo Deus, poderia criar um círculo quadrado, ou um número inteiro par maior que dois e menor que quatro. Como, logicamente, não pode haver tais coisas, então não poderia haver um ser que as pudesse fazer. Tomás de Aquino tentou invalidar esse aspecto do argumento alegando que a onipotência exige a capacidade para desempenhar tarefas logicamente possíveis. Criar um círculo quadrado sequer é uma tarefa, dada a contradição evidente que carreia. No entanto, o esforço de São Tomás para salvar a onipotência divina reforça o argumento de que o poder de Deus está submetido ao poder regulador da lógica humana. O argumento da pedra, todavia, pode facilmente especificar uma tarefa. Basta reformular a questão assim: poderia Deus criar uma pedra de betume tão pesada que nem ele mesmo conseguisse levantá-la?

Se é impossível mudar o passado, a onipotência deve excluir de seu domínio semântico a possibilidade de mudar o que aconteceu. Se Deus não pode mudar o passado, ele tem limites; portanto, não pode ser onipotente.

  

3.2. A impossibilidade da onisciência

 

Diz-se que Deus é onisciente na medida em que é um ser capaz de conhecer tudo o que é conhecível ou tudo o que pode ser conhecido. A onisciência de Deus inclui a presciência: ele é capaz de saber o que vai acontecer no futuro.

Há, contudo, várias dificuldades na onisciência que resultam de diferentes tipos de conhecimento. Outra ordem de dificuldades provém das mais sofisticadas descobertas da lógica contemporânea e da teoria dos conjuntos. Vou-me deter apenas nas dificuldades que resultam das diferentes maneiras de definir o conhecimento.

Quando falamos de conhecimento, podemos tomá-lo no sentido de:

 

1) conhecimento proposicional (saber que x é verdade)

 

2) saber como se faz algo (knowhow) (saber andar de bicicleta)

 

3) conhecimento de coisas e sentimentos por contato (eu sei o que é estar magoado).

 

Se Deus é onisciente, ele o é nas três acepções. Relativamente a 1), Deus, mesmo que detenha todo o conhecimento proposicional possível, não tem o saber como descobrir o conhecimento proposicional que não tem. Relativamente a 2), se Deus não tem corpo, já que é um ser incorpóreo, não pode saber fazer malabarismos, não pode saber o que é ter sensações. Relativamente a 3), Deus, não tendo imperfeições morais, não pode conhecer a luxúria, a inveja. Porque é perfeito, não pode conhecer o medo, a frustração nem o desespero.

Deus, não tendo ignorância, porque supostamente onisciente, não poderia conhecer o que é ignorância. Logo, não pode haver qualquer ser onisciente.

 

 

 

 

3.3. A impossibilidade de atributos combinados

 

Quando consideramos a relação entre os atributos de Deus, as ilogicidades são igualmente evidentes. Tomemos, em primeiro lugar, a combinação do atributo “criador livre” com o atributo da “onisciência”. O Catecismo diz que Deus é o Criador que mantém e sustenta a criação – “Deus cria livremente do nada” (p. 88). Deus dá o ser e a existência a sua criatura (o mundo todo existente) e “a sustenta a todo instante no ser” (p. 90). Seria a liberdade de Deus compatível com sua onisciência? A resposta é não. Não se pode fazer uma escolha livre entre A e B, se se souber com completa certeza antecipadamente que se toma o curso de ação A. Nesse caso, uma vez que um Deus onisciente saberia antecipadamente (e desde toda a eternidade) todas as ações que levaria a cabo, não pode haver qualquer momento no qual Deus possa fazer uma escolha genuína.

Vejamos agora se a onipotência é compatível com a perfeição moral. Um ser pode ser onipotente e, ao mesmo tempo, incapaz de fazer o mal, de pecar? Ora, se Deus não pode agir imoralmente (há algo que ele não pode fazer), é-lhe impossível enfrentar quaisquer escolhas morais genuínas. Deus não pode ser louvado por fazer escolhas corretas, e se Deus não é moralmente louvável, dificilmente se pode considerá-lo moralmente perfeito. A perfeição moral parece excluir precisamente a possibilidade da escolha entre o bem e o mal, que a perfeição moral exige.

Quando tomamos a intemporalidade e a imutabilidade de Deus conjuntamente com a onisciência, encontramos novas inconsistências. A intemporalidade e a imutabilidade são atributos inconsistentes com a onisciência relativamente a fatos conhecíveis apenas num momento particular do tempo; e a imutabilidade, em particular, é incompatível com a noção de um Deus criador, já que, ao criar, Deus muda seu estado de não-criador (que existia juntamente com o nada) num tempo t para criador num tempo t’, com todos os encargos e compromissos que este estado implica.

 

3.4. Contradições da Criação

 

 

Como um Deus, definido como imaterial, puro espírito, infinito e perfeito, poderia ter criado um mundo material imperfeito?

Lucrécio ensinou que, se os Deuses são perfeitos e se, ipso facto, encerram em si mesmos todas as realidades possíveis, como conceber uma realidade que ainda não existia antes da criação? Vamos esclarecer aqui os conceitos teológicos que estão implicados nesta etapa da argumentação. No sentido teológico, o infinito é aquilo que, para ser, não precisa de outro, sendo então ilimitado potência de ser. Assim, a infinidade de Deus consiste na ideia de que Deus não é limitado por nada em sua potência de ser, Deus não depende de nada além de si para ser. Deus é infinito porque sua natureza transcende todo e qualquer grau de perfeição. Perfeição significa aqui que Deus é a totalidade do Ser. A perfeição de Deus repousa na crença de que Deus possui totalmente o ser. Deus e o ser é o mesmo. Se Deus é sumamente perfeito, de nada carece, já que ele encerra todas as realidades possíveis, como lembra Lucrécio. Se Deus é o infinito em ato, nenhuma produção suplementar de existência será possível. Logo, a Criação é impossível.

No entanto, se Deus tem necessidade da Criação, ele é imperfeito porque tem necessidade. E toda necessidade é uma carência. Se Deus criou por suberabundância de amor, por que Deus ofereceu um mundo tão repleto de males e sofrimentos? Toda criação é, por natureza, finita; portanto, é imperfeita relativamente ao infinito (Deus). Como o infinito (Deus) conseguiu produzir o finito (inferior)? Se a perfeição conseguiu tão facilmente se degradar, é porque ela era imperfeita.

Se Deus é puro espírito, como produziu a matéria? Ora, de modo geral, os filósofos definiram a matéria (hýle) como substância comum aos corpos. Por abstração, a matéria significa também a realidade sensível de que são feitas todas as coisas. Segundo Aristóteles, a matéria é phýsis (natureza), o universal do movimento e da mudança. É o ser em potência, que deve passar ao ato ao receber a forma (eidos). Tanto para Descartes quanto para Espinosa, matéria é extensão. É uma substância extensa em comprimento, largura e profundidade. Suas características principais são a divisibilidade e impenetrabilidade.  Matéria é o corpóreo, o sensível. Recobre a totalidade de tudo que existe no universo. Na física moderna, a matéria é granular, quando considerada em sua profundidade; é um aglomerado de átomos e está em constante movimento. É a própria energia. A matéria que tocamos e sentimos é, na verdade, uma imensa quantidade de energia “comprimida”. A energia é, portanto, a substância da qual todas as coisas são feitas, incluindo todas as partículas elementares, os átomos e as quatro partículas estáveis no mundo atômico: o próton, o elétron, o fóton e o nêutron. Os físicos atualmente assumem a existência de um imenso oceano de partículas nucleares chamadas hádrons, as quais se decompõem em partículas menores: os quarks (que, no entanto, nunca foram observados). Em suma, o mundo é matéria em movimento, porque não existe matéria sem movimento e nem movimento sem matéria (Schöpke, 2009).

Tendo criado a matéria, que relações ela tem com Deus, o seu Criador? Se ela é independente dele, Deus deixa de ser onipotente e infinito: torna-se finito, limitado pela criação. Se a matéria é uma emanação da substância de Deus, então Deus tem de assumir a sua materialidade, a finitude e os seus defeitos. Se Deus criou a matéria, o fez porque sentiu-se carecido dela. Mas, nesse caso, Deus não é perfeito ou a materialidade sempre fez parte da perfeição. Vale lembrar que Plotino tentou resolver esse problema, de modo bastante insatisfatório, distinguindo a matéria inteligível, que é divina e eterna, da matéria sensível, que não tem essas qualidades. Na qualidade de substratum (hypokeímenon) físico, a matéria é o não-ser e, assim, ela é o mal.

 

3.5.  A impossibilidade divina

 

O filósofo Carnéades de Cirene notou que o conceito de Deus teísta é intrinsecamente contraditório. Como é impossível existir uma contradição de si mesmo, concluiu pela impossibilidade da existência de Deus. Para Carnéades, Deus não pode ser onipotente e também virtuoso, porque onipotência supõe um estado de eterna perfeição, mas virtude moral supõe imperfeição superada. Assim, por exemplo, a coragem é a virtude que consiste em dominar o medo em face de uma situação perigosa. Que sentido há em dizer que um Deus Todo-Poderoso, que presumivelmente, nada teme, já esteve em uma circunstância tal em que pudesse praticar a virtude da coragem? Se tomamos a alegação teísta segundo a qual Deus é onipotente e onisciente, podemos mostrar que tais atributos são inconsistentes entre si, alegando que, se Deus é onisciente, é capaz de antever tudo, inclusive seus atos futuros. Mas, sendo onipotente também, Deus pode anular tudo, tornando incertas todas as suas previsões, inclusive as previsões sobre seu próprio comportamento.

 

A título de conclusão, parece-me certo dizer que o conceito de Deus teísta, na medida em que se inscreve na história do pensamento ocidental como signo do divino submetido à razão discursiva, herda as tendências irracionais da própria razão. A suposta onipotência de Deus é frágil em face das contradições em que se vê enredada a razão humana, prova de que Deus não é senão um complexo de imagens hipostasiadas do pensamento imaginativo humano, cujo caráter selvagem a razão em si mesma não consegue domar. Como bem escreve Verret (1975, p. 58):

 

“O metafísico idealista não encontra em Deus senão as suas próprias contradições inconscientes. Nega a contradição à face da realidade: ela não se manifesta aí com mais acuidade, dentro de seu pensamento. Define Deus segundo critérios da lógica formal por uma série de atributos isolados, absolutos e imóveis (a infinidade, a perfeição etc.) excluindo os seus contrários. Mas este Deus sem contradições supostas não consegue pensar, senão ao preço da contradição! A contradição desprezada vinga-se. Sobre ele. E até sobre Deus. Pois se Deus é pura ideia, toda contradição na ideia de Deus recai em Deus”.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Catecismo da Igreja Catótilca. São Paulo: Loyola, 2000.

 

FERRARI, Lilian. Introdução à Linguística Cognitiva. São Paulo: Contexto, 2011.

 

GUITTON, Jean; BOGDANOV, Grichka; BOGDANOV, Igor. Deus e a Ciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

 

MCKENZIE, Stven L. Como ler a Bíblia: História, profecia ou literatura. São Paulo: Edições Rosari, 2007.

 

SCHÖPKE, Regina. Matéria em movimento: a ilusão do tempo e do eterno retorno. São Paulo: Martins Fontes, 2009

 

SEIFE, Charles. Alfa e Ômega: a buscado pelo início e o fim do Universo. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

 

TRIGUEIRO, Edmac. História do Universo. Osasco, SP: Novo Século Editora, 2011.

 

VERRET, Michel. Os marxistas e a religião. Lisboa: Prelo, 1975.

 

 

WALTERS, Kerry. Ateísmo: um guia para crentes e não crentes. São Paulo: Paulinas, 2015.