quarta-feira, 3 de julho de 2019

A terra (...) tem uma pele; e essa pele tem doenças. Uma delas, por exemplo, chama-se “homem”. ( Zaratustra)



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O ANIMAL DOENTE
O HOMEM COMO DOENÇA DA TERRA

PARTE 1





1. Vida como vontade de potência: perspectivismo e valor


Esta primeira seção de nosso estudo é destinada menos a uma dissertação cuidadosa e delongada sobre a concepção de Nietzsche de vida como vontade de potência, de perspectivismo e valor do que a um descerramento do horizonte hermenêutico do projeto crítico nietzschiano de transvaloração de todos os valores a partir da elucidação do que Nietzsche entende por vida, perspectivismo e valor. O que pretendemos é aplanar o solo de conceitos a partir dos quais se estenderá a discussão empreendida por nós neste trabalho. Sobre cada um dos temas que se põe aqui como objetos de nossa consideração não recairão aprofundamentos. O que pretendemos é tão somente iluminar, no espectro semântico da abordagem deles em Nietzsche, os aspectos que se inscreverão, no contexto da presente discussão, como pressupostos teóricos e metodológicos.
Comecemos por considerar o que nos parece ser importante na concepção nietzschiana de vida. O que nos parece indispensável sublinhar, na concepção nietzschiana de vida, é que a vida - lê-se em Vontade de Potência (2011, § 296) - “aspira a um sentimento máximo de potência”. Portanto, na concepção de vida como vontade de potência, importa-nos reter a ideia de que o que o querer (a vontade) quer é um aumento de potência. Mas a concepção de vida como vontade de potência é já uma interpretação da vida. A vida é um complexo de interpretações. É à luz da interpretação da vida como vontade de potência, ou seja, como jogo de relações agonísticas de forças que constituem a vida e o mundo, que Nietzsche pensará a moral como antítese da vida, como uma forma de interpretação, ou ainda como uma forma assumida pelas forças em conflito orientada para o enfraquecimento, a negação da vida. A vida, para Nietzsche, é um acumular de forças e também sempre multiplicidade em devir em meio a processos de singularização. O mundo é um campo de relações agonísticas de forças. O que existe são forças e relações de forças. Cada força é um princípio relacional de configuração de mundo. A diversidade do mundo deveniente é resultado da atuação das forças no jogo relacional agonístico que entre elas se estabelece. O corpo que eu sou é integrado por muitas forças. O próprio corpo é efetivação de forças, cada um de nós é um centro de forças, é um centro de vontades de potência. Corpo é um arranjo vital produzido como resultado do quantum de forças predominantes em conflito. Os instintos que compõem o corpo que eu sou também interpretam. Os instintos são produto da incorporação de valores. Como equivalente de afeto, o instinto constitui o centro de perspectivas a partir do qual uma interpretação é produzida; ele é uma expressão particular da vontade de potência.
O conceito de vontade de potência é, em Nietzsche, um modo de interpretação da vida e funcionará, no seu projeto de transvaloração de todos os valores, tanto para a avaliação do valor dos valores quanto para a instituição de um novo horizonte hermenêutico que tornará possível a demolição dos ídolos da tradição. Com a vontade de potência, a vida torna a colocar-se em seu centro de gravidade.
Passemos, doravante, a considerar o que Nietzsche entende por perspectivismo e, no âmbito desse conceito, o que devemos entender por valor e interpretação. No fragmento 311 de Vontade de Potência, obra já referida, Nietzsche nos esclarece sobre a seguinte relação entre vontade de potência e fixação de valores.


Todas as escalas de valores não são mais que consequências e perspectivas mais estreitas ao serviço dessa única vontade: a própria escala de valores não é mais que essa vontade de potência. (...)
Dar valor do ser: mas essa avaliação ainda faz parte do ser – e ao dizermos não, realizamos ainda o que somos... Impõe-se que aquilatemos o absurdo dessa atitude que quer julgar a existência, e ainda procura adivinhar depois o que sucede com isso. É sintomático. (ênfases no original).


Toda vontade de potência é um princípio de valoração; cada vontade de potência valora. O perspectivismo em que se esteia a filosofia nietzschiana recusa o pressuposto metafísico, segundo o qual existiria a coisa-em-si como suporte metafísico do devir. Ademais, o perspectivismo assenta na afirmação de que não há um mundo como totalidade ordenada, dotado de sentido e finalidade, para além de toda interpretação ou perspectiva. Portanto, conceber o mundo como atravessado pelas perspectivas significa destituí-lo de fundamento. Esse mundo – o nosso mundo – não tem ser porque nada há nele para além do devir. Cremos estar expresso neste parágrafo aquilo que não pode ser esquecido na concepção de perspectivismo em Nietzsche: que o mundo não tem ser porque nada há nele para além do devir. Mas precisamos desenvolver mais nossa consideração sobre o perspectivismo. Precisamos lançar luzes sobre o que Nietzsche entende por valor e interpretação. Para tanto, devemos ouvir o próprio Nietzsche, que nos escreve no Crepúsculo dos Ídolos (2006), na seção 5 de Moral como antinatureza :

Ao falar de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos força a estabelecer valores, ela mesma valora através de nós, ao estabelecermos valores... Disto se segue que também essa antinatureza de moral, que concebe Deus como antítese e condenação da vida, é apenas um juízo de valor da vida – de qual vida? de qual espécie de vida? – Já dei a resposta: da vida declinante, enfraquecida, cansada, condenada. A moral, tal como foi até hoje entendida – tal como formulada por Schopenhauer enfim, como “negação da vontade de vida” – é o instinto de décadence mesmo, que se converte em imperativo: ela diz: “pereça!” – ela é o juízo dos condenados. (grifo nosso).



No mundo, enquanto campo relacional agonístico de forças, certas forças, estando em conflito com outras forças, podem dominá-las, podem preponderar sobre elas. São essas forças preponderantes que criarão valores, sentidos. No caso do vivente humano, os processos valorativos e interpretativos mobilizam seus afetos, seus instintos; enfim, todo o seu corpo. No animal humano, portanto, não é uma “alma”, uma substância imaterial, separada do corpo, que valora.[1] Os valores que vicejarão serão sempre o das vontades de potência hegemônicas, independentemente de elas produzirem modos de ser decadentes. Aliás, é possível distinguir entre dois sentidos básicos em que Nietzsche nos fala de vontade de potência. No primeiro sentido, temos uma vontade de potência ascendente, que vê no devir a condição de possibilidade de mais ser; no segundo sentido, temos uma vontade de potência decadente, que vê no devir um processo corruptor de ser. Nesse caso, o devir impossibilita as formações de unidade. A vontade de potência decadente produz tipos (isto é, modos de ser de arranjos vitais) decadentes, negadores da vida. Mas a vontade de potência decadente também é produtora de valores.
Todo valor, para Nietzsche, é um sentido. Valorar é uma forma de impor sentido. Na medida em que é vontade de potência, a vida também se desenvolve como processo de interpretação, de criação de sentido. Se o mundo, depois do anúncio da morte de Deus, revela-se como mundo constituído de múltiplas relações fenomênicas, o sentido “é a preponderância de uma determinada relação no confronto com as demais” (Cabral, 2014, p.184). O sentido, portanto, organiza a multiplicidade de elementos fenomênicos que, inter-relacionados, compõem o mundo. Se, para Nietzsche, o mundo é multiplicidade de elementos relacionais, a interpretação é o processo produtor de um sentido. O mundo que, na tradição metafísica, foi pensado mediante as categorias da razão, da unidade, da finalidade e de ser não é senão mundo conformado segundo um processo interpretativo dentre outros possíveis. É na relação necessária com os processos interpretativos, produtores de um sentido, que devemos entender a noção de perspectiva em Nietzsche. À luz do pensamento do perspectivismo, toda perspectiva é decorrente dos processos interpretativos produtores de um sentido que, por sua vez, é responsável por organizar a pluralidade dos elementos fenomênicos inter-relacionados. A perspectiva é sempre indicadora da hegemonia de um princípio interpretativo, o qual, por sua vez, sintetiza outros processos interpretativos. Na medida em que toda conformação do mundo indica apenas a hegemonia de uma perspectiva determinada e porque a perspectiva, por definição, rejeita qualquer fundamentação num “em si”, a conformação do mundo é sempre passível de novas configurações. Em outras palavras, é o próprio mundo que se torna passível de infinitas interpretações.
Que quer dizer, em suma, o perspectivismo? Que não há um ponto de vista exterior ao mundo a partir do qual podemos enunciar a questão “o que é o mundo”. Nesse sentido, a vontade de potência, conciliando-se com o perspectivismo, designa essa mesma impossibilidade expressa pelo perspectivismo.
A vontade de verdade é também uma forma de vontade de potência, já que ela também cria valores e fixa sentido; mas se trata de uma forma de vontade de potência fraca, caracterizada pelo niilismo e pelo cansaço da vida. Segue-se daí que tanto a vontade de verdade quanto a vontade de potência acabam por representar duas perspectivas contrárias em face do mundo: a vontade de verdade quer encontrar uma verdade que estaria já dada no mundo; é uma perspectiva niilista que pressupõe haver a instância do em-si como suporte ontológico do mundo deveniente; a vontade de potência, pelo menos em sua conformação de forças ativas, ao contrário, nega haver um sentido do mundo já dado independente do trabalho interpretativo do homem e reivindica para si a tarefa de criar sentidos e estabelecer valores. Toda interpretação, portanto, reflete uma vontade de potência que interpreta.


A vontade de potência não pretende dizer o que o mundo é, mas como o sujeito deve interpretar o mundo se quiser pensar no máximo de sua potência. Não pretende descrever, mas legislar. Nesse sentido, dizer que o mundo é vontade de potência é um enunciado que reflete não a verdade do mundo, mas a potência da própria interpretação. (Rocha, 2003, p. 64, ênfase no original).

                                                                                   
Não rejeitando a compreensão da autora no que toca à concepção de vontade de potência como reflexo da potência da interpretação, acrescentamos, no entanto, que o enunciado o mundo é vontade de potência significa o mundo é embate relacional de forças, de instintos que expressam processos interpretativos que fixam um sentido (entre outros inúmeros possíveis) para o mundo. Ora, como a vontade de potência no homem constitui apenas um caso específico da vontade de potência em geral, como o homem é um ser vivo integrado no mundo, sem jamais poder transcender a ele, o ato de interpretar só pode expressar a vida interpretando a si mesma. Assim, “a vontade de potência não é outra coisa que vontade de interpretar”. (Rocha, ibid., p. 66). Quem interpreta? A resposta só pode ser: a vontade de potência. Sendo um conceito antimetafísico, a vontade de potência recobre a totalidade do mundo. A vontade de potência é um nome para designar o mundo como puro aparecer, como devir que é o próprio real.
 Toda moral é uma interpretação. A moral é uma interpretação do mundo, é expressão da vontade de mentir, de falsificar e enfraquecer a vida. Segundo Nietzsche, “a moral é tão imoral como qualquer outra coisa sobre a terra; a moralidade, ela mesma, é uma imoralidade”. (Nietzsche, 2008, § 308). No fragmento 116 de A Gaia Ciência (2012), ele nos ensina sobre o modo como a moral constituirá a condição do animal humano como animal de rebanho. Atentemos para a compreensão que Nietzsche tem da moral como uma forma de avaliação da vida:

Onde quer que deparemos com uma moral, encontramos uma avaliação e hierarquização dos impulsos e dos atos humanos. Tais avaliações e hierarquizações sempre constituem expressão das necessidades de uma comunidade, de um rebanho (...). Com a moral o indivíduo é levado a ser função do rebanho e a se conferir valor apenas enquanto função.


 Nietzsche, ao se debruçar sobre o problema da moral, a qual é entendida como uma interpretação baseada num sistema de valores que exprimem as condições de vida de um tipo humano particular, embora, muitas vezes, fale da moral de um modo geral, quando diz, por exemplo, “enquanto acreditamos na moral, condenamos a existência” (Nietzsche, ibid., § 6), Nietzsche não pretendeu destruir toda e qualquer moral. Nietzsche edificou uma crítica corrosiva contra uma espécie de moral e um tipo de homem produzido por ela. Uma passagem emblemática de Ecce Homo (2011b) dá-nos a conhecer a espécie de moral e o tipo de homem que estavam na mira da crítica destrutiva nietzschiana:


No fundo são duas negações que a minha palavra imoralista encerra. Eu nego, por um lado, um tipo de homem considerado até agora como supremo, os bons, os benévolos, os benéficos; nego, por outro lado, uma espécie de moral que, por sua autoridade e supremacia, apareceu como a moral em si– a moral de decadência, em termos mais precisos, a moral cristã.[2] (ênfases nossas).




Nietzsche tem em mira, portanto, a moral, em sua forma ascética, dualista, de inspiração platônica e prolongada pelo cristianismo. Devemos também atentar para o fato de que Nietzsche, ao insurgir-se contra a moral cristã cujos valores foram (e ainda são hoje, em grande medida, em muitas partes do mundo) determinantes da formação cultural do homem ocidental, não pretendeu negar a possibilidade de viver segundo algum conjunto de valores, mas esses valores devem estar a serviço da vida, devem servir para a produção de uma vida potencializada. Lembremos que Nietzsche reconhece que nós, enquanto viventes, somos obrigados a valorar, a interpretar, a significar o mundo, uma vez que a vida, sendo vontade de potência, é interpretação. No aforismo 114 de A Gaia Ciência (2012), escreve Nietzsche: “não existem vivências que não sejam morais no âmbito da percepção sensível”. Como se pode ver, se a moral é um conjunto de sentidos que servem para nortear o viver, então não pode deixar de ser ela um fenômeno intrínseco à vida.
Nietzsche mobiliza todo um arsenal crítico poderoso para derribar os alicerces de um tipo de moral que se desenvolveu como antítese da vida, para enfraquecê-la enquanto vontade de potência, enquanto jogo de relações de forças que querem dominar, expandir-se. Atacando essa forma de conformação da moral, Nietzsche ataca o niilismo e a metafísica que lhe estão atrelados.
Nietzsche – o contrário de um niilista – esforçou-se por descortinar ao homem as formas pelas quais ele poderia recuperar a pujança de que o adoecimento moral o privou. Nietzsche encontrou valor, sentido onde o niilista não via senão um abismo intransponível, um vácuo de sentido que condenava o homem a existir sem que lhe fosse possível divisar qualquer referencial balizador. O filósofo de Röcken ensinou seu amor fati – seu “engajamento moral alegre”, subsumido na fórmula “eu quero” – como o grande remédio contra o mal do niilismo.
O que se seguirá, nas próximas páginas, é o desenvolvimento de uma hipótese interpretativa da condição do homem como animal doente, do homem que se tornou o tirano da vida, do homem que é, para usar as palavras de Schöpke, uma guerra contra si mesmo, do homem que é “um não sonoro contra tudo o que nele é natural, animal e mortal”. (Schöpke, 2016, p. 280). É em consonância com estes termos que nos cumpre examinar o problema da doença homem, do homem como animal que submeteu toda a vida à tirania do homem:



O homem é o tirano da vida, de toda vida. Ele não pode ver nada livre, forte e belo, em si e no mundo, sem desejar imediatamente conter, aprisionar, diminuir suas forças. Ele não é a criatura divina de nossos sonhos. (Schöpke, ibid., p. 281).




2. O homem como doença da terra
A terra (...) tem uma pele; e essa pele tem doenças. Uma delas, por exemplo, chama-se “homem”.

  Zaratustra

Não há diferenças fundamentais entre o homem e os animais nas suas faculdades mentais (...) os animais, como os homens, demonstram sentir prazer, dor, felicidade e sofrimento.

Darwin

No início era o verbo e junto dele, como que por um efeito, surge o animal-homem, esse animal simbólico dotado da capacidade de esquecimento. A relação desse animal simbólico com o mundo é permeada pela distinção entre dois registros: o dos corpos materiais e o da linguagem. Destarte, ensina-nos Garcia-Roza (1990, p. 16):

(...) tendo feito sua emergência, as palavras passaram a significar os corpos naturais. Melhor dizendo: a partir do surgimento da linguagem, todos os objetos do mundo passaram a ser significativos. Ao ser através do qual a palavra fez sua emergência – e que foi por ela constituído – chamamos homem. A palavra não fez sua emergência no homem; o homem é um efeito dessa emergência. Tendo feito sua emergência, a palavra ressignificou ou simplesmente significou o próprio corpo com suas faltas, assim como os objetos do mundo. O efeito imediato foi a desnaturalização do corpo, das suas necessidades e dos objetos do mundo, assim como o surgimento de uma nova ordem: a ordem simbólica. (ênfase no original).

 O surgimento da ordem simbólica tornou possível o desenvolvimento da cultura[3]. Pela expressão ordem simbólica[4], entende-se a organização do mundo operada pela faculdade de simbolização, de que é dotado o animal humano, e graças à qual ele representa o real por um signo e compreende o signo como representante do real. Em outras palavras, a faculdade de simbolização permite ao homem transformar os elementos do mundo em conceitos, por meio dos quais ele estrutura suas experiências de mundo e lhes confere sentido.
A constituição da ordem simbólica está na origem do processo de desnaturação do homem. A faculdade da linguagem tornou possível o desenvolvimento da cultura. A cultura passou a ser o mundo próprio do homem, mundo cuja essência é ser mundo simbólico, um campo de produção de ficções[5]. Nossa vida depende da produção de ficções. Ficções são criações da imaginação. Elas não são nem verdadeiras nem falsas. Talvez, não as escolhamos; não obstante, elas conformam e estruturam, dotando de sentido, nossas vivências e experiências coletivas. As ficções não podem ser geradas ao bel-prazer; talvez, por isso, não possam ser descartadas sempre que desejamos. Ainda que as ficções, sem as quais o que nos restaria seria o desespero niilista, sejam obra do engenho e da atividade humana, elas escapam ao controle do animal humano. Importa-nos, portanto, destacar o fato de que esse mundo donde grandes edifícios de representação simbólica (a religião, a arte, a filosofia, a ciência) se elevam “como gigantescas presenças de outro mundo” (Berger & Luckmann, 2007, p. 61) são formas de mundo geradas, fabricadas graças ao trabalho de produção de ficções viabilizado pela linguagem.
Ocorre, contudo, que, ao ser um efeito dessa ordem simbólica, o animal simbólico, que é o homem, passa a viver sob o modo de um autoengano, sob o modo do esquecimento do caráter ficcional, metafórico do signo. Ora, é a partir dos signos ou da linguagem simbólica que o homem construirá o mundo das ficções que estarão a serviço da depreciação da vida. De fato, as ficções são necessárias à vida e nem todas as ficções estão a serviço da negação da vida, como, aliás, nos lembra Nietzsche. A ficção só passa a ser um valor superior à vida, “na medida em que permite o distanciamento a partir do qual a vida pode ser julgada”. (Mosé, 2011, p. 234). Não é, portanto, a produção de ficções um problema em si; na verdade, o problema está em tomar as ficções como verdade. Um diagnóstico, filosoficamente completo e consistente, que pretenda ser a expressão da compreensão do modo como o homem, sobretudo este tipo de homem que, no Ocidente, foi cunhado pela moral platônico-cristã, veio a se tornar, existencialmente, um animal doente tem de partir da crítica nietzschiana da relação metafísica que o homem, desde que os símbolos passaram a infestar e a orientar sua relação com o mundo, estabeleceu com a linguagem, porquanto “a linguagem é nossa ficção primeira, é ela que permite o universo imaginário que vamos chamar “mundo verdadeiro”. (ibid., p. 235). A crítica nietzschiana à linguagem e à gramática é uma crítica da relação metafísica que o homem estabeleceu com a linguagem. O homem, como animal de rebanho, vive uma vida anestesiada, reverenciando e adotando passivamente as significações partilhadas e herdadas por foça de suas práticas culturais. Entre as crenças partilhadas com seus semelhantes, está a crença na correspondência entre as palavras e as coisas. Essa relação de correspondência não só constituiu a condição de possibilidade para o surgimento do platonismo com sua moral decadente, como também constituiu a condição do homem como animal de rebanho e seu adoecimento como animal, cuja vontade de potência niilista parece ter definido ontologicamente a sua condição no mundo. Quando, por emergência da palavra no mundo, o animal humano se tornou animal simbólico, se lhe tornou dominante uma vontade de duração reforçada pela sua crença num mundo durável, a qual, por sua vez, remonta à experiência de duração originária dele com os signos, consoante nos faz ver Mosé (ibid.):


Os signos são a nossa primeira experiência de duração; é a duração ficcional da palavra que fornece a crença em um mundo durável; por serem sempre suprassensíveis, os signos são um tipo de Deus. Mas os signos são produto de um acordo, de uma convenção. É somente com o esquecimento do caráter ficcional dos signos que o homem pode acreditar que os sinais correspondem as coisas.



Na esteira de Nietzsche, desconstruir o edifício dos valores morais que conformam a vida do homem na modernidade consiste, em última instância, na dilapidação dos fundamentos simbólicos com que tal edifício foi erguido. A crítica genealógica que, afinada com o espírito nietzschiano, pretenda fazer coro à necessidade de reconduzir o homem à natureza, a saber, à necessidade de lhe transfigurar sua condição existencial de tal sorte que, no arranjo de forças que o constituem, sobressaia uma vontade de potência que seja expressão de um querer criador, que seja expressão de transmutação de sua estrutura instintual, de intensificação da potência, deve começar por trazer à luz o fato de que todo o trabalho de domesticação do homem levado a efeito pela cultura, e que redundou na espiritualização de suas paixões, no enfraquecimento de seus instintos, tem sua origem na relação metafisicamente originária que o homem estabeleceu com a linguagem. Fazer retornar o homem à natureza não significa pretender que o homem viva em estado selvagem, mas fazer triunfar sobre as más interpretações e falsificações antropomórficas da natureza uma interpretação da natureza que se afirme como imperativo do instinto.
Na próxima subseção, passaremos em revista os elementos mais importantes da crítica nietzschiana dessa relação, metafisicamente orientada, do homem com a linguagem.



2.1. A linguagem como exército de metáforas

Em Assim Falou Zaratustra (2011), Nietzsche, já no Prólogo, escreve: “o homem é algo que deve ser superado”. O homem que deve ser superado é esse tipo humano cujo corpo, enquanto arranjo relacional de forças, enquanto arranjo vital resultante do quantum de forças predominantes em conflito, se tornou enfraquecido, domesticado, declinante pelo trabalho das vontades de potência que configuram a interpretação moral da vida. Nietzsche insiste em que esse homem deve querer ser declínio; ser declínio é sacrificar-se a terra, “para que um dia a terra venha a ser do super-homem” [6] (ibid., p. 16).
Num aforismo de Humano Demasiado Humano (2005, p. 20-21), Nietzsche retoma o problema da linguagem, que havia sido desenvolvido em Sobre a verdade e a mentira em sentido extramoral:

A importância da linguagem para o desenvolvimento da cultura está em que nela o homem estabeleceu um mundo próprio ao lado do outro, um lugar que ele considerou firme o bastante para, a partir dele, tirar dos eixos o mundo restante e se tornar seu senhor. Na medida em que por muito tempo acreditou nos conceitos e nomes de coisas aeternae virates [verdades eternas], o homem adquiriu esse orgulho com que se ergueu acima do animal: pensou ter realmente na linguagem o conhecimento do mundo. O criador da linguagem não foi modesto a ponto de crer que dava às coisas apenas denominações, ele imaginou, isto sim, exprimir com as palavras o supremo saber sobre as coisas; de fato, a linguagem é a primeira etapa no esforço da ciência. Da crença na verdade encontrada fluíram, aqui também, as mais poderosas fontes de energia. Muito depois – somente agora – os homens começam a ver que, em sua crença na linguagem, propagaram um erro monstruoso.

A crítica da relação metafísica que o homem estabeleceu com a linguagem, levada a efeito por Nietzsche, culminará, no contexto de seu trabalho de transvaloração de todos os valores, não só com uma crítica à metafísica e à verdade como valor metafísico, mas também ratificará a posição nietzschiana, segundo a qual “o homem não é nenhum progresso em relação ao animal”.[7] Como a faculdade da linguagem tornou possível no homem o desenvolvimento do pensamento conceitual, abstrato, como o uso de símbolos, a capacidade de articular signos em discurso constitui a base daquilo que chamamos razão no homem, este "animal declinante”, “uma pequena e inquietante espécie de animal que – afortunadamente tem o seu tempo de vida sobre a Terra” e que “não passa de um instante, de um incidente”[8], passou a crer que o universo lhe teria sido destinado e que um lugar especial, elevado, lhe pertence por direito. Ao passar em revista o que nos parece ser importante na crítica nietzschiana da relação metafísica do homem com a linguagem, pretendemos destacar não tanto o aspecto epistemológico dessa crítica, a saber, a desconstrução da crença na verdade e da crença de que a linguagem nos possibilitaria o conhecimento verdadeiro do mundo, mas sobretudo  a reinscrição da condição existencial do animal humano no destino comum que ele compartilha com as demais espécies enquanto um ser natural.
Atentemos para o seguinte trecho de Nietzsche, colhido de Sobre Verdade e Mentira no sentido extramoral (2008, p. 34-35). Neste trecho, Nietzsche introduz o problema que, embora permeando toda a sua crítica à linguagem, se lhe impõe desde o início:

(...) Toda palavra torna-se de imediato um conceito à medida que não deve servir, a título de recordação, para a vivência primordial completamente singular e individualizada à qual deve seu surgimento, senão que, ao mesmo tempo, deve coadunar-se a inumeráveis casos, mais ou menos semelhantes, isto é, nunca iguais quando tomados à risca, a casos desiguais portanto. Todo conceito surge pela igualação do não-igual. Tão certo como uma folha nunca é totalmente igual a uma outra é certo ainda que o conceito de folha é formado por meio de uma arbitrária abstração dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do diferenciável, despertando então a representação, como se na natureza, além das folhas, houvesse algo que fosse “folha”, tal como uma forma primordial de acordo com a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, contornadas, coloridas, encrespadas e pintadas, mas por mãos ineptas, de sorte que nenhum exemplar resultasse correto e confiável como cópia autêntica. (grifo nosso).


No trecho supracitado, Nietzsche chama-nos a atenção para o que está em jogo na gênese da formação do conceito. Todo conceito opera uma redução da diversidade, das diferenças que se acham no mundo da experiência sensível. Aristóteles foi quem nos legou a concepção de conceito como ideia substancial, ou seja, uma ideia que abrigaria apenas as características essenciais, universais das coisas, por abstração dos aspectos acidentais, não essenciais. Na concepção clássica de conceito, que remonta a Aristóteles, o conceito é um conjunto de propriedades, individualmente necessárias e suficientes. O conceito se define como uma lista de propriedades necessárias suficientes. O animal humano tem necessidade de ordenar o mundo das suas experiências sensíveis, ele tem necessidade de organizar a variedade difusa de estímulos em objetos particulares invariantes. A função de simbolização própria da linguagem lhe permite distribuir esses objetos em classes de membros equivalentes. Identidade e equivalência são, portanto, dois princípios de categorização e de conhecimento do mundo. Pelo princípio de identidade, reconhece-se uma coisa, em diferentes circunstâncias, como uma só e mesma coisa. Pelo princípio da equivalência, reconhecem-se dois objetos com suas propriedades comuns como exemplares de uma mesma classe. São os conceitos que tornam possível a operação desses princípios. Os conceitos, quando são fixados por meio das expressões linguísticas, passam a assumir a forma de categorias conceituais, as quais tornam possível agrupar as coisas que se dão à nossa experiência sensível em classes específicas.
O que nos parece importante reter no trecho de Nietzsche é a ideia de que “todo conceito surge da igualação do não-igual”. Ao operar por meio da abstração das diferenças, a linguagem nos faz esquecer que “a diferença está no âmago do ser, uma vez que existir é já diferenciar-se”. (Schöpke, 2012, p. 155). O ser, consoante nos ensina Schöpke, “(...) é, antes de tudo, esse campo de singularidades, impessoais, pré-individuais”. Ora, todo o processo de semiotização do mundo, operado pela linguagem, na medida em que consiste na transformação do mundo da diversidade, das diferenças em mundo dos conceitos, das identidades nominais estáveis, é um processo linguístico-cognitivo produtor de ficções. É verdade que essas ficções constituem a teia de significados, tecida pelo animal humano, como resultado de um trabalho que lhe é naturalmente determinado. Tal como a aranha não pode deixar de produzir a sua teia, sem a qual sua subsistência não seria possível, o animal humano não pode deixar de criar essa teia de significados que dá sustentação à sua existência. Como bem observa o antropólogo Clifford Geertz, para quem a cultura é um sistema de símbolos e significados, o homem é um animal suspenso em teias de significados que ele mesmo teceu; a essas teias de significados Geertz chama cultura. Como todo animal, também o homem deve manter uma relação adaptativa com o meio ambiente, a fim de sobreviver. Mas, segundo Geertz, como seja um ser biológico destituído de instintos, o animal humano precisa adaptar-se ao meio ambiente adotando outro caminho. Esse caminho é o da produção da cultura. Geertz sustenta que todos os homens são geneticamente aptos para receber um programa, o qual se chama cultura. A cultura se desenvolveu simultaneamente com o equipamento biológico do homem e, por isso, deve ser compreendida como uma das características da espécie homo sapiens sapiens juntamente com o bipedismo e com um adequado volume cerebral.  Longe de negar que o desenvolvimento da faculdade da linguagem no homem lhe permitiu um desarrancamento das relações imediatas com o entorno biofísico, possibilitando, inclusive, um desenvolvimento exponencial de suas faculdades de cognição, não se pode perder de vista a ameaça psicótica que parece espreitar a condição humana, visto que imerso no mundo da ordem simbólica,

O homem não pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente; não pode vê-la, por assim dizer, frente a frente. A realidade física parece recuar em proporção ao avanço da atividade simbólica do homem. Em vez de lidar com as próprias coisas, o homem está, de certo modo, conversando consigo mesmo. (Cassirer, 2012, p. 48).

Ainda que possa parecer, em certo sentido, exagero falar em “ameaça psicótica” quando lembramos que o homem vive emaranhado na teia de significados que ele mesmo teceu, não devemos tomar aqui como referência a interpretação psicanalítica da ‘psicose’. Não obstante, como perspicazmente ensina Cassirer, ao afastar o homem da lida com as coisas, as palavras, uma vez que operam tanto nos processos internos da consciência, possibilitando a compreensão e interpretação do mundo pelo homem, quanto nos processos externos de sua circulação em todas as esferas sociais, tendem a produzir uma alienação existencial do animal humano relativamente ao caráter complexo, enigmático e inesgotável da vida. Quiçá, o que chamamos de “ameaça psicótica” não seja mais do que a ‘loucura normal’ da condição humana, porquanto, ao criar a teia de significados, que é a cultura, o animal humano passa a viver sob o poder de duas formas de autoengano: a) crê que essa teia de significados esgota a totalidade do real;  e b) como consequência da primeira crença, passa a acreditar que goza de um privilégio ontológico porque seria o ser através do qual e para o qual o mundo é uma totalidade significativamente ordenada, ou seja, o mundo só existiria enquanto mundo através de e para esse animal simbólico. Novamente, devemos destacar o trabalho de produção de ficções operado pela linguagem, evocando o que nos diz Nietzsche neste outro excerto:

A inobservância do individual e efetivo nos fornece o conceito, bem como a forma, ao passo que a natureza desconhece quaisquer formas e conceitos e, portanto, também quaisquer gêneros, mas tão-somente um “x” que nos é inacessível e indefinível. (ibid., p. 36)

A linguagem é, na verdade, um sistema de metáforas mortas, de metáforas que perderam o cunho e que só valem como metal. No entanto, são estas metáforas que estão na origem da crença em uma identidade original das coisas. Nietzsche nos adverte de que, acreditando saber algo acerca das coisas, utilizando nomes como “árvore”, “cor”, “neve”, não usamos senão metáforas das coisas. Nesse tocante, em seu As pessoas e as coisas (2016, p. 65), o filósofo italiano Roberto Esposito, fazendo eco a Nietzsche, observa categoricamente:

Não tendo nenhuma relação constitutiva com as coisas que designam, as palavras, em suma, retiram delas a realidade que, contudo, pretendem expressar. Só perdendo sua existência concreta, os seres são linguisticamente representáveis. No momento exato em que é nomeada, a coisa perde seu conteúdo, transferindo-se no espaço sem espessura do signo. De tal forma, sua posse, por parte da linguagem, consiste em sua destruição.

Segundo Esposito, a representação linguística das coisas elide delas seu conteúdo vivo. Ora, já em Nietzsche, não se pode crer mais na relação de correspondência entre linguagem e realidade. A linguagem não estaria numa relação especular com o mundo. A linguagem, na verdade, constrói um mundo que lhe é próprio, mas o faz destruindo o mundo imediato da experiência das coisas vividas. Como lembra Esposito, ao se transformar a coisa em conceito, a linguagem opera a destruição da coisa. Não estaria já prefigurada na faculdade da linguagem, na capacidade humana de semiotizar o mundo sua pré-disposição para a destruição, sua tendência à nadificação da vida? Sem pretender aderir a qualquer versão de fatalismo, porquanto é inegável que, em função da linguagem, o homem também se tornou criador de belas obras, também pode ele se tornar criador de formas de vida afirmadoras, potencializadas, o fato é que a faculdade da linguagem pode tanto estar a serviço de homens artistas de sua própria existência como de homens  que tiranizam a vida em si, que aprisionam a vida, que a asfixia e a destrói. Se é verdade, conforme cremos, que a condição existencial do animal humano é, fundamentalmente, niilista, é igualmente lícito – nos parece - afirmar que o próprio processo de semiotização do mundo, operado pela linguagem, é um processo niilizador. O homem comum, na sua condição própria de animal de rebanho, sem estar consciente disto, reproduz esse aspecto niilista da linguagem no trato diário que tem com ela. Apenas o artista parece capaz, porque reconhece o modus operandi ficcional da linguagem, de desvelar o caráter niilista da linguagem, convertendo-o em possibilidades de criação, de recriação, de transformação da experiência humana do real. Ao reduzir o mundo a um “enorme columbário de conceitos, cemitérios de intuições (...) o mundo empírico inteiro [se torna] o mundo antropomórfico” (Nietzsche, ibid., p. 45).
Consoante Nietzsche, o impulso à formação de metáforas é a condição própria do homem, à qual ele não pode escapar nem por um instante. Renunciar a tal impulso significaria renunciar a ser homem, a ser um animal simbólico. Mas há, segundo Nietzsche, entre os homens aquele tipo artista, que é o homem desperto, pois que consciente da trama metafórica sobre a qual se estende sua existência. Ele exibe “o ávido desejo de configurar o mundo (...) sob uma forma tão coloridamente irregular, inconsequentemente desarmônica, instigante e eternamente nova como a do mundo dos sonhos”. (ibid., p. 46).



Em si, o homem desperto adquire clara consciência de que está acordado somente por meio da firme e regular teia conceitual e, precisamente por isso, chega às vezes à crença de que está a sonhar, caso alguma vez aquela teia conceitual seja despedaçada pela arte. (ibid.).


Basta-nos dar um exemplo do potencial que tem a arte de desmitificar a relação, animada e conservada sob o modo do autoengano, que o homem tem com a linguagem. É conhecido o quadro da artista surrealista belga René Magritte, no qual está estampada a imagem de um cachimbo e abaixo da qual se lê Ceci n´est pas une pipe, isto é, “isto não é um cachimbo”. Sob o efeito do encantamento ficcional do simbólico, o homem comum pode relutar em aceitar que, a despeito do que lhe aparece, ele não está diante de um cachimbo. Mas uma tal relutância só é possível porque, na lida cotidiana com a linguagem, se lhe esvaeceu a distinção entre as palavras e as coisas, entre a representação simbólica da coisa e a coisa mesma. Como nos lembra Foucault, uma imagem, ainda que fiel aparentemente ao objeto real, não é a realidade, fato, aliás, que não se pode recusar quando nos lembramos que o cachimbo da imagem não pode ser fumado. O “isto” do enunciado “isto não é um cachimbo” tem como referente não a coisa, que, aliás, está ausente, mas a “representação da coisa”, de sorte que “isto não é um cachimbo” significa ‘esta imagem de cachimbo não é um cachimbo na sua qualidade de coisa’.  Há em toda imagem ou ícone uma relação necessária entre a parte que expressa formalmente o conteúdo (significante) e o conteúdo expresso (significado). A situação difere bastante e se torna mais complexa quando se trata dos signos linguísticos. Toda relação com o signo está fundada numa ausência, pois que o signo se define como ‘o que está no lugar de’, ‘o que faz as vezes de’. Aquilo em cujo lugar está o signo é a coisa mesma, que, no entanto, está ausente. Sucede, contudo, que a relação entre o signo e a coisa da qual ele é signo não é nem necessária nem direta. O signo, como bem nos ensinou Saussure, é uma entidade dicotômica, a qual articula em si um significante (imagem acústica) e significado (ou conceito).[9] Ora, como na relação entre o significante e o referente extralinguístico, está de permeio o significado, como as palavras não são etiquetas para as coisas, não estão numa relação especular com as coisas, como a relação entre o significante (imagem acústica) e o significado é não motivada (Saussure usou o termo ‘arbitrária’), na maior parte das vezes, no uso normal da língua, ao acreditar estarmos falando do mundo, o que estamos fazendo é produzindo versões públicas do mundo, ou seja, estamos sempre falando acerca das formas como significamos o mundo, estamos falando acerca do mundo textualmente recriado, reconstruído, res-significado. Em última instância, estamos enredados no universo auto-referencial da linguagem, porque o próprio ato de falar é já fazer intervir uma ordem simbólica da qual eu, enquanto sujeito de discurso, sou, ao mesmo tempo, um efeito e parte constitutiva.
Na próxima subseção, vamo-nos debruçar sobre o que chamaremos de ‘a loucura da condição humana’ – expressão que tomamos a Becker (2013) -, tendo sempre como referência o horizonte da crítica nietzschiana do homem como um animal doente. Fazendo eco ao ensinamento de Lacan, partiremos do pressuposto de que a ‘loucura’ não é um desvio da normalidade, não é um fato patológico, mas a essência mesma da condição humana.



3. A loucura da condição humana: o adoecimento dos instintos

O homem é uma doença mortal do animal
Kojève
Quando tomamos o homem como um animal doente, na esteira de Nietzsche, devemos pensá-lo como a condição própria do homem cuja estrutura instintual foi conformada por um tipo de moral ascética, dualista, gestada no platonismo e prolongada pelo cristianismo. Essa moral, sendo ela uma forma de interpretação da vida, dará uma forma declinante às forças que constituirão um tipo de vida decadente. Esse tipo humano decadente cunhado por essa moral é o animal humano domesticado, o animal de rebanho, o animal doente, identificado com o tipo cristão, o tipo humano predominante no Ocidente, que prima entre os que levam ao adoecimento do espírito (corpo). Trata-se do tipo decadente, caracterizado pelo esgotamento do instinto, pela desagregação da vontade. De passagem, é preciso entender que o Nietzsche da maturidade fala em “tipos” como modos de ser, como condições de vida, como formas de vida e de moral que cristalizaram avaliações humanas. O tipo cristão não é necessariamente o fiel praticante que assiste às missas ou participa de cultos. Até mesmo um ateu pode ser ainda um tipo cristão, no sentido de que seu modo de ser, sua vida ainda podem conservar as avaliações que, produzidas pelas vontades de potência atuantes na constituição da cultura cristã, vieram a conformar, a configurar as forças que irão constituir a condição de existência do tipo cristão.





[1] O vivente humano é também vontade de potência. E toda vontade de potência é múltipla, porque é um jogo múltiplo de processos rivais; no caso específico do homem, as vontades de potência são uma dinâmica de relações entre afetos, instintos e nervos.
[2] Por que sou um destino, § 4.
[3] Mais adiante, daremos a conhecer o que entendemos por cultura.
[4] Suposta aqui está a ideia de que a ordem simbólica não é redutível à ordem natural. A questão que consiste em discutir se há uma ordem natural que precede à ordem simbólica não nos interessará, ainda que Garcia-Roza recuse essa precedência. O que nos importa, para efeito de nossa exposição, é demonstrar que a ordem simbólica é uma ordem própria e irredutível à ordem natural.
[5] Do latim fictio –onis, cujo radical fict é o mesmo de fingere (fingir), ficção é simulação, criação. Ao vocábulo “ficção” se predem os significados de ‘criar’, ‘inventar’, ‘modelar’. As ficções culturais são a criação de uma outra realidade, uma realidade entretecida por formas simbólicas.
[6] Fora de contextos de citação, usaremos a expressão “além-do-homem” como a tradução que nos parece mais adequada para Übermensch.
[7] Vontade de Poder (2008, §90)
[8] Ibid., § 303
[9] Devemos atribuir a Saussure o ter apartado da relação semiológica o referente (a coisa) do mundo real. A Linguística, enquanto ciência que se ocupa da língua, surge, no início do século XX, com o trabalho de fundamentação levado a efeito por Saussure, como um modelo epistemológico que deve levar em conta exclusivamente as relações diferenciais, opositivas que os signos estabelecem entre si para a constituição de um sistema linguístico encerrado em si mesmo.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

"Viveste como se fosses viver para sempre, nunca te ocorreu a tua fragilidade" (Sêneca)


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                        A filosofia como prática de cuidado de si


1. A filosofia como exercício espiritual

Este texto, mesmo antes de o investir dos recursos linguísticos necessários à sua expressão, se me afigurou indispensável ao pleno desenvolvimento de minha vida intelectual. Ele encontra sua origem e razão de ser em minhas vivências ordinárias, particularmente em meus breves e passageiros contatos com homens e mulheres que, cotidianamente, tomando o trem, reproduzem a condição de homens-massa. São esses, em especial, os leitores potenciais deste texto. A condição de leitores potenciais não significa que eu presuma que eles lerão o texto, mas apenas demarca um horizonte de interlocução imaginária, suposta por toda produção textual escrita.
Mas o que pretendo eu ao escrever este texto? Pretendo retomar a discussão sobre o valor da filosofia como uma maneira de viver intimamente vinculada ao discurso filosófico. Uma das lições preciosas de Pierre Hadot consiste em nos esclarecer sobre o vínculo estreito entre o discurso e o modo de vida filosóficos. Nas palavras desse eminente helenista,

(...) A filosofia é, antes de tudo, uma maneira de viver, mas está estritamente vinculada ao discurso filosófico (...). A filosofia não é senão exercício preparatório para a sabedoria. Não se trata de opor, de um lado, a filosofia como discurso filosófico teórico e, de outro, a sabedoria como um modo de vida silencioso que será praticado a partir do momento em que o discurso tiver atingido seu acabamento e sua perfeição (...). (1999, p. 18-19, grifo meu).


Os discursos filosóficos não podem ser considerados independentemente dos filósofos que os produziu. Os discursos filosóficos devem ser vistos como a materialização linguístico-histórica de um exercício espiritual, isto é, de uma filosofia que é, ela mesma, um exercício preparatório para a sabedoria.
Antes de dilucidar a concepção de filosofia como exercício espiritual e o que há que se entender por sabedoria, devo lembrar que formulei a questão que me incita à produção deste texto, recorrendo à palavra valor. Quero dar a conhecer ao leitor em que consiste o valor da filosofia. Não se trata de submeter a filosofia ao valor de uso, supondo servir ela a algum fim. Contra tal suposição, vem a propósito a lição de Deleuze (2001, p. 159), que descreve de maneira clara e direta o caráter afirmativo da filosofia:

Quando alguém pergunta para que serve a filosofia, a resposta deve ser agressiva, visto que a pergunta pretende-se irônica e mordaz. A filosofia não serve nem ao Estado, nem à Igreja, que têm outras preocupações. Não serve a nenhum poder estabelecido. A filosofia serve para entristecer. Uma filosofia que não entristece a ninguém e não contraria ninguém, não é uma filosofia. A filosofia serve para prejudicar a tolice, faz da tolice algo de vergonhoso. Não tem outra serventia a não ser a seguinte: denunciar a baixeza do pensamento sob todas as suas formas. Existe alguma disciplina, além da filosofia, que se proponha a criticar todas as mistificações, quaisquer que sejam sua fonte e seu objetivo? Denunciar todas as ficções sem as quais as forças reativas não prevaleceriam. Denunciar, na mistificação, essa mistura de baixeza e tolice que forma tão bem a espantosa cumplicidade das vítimas e dos algozes. Fazer, enfim, do pensamento algo agressivo, ativo, afirmativo. Fazer homens livres, isto é, homens que não confundam os fins da cultura com o proveito do Estado, da moral, da religião. Vencer o negativo e seus altos prestígios. Quem tem interesse em tudo isso a não ser a filosofia? A filosofia como crítica mostra-nos o mais positivo de si mesma: obra de desmistificação. […] tolice e a bizarria, por maiores que sejam, seriam ainda maiores se não subsistisse um pouco de filosofia para impedi-las, em cada época, de ir tão longe quanto desejariam, para proibi-las, mesmo que seja por ouvir dizer, de serem tão tolas e tão baixas quanto cada uma delas desejaria. Alguns excessos lhes são proibidos, mas quem lhes proíbe a não ser a filosofia? Quem as força a se mascararem, a assumirem ares nobres e inteligentes, ares de pensador?

Deleuze acrescenta que denunciar todas as mitificações é o valor afirmativo da filosofia. Em suma, “a filosofia como crítica diz-nos o mais positivo de si própria: a empresa da desmitificação”. A questão, em torno da qual se constitui o presente texto, não assume a forma do para que serve, mas enuncia-se a partir do horizonte dos valores; em última instância, do sentido. Ora, valores são partes integrantes de todas as culturas (em tempo, definirei o conceito de cultura que esposarei ao longo de toda essa discussão). Os valores influenciam a maneira como as pessoas escolhem e como os sistemas sociais se desenvolvem. Um valor é uma ideia de que se usam os indivíduos para categorizar coisas em relação a outras, segundo critérios tais como desejabilidade, mérito, perfeição, proveito, importância, etc. Todo valor cultural é usado para classificar qualquer coisa, desde abstrações até objetos, experiências, comportamentos, características pessoais, modos de ser, etc. É bem verdade que há gostos e preferências pessoais, caso em que a única autoridade é o indivíduo. Mas, não nos enganemos: os valores são culturalmente estabelecidos e são percebidos como realidades fora dos indivíduos.
Perguntar pelo valor da filosofia é, portanto, perguntar pelo seu mérito, pela sua importância. Convém, agora, fazer entender o leitor o que significa a concepção de filosofia como exercício espiritual. Enquanto prática de exercícios espirituais, a filosofia congrega práticas quer de ordem discursiva, quer de ordem física, como regime alimentar, quer ainda intuitiva, como a contemplação, todas destinadas a cunhar modos de ser. A filosofia como exercício espiritual se destina a operar uma transformação radical na personalidade, na estrutura psicofisiológica, na sensibilidade e na visão de mundo daquele que a esse exercício se entrega.
O filósofo, enquanto amante da sabedoria, põe-se obstinadamente a buscá-la, sem nunca alcançá-la. E nem poderia, pois, se o conseguisse, deixaria de ser filósofo. É que o filósofo é o amante da sabedoria, é quem se põe a caminho, quem se dedica a buscá-la. Mas a sabedoria não é uma coisa passível de ser possuída; é um modo de ser, um modo de vida. O filósofo aspira à sabedoria, sem jamais alcançá-la. É nessa impossibilidade que reside a força de seu amor inquebrantável pela sabedoria. Pois o amor é tanto mais forte quanto mais nos empenhamos na busca do objeto desejado. Vamos ouvir novamente Hadot (2014, p. 278):

A sabedoria é o estado ao qual talvez o filósofo jamais chegará, mas ao qual ele tende esforçando-se para transformar a si mesmo a fim de se ultrapassar.


A sabedoria é um modo de ser, um modo de existência, caracterizado por três aspectos essenciais: a paz da alma (ataraxia), a liberdade interior (autarkeia) e (exceto para os céticos) a consciência cósmica, isto é,  a tomada de consciência do pertencimento ao Todo humano e cósmico. A filosofia, tomada como uma espécie de terapêutica, destina-se, antes de tudo, a produzir a ataraxia (a paz da alma), libertando o ser humano da angústia, angústia provocada pelas preocupações da vida, mas também pelo mistério da existência humana: medo dos deuses, terror da morte (ibid., p. 279).
A filosofia, tal como nos ensinou Aristóteles, começa com a admiração, quer dizer, com o ser abalado. A experiência do admirar-se envolve a experiência de uma radical desorientação relativamente ao modo como nos encontramos no mundo. A admiração é, em grande medida, uma forma de desilusão: a libertação de um estado comum de entorpecimento, de letargia. O filósofo é, assim, um ser permanentemente admirado, inquieto sim; atormentado, muitas vezes, mas sempre interessado no mistério do real, ocupado com as graves e fundamentais questões que tocam à totalidade da existência e da condição humana. Na admiração, o filósofo é quem se dá conta de que a realidade excede sempre as pretensões que temos de esgotá-la através do conhecimento. Na admiração, o filósofo se abre ao encontro do ser como acontecimento incompreensível e misterioso.


2. A condição humana: sua dimensão cultural

Passarei a considerar a condição humana a partir de um primeiro aspecto: sua inscrição na ordem da cultura. Para tanto, refiro as palavras de Gramsci, em Concepção Dialética da História (1966, p. 12) que, fazendo eco a Nietzsche, recorda nossa condição de animais gregários:


Pela própria concepção de mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que partilham de um mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. (grifo meu).


O cotidiano em que todos nós nos movemos é regulado por uma disciplinarização da ordem do tempo, pela necessidade de reprodução da existência física: pela necessidade de comida, vestimenta, moradia; é o espaço das lutas pelo poder  de utilizar os bens de consumo, das ocupações da diversão: celular, cinema, jogos, etc. É, em suma, o mundo do trabalho, regulado pela utilização, serventia a fins. O mundo do trabalho é o mundo do rendimento, do exercício das funções, o mundo da fome e do modo de saciá-la. O mundo do trabalho é dominado pelo objetivo da realização da utilidade comum. O cotidiano recobre a dimensão da vida social em que os homens se encontram em estado de rebanho; é onde os homens tomam parte de uma coletividade como animais de rebanho. Nesse estado, os animais humanos têm propensão à preguiça; por toda parte, encontram-se entediados, comportando-se segundo os costumes e as convenções de sua sociedade; adotando irrefletidamente as opiniões alheias, seguindo os modismos do rebanho.  O animal de rebanho, que é o homem em sua relação originária com o mundo – que é um campo de relações – vive uma vida anestesiada, reverenciando e adotando passivamente as significações partilhadas e herdadas por foça de suas práticas culturais. Para Gramsci, a visão de mundo desses homens-massa não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada. É em virtude disso que eles se tornam parte da multidão dos homens-massa. A personalidade desse tipo humano é constituída como uma concha de retalhos “nela se encontram elementos de homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas, grosseiramente localistas, e intuições de uma futura filosofia que será própria de um gênero humano mundialmente unificado”.
A crítica de nossa visão de mundo, na condição de animais de rebanho, visa a garantir a unidade e a coerência de que nossa vida carece:

O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que somos realmente, isto é, um “conhece-te a ti mesmo” como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços sem benefício no inventário. (ibid.).


Ainda, segundo Gramsci, não é possível nos tornarmos filósofos, isto é, construirmos uma visão de mundo criticamente coerente, “sem a consciência de nossa historicidade, da fase de desenvolvimento por ela representada e do fato de que ela está em contradição com outras concepções ou com elementos de outras concepções”. (p. 13). Para Gramsci, a filosofia é a crítica e a superação tanto da religião quanto do senso comum. A religião é um elemento do senso comum desagregado. Mas há muitos sensos comuns, pois que “[são] um produto do devir histórico” (p. 14).
Imerso na cotidianidade mediana, o animal humano pensa e age segundo um complexo de crenças, supostas certezas, concepções, preconceitos, ideologias, valores, símbolos; em outras palavras,  segundo um complexo de representações coletivas formadoras dos modos de pensar, agir e sentir que são gerais e permanentes numa sociedade ou grupo social particular. A esse complexo se dá o nome de senso comum. O senso comum abriga saberes:

a) subjetivos, pois exprimem sentimentos e opiniões individuais ou de grupos, que variam de uma pessoa para outra, ou de um grupo para outro, dependendo das condições sócio-culturais em que vivem os indivíduos;

b) fundados em avaliação qualitativa das coisas conforme os efeitos que elas produzem em nós ou conforme os desejos que provocam em nós, ou conforme o tipo de finalidade que lhes atribuímos;
c) que tendem a generalizações, pois reúnem numa só opinião ou numa só ideia coisas julgadas semelhantes;
d) por serem generalizadores, tendem a estabelecer relações de causa e efeito entre coisas: “onde há fumaça há fogo”;
e) não se fazem acompanhar da admiração com a regularidade, constância e diferença das coisas; ao contrário, a admiração se atém ao que é imaginado como único e extraordinário ou miraculoso.
f) baseiam-se, comumente, em projeções de sentimentos de angústia e de medo nos acontecimentos do mundo, sobretudo quando da ordem do desconhecido.

Como bem lembra Thompson, em Ideologia e Cultura Moderna (2011, p. 22), “o conceito de cultura tem uma história própria, longa e complicada, que provavelmente tem produzido tantas variantes e tanta ambiguidade como a história do conceito de ideologia”. Por isso, urge reinscrever o conceito num horizonte semântico bem determinado. Thompson segue Geetz, e eu os acompanharei, na definição de cultura como sistema de símbolos e significados da vida social, como um produto de padrões significativos incorporados às formas simbólicas compartilhadas na interação social. No entanto, Thompson adverte: as formas simbólicas devem ser tomadas como partes integrantes de contextos sociais estruturados, que envolvem relações de poder, formas de conflito, desigualdade em termos de distribuição de recursos, etc.

Tomar as formas simbólicas como fenômenos contextualizados é vê-las como geralmente produzidas e recebidas por pessoas em contextos sócio-históricos específicos e providas de recursos e capacidades de vários tipos. (Ibid.).


Um aspecto importante da abordagem do caráter sócio-histórico das formas simbólicas repousa no fato de que elas se tornam objetos de processos complexos de valoração e conflito. Os processos de valoração são aqueles por meio dos quais é conferido às formas simbólicas determinado valor. Há dois tipos de valor que se associam, normalmente, às formas simbólicas: o valor simbólico e o valor econômico. Importa apenas aqui considerar o valor simbólico. Esse valor é atribuído às formas simbólicas em função das maneiras como as pessoas as apreciam ou as denunciam, as desejam,  as adotam ou as desprezam.
Reymond Williams se debruçou sobre a investigação da complexa história do desenvolvimento do conceito de cultura. Ele distinguiu entre três significados modernos da palavra. O primeiro deles, remontando às raízes etimológicas – “cultura” tinha o sentido de “agricultura” - , era o “cultivo de conhecimentos”. No século XVIII, passou a ser sinônimo de civilização, no sentido de que designava um processo geral de progresso intelectual, espiritual e material. Civilização recobria aí os costumes e a moral: ser civilizado inclui não cuspir no tapete e não decapitar pessoas, por exemplo. Como sinônimo de civilização, cultura inscrevia-se no espírito geral do Iluminismo, com seu culto de autodesenvolvimento secular e sua crença no progresso. Civilização era, em grande medida, uma noção francesa: supunha-se que somente os franceses tivessem o privilégio de ser um povo civilizado. Nesse sentido, cultura era o mesmo que refinamento social. Se a civilização francesa se caracteriza por uma vida dedicada à política, à economia e à técnica, a cultura germânica se caracterizava por seus gostos religioso, artístico e intelectual. Nesse contexto sócio-histórico, por cultura entendia-se o refinamento intelectual de um grupo ou indivíduo, donde a crença na possibilidade de discriminar entre os que têm cultura e os que são incultos.
No século XIX, o conceito de cultura deixa de ser sinônimo de civilização, torna-se seu antônimo. O conceito de civilização, como sinônimo de cultura, tem uma parte descritiva e uma parte normativa, porquanto tanto pode designar uma forma de vida (civilização asteca) como prescrever tacitamente um padrão de vida considerado harmonioso, esclarecido e refinado.
Atualmente, o adjetivo “civilizado” tem essa orientação normativa. Civilização recobre práticas artísticas, a vida urbana, política cívica, tecnologias complexas, etc., e tudo isso tende a ser considerado um avanço em relação ao que havia antes.
Na medida em que os caracteres descritivo e normativo da palavra “civilização” se separam, a noção de civilização passa a recobrir as boas maneiras, o refinamento, politesse, a desenvoltura elegante nos relacionamentos de grupos que compunham a classe média europeia pré-industrial. “Cultura” é, assim, uma questão de desenvolvimento total e harmonioso da personalidade. Mas tal desenvolvimento só pode ser realizado nas relações sociais. Como são necessárias certas condições sociais para que seja possível tal desenvolvimento, supõe-se que o Estado deve contribuir para favorecê-las. Passou-se, então, a crer que a cultura tem também uma dimensão política. É o intercurso social que tornaria possível desfazer a rusticidade rural e conduzir os indivíduos para relacionamentos complexos.
É na ordem das práticas culturais, definidas como práticas de produção de símbolos e significados, que se deve pensar a constituição da rede de sentido e amparo da existência humana. Definindo o sentido como a consciência de que existe uma relação entre as experiências, Berger & Luckmann (2012, p. 27) ensinam que “é difícil conceber uma sociedade sem um sistema de valores e sem reservas de sentido a ele adaptados”. Os acordos quanto ao sentido desenvolvem-se em comunidades de vida, as quais “são caracterizadas por um agir que se repete com regularidade e diretamente recíproco em relações sociais duráveis” (p. 28). Segundo os autores, as comunidades de vida “pressupõem um mínimo de comunhão de sentido”. (ibid.). O agir do indivíduo é marcado pelo sentido objetivo colocado à disposição pelos acervos sociais do conhecimento e comunicado pelas instituições por meio da pressão que exercem para que seja adotado. As instituições são responsáveis, portanto, por gerar sentido, controlar seus estoques e comunicá-lo às comunidades de vida em que um indivíduo cresce, trabalha e morre. As reservas de sentido objetivadas e processadas pela sociedade são conservadas em reservatórios históricos de sentido e administrados por instituições. Elas se encarregam de conservar e disponibilizar o sentido tanto para fins de orientação do agir do indivíduo em diversas situações quanto para fins de orientação de seu comportamento. Em todas as sociedades, com maior ou menor pressão, as instituições, por meio da educação ou da doutrinação, têm em vista a necessidade de que o indivíduo pense e se comporte segundo as expectativas e as normas da sociedade. Nas sociedades pré-modernas, por meio do controle e censura do que era publicamente comunicado, ensinado, pregado, não havia espaço para opiniões divergentes.
A dimensão cultural da condição humana evidencia, entre outras coisas, que o mundo é, em certo sentido, o campo de todos os campos de sentido; e num sentido estrito, é cada um dos campos de sentido em cujos limites se articulam nossas vivências, nossas práticas existenciais, historicamente condicionadas. As comunidades de sentido  podem ou não se tornar comunidades de vida. As comunidades de sentido se constituem de diferentes níveis de sentido, não diretamente baseados na experiência de vida e podem abrigar diferentes campos de sentido (o filosófico, o científico, o jornalístico, etc.).
A cultura, sendo o mundo próprio do animal humano, mundo cuja essência é ser mundo simbólico, é um campo de produção de ficções. Nossa vida depende da produção de ficções. O que são ficções? São criações da imaginação. Elas não são nem verdadeiras nem falsas. Talvez, não as escolhamos, não obstante, elas conformam e estruturam, dotando de sentido, nossas vivências e experiências coletivas. As ficções não podem ser geradas ao bel-prazer; talvez, por isso, não possam ser descartadas sempre que desejamos. Ainda que as ficções, sem as quais o que nos restaria seria o desespero niilista, sejam obra do engenho e da atividade humana, elas escapam ao controle do animal humano.
Hadot (2014, p. 322) lembra-nos que “o homem deve se separar do mundo enquanto mundo para poder viver sua vida cotidiana e deve se separar do mundo cotidiano para reencontrar o mundo enquanto mundo”. Essa experiência de reencontro com o mundo enquanto mundo não é possível senão pelo exercício da filosofia – é o que tentarei mostrar. O homem comum vive chapado ao cotidiano, imerso nesse mundo do trabalho e das ocupações, alienado de si. Urge aqui assinalar que a filosofia não pretende nem pode retirar do homem as ficções que lhes possibilita viver, pois que a capacidade de produzir ficções é inerente à estrutura psicofisiológica do homem enquanto animal simbólico; privá-lo das ficções seria desumanizá-lo. O que a filosofia faz - e nisso reside seu mérito, seu valor - é fazê-lo despertar para o fato de que esse mundo familiar, do cotidiano, da produção e reprodução da existência física, do entretenimento, das lutas políticas; esse mundo donde grandes edifícios de representação simbólica (a religião, a arte, a filosofia, a ciência) se elevam “como gigantescas presenças de outro mundo” (Berger & Luckmann, 2007, p. 61) são formas de mundo geradas, fabricadas graças ao trabalho de produção de ficções viabilizado pela linguagem.


3. A loucura da condição humana

A rotina cultural é o que vai assegurar o ajustamento dos indivíduos ao modo de funcionamento do sistema social. É o que evita que eles enlouqueçam. Mas há outra forma de loucura, que não é a do esquizofrênico. Há uma loucura na normalidade, no ajustamento à vida normalizada. Nesse caso, a loucura é estruturante da condição humana, conforme nota Becker (2013, p. 228-229):

Houve uma época em que eu ficava imaginando como é que as pessoas aguentavam trabalhar em torno daqueles infernais fogões de hotéis, o frenético torvelinho de servir uma dúzia de mesas ao mesmo tempo, a loucura do escritório de um agente de viagens no auge da temporada de turismo, ou a tortura de trabalhar o dia inteiro na rua com uma perfuratriz pneumática, num verão calorento. A resposta é tão simples, que nem a percebemos: a loucura dessas atividades é exatamente a da condição humana. Elas estão “certas” para nós, porque a alternativa é o desespero natural. A loucura diária desses empregos é uma repetida vacina contra a loucura do hospício. (grifos meus).

Becker argumenta que os homens se ocupam devotadamente ao seu trabalho, às vezes, até com alegria, porque “o trabalho abafa algo mais sinistro”. Os homens precisam se proteger contra o terror de que seriam tomados se viessem a compreender o real em sua crueza e nudez. Que crueza e nudez são essas?
 Vivendo numa permanente autotapeação, num permanente estado de autoengano, os animais humanos se ocupam com seus negócios, participam como autômatos do funcionamento da ordem social, mantendo fora de sua consciência a representação de uma verdade que se recusa a calar:


(...) a vida humana pode não passar de um interlúdio insignificante de um perverso drama de carne e osso que chamamos evolução; que o Criador talvez não se importe com o destino do homem ou com a autoperpetuação de indivíduos mais do que parece ter-se importado com os dinossauros ou com os tasmânios. Essa voz que sussurra é a mesma que nos chega incongruentemente da Bíblia, nas palavras do Eclesiastes: tudo é vaidade, vaidade das vaidades. (p. 230).

Essa espécie de loucura, própria da condição humana, se nos revela aqui apenas sob um dos seus muitos aspectos. O aspecto dessa forma de loucura que pretendo sublinhar não repousa propriamente no fato de os homens terem de fazer o que fazem, já que, dada a forma histórica de nossas sociedades contemporâneas, eles se veem constrangidos pelas necessidades da subsistência a trabalhar como trabalham; o que caracteriza a loucura própria da condição humana é que o animal humano acredita que o que faz tem alguma importância transcendente, algum profundo significado para a totalidade ordenada do universo. Sua loucura, que, na verdade, é seu delírio de grandeza, é acreditar que, ao fazer o que faz, ao participar coletivamente da fabricação desse mundo (de ficções) que lhe torna possível viver, esgota a totalidade e complexidade do mundo e garante para si um status especial, uma posição privilegiada relativamente às demais espécies de animais com as quais ele coexiste nesse mundo mais vasto, mais cheio de beleza, terror e mistério.  
O animal humano é um ser infeliz que sabe que a morte é seu destino inevitável; mesmo ciente do vaticínio de seu fim, tem que continuar a viver. O homem é ser cindido, rachado. Os obstáculos para a sua autorrealização não se acham apenas no mundo, mas em si mesmo.  Se a saúde é a condição natural das outras espécies de animal, no animal humano, o normal é a doença. Freud soube reconhecer a dívida para com Schopenhauer, o qual se antecipou à visão fundamental da psicanálise. Schopenhauer via no instinto sexual a força motora básica da vida humana. Seu conceito de Vontade equivale ao de pulsões que influenciam a vida humana à revelia do eu. É a Vontade inconsciente que nos governa. O Id da psicanálise é a Vontade cega de Schopenhauer.
Para Freud, a busca da felicidade é uma distração do viver. O homem contemporâneo crê que cada um encontrará a realização de si sendo a pessoa que realmente quer ser. Em cada um de nós, existem possibilidades únicas à espera de desenvolvimento. Nosso infortúnio é que essas possibilidades são, em grande medida, frustradas. O homem comum passa a vida num estado de turbulência esperançosa. Encontra significado no sofrimento acarretado pela luta pela felicidade. Na ânsia de fugir ao vazio, o homem se apega praticamente a esse estado de feliz aflição. Para Freud, não há nenhum eu verdadeiro a ser encontrado. A mente é um caos. Os homens devem-se esforçar pela construção do ego, e não se aferrar à busca de um eu interior fictício. A alma humana está irremediavelmente cindida: a divisão da alma decorre, em grande medida, da repressão do desejo. E essa repressão é inevitável, porque,  onde há vida civilizada há perda da satisfação das pulsões. O homem, portanto, traz em si um buraco, um abismo; nasceu quando se recusou a morrer ajustado à ordem natural. Nessa recusa, perdeu sua unidade e se tornou um ser rachado. Tendo a ordem simbólica feito sua imersão na ordem natural, o animal humano pôde fabricar uma segunda natureza (a cultura). Esta foi inventada para lhe turvar ou impedir a visão do abismo que o constitui. Como bem assinala Silva (2015, p. 283), “o homem ensaia a pose de um deus (...), [mas] morre como um animal qualquer”.
Antes de pôr fim a esta seção, ajunto que o animal humano, embora seja capaz de produzir conhecimento numa velocidade crescente, revela-se, ao mesmo tempo, cronicamente incapaz de aprender com os erros. Os seres humanos tendem a cometer os mesmos erros. A civilização pode até parecer conatural a eles, mas também a barbárie o é. A evidência científica e histórica permite dizer que os seres humanos são só parcial e intermitentemente racionais.
Nosso cérebro é uma máquina de produção de crenças, um aparelho avançado e complexo de reconhecimento de padrões que, articulando as experiências, criam significados a partir desses padrões que cremos existirem na natureza. Padronicidade é a tendência a encontrar padrões significativos em dados de experiência que podem ou não ser significativos. Acionalização é a tendência a infundir nos padrões significado, intenção e ação. Nós, seres humanos, quase sempre, projetamos ação e intenção nos padrões que encontramos e acreditamos que esses agentes intencionais invisíveis controlam o mundo.
O animal humano também se mostra bastante relutante em abandonar suas crenças. A dissonância cognitiva é a condição normal do animal humano. A teoria da dissonância cognitiva explica o fato, bastante comum, de os seres humanos evitarem confrontar suas crenças e percepções com a experiência empírica. Sempre que elas são confrontadas com a experiência, eles buscam dirimir o conflito reinterpretando a experiência de modo a conservar as crenças a que eles são irresolutamente apegados. O animal humano não suporta a frustração de suas expectativas, tampouco a falsidade de suas crenças. Se no confronto com a experiência, suas crenças não se sustentarem, o animal humano fará de tudo para “salvá-las”, buscando reinterpretar a experiência conflitante.


4. Viver é ocupar-se de si: a filosofia como arte de viver

A filosofia, enquanto modo de viver, enquanto exercício espiritual, é uma prática de profunda intimidade com a vida. A filosofia, enquanto arte de viver, tem em vista quem eu me torno com o exercício e a escrita filosóficos. É a partir do exame do modo de vida estoico que pretendo mostrar ao leitor que o mérito da filosofia está  em nos permitir o exercício da mais plena liberdade: o poder de autoconstituição, de formação de si, de liberação da tirania mais tenaz – a tirania das paixões. 
O problema estoico é como se vive. O mal estoico é a alienação de si. O grande perigo é a perda de si. Ser sábio é o bem estoico. Como celebrar a conquista sem que eu me perca? Como não me atormentar com a possibilidade de males futuros? O sábio torna-se presente ao que se apresenta.


4.1. A prática estoica de cuidado de si

O Estoicismo, fundado por Zenão de Cício, no início do século III a.C., deriva seu nome de Stoá, que significa pórtico, pois foi perto do Pórtico Poecilo que a escola surgiu. O estoicismo constitui um sistema integrado de lógica, física e ética, articulados a princípios comuns que dão forma a uma paidéia, a um projeto pedagógico. Os historiadores da filosofia costumam dividir o estoicismo em três períodos:

1) Primeiro Período (estoicismo antigo), que se desenvolveu no século III a.C. Nesse período, se constituiu o sistema estoico mais completo: a lógica, a física, a metafísica e a ética.

2) Segundo período (estoicismo médio, séc. II a.C.), época em que o estoicismo entra em contato com o espírito romano, com o qual se combinará muito bem.

3. Terceiro período (estoicismo imperial). Entre os seus principais representantes estão Sêneca, nascido no início da era cristã, século I d.C.; Epiteto (séc. II) e Marco Aurélio (séc. II).

O estoicismo romano, que se desenvolveu ao longo desse terceiro período, interessa-se pela produção da liberdade, compreendida como autarkeia (autossuficiência, autonomia).
A física estoica baseia-se no postulado segundo o qual tudo que existe são encontros de corpos. Deus é imanente ao Todo, ao mundo: ele se dá como acontecimento de sentido em cada encontro. O divino é o Lógos. O Lógos é uma potência divina e ordenadora, que permeia, sustenta e governa toda a realidade. O lógos anima e move todas as coisas naturais, fazendo delas o que são. Nós, seres humanos, somos também manifestações desse lógos e, portanto, devemos agir e viver consoante a racionalidade do Cosmo em geral. A Razão Universal imanente ao Cosmo é o Lógos. Viver, pensar e agir em conformidade com a Natureza é viver, pensar e agir em conformidade com a Razão Universal imanente ao Cosmo. É nisso que consiste a sabedoria estoica. A adesão e a conformidade à Natureza são próprias do sábio. Viver em conformidade com a Natureza nada mais é do que viver em conformidade com a razão, tanto a Razão Universal como com a razão individual de cada ser humano, parcela que é da Razão Universal, centelha do fogo universal, ou seja, do Lógos.
Mesmo ciente de que lógica, física e ética mantêm entre si relações de repercussão e que, portanto, devem ser compreendidas em suas articulações no interior do sistema de pensamento estoico, para fins desta exposição, vou-me concentrar em tratar da ética, visto que seu estudo nos permite descerrar os elementos mais diretamente ligados à autoconstituição de si, às práticas de cuidado de si.

  

4.1.2. A ética estoica

Diógenes Laércio sustentava que os estoicos distinguiam, na ética, o impulso ou tendência (hormé); os bens e males; as paixões (pathé), a virtude (areté); o sumo bem (télos); as ações, as condutas convenientes (kathekonta); e o que convém aconselhar ou impedir.
A virtude ou areté é a excelência, a perfeição ou completude de alguma coisa em conformidade com a sua natureza e finalidade. A virtude é uma disposição (héxis) para viver em conformidade com a Natureza (physis). O objetivo da virtude é a vida feliz, e esta é o fim (télos) alcançado pela conformidade da natureza humana com a Razão Universal (Lógos).  A virtude é desejável por si mesma, e não pela esperança de uma recompensa ou por medo do castigo. Assim, o estoico não é virtuoso por fazer o bem, mas faz o bem porque é virtuoso. O bem é a retidão: é estar em conformidade com o Lógos. A virtude é um saber: é a ciência dos bens e dos males.
O sábio é livre – o único verdadeiramente livre – porque quer o necessário, o destino, o acontecimento; livre também porque se basta a si mesmo (autossuficiência), pois o Lógos possui tudo de que ele necessita. Nada pode perturbá-lo (ataraxia/ apatheia). O sábio é feliz, o único verdadeiramente feliz. O que é a felicidade, pois, para o estoico? É este instante em que um homem está inteiramente de acordo com o acontecimento, isto é, com o Destino, com a Natureza. É necessário, a esta altura, esclarecer o que os estoicos entendiam por Destino; mas o farei na seção seguinte. Fazem-se antes necessárias algumas considerações mais sobre a vida virtuosa.
Toda ação ética é orientada para um fim único (télos), em vista do qual todo o resto é o meio ou fim parcial. O fim último da ação ética é a felicidade (eudaimonia) daquele que vive bem porque realiza plenamente sua natureza. Os estoicos consideravam que a virtude basta para que a felicidade seja alcançada. A virtude é a causa da felicidade, mas não é ela o télos ou o sumo bem. O sumo bem é viver em conformidade com a Razão Universal, com a Natureza, isto é, em conformidade (homologia) consigo mesmo e com a ordem do mundo.  A infelicidade, por seu turno, é viver em desacordo consigo e com a Natureza ou com a ordem do Cosmo.


4.1.3. O Destino, segundo os estoicos

Em princípio – e para que se desfaça qualquer suposição equivocada -, os estoicos rechaçavam a ideia trágica do destino como uma força transcendente que dirige os homens sem que estes o saibam. Para o estoicismo, o Destino é uma realidade natural, inscrita na ordem do Cosmos. O Destino, na verdade, é a ordem e conexão naturais de todas as coisas, o nexo causal necessário ou nó das coisas. Não há acaso, contingência no Universo, para o estoico. Destino quer dizer: tudo é necessário.
Destino é também uma força cósmica e divina, o Lógos: força vital, sopro divino, tensão que organiza e contém o Todo. É a vida do mundo. O Destino entrelaça as coisas em relações mútuas de amizade e simpatia. Cuidemos  de não concluir que, para o estoicismo, somos escravos de uma ordem necessária, do Destino. A ética estoica nos ensina que, embora os acontecimentos estejam conectados por redes causais e estejam estritamente presos uns aos outros, há coisas que estão em nosso poder; por conseguinte, é preciso admitir que há coisas que não acontecem pela força do destino. Um dos exercícios espirituais estoicos consiste em exercitar-se na meditação sobre o que está e o que não está em nosso poder? Quantos homens, por leviandade e insensatez se queixam de acontecimentos que, trazendo-lhes importunos ou infortúnios, não estão sob o poder de deliberação deles?
Assim, 1) há causas que são imanentes e dependem de nós; 2) há, porém, causas antecedentes que são exteriores a nós, não dependem de nós e sim do destino. Por exemplo, a chuva cai no dia em que estou sem guarda-chuva. Os juízos de assentimento dependem de nós, mas depende apenas das coisas externas imprimir em nós sua imagem e não somos livres para recebê-las nem recusá-las. As coisas de que se diz “boas” são aquelas que são intrinsecamente conforme à razão; as coisas de que se diz “más” são aquelas que são contrárias à razão. Ocorre que nós, seres humanos, produzimos juízos com base nos afetos; dependendo de nossa conformação afetiva, podemos considerar más coisas que, na verdade, nos são indiferentes. Os estoicos ensinam-nos que exercitemos a indiferença judicativa e axiológica: há coisas que não dependem de nós; não devemos nos apegar àquilo que nos faz sofrer; trata-se de sofrer sem absolutizar a dor; tampouco devemos nos exultar com um bem, absolutizando-o.
O homem escravo das paixões acredita que a liberdade consiste em desejar que tudo aconteça conforme o seu desejo. O sábio, por seu turno, compreende que a liberdade verdadeira consiste em afirmar as coisas que acontecem tal como acontecem e em saber como agir quando acontecem, cooperando com o destino. Para o estoicismo, nós somos um elemento corporal do Cosmos. Não somos uma coroa da Criação; não gozamos de alguma superioridade relativamente aos demais seres que integram a ordem cósmica. Tudo tem um sentido no Cosmo, embora não saibamos qual é. A questão, para o estoicismo, é, nesse tocante, como produzir a liberdade em meio a relações de sentido pelas quais nós não somos responsáveis totalmente.  A liberdade é a vida que pertence a si mesma.  É que “vida”, para um estoico, não é existência, mas estar ocupado de si. Destino é destinar-se: o destino  me destina aquilo que vivo, cabe a mim integrar os elementos da destinação ao meu viver, tornando-os meus. Devo cultivar um modo de ser pelo qual eu me elabore para ser senhor de mim mesmo em face de tudo que se destina. Desenvolverei melhor a significatividade estoica de “vida”, “liberdade” e “sabedoria” a partir de alguns textos de Sêneca, que serão referidos adiante.

  

5. Da brevidade da vida

Vou-me deter no exame de alguns fragmentos de textos colhidos da obra Da brevidade da vida, que abriga um conjunto de cartas destinadas a Paulino (cuja identidade é incerta), nas quais o filósofo discorre sobre a finitude da vida humana. Considere-se o primeiro fragmento:


Não temos exatamente uma vida curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. A vida, se bem empregada, é suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para tarefas importantes. Ao contrário, se desperdiçada no luxo e na indiferença, se nenhuma obra é concretizada (...) sentimos que ela realmente se esvai.


A primeira questão que é preciso considerar é a da brevidade da vida. Sêneca cuida que há formas de agir e de viver que abreviam a vida. A brevidade de uma vida depende do modo como se vive, Portanto, a brevidade não é uma qualidade extensional da vida. Não se trata de pensar a brevidade da vida à luz do regime de Krónos (do tempo cronológico). A brevidade é um conceito intensivo, de modo que uma vida será breve ou longa dependendo do modo como a vivemos. Ter uma vida longa, mesmo que venhamos a morrer com 30 anos, é ter uma vida intensa, isto é, uma vida ocupada consigo mesma. Uma vida dispersa que durou 100 anos é uma vida breve. Numa vida dispersa, numa vida desperdiçada, em tudo que eu  realizo eu não me realizo. Ora, Sêneca censura o modo de vida do homem da multidão. A multidão é tudo que eu realizo sem me realizar. Na multidão, não somos quem somos e somos os outros; mas os outros não é ninguém. A vida escrava da multidão experimenta a brevidade de tudo; é vida que se perde a si mesma. Se eu vivo, vivo segundo o que acontece. A vida do sábio é vivida segundo o que acontece. Mas a maior parte dos seres humanos – ensina Sêneca – vive acordada como se estivesse dormindo.
Quem dispersa a si mesmo, quem vive inteiramente sob o modo da ocupação com as coisas sem ocupar-se de si desperdiça o tempo; mais ainda, experimenta o tempo como perda. Sua existência é perda de si sob o regime do tempo cronológico que sempre aniquila a si mesmo.  O que se deve destacar aqui é: podemos existir sem viver. Porque vida é ocupar-se de si. A vida nunca é cronologicamente mensurável. Apenas uma existência cativa experimenta o tempo como tempo cronológico. Foi assim: a vida é maldição e castigo. Cuidemos em considerar mais um fragmento abaixo:

(...) é consenso que um homem ocupado não pode fazer nada bem (...) não se aprofunda em nada, ao contrário, tudo que lhe é imposto rejeita. Nada está mais longe do homem ocupado do que viver, nenhuma coisa é mais difícil de aprender (...) Deve-se aprender a viver toda a vida e (...) por mais que te admires, durante toda a vida se deve aprender a morrer”. (grifo meu).

O homem, na ocupação, entregue ao mundo do impessoal, é refém da transitividade da ocupação. Quem se ocupa só das coisas não suporta integrar a totalidade de sua vida a si mesmo.  Para os que se ocupam das coisas, o tempo é fluxo, e a vida é o eterno retorno da aniquilação. Aprender a morrer é um exercício do meu viver. No fragmento cuja leitura nos ocupa, Sêneca quer-nos chamar a atenção para o fato de que a morte é um problema da totalidade da vida. Aprender a morrer é uma tarefa da vida inteira. A filosofia – e, nesse tocante, Sêneca recupera Sócrates – é um exercício de preparação para a morte. Mas essa tarefa só pode ser levada a efeito por uma vida que se ocupa de si, por alguém que vive a integralidade da vida. Quem vive a integralidade da vida não a vive segundo o regime do tempo cronológico, mas a vive integrando o passado porque dá significado ao passado no seu presente. O sábio nunca vive uma vida breve, porque a vida se dá integrada a ele. Para o sábio, a vida é inteireza. A extensão da vida do sábio se dá na grandiosidade, na intensidade do que viveu. Uma vida longa, portanto, é uma vida que se intensificou no curso de sua mortalidade. Na ocupação consigo, sempre se tem o seu tempo.  A questão que se impõe a nós, leitor, e que reclama resposta é: que horizonte temporal é este do sábio que ele não perde passado? A resposta depende de que atentemos para o próximo fragmento. Irei dividir o fragmento em duas partes, a fim de tornar mais fácil a compreensão do que está em jogo nele:


A vida se divide em três períodos: aquilo que foi, o que é e o que será. O que fazemos é breve, o que faremos é dúbio, o que fizemos, certo. Na verdade, o destino perdeu o controle sobre o passado, ninguém pode querer recuperá-lo. Os homens ocupados admitem isso. (...) eles não têm tempo para olhar para o passado e, se tivessem, lhes seria desagradável a recordação de algo penoso (...).


No começo do fragmento, se nos é apresentada a temporalidade do tempo cronológico: o presente é o período do fazer, que é breve; o futuro, do fazer incerto; e o passado, do que já foi feito, do “foi assim”.  É assim que o homem ocupado com as coisas, imerso no mundo da impessoalidade, experiencia o tempo. O tempo cronológico é uma modalidade do tempo. Na vida ordinária, nossas atividades se estruturam segundo o regime do tempo cronológico. Os homens-massa de nossas sociedades de massa são homo consumens, isto é, homens que consomem. Uma vida sob o regime do consumo é uma vida que se consome, que se corrói. A experiência que o homem desocupado de si e ocupado com as coisas tem do tempo é a mesma experiência do consumo em nossas sociedades capitalistas. O tempo, para ele, é experienciado como tempo que se aniquila a si mesmo:  quanto mais dilatado é o passado menor é a possibilidade de futuro.  Mas o tempo estoico não é o tempo de Krónos, mas o tempo de Aion, o tempo ilimitado, o tempo do acontecimento (o acontecimento jamais é o tempo presente, nem é sua efetuação espaço-temporal). O homem ocupado experiencia a passagem do tempo como vida que se vai abreviando, se devorando. A recordação do passado causa-lhe angústia porque, para ele, quanto mais passado se acumula mais próximo da morte ele fica. Consideremos a segunda parte do fragmento:

Cada dia só está presente por alguns momentos, mas todos os dias do passado a ti se apresentam quando assim ordenas: consentem que sejam detidos e inspecionados pelo teu juízo, alho que aos homens ocupados falta tempo para fazer. Uma alma segura e tranquila pode correr por todos os momentos da vida; todavia, os espíritos dos homens ocupados estão sob um jugo, não podem dobrar sobre si próprios, não podem se contemplar.
Por conseguinte, a sua vida se precipita nas profundezas e, assim como de nada serve a vasilha sem fundo, nada pode trazer de volta o tempo, não importa quanto ele te foi dado, se não há onde retê-lo (...) o tempo presente é brevíssimo, ao ponto de, na verdade, não ser percebido por alguns. De fato, ele está sempre em curso, flui e se precipita, deixa de existir antes de chegar; não pode ser detido do mesmo modo que o mundo e as estrelas (...) Assim, somente o tempo presente pertence aos homens ocupados, tempo este tão breve que não pode ser alcançado e que é retirado deles já que estão distraídos com muitas coisas.

Há duas modalidades de tempo segundo os modos de vida o experimenta: quem vive, quem se ocupa de si, vive a temporalidade do que acontece, vive o tempo de Aion. O sábio é aquele cujo modo de viver consiste em estar em conformidade com o que acontece. Ele integra o passado ao presente segundo o modo como ordena O maior impedimento para viver a vida é, para Sêneca, a esperança. Na esperança, o futuro não é integrado ao que eu faço. Vivo de expectativas, de esperanças e assim desperdiço a vida, o que é o mesmo que não viver. A vida escrava da multidão experimenta tudo sob o modo da brevidade. Libertar-se da multidão e ocupar-se de si é tornar possível uma existência performática na qual os elementos da finitude não signifiquem carência ou deficiência ontológica.
Se há, como creio, uma espiritualidade estoica, ela consiste em cultivos de modo de si em que nos vemos como artífice e resultado de si. Nem toda forma de uso é da ordem do instrumental, nem todo uso instrumentaliza alguma coisa: por exemplo,  uso uma ferramenta para consertar, para aparafusar, etc. Há usos que integram as coisas ao que sou, ao que faço. A sabedoria estoica levanta-nos, pois, a questão: que uso que nós fazemos de nós mesmos sem que sejamos funcionalizados por algo além de nós mesmos? Usar-se a si mesmo ocupando-se de si é ter uma vida que apareça aos outros como digna de ser cultivada, porque bela, isto é, boa. Ocupar-se de si é meditar; e meditar é elaborar-se.
O cuidado de si é ocupar-se de si, é a vida vivida sob o modo de atenção a si em tudo aquilo que se faz.



Considerações finais

Não estou certo de ter logrado sucesso na busca por tornar claramente exprimível o valor da filosofia. Este texto é destinado ao homem comum que, por preconceito ou preguiça, pensa ser o exercício da filosofia um trabalho como outro qualquer, que se faz com vistas a outra coisa. Espero ter convencido aqueles que pensam ser a prática da filosofia um pôr-se num estado de desocupação com a vida de que estão errados.  As reflexões que elaborei sobre a filosofia estoica visaram, fundamentalmente, a demonstrar que a filosofia é um ato único que deve ser praticado a cada instante, com uma atenção renovada a si mesmo e ao momento presente.
O filósofo está sem cessar perfeitamente consciente não só do que faz (ética vivida), mas também do que pensa (lógica vivida) e do que é, de seu lugar no Cosmos (física vivida). A atenção a si mesmo, segundo os estoicos, o cuidado consigo supõe viver atentamente, sem cessar, na presença da Razão Universal imanente ao Cosmos, vendo todas as coisas na perspectiva dessa Razão e aceitando alegremente o Destino.
O estoico, imerso na totalidade do Cosmo, eleva-se à consciência cósmica. Tudo que existe está destinado à dissolução: assim sou levado a meditar sobre a morte sempre já dada, iminente, como uma lei fundamental da ordem universal. Pensar sobre a morte é pensar sobre a vida.  O pensamento da morte iminente transformará de maneira radical o modo de agir de quem se ocupa de si, fazendo que tome consciência do valor infinito de cada instante. Uma das práticas espirituais mais importantes dos estoicos consistia no “pré-exercício dos males”, isto é, no exercício preparatório para as experiências. Tais exercícios preparatórios visavam à tranquilidade da alma.
E se ainda insistirem em me perguntar “para que serve a filosofia”, a resposta apropriada, fazendo eco a Deleuze, é: a filosofia não serve a ninguém e nem para nada. Mas, se me perguntarem “qual é a importância da filosofia”, então responderei em atenção: liberar o animal humano de sua permanente condição de escravo, de servo, de subserviência, para nele cunhar um modo de ser verdadeiramente livre, ocupado da vida que se lhe destina como gratuidade e que se abrevia a cada vez que a vive sob o modo do desperdício e da ocupação com o mundo do impessoal.