segunda-feira, 27 de outubro de 2014

"Encontrou-se, em boa política, o segredo de fazer morrer de fome aqueles que, cultivando a terra, fazem viver os outros" (Voltaire)

                    



                                Em cena, a política
                       Iluminando o lugar do debate

O Dicionário Básico de Filosofia (2008), de Japiassú & Marcondes, registra, no verbete política, o seguinte:

 

 

“Tudo aquilo que diz respeito aos cidadãos e ao governo da cidade, aos negócios públicos. A filosofia política é assim a análise filosófica da relação entre os cidadãos e a sociedade, as formas de poder e as condições em que este se exerce, os sistemas de governo, e a natureza, a validade e a justificação das decisões políticas” (p. 220).

 

 

 

 

Este texto vem a lume num período em que os eleitores brasileiros vão às urnas para eleger o próximo Presidente da República. Este texto é a minha tentativa despretensiosa de sinalizar para um lugar outro a que deveria ser encaminhado o debate político na esfera pública. Na esfera pública brasileira, a despeito do crescente interesse popular por inserir a política entre as questões que costumam estar na ordem do dia, o debate político torna-se seriamente reduzido a tentativas de provar quem é o “melhor” candidato (supostamente aquele que está com a razão, caso em que, raramente, acontece de se levar em conta que a política não é uma questão de “ter razão”, mas de desejo), quem dentre os candidatos que disputam um cargo público é o menos corrupto, qual é o partido político mais bem credenciado para governar. Nesse último caso, especialmente, a polarização direita e esquerda, que está na base da polêmica política, leva muitos a crerem que quem quer que defenda um candidato da direita, por exemplo, está necessariamente sendo contrário à esquerda, e vice-versa.

Neste texto, intento pensar sobre política a partir de outro lugar, qual seja, do lugar da teorização filosófica e acadêmica da política. Para tanto, evocarei dois nomes de peso de nossa tradição filosófica: Platão, que nos legou uma das grandes obras de filosofia destinadas a tratar da política – A República; e Aristóteles que, distanciando-se de seu mestre, também quando se ocupou da questão da “vida boa”, escreveu o também clássico Política. O tratamento que pretendo dispensar ao tema da política não ficará circunscrito, no entanto, ao exame dessas duas perspectivas. Situando a discussão no horizonte da modernidade, vou-me debruçar também sobre o modo como se estruturam as relações entre os cidadãos e o governo, para o que contemplarei, entre outras questões, a natureza e a atuação do Estado moderno e seus objetivos.  

 

 

 

 

 

1. Ética e política na Grécia Antiga

 

 

 


              Todo processo político é marcado, fundamentalmente, por um fato: a existência de oposição. Stuart Mill, que testemunhou as grandes transformações ocorridas tanto na sociedade, na política, quanto na economia de seu país, a Inglaterra, sustentava que, por meio da política, toda a sociedade precisa enfrentar uma questão fundamental: quais são os critérios que devem presidir à alocação da riqueza e dos valores socialmente produzidos? Dado que essa riqueza e esses valores são finitos, a insatisfação segue-se daí previsivelmente, em qualquer decisão política. É indispensável, para o que se seguirá, reter a concepção de política como um processo perpassado, necessariamente, por oposição, por conflitos; como tal, o domínio do político é um domínio polêmico, por excelência; é o domínio sócio-histórico que, viabilizando a coexistência dos homens em comunidades, convoca-os ao enfrentamento de questões que devem ser conduzidas para a satisfação do bem comum.

A ética e a política, tal como as pensamos hoje, surgiram nas cidades gregas, entre os séculos VI e IV antes da era comum. Em grego, ethos se diz “costumes”; e política origina-se do termo grego polis, que significa “cidade”. É claro que costumes e cidades são mais antigos do que sugere a etimologia dessas palavras. Mas ética e política, entre os gregos, tiveram um significado peculiar, que viria a marcar indelevelmente nossas formas de pensar.

Convém fazer alguma consideração sobre as condições sócio-históricas da Grécia em seus períodos arcaico e clássico, antes de descer a pormenores sobre o pensamento político platônico e aristotélico.




1.2. Período arcaico

 

No tangente ao período arcaico, a sua notabilidade se deve à criação da pólis. Doravante, é nas condições históricas da pólis que a civilização grega se desenvolverá. A pólis é uma comunidade politicamente autônoma, uma cidade-estado. A existência da pólis estava em estrita dependência da existência de um local onde se localizassem os edifícios públicos e religiosos e onde se pudessem realizar as reuniões dos cidadãos, a ágora. Não havia relação necessária entre a urbanização e o desenvolvimento da pólis.

Atendo-nos ao desenvolvimento da pólis, faz-se mister pontuar que a pólis se identifica com os cidadãos. É nesse período que a democracia e a escravidão passam a constituir duas ideias que se articulam de modo indissociável. A consolidação da democracia, seu próprio desenvolvimento dependia da escravidão. A força do trabalho escravo substituía o cidadão no exercício direto das atividades econômicas (trabalho no campo, essencialmente), o qual pôde dedicar-se às tarefas políticas.

O desenvolvimento da pólis e da noção de democracia engendrou mudanças radicais na legislação. Nesse tocante, cumpre observar a importância da codificação das leis. As leis se tornaram públicas e não mais monopólio de uma aristocracia que se serviam delas como bem entendesse. Por outro lado, o crescimento demográfico acarretou a insuficiência de terras: eram muitas pessoas e poucas terras para abrigá-las. Os gregos também tiveram de lidar com a insuficiência de alimentos que garantissem o sustento de uma população em crescimento. A solução encontrada para esse problema foi a colonização.

Desde já, note-se que a questão que norteava a filosofia política clássica toma forma verbal no seguinte enunciado: qual é a melhor forma de governo? Para o pensamento antigo, tratava-se de uma questão vital, pois que dizia respeito ao valor próprio de uma determinada forma de organização política. A finalidade da pólis – a cidade – não se cingia a garantir a sobrevivência, o bem-estar material, mas, sobretudo, a liberdade política, o “bem viver”, isto é, o viver de acordo com os valores de uma comunidade virtuosa e justa.

No mundo ateniense, onde a forma de articulação das relações políticas era determinada pela inserção do indivíduo, enquanto membro da “cidade”, na comunidade de homens livres, o governo da maioria ou a soberania popular eram questões extremamente importantes. Não se ignore que, na realidade, a maioria compreendia, paradoxalmente, apenas os cidadãos reconhecidos politicamente como tais, de modo que desse grupo estavam excluídos todos aqueles que se dedicavam às atividades de reprodução material. A igualdade política, em tais circunstâncias, determinava-se não só pela relação do cidadão com a totalidade da qual ele fazia parte, mas também pela desigualdade social sobre a qual essa relação estava apoiada.

A ágora ou a “praça pública” era, de fato, um lugar de encontro, de reunião, de discussão e de ações políticas – um espaço em que as decisões que tocavam à coletividade eram tomadas no confronto de opiniões e pelo exercício do voto. Novamente, aqui cumpre notar que do exercício da cidadania, do qual fazia parte o direito ao voto, estavam excluídos as mulheres, as crianças e os escravos. A democracia grega, com efeito, era restrita aos homens livres.

O mundo do trabalho situava-se à margem do processo de deliberação pública, restrito aos cidadãos. Havia uma divisão bem marcada entre o social e o político sob a forma da escravidão. Mesmo que ferindo as sensibilidades modernas que a julgam inaceitável, a escravidão, na antiguidade grega, tinha um estatuto jurídico (e veremos que dela dependia a própria instituição da democracia) justificado por uma relação de forças estabelecida na guerra. Para os atenienses, a escravidão não contrariava os princípios políticos e morais com base nos quais se organizava a cidade.

Nesse contexto democrático, o político está intrinsecamente ligado ao moral. Quando os gregos ventilavam a questão sobre a virtude, estavam, forçosamente, se perguntando sobre a melhor forma de organização política.

Uma vez que estejamos interessados também em compreender as condições sócio-históricas em que se desenvolveu a democracia grega, vale iluminar o que distancia a nossa experiência democrática, ou seja, a experiência moderna de democracia e a experiência democrática grega. Quando volvemos olhares para a dimensão sócio-política da modernidade, percebemos, sem muito custo, a vinculação da democracia ao Estado moderno. A palavra democracia assume então, com frequência, a forma adjetivada em expressões como “Estado democrático”. A existência de tal expressão linguística é já sintomática da perda de significação prática da própria democracia, entre nós. A democracia deixa de ser o ‘lugar’ público do processo de identificação da sociedade consigo para servir a uma nova forma de organização política. O Estado moderno, com efeito, passa a cumprir o papel de organização da sociedade a partir de um novo lugar: o Estado cria o mecanismo que, autonomizando-se relativamente ao espaço público dos cidadãos, passa a existir independentemente desse espaço e a controlar a sociedade do lugar da ‘exterioridade’. Em outras palavras, o Estado controla a sociedade a partir de fora.

O sentido de democracia, nesse contexto, se altera sensivelmente, porquanto é a própria democracia que é experienciada não mais como forma de organização da pólis, mas forma de governo possível do Estado. O Estado moderno irrompe na história como um fenômeno político que acaba por tornar a democracia uma forma de legitimação do seu próprio (dele Estado) poder.

A transferência do processo democrático público que, outrora, se configurava pela tomada de decisões e que dava forma à comunidade, para um centro de poder que se apresenta acima da sociedade, acarretou uma reorganização política das relações humanas, que culminou na transformação dos conceitos de espaço público ou governo da maioria. Assim é que as categorias de filosofia política clássica já não aproveitavam à análise de um fenômeno político que podia assumir muitas formas aparentes, sem alterar sua significação essencial. A democracia mesma passou a significar uma mera aparência de participação política, muito embora o seu sentido originário suponha uma efetiva participação dos indivíduos nos assuntos públicos.

O Estado moderno criou uma entidade política que se sobrepôs às noções oriundas das “instituições antigas”, que, por muito tempo, forneceram as categorias que orientavam o nosso modo de pensar o político. Na modernidade, o Estado somos nós: instituiu-se um processo de organização da sociedade numa forma de governo autônomo. Além disso, o Estado passou a designar o aparelho que, valendo-se de mecanismos próprios, governa a sociedade de uma posição que lhe é exterior. Se da ideia “o Estado somos nós”, ainda se deduz a correspondência com a noção clássica “formas de governo”, da ideia de Estado como aparelho moderno de governo, estruturado por uma máquina administrativa centralizadora, se depreende uma nova articulação do social pelo político e do político pelo social.

Em última instância, é a própria liberdade política, liberdade de intervenção na esfera política que será, negativamente, afetada por essa nova forma de articulação, dado o surgimento de uma forma estatal de organização do espaço público que, destinada a regular os conflitos sociais e o bem comum, vai reduzir a possibilidade igualmente dada a cada cidadão de participação nos assuntos coletivos.

 

 


           1.3. Período clássico

 

O período clássico é caracterizado como o apogeu da civilização grega. A estrutura da pólis e a democracia já estavam maximamente desenvolvidas; também as artes, a política e a filosofia vicejavam. Não obstante, o desenvolvimento da Grécia não ocorria sem desigualdades. A estrutura sócio-política de Atenas compreendia diversos “estados-ethnos”, cujo território era maior do que todas as póleis juntas. Estado-ethnos eram estados sem centro urbano; a pólis, ao contrário, é o estado com centro urbano.

Atenas foi considerada a pólis por excelência, muito embora existissem muitas póleis e entre elas diferentes níveis de desenvolvimento. A sociedade de Atenas compunha-se de três segmentos: os cidadãos atenienses, os “metecos” (estrangeiros) e os escravos. É preciso lembrar que em Atenas, bem como em outras póleis gregas, o cidadão era frequentemente identificado com a própria cidade, o que suscita a questão: o que fazia de um homem cidadão? Essa é uma questão bastante cara para nós, quando considerados os objetivos determinados para esta exposição.

O fundamento da cidadania era a riqueza proveniente da terra. Essa ligação entre cidadania e propriedade fundiária não foi atestada somente em Atenas, mas também em inúmeras cidades gregas. É preciso sublinhar que, durante todo o século V, a democracia foi se abrindo cada vez mais para os cidadãos, de sorte que se tornou possível a inclusão efetiva nesta categoria de todos os atenienses, inclusive os que não tinham terra.

A democracia grega era direta e não representativa – nem todos tinham, no entanto, acesso igualmente aos cargos públicos. A democracia nunca significou eliminação das desigualdades socioeconômicas e políticas. Havia uma elite intelectual e política, cuja riqueza material provinha essencialmente da posse de bens fundiários. Essas famílias ricas ocupavam os mais elevados cargos públicos, tinham terras lavradas por escravos, viviam na cidade, dedicando-se à política, à filosofia e à ginástica. Destaquem-se, pois, a importância da escravidão e do ócio para o desenvolvimento da filosofia.

A maioria dos cidadãos constituía-se de artesãos, donos de uma pequena oficina onde eles próprios trabalhavam junto de escravos. A democracia ateniense produziu as condições necessárias ao aumento de cidadãos proprietários de terras em fins do século IV. Isso não significava a inexistência de cidadãos pobres, que vendiam sua força de trabalho. Esses cidadãos formavam a frota naval de Atenas ou participavam das colônias militares atenienses no exterior. No século V, somente um terço dos cidadãos atenienses viviam na cidade.

Duas circunstâncias merecem nota no contexto democrático grego. Em primeiro lugar, nenhum imposto recaía diretamente sobre as atividades dos cidadãos. Os gregos consideravam degradante o pagamento de taxas ao Estado. Em segundo lugar, os cidadãos mais ricos revertiam parte de sua fortuna em benefício da comunidade.

A despeito de, em certas ocasiões, a democracia grega abrir-se para um maior número de atenienses, ela se fechou cada vez mais para os metecos (estrangeiros) e escravos. Somente os filhos de pai e mãe atenienses gozavam do estatuto de cidadão.

Era grande o preconceito contra o trabalho manual. Ele não era aceito como forma digna de se obter sustento. No entanto, a democracia favoreceu a aprovação de leis que protegiam o trabalhador manual e lhe conferiram certa dignidade enquanto trabalhador, desde que quem executasse o trabalho fosse um cidadão.

O meteco, tanto quanto o escravo, era um elemento indispensável na constituição da pólis, mas, ao contrário deste, o meteco era um homem livre. É claro que sua condição de estrangeiro o marginalizavam relativamente à esfera de atuação do Estado. Os metecos eram gregos de outras regiões ou bárbaros. Como não tivessem direito a nenhum tipo de propriedade, estavam excluídos da cidadania.

Cumpre, finalmente, salientar que a noção de democracia era indissociável da noção de escravo; e a noção de cidadão, inseparável da noção de escravo. Todo cidadão, em Atenas, tinha, pelo menos, um ou dois escravos (p.46). Os escravos se ocupam de todas as tarefas, junto de trabalhadores livres e metecos; mas havia uma atividade que se considerava demasiado degradante para ser exercida por um cidadão livre – da mineração; por isso dela tinham de se ocupar equipes de escravos.

É, portanto, na Atenas do período clássico que devemos situar o desenvolvimento do pensamento de Platão e Aristóteles.

 

 

 1.4. A República de Platão

 

A República, tematizando o problema da justiça, é, sem dúvida, um marco do pensamento filosófico e político em toda a história do ocidente. Nela, política e ética se articulam. A República busca determinar como deveria ser a cidade ideal. Em cena, Sócrates se dedica a demonstrar a insustentabilidade da tentativa tradicional de definir a justiça como “dar a cada um o que lhe é devido”, quando Trasímaco, uma das personagens do diálogo, interrompendo Sócrates, apresenta a seguinte definição de justiça: a justiça é a lei do mais forte.

Subjacente a essa definição está um pressuposto, qual seja, o de que justo é seguir a lei. Como a lei é feita pelo mais forte e em seu benefício, a justiça não existe e é apenas um interesse particular transformado em lei.

A Trasímaco, Sócrates objeta que sempre haveria a possibilidade de o legislador errar e fazer uma lei que contrariasse seu interesse, de sorte que a definição se tornaria inválida. Todavia, Trasímaco continua relutante. Ele sustenta que, quando o legislador legisla contra seus interesses, ele não o faz enquanto legislador.

Não convencido, Sócrates nota que é preciso ir além da aparência, para buscar o que a coisa é em si mesma. No exemplo em questão, trata-se, pois, definir a justiça em si mesma e não nas formas como ela aparece.

Para Sócrates, a verdadeira definição da justiça deve revelar a essência da justiça. O leitor pode imaginar quão difícil é essa tarefa. Em todo caso, avancemos.

Na polis, a justiça promove a união e a harmonia; a injustiça, por seu turno, tem o efeito naturalmente contrário. Assim, para Platão, a justiça é uma virtude; é boa, é útil; a injustiça é um vício, é má, é nociva. O que é preciso reter é que Platão propõe que se deixe de considerar, nessa discussão, este ou aquele homem justo, esta ou aquela lei ou constituição justas, ou seja, sempre pessoas ou coisas particulares. É necessário que se pense, por abstração, no que seria a Cidade justa em geral. A partir dessa perspectiva da Cidade justa, ideal, é que se poderia definir a justiça em si e distinguir o que é justo do que apenas parece justo.

Na descrição do modelo de Cidade justa, vão-se determinando quais são as funções necessárias à melhor forma de vida da Cidade. No texto da República, encontramos discriminada a função daqueles que trabalham para manter a Cidade, a daqueles que a governam, a daqueles que se encarregam de sua proteção, de modo que uma Cidade seria justa se os que dela participam concorrem segundo suas aptidões.  Tais aptidões se colocariam a serviço da harmonia da polis. Destarte, aqueles cuja principal virtude fosse a temperança trabalhariam; aqueles que exibissem a virtude da coragem, especialmente, seriam os guardiões da Cidade; e os que fossem dotados de uma acentuada virtude de sabedoria (os filósofos) governariam.

É verdade que a Cidade descrita por Platão não corresponde a nenhuma cidade existente que conhecemos. No entanto, já podemos compreender, tendo em conta o que se expôs até aqui, como se deve distinguir o que apenas parece ser justo do que é verdadeiramente justo.

 



           1.4.1 A alegoria da Caverna

 

Tendo em vista o estabelecimento da verdade, Platão generaliza o tratamento que vinha dando à questão da justiça. Para tanto, ele lança mão da famosa Alegoria da Caverna, com a qual nos pede que imaginemos pessoas vivendo acorrentadas numa caverna fracamente iluminada por uma fogueira. Essas pessoas, imobilizadas, viradas para a parede, só viriam as confusas sombras projetadas pelas coisas que passavam atrás de si. Como essas pessoas só conhecessem essas sombras, sem nunca terem visto as próprias coisas, elas tomam as sombras pela realidade. Platão prossegue imaginando que um dessas pessoas consiga, com dificuldade, libertar-se e sair da caverna. Num primeiro momento, ela ficaria completamente cega pela luz do Sol; mas, à medida que suas vistas se acostumassem à claridade, ela conseguiria ver claramente as coisas e, assim, entenderia o que elas são realmente. Essas coisas é que são reais, ao passo que as sombras projetadas na parede da caverna não passavam de simulacros, aparências das próprias coisas.

Entusiasmado com a descoberta, essa pessoa sente-se impelida a voltar à caverna para contar a todos os demais prisioneiros o que viu. Mas, ao contrário do que esperava, ninguém acredita no que conta ela e ainda zombam dela. Os que permaneceram na caverna continuam a acreditar que as sombras constituem a verdadeira realidade.

Em síntese, da Alegoria da Caverna podemos colher a seguinte lição: só podemos conhecer a verdade quando ultrapassamos o domínio das aparências sensíveis para, num movimento ascendente, contemplar os arquétipos ou as Ideias eternas e imutáveis que constituem o mundo inteligível, este que é dotado de mais realidade que o mundo sensível, onde nós habitamos. É necessário omitir alguns pormenores da escalada de conhecimento rumo à contemplação da Forma do Bem, ponto de irradiação da luz para todo o campo das Formas Perfeitas. Extrapola o escopo deste estudo o aprofundamento desse tema.

Só há, de fato, conhecimento, segundo Platão, quando se alcança a realidade imutável da qual participam as coisas sensíveis, as quais são o que são em virtude dessa participação. Mas essas coisas sensíveis são cópias imperfeitas das Formas Perfeitas verdadeiramente existentes no mundo inteligível, cujo acesso não é possível senão pelo pensamento, pelo raciocínio.

Assim, a beleza dos corpos é tão mais intensa quanto mais participam do Belo em si, cujo conhecimento nos permite determinar o que é belo. Não me interessa aqui me demorar nos desdobramentos dessa doutrina platônica. Mas cumpre esclarecer como essa concepção da realidade e do conhecimento se conecta com a questão da Cidade justa.

Platão advogará que as opiniões não conduzem ao conhecimento; as opiniões são aparências de um saber; não o verdadeiro saber. As opiniões pertencem ao mundo das coisas sensíveis e não nos permitem desvelar a essência das coisas. Por outro lado, o conhecimento é um processo ascendente que nos encaminha à realidade imutável, pela qual todas as coisas são o que são. A Cidade justa depende, portanto, do conhecimento do Bem em si e da Justiça em si. Os homens só serão justos e bons conhecendo o Bem e a Justiça em si, isto é, a Forma do Bem e a Forma da Justiça. Enquanto permanecem confundidos por aquilo que parece bom e justo, mudando continuamente de opinião, eles serão injustos e infelizes.

 



           1.5. A visão de Aristóteles

 

Platão nos ensinou que o conhecimento e a ética estão necessariamente ligados. Para Platão, se nos afastamos do bem e da justiça é porque ignoramos o que é realmente o Bem e a Justiça.

Aristóteles, por seu turno, discordará de seu mestre, Platão, e do mestre deste, Sócrates. Aristóteles negará que ética e conhecimento estejam necessariamente unidos, o que não significa que rejeitasse a necessidade de conhecer o que são os valores morais (virtudes) necessários ao bom convívio humano.

O que ensina, então, Aristóteles, a respeito da relação entre conhecimento e ética? Ele ensina que é necessário conhecer o que são as virtudes, mas também mantém que o conhecimento não é suficiente para que nos tornemos virtuosos.

Esclareça-se, pois, a ideia central do pensamento aristotélico, ao considerar a relação entre conhecimento e ética: o caráter de uma pessoa não é bom porque ela simplesmente conhece o que é a justiça ou a coragem, mas porque ela quer ou deseja agir em conformidade com o que seja a justiça ou a coragem.

Em primeiro lugar, a ética tem uma especificidade quando comparada com o conhecimento teórico. Em segundo lugar, a natureza humana comporta dois elementos: o irracional e o racional, que podem estar em conflito entre si. Aristóteles fará uma distinção que Platão não fez entre conhecimento teórico ou científico e conhecimento prático. Se o conhecimento teórico explica o que a coisa é, buscando determinar a causa dessa coisa (em Aristóteles, conhecer é conhecer pelas causas); o conhecimento prático, por seu turno, torna possível aos homens produzir ou agir no mundo. Por isso, ele é prático, pois se refere às nossas ações.

Para Aristóteles, portanto, tanto a ética quanto a política são conhecimentos práticos, já que se destinam a identificar o que de melhor podem realizar as ações humanas.

 

 

 

 

1.5.1. O homem é um animal político

 

Examinando o texto da Política, São Tomás entenderá que Aristóteles, ao enunciar que “o homem é um animal político”, quis dizer que faz parte da natureza do homem o viver na cidade, associando-se em comunidades: a família, a casa, a vila... Dentre essas comunidades, a pólis se destaca como a maior e a primeira, porque recobre a totalidade das demais.

Para Aristóteles, a comunidade política é, para o ser humano, o seu lugar natural, uma vez que, dotado de racionalidade e, consequentemente, da faculdade da linguagem verbal, pode manifestar mais do que sensação de prazer e sofrimento. Sendo ser de discurso e animal político, o homem percebe e manifesta o bem e o mal, o útil e o prejudicial, o justo e o injusto, razão pela qual o tipo de organização humana será superior àquelas comunidades cujas tarefas se restringem à reprodução, proteção e manutenção da vida, como os formigueiros e as colmeias.

Em suma, a cidade, na visão aristotélica, não será outra coisa senão a comunidade organizada segundo aqueles valores. Ela é a consequência natural da razão prática, isto é, naturalidade e necessidade de organizar-se em comunidade decorrem da atividade racional para refletir, ponderar, decidir e agir em conformidade com o parâmetro do que é verdadeiramente bom para nós e para os outros, tendo em vista o bem viver juntos.

Cumpre, finalmente, dizer, muito brevemente, que o supremo bem a que tende o homem é a eudaimonia, que se traduz, em português, por falta de uma palavra mais adequada, por felicidade. Mas, em Aristóteles, a felicidade não é um sentimento; é uma atividade. A eudaimonia consiste em viver de tal forma, que o que apraz nossa alma desiderativa seja aquilo que a atividade excelente de nossa alma racional afirme ser verdadeiramente bom e justo.

É a polis o lugar em que os seres humanos se realizam enquanto humanos, nem bestas, nem deuses. Nesse sentido, a felicidade para o homem, ou seja, a atividade do homem que realizou suas qualidades próprias de ser humano (racionalidade, linguagem, sociabilidade) só pode ser atingida no domínio da cidade.

 

 

1.5.2.  Condições políticas da ética

 

Notemos que, segundo Aristóteles, a ética tem condições políticas. Ao sustentar que este é o caso, Aristóteles faz ver a importância que desempenha a educação na aquisição dos hábitos que são as excelências ou virtudes cívicas.

Aristóteles chegou a preconizar a necessidade de uma escola pública acessível a todos os cidadãos. A necessidade de uma escola pública prende-se ao fato de que, na democracia temperada, que lhe parecia o melhor regime, a cidadania ativa, a saber, a participação efetiva nas instâncias do poder, deve ser direito de todos os cidadãos, independentemente de sua classe social, seu nível econômico ou sua idade.

A educação permitiria que os jovens, primeiramente governados, viessem a se tornar, mais tarde, governantes.

 

1.5.3. As condições éticas da política

 

A política, por seu turno, também tem suas condições éticas. É somente pela virtude dos cidadãos (justiça, amizade cívica, prudência) que se constituem verdadeiramente comunidades solidárias e diversificadas. A essa virtude devemos também o primado atribuído ao interesse geral sobre os interesses privados, a estabilidade das instituições, não obstante as inevitáveis discórdias, os riscos de sublevação e de revoluções.

Amizade, justiça e prudência se situam, portanto, no encontro entre o político e o ético. A amizade (philia) prima sobre as outras duas porque é ela que parece unir as cidades. A própria justiça deixa de ser necessária, se entre os cidadãos houver amizade. Aristóteles ainda sustenta que, no domínio privado, a justiça torna possíveis os vínculos de amizade em condições desiguais. O que conta é que o apego seja proporcional às vantagens recebidas.

No domínio público, a amizade reanima a preocupação com a justiça, que corre o risco de ser relegada em favor dos interesses egoísticos. O bom político, para Aristóteles, dispõe de sabedoria prática ou prudência, em virtude da qual sabe o que deve fazer numa ou noutra circunstância particular, e reconhece o momento oportuno para fazê-lo. Fica estabelecido, pois, o significado ético dessa sabedoria.

No tangente à justiça, ela integra todas as outras virtudes. A justiça se situa entre as virtudes éticas; por isso, é uma virtude dianoética, dado que está calcada sobre o cálculo de uma igualdade que pretende determinar as compensações e penas, ou a distribuição a cada um a parte que lhe é devida.

 

 

1.5.4.  Distinção entre ética e política

 

Ética e política são indispensáveis, mas não se identificam. Aristóteles também aqui nos convida a pensar a uni-pluralidade, ou seja, a unidade na pluralidade. Assim, as virtudes do homem de bem e as virtudes cívicas permanecem dissociadas. É possível alguém ser bom e honesto sem que seja bom cidadão ou um bom dirigente político.

Em primeiro lugar, é impossível que mesmo a melhor cidade se constitua inteiramente de pessoas de bem. Em segundo lugar, importa, na polis, que cada cidadão “cumpra corretamente a tarefa que lhe for designada”.

Se Aristóteles renuncia à ideia de unificar todas as virtudes, ele acede à ideia de que todas elas dão aos homens cumprir a sua tarefa de ser humano, de realizar-se enquanto homem.

 

 

2. O que é isto, a política?

 

Após termos examinado, não exaustivamente, como a questão da boa vida encontrou abrigo no pensamento político de Platão e Aristóteles, é forçoso deslocar a perspectiva sobre a política para pensá-la de modo mais geral no quadro de referência da modernidade.

Principiemos pela observação de que não restam dúvidas de que a política é uma referência permanente em todas as dimensões de nosso cotidiano, na medida em que este se estrutura como vida em sociedade. A política surge juntamente com a própria história, com o dinamismo de uma realidade que não cessa de se transformar, que continuamente se revela insuficiente e insatisfatória, e que não é fruto do acaso, mas resulta da atividade histórica dos próprios homens em sociedade. Homens que, portanto, têm todas as condições de interferir, de desarranjar e de dominar as estruturas da história. Entre o voto e a força das armas acha-se uma gama variada de formas de ação desenvolvidas historicamente, visando a resolver conflitos de interesses, condição esta que configura a atividade política em sua questão fundamental, qual seja, a de sua relação com o poder.

 

 

2.1. A política e suas formas

 

A política é uma dimensão da existência do homem – este que, é, como vimos, por natureza, um “animal político” (Aristóteles) – sempre ligada ao Estado, ao poder, à participação, às ideologias, à violência (que assume muitas formas, inclusive a simbólica), sempre presente nos sindicatos, nos tribunais, na escola, na igreja, na sala de jantar ou na reunião partidária.

A política se manifesta, pois, como uma realidade multifacetada. Há, todavia, uma região semântica da palavra política a que comumente fazemos referência, em razão de sua negável importância: a esfera da política institucional. Assim, designam políticas todas as atividades relacionadas, de algum modo, à esfera institucional política, onde encontramos, por exemplo, um comício, um partido, o voto de um eleitor, o discurso de um vereador, etc.

É possível ainda alargar a extensão semântica da palavra política, a fim de que ela compreenda certas formas de se posicionar em face de questões de interesse social. Por exemplo, quando falamos da política da Igreja, não estamos nos referindo apenas às suas relações com as instituições políticas, mas ao fato de que existe na Igreja um posicionamento em relação a certas questões de importância social, como a miséria e a violência.

Do mesmo modo, a política dos sindicatos não recobre apenas a ideia de política sindical, desenvolvida pelo governo para os sindicatos, mas as questões que tocam à própria atividade do sindicato relativamente aos seus filiados e ao restante da sociedade.

Para tomar um último exemplo, a política feminista não compreende apenas as relações de suas representantes com o Estado, mas diz respeito aos homens e às mulheres em geral. Consoante nota Maar, em O que é política? (2006),

 

“As pessoas, no seu relacionamento cotidiano, desenvolvem políticas para alcançar seus objetivos nas relações de trabalho, de amor ou de lazer; dizer “Você precisa ser mais político” é completamente distinto de dizer “Você precisa se politizar mais”, isto é, “precisa ocupar-se mais da esfera política institucional” (p. 10).

 

 

O devir histórico que acarretou nossas complexas instituições políticas – a instituição de um Estado onipotente – impôs a politização geral da sociedade nas suas mais diversas esferas e micro-esferas. Todos somos instados a nos posicionar, diariamente, em face do Poder. Por outro lado, esse devir carreou a imposição de normas com as quais se baliza a própria aplicação da palavra política, de modo que nos sentimos forçados a determinar o que é e o que não é política. Disso resulta que o ser político do eleitor é mascarado, ao mesmo tempo em que se associa restritivamente a natureza política àquele que é eleito. Pode suceder ainda que se fixe para uma pessoa um lugar e um tempo apropriados ao exercício político (por exemplo, a hora das eleições ou a tribuna da Câmara dos Deputados).

 

 

2.2. A política como ação transformadora

 

Pode-se definir acertadamente a política como ação transformadora do real. Isso significa admitir que há várias orientações possíveis para a política, segundo satisfaça uma ou outra demanda. Todavia, apenas uma dessas orientações se efetiva na prática como a orientação dominante. Trata-se da orientação assumida pela atuação do Estado, o qual dispõe das condições para tanto.

É indispensável, aqui, esclarecer o que se entende por Estado. Em primeiro lugar, estamos nos referindo ao Estado moderno. Destarte, o Estado pode ser definido como uma estrutura jurídica e organizacional que se sobrepõe à sociedade e que se destina a manter a ordem no interior dessa sociedade. O Estado é um sistema de poder estruturado e encarna uma força pública que dispõe do monopólio de poder sobre determinada população em um determinado território.

Do ponto de vista do liberalismo, o Estado é uma estrutura de dominação, e essa estrutura de poder traduz-se em dois direitos básicos: o poder de estabelecer leis e o poder de tributar.

Particularmente nos interessará aqui a concepção marxista de Estado. Para o marxismo, o Estado é produto das contradições da sociedade que atinge certo grau de desenvolvimento e necessita, por isso, de um poder colocado aparentemente acima da sociedade para mantê-la dentro dos limites da ordem.

Segundo Engels, o Estado constitui o primeiro poder ideológico. No capitalismo, ele cumpre funções que garantem o bom funcionamento da economia e que atendam aos interesses das classes dominantes. O Estado destina-se, especialmente, a defender a propriedade privada. Na visão de Engels, o Estado, criado para defender os interesses comuns a toda a sociedade, torna-se independente dela, tanto mais que vai se convertendo em um instrumento de poder de uma classe, com o qual ela impõe seu domínio sobre outra.

O Estado, portanto, do ponto de vista marxista, está a serviço das classes dominantes, na medida em que lhes seve de instrumento para o estabelecimento e a legitimação de sua dominação. As classes dominantes se servem dos aparelhos do Estado para instaurar a sua dominação e assegurar seus privilégios.

Engels sustentou também que “os homens fazem a sua própria história, mas não segundo condições que eles mesmos escolheram”. Por conseguinte, a atividade dos homens é dependente de certas condições objetivas configuradas pelo desenvolvimento histórico. Os homens só se tornam agentes políticos, quando satisfeitas essas condições. Só podem interferir na história, quando essas condições se realizam.

Dois problemas se nos impõem à consideração, doravante: 1) a atividade que se desenvolve quando as condições para tanto são satisfeitas; 2) a atividade que se destina à constituição dessas condições.

 

 

 

2.3. A natureza e a atuação do Estado

 

A política que se segue da atuação do Estado só existe porque tem condições para tanto. É claro que o Estado não é o único a dispor dessas condições, mas o fato de que delas dispõe é suficientemente provado. Destarte, o Estado dispõe do poder de desvelar o objetivo de sua atividade política e de suas instituições.

Na medida em que ocupa essa posição privilegiada, qual seja, a da instância cujas possibilidades já estão comprovadas, o Estado e seu agente – o governo – tornam-se objeto principal da disputa de todas as orientações políticas, de todos os partidos, qur os de oposição, quer os de situação. Naturalmente,  os partidos da situação pretendem manter-se onde estão: no poder.

Convém sublinhar que a vida partidária é a condição mais importante para ocupar a direção do Estado – mais importante, inclusive, do que as instituições mediante as quais se realiza a política – forças armas, partidos, organizações religiosas, sindicais, etc.  – e a atividade que se realiza através delas.

A atividade política institucional do Estado consiste num conjunto de medidas que visam a atender as necessidades da vida social dos homens em sua história. Tais necessidades dizem respeito, por exemplo, à organização da vida coletiva e ao atendimento de objetivos comuns.

O desenvolvimento de uma estrutura de poder decorre do primado da coisa pública sobre os interesses individuais. Essa estrutura de poder é uma superestrutura que ordena e disciplina a base social a que corresponde. A superestrutura é a dimensão a que interessa sobremaneira a sua relação com a sociedade. Gramsci dirá que é essa relação que constitui o primeiro momento da superestrutura. Esse momento se impõe como a questão fulcral da política institucional.

Essa relação se reproduz na atividade institucional na forma de relações entre governantes e governados, representantes e representados, dominadores e dominados, administradores e contribuintes, “autoridades” e “população”, etc. Decerto, os atos do governo, dos tribunais, do parlamento são dotados de significado político; todavia, esse significado é extensivo à relação que essas instâncias mantêm com a sociedade dos que se submetem ao governo. Os meios da atividade política se alimentam das peculiaridades dessa relação. E essa relação expressa e revela a atividade política como acontecimento inerente a sua base (da relação). Tais meios devem ser levados em conta se o que está em jogo é a realização do desejo de ocupar o governo. São esses meios que permitem que seja dominante uma orientação política. Esses meios funcionam como dispositivos para a constituição do agente político.

O Estado, já o dissemos, é um agente comprovado. A fim de compreender como esses meios funcionam para constituir um agente político, cumpre considerar o modo como o Estado se relaciona com a sociedade. Essa relação – desde já, é preciso notar – se dá pelas armas ou pelos votos. Quando a relação se dá pela força de seus aparelhos repressivos (Althusser), ocorre a coerção, e o Estado se manifesta como agente da coerção, da imposição. Quando, por outro lado, a relação se estabelece mediante a prática de votos, o Estado torna-se um agente da persuasão , do consenso. Por conseguinte, a dominação pela força e o governo pelo convencimento são os meios da política. Quando há dominação pela força, verifica-se mais claramente a coerção; quando se dirige pelo convencimento ou pela persuasão, temos a hegemonia.

Vejamos exemplos de um e outro caso. Recentemente, o Brasil testemunhou uma série de manifestações de rua que, em circunstâncias em que excediam os limites da ordem instituída pelo Estado, exigiram deste uma repressão por meio de sua política. Nesse caso, ficou patente a atuação dos mecanismos de coerção.  A política que reprime uma passeata pode fazê-lo pela censura. Por outro lado, quando o governo, a fim de angariar votos, faz promoção de seus atos, faz propaganda de suas realizações, ele está a visar a uma hegemonia. Trata-se, nesse caso, de uma força de direção calcada sobre a necessidade de convencimento, de produzir consenso.

Pode ainda suceder que setores da oposição, procurando ascender ao governo, por ocasião das eleições, apresentem-se como alternativas hegemônicas; se tomam das armas, escolhem fazer uso da coerção. A invasão dos EUA ao Iraque foi um ato de coerção.

Não se pode perder de vista o fato de que esses meios têm um espaço próprio no interior da superestrutura de poder. O espaço que ocuparão varia segundo a função a que sevem.

Recorde-se que a coerção e a hegemonia constituem dois momentos característicos da atividade política. É por meio desses dois momentos que é criada uma relação específica com a sociedade. A sociedade assumirá duas formas, cada qual fixada pelo modo como o Estado se relaciona com ela. Se por coerção, a sociedade assume a forma de sociedade política; se por hegemonia, temos a sociedade civil. Na sociedade política, se acham a administração pública, o Judiciário, o conjunto de leis, a censura, a polícia e as forças armadas, etc., e sua presença no cotidiano. Na sociedade civil, se topam partidos, as instituições de propaganda, as escolas, as empresas, os sindicatos, os movimentos sociais, a Igreja, etc.

Na sociedade política, predomina a atuação do governo; na sociedade civil, se acham, quase exclusivamente, as oposições. É por isso que a sociedade civil é, geralmente, vista como expressão das orientações políticas divergentes do governo.

O filósofo, educador e psicanalista Rubem Alves escreveu um conto, intitulado Os Ratos, no qual narra, endossando uma perspectiva marxista, o que é uma constante do desenvolvimento histórico: a persistência da propriedade privada e da luta que decorre pelo desejo de dispor dela, por exclusão dos outros. A história dá testemunho, frequentemente, de que governados e governantes trocam de papeis: dominados e dirigidos assumem o papel de dominadores e dirigentes.

Essas contradições constitutivas do tecido histórico, inerentes à natureza humana, suscetível à influência das paixões egoísticas, irão comprovar o significado político institucional dessas relações. Isso se dá porque, para adquirir significado político institucional, é preciso, antes de mais nada, que aquelas relações revistam-se de significado político. Ora, não só o governo e os deputados, senadores, vereadores, prefeitos são políticos; tampouco somente suas relações com os governados são relações políticas; políticos também são os governados, os representados. Também eles e suas relações são dotados de significado político.

Cabe, então, perguntar como se manifesta esse significado político? E mais: quais os meios necessários para que ele assuma a forma das relações que estão no bojo da disputa pelo poder institucional, o da coerção e o da hegemonia? Necessário será, doravante, contemplar os meios específicos de que se vale a sociedade de dominados e dirigidos, com vistas a instituir uma possibilidade de governo. Em tempo, necessário será também lançar olhares sobre os objetivos do Estado.

Por ora, intentando compreender de que meios se servem os governados, os dominados, comecemos por fazer ver o seguinte. Os agentes políticos constituem a sociedade mediante sua organização e mobilização tendo em vista os interesses sociais, os quais, por isso, se desenvolvem com objetivos políticos, porque em seu horizonte estão as relações políticas de coerção e hegemonia. Esses agentes políticos voltam sua atenção para essas relações com o propósito de transformar em direito suas reivindicações.

É nesse momento que urge atentar para uma contradição fundamental: os agentes representam interesses da sociedade, que não correspondem as demandas do Estado. Eles só são agentes porque se baseiam na estrutura social, e não na base da política institucional do Estado. Esses agentes atuam, de certo modo, independentemente do Estado, a não ser que precisem exibir eficiência no modo como se conduzem as relações que o Estado estabelece com a sociedade.

Os partidos que expressam claramente interesses sociais, os sindicatos, as associações profissionais não estabelecem suas condições objetivas enquanto assumem significado político na disputa pelo governo. Eles repousam em condições subjetivas, cotidianas, de mobilização e organização de seus filiados e militantes.

É assim que, por meio de seus interesses sociais, atribuem um significado político aos agentes que os constituem. Na democracia moderna, não é, por exemplo, o prefeito que doa uma parte de seu significado político ao eleitor, para que este exerça uma atividade política; é, ao contrário, o representado, o governado, o eleitor, que atribui ao representante, no caso, ao prefeito, o poder de representá-lo. Não é o governo que dá significado ao Congresso; mas este que confere àquele o direito de cuidar dos interesses sociais que representa.

 

 

 

“Os objetivos da política deixam o espaço confinado da disputa institucional, para adquirirem embasamento social. Não é o confronto com o Estado que está em primeiro plano, mas a capacidade de representação das demandas sociais. Por isto palavras de ordem, como “abaixo a ditadura” dão lugar a manifestações contra a carestia e o arrocho salarial, contra a legislação sindical e o desemprego, pelo atendimento de serviços básicos como saúde, educação, transporte, moradia, etc. (Maar, 2006, p. 52)

 

 

Do excerto referido acima, quando se consideram os objetivos da política, deve-se considerar, em nível imediato, a luta dos agentes que compõem a sociedade civil pelo atendimento de suas demandas sociais. Não se trata mais de atuar em confronto com o Estado, mas de se afirmarem enquanto agentes que bem representam os interesses coletivos, para cuja satisfação eles mobilizarão mecanismos que pressionem o Estado a fazê-lo.

 

 

2.4.  Os objetivos do Estado

 

Todos sabemos que é possível escolher entre vários partidos ou candidatos a cargos eletivos; mas não é possível, pelo menos para a grande maioria, escolher entre o pleno ócio e o trabalho. Aqui já se pode perceber o cerne da política institucional do Estado e de suas instâncias no governo – o Executivo, o Judiciário, o parlamento, a política. O Estado deve garantir uma liberdade no exercício da cidadania – o voto – e impor uma norma no nível da produção, qual seja, o trabalho.

Portanto, do ponto de vista do Estado, a finalidade específica da política institucional consiste na imposição de uma estrutura econômica à sociedade. No mundo atual, predomina a imposição de uma estrutura econômica capitalista, que se baseia em antagonismos de classes sociais: umas subsistem vendendo sua força de trabalho; outras compram os produtos desse trabalho. Umas são exploradas em benefício de outras.

A miséria não decorre da insuficiência na produção de alimentos no mundo; mas da imposição política de uma estrutura econômica que perpetua a miséria para poder explorar mais o trabalho dos miseráveis. Por meio da política institucional do Estado, os interesses particulares de uma classe se apresentam como objetivos políticos gerais da sociedade. Trata-se aqui de apreender o legado marxista, segundo o qual os interesses das classes dominantes aparecem, no domínio ideológico, como os interesses da sociedade como um todo.

O Estado exibe sua verdadeira face quando seu objetivo se apresenta como imposição de interesses de exploração econômica de uma maioria. A repressão não recai sobre todos os cidadãos; ela se pauta por certos critérios que não são políticos (já que, formalmente, todos os cidadãos são politicamente iguais), mas sociais. Esses critérios sociais definem os cidadãos como assalariados ou proprietários dos meios de produção, ou proletários ou burgueses. Esses critérios sociais só se explicam se os objetivos são também sociais, fora da esfera do Estado, ou seja, como formas de manutenção da estratificação social.

A relação que se estabelece entre governo e governados é a aparência política da relação social entre patrão e empregado, a qual assume a forma de uma relação de classes na sociedade.  Disso resulta que a atividade política institucional ancora-se, objetivamente, numa relação com a sociedade. É nessa relação que os meios de que se serve a atividade política do Estado se manifestam. O Estado os vê como forma de participação, representação e direção dos “cidadãos” indiscriminadamente. O que sucede na sociedade, porém, é que apenas uma parcela pequena desses cidadãos – em consonância com sua situação de classe – é efetivamente representada, efetivamente participa do Estado e reconhece no Estado um dirigente de seus interesses que aparecem, no domínio ideológico, como os interesses de toda a sociedade.

Meu propósito é que este texto possa ser complementado com outro texto, no qual deverei me ocupar com o desenvolvimento das ideias e conceitos recobertos pelo materialismo histórico de Marx e Engels.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

"Sofri uma fratura da qual jamais me recuperei" (BAR)

                   


                             Um instante radiográfico


Que me conta a radiografia de minha vida nestes últimos dez anos? Abalos, explosões, êxodos, sismos, cataclismos. Sofri uma fratura da qual jamais me recuperei. Na alma, carrego cicatrizes que me doem mais porque não se pode tocá-las, porque não se estampam. Por vezes – muitas vezes -, ao acordar, fico imobilizado por um debilitante sentimento de abismo. Tantos pensamentos embaraçados e indiscerníveis me assaltam o espírito. Quedo na cama. Fico a sentir as explosões de minhas guerras – as guerras que hospedo em minha alma, em meu corpo. Delas um dia fui prisioneiro; hoje, tornei-me um comandante suspeito, suspeitoso.
A poesia de outrora, que tantas noites embalavam, caducou. A filosofia promitente é mal compreendida; e ensiná-la parece-me uma desnecessidade. O público se ausenta com frequência. Não se é filósofo com frases feitas, de efeito. Acho graça de quem supõe que é assim que se fazem os filósofos. Aliás, filósofos não se fazem; eles acontecem. Também os poetas não se formam; eles nascem. A filosofia não é democrática; tampouco o é a arte. A poesia é um privilégio; a filosofia, ou é uma necessidade, para a qual a vida nos lança (por isso, ninguém escolhe ser filósofo), ou não é nada mais que uma dimensão da cultura, que se reúne a outras tantas formas de sua manifestação (a música, a pintura, a literatura, o cinema..), numa nota de rodapé.
Toda a humanidade pode se dividir em dois grupos, e apenas nestes: o grupo dos que marcham em direção à morte inevitável; e o grupo dos que marcham em direção à morte inevitável com alguma inquietude intelectual a respeito do SER. Para os que compõem este último grupo, o fato de haver mundo é extremamente espantoso. O fato de sermos-no-mundo com os outros é causa de profunda inquietação. No mais, os integrantes de ambos os grupos não se distinguem fundamentalmente. O cotidiano os homogeneíza na engrenagem do viver segundo hábitos fixados por uma ordem que os transcende. No cotidiano, o viver é banal, é medíocre. É o cotidiano o habitat do homem medíocre. Nesse domínio, todos são como todos, e ninguém é em si mesmo.
O que, no homem, é causa de comiseração não é tanto a facilidade com que se ilude. Não se vive sem ilusões. O mal do homem está em iludir-se sobre suas ilusões. Este homem é suscetível de nossa comiseração. Há, portanto, os que sabem que alimentam ilusões e os que, iludidos, têm ilusões sobre suas ilusões. Se não é possível viver sem ilusões, é possível pensar sem mistificações. Ora, desmitificar-se não é livrar-se das ilusões, mas reconhecê-las como tais, como ilusões.

Desmitificar-se tem sido para mim o inequívoco grandioso projeto a que me tenho lançado. Por isso, a obstinação nos livros; por isso, a dedicação à filosofia. Não se segue daí que a filosofia seja, para mim, apenas um meio de desmitificação. Ela é um exercício de existência, um exercício de ultrapassamento, um trabalho de preparação para a morte. É preciso aprender a viver e é preciso aprender a morrer. 

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

"Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, é o ponto de vista que cria o objeto" (Saussure)

                  
                                    
                                    
      Ferdinand de Saussure
                          O homem dos fundamentos


Convencionou-se datar o nascimento da Linguística moderna a partir da publicação do Cours de linguistique Générale, de Ferdinand de Saussure, em 1916. As ideias de Saussure influenciaram toda uma geração de especialistas, em diversos domínios do saber humano e delas encontramos eco, ainda hoje, nos centros acadêmicos de nosso país, nas conferências em que se divulgam estudos sobre a linguagem.
Da publicação do Cours dependeu a afirmação do estruturalismo linguístico na Europa. Mesmo a Escola Linguística de Praga, que se desenvolveu entre as duas guerras mundiais, sustentando Teses que enfatizavam o componente funcional da linguagem e que forte influência exerceram sobre a mudança de paradigma na Linguística, ocorrida a partir dos anos de 1970, bebeu da fonte saussuriana. Escusa aqui traçar um panorama histórico da influência das ideias de Saussure, empreendimento este que o leitor encontrará em manuais devotados à história do desenvolvimento do pensamento linguístico. Necessário, contudo, é assinalar que a) embora Saussure nunca tenha empregado o termo estrutura em seu Cours, sua contribuição ao desenvolvimento do pensamento linguístico fez surgir uma abordagem revolucionária da língua, a qual ficou conhecida como estruturalismo; b) dois autores se destacam por ter contribuído decisivamente para consagrar as ideias saussurrianas: nos Estados Unidos, Leonard Bloomfield (1933); na Europa, Louis Hjelmslev (1935). O estruturalismo, a partir de Saussure, viria a se tornar um método que grande influência exerceu na análise da língua, da cultura, da sociedade, etc. na segunda metade do século XX.


1. A língua como sistema de signos

Saussure é considerado o pai da linguística moderna. Coube a ele lançar os fundamentos do edifício de uma nova ciência: a Linguística. É bem verdade que, no século XIX, com os trabalhos dos gramáticos comparativistas, já se buscava abordar o fenômeno linguístico com base num modelo científico calcado sobre hipóteses e orientado por um método que visava a explicar a mudança das línguas e a estabelecer relações genealógicas entre elas. No entanto, a visão sistêmica da língua, segundo a qual os elementos constitutivos do sistema devem ser estudados em suas relações de interdependência recíproca, estava ausente das preocupações desses estudiosos. Pelo menos da perspectiva de Saussure, ainda não havia uma ciência linguística estabelecida, porque faltava àqueles estudos um objeto, do qual toda a variação deveria estar excluída,  e um método próprios e bem delimitados.
Para Saussure, esse objeto é a langue (língua), tomada em si e por si mesma. A langue é um sistema. Para definir a língua como sistema, Saussure lançou mão de uma primeira dicotomia: langue/parole (língua/fala). Para o mestre genebrino, língua opõe-se a fala, na medida em que a língua é coletiva, isto é, um produto social; a fala, a seu turno, é individual, uma realidade particular “de que o indivíduo é o senhor”. Ademais, a língua é sistemática (nela só há oposições recíprocas); a fala, assistemática. A fala é heterogênea, multifacetada; a língua, homogênea. Interessado em estabelecer uma ciência, que ele chamou de Linguística, Saussure precisava, como se vê, determinar a natureza desse objeto. Saussure assumiu o pressuposto segundo o qual não há ciência sem um objeto bem definido, sem um objeto que seja homogêneo. Pessoas que falam a mesma língua conseguem comunicar-se, porque, apesar de utilizar configurações linguísticas específicas (as quais caracterizam a sua fala particular), fazem uso de um mesmo sistema de signos (e de regras gramaticais). Em última análise, a língua é uma realidade de natureza sui generis, de modo que uma pessoa privada da fala não deixa de dominar a língua, desde que seja capaz de reconhecer os sinais dessa língua.
Não obstante a distinção rigorosa, estabelecida por Saussure, entre língua e fala, ele não deixa de reconhecer a inter-relação entre os dois domínios, já que, nas palavras de Roland Barthes, “não há língua sem fala e não há fala fora da língua”: a fala é a realização da língua, no sentido de que a toma como um dado real, manifesto (devemos lembrar que a língua é virtualidade; está depositada na mente de cada falante); e, por outro lado, a ideia de fala pressupõe a existência de uma língua. A língua é, pois, produto e instrumento da fala.
Os fatos de fala, a seu turno, não são recorrentes e referem-se ao uso do sistema. Por exemplo, em certas regiões do país ou mesmo entre falantes de estratos sociais estigmatizados, algumas palavras com /lh/ não são palatizadas. Pronuncia-se “mulé” em vez de “mulher” (no sudeste, na modalidade oral, ocorre a apócope do /r/, do que resulta a pronúncia normal “mulhé”). Observe-se, a despeito da variação fonética, o som /lh/ não desaparece do sistema da língua portuguesa. As mudanças no sistema são oriundas da fala. Para Saussure, quando essas mudanças deixam o âmbito individual para figurar no domínio social – ou seja, quando passa da fala para a língua – elas são estudadas sincronicamente nos limites da língua.
Essa dicotomia entre língua e fala, tal como fora desenvolvida por Saussure, sofreu inúmeras críticas no desenvolvimento posterior da Linguística. Mas, afinal, o que se quer dizer com “a língua é um sistema”. Primeiramente, é preciso definir o que é um sistema. Sistema é um conjunto organizado de elementos em que um elemento se define pelo outro, isto é, a função de um se define em relação aos demais. Trata-se de conceber o sistema de um ponto de vista dualista: fala-se em singular porque existe o plural. O valor das unidades linguísticas se define pela oposição umas às outras. Por exemplo, sabemos que casa está no singular, porque existe a contraparte pluralizada casas. Só podemos falar em morfema-zero (ausência de marca) em casa, porque podemos verificar o morfema pluralizador –s na forma casas.
A langue saussuriana é um sistema de signos abstrato. É abstrato porque pensado isoladamente, em si e por si mesmo, do contexto social, em que é usado. Do domínio da langue devem-se excluir todos os fatores que lhe são externos e que dizem respeito às condições sócio-históricas e culturais do uso da língua. Falta, no entanto, explicar o signo.
O signo, no sentido estritamente linguístico, é qualquer unidade formada pela união de um significado (ideia, conceito) a uma imagem acústica (que Saussure chamará, posteriormente, no texto do Cours, de significante). Para ilustrar o signo, Saussure toma a palavra; a palavra lobo, por exemplo, é um signo, porque reúne o significado mamífero carnívoro da família canidae’ ao significante /lobo/. É preciso frisar, no entanto, que o significante não é o som em si, fenômeno material e físico, mas “a impressão psíquica do som”. Portanto, significante e significado são ambos faces do signo definidas a partir do domínio psíquico. O significante não é a sequência sonora em si, mas a impressão psíquica que ela evoca no falante.
Disse que a palavra foi tomada por Saussure como exemplo de signo; mas o signo não deve ser limitado ao estrato da palavra. Em língua, o signo é qualquer unidade constituída de significante e significado. Portanto, morfemas, mínimas unidades sonoras dotadas de significado nas quais se dividem as palavras, são também signos. Frases e textos, tomados como unidades sintático-semânticas maiores, também são signos. Uma unidade linguística só pode ser considerada signo, quando apresentar as duas faces articuladas: significante e significado. Assim, por exemplo, o –va, de cantava, é um signo. Trata-se da desinência modo-temporal correspondente ao pretérito imperfeito do indicativo. Trata-se, portanto, de um morfema. Enquanto signo, “-va” encerra um significado gramatical: faz distinção quanto ao modo e ao tempo em que está empregado o verbo “cantar”. A forma “cantava” opõem-se, por força da presença de “-va”, a formas como “cantou”, “canto”, “cantarei”, etc. Nas formas “cantou” e “canto”, a desinência modo-temporal é representada por um morfema-zero; na forma “cantarei”, pelo morfema “-re”.
Por outro lado, o /r/ de “rato” é um fonema no radical rat- e, portanto, não é um signo. Os fonemas são unidades linguísticas desprovidas de significado; falta-lhes, portanto, a contraparte significativa que caracteriza todo signo.
Não se pode esquecer-se de que “signo”, em semiologia, designa também “gestos”, “imagens”, “sons que não são linguísticos”, tais como o apito de um trem, o tilintar de uma campainha, as cores, etc. Assim, pode-se afirmar que “o signo, ou seu representamem, é algo que, sob certo aspecto e de algum modo representa alguma coisa para alguém” (Pierce,1975:94 apud. Castelar, 2003: 30).
Sumariando o que se expôs, cumpre notar o seguinte:

1. A langue (língua) constitui um objeto homogêneo: um sistema abstrato de signos que se relacionam reciprocamente. A língua é forma, não substância. Ela deve ser estudada em si e por si mesma, sem qualquer relação com o contexto de uso social. Ela apresenta as seguintes características:

a) é social;
b) é homogênea;
c) é sistemática;
d) é abstrata;
e) é supra-individual;
f) é psíquica;
g) é forma;
h) é unidade;
i) é instituição;
j) é potencialidade ativa de produzir a fala;
l) é essencial.


2. A parole (fala) é a realização individual da língua. Compreende atos linguísticos individuais. É múltipla, imprevisível, irredutível a uma pauta sistemática. Ela apresenta as seguintes características:

a) é individual;
b) é heterogênea;
c) assistemática;
d) concreta;
e) variável;
f) momentânea;
g) inovadora;
h) substância;
i) o indivíduo é o “senhor”;
j) práxis (ação).
l) é acidental.


3. “O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito a uma imagem acústica”.

4. Conceito = significado. / imagem acústica = significante. Tanto o significado quanto o significante são de natureza mental. A imagem acústica não é o som material; não se identifica com a materialidade sonora, mas é “a impressão psíquica do som”.



Será forçoso protelar para outra oportunidade a exposição sobre a noção de valor linguístico, que cumpre um papel fundamental na concepção sistêmica saussuriana de língua. A compreensão dessa concepção é extremamente dependente da compreensão daquela noção. Por ora, basta dizer que a noção de valor é sempre relacional: o valor de uma unidade linguística se define na relação que essa unidade estabelece com outra unidade na cadeia sintagmática. Assim, o fonema /l/ só tem valor dentro do sistema quando posto em relação com  /p/, cujo valor só se apreende em oposição a /l/, uma vez considerados o par mínimo /lata/ e /pata/.
A fim de que o leitor perceba a influência de Saussure no desenvolvimento do pensamento de  pensadores posteriores e a fim de que se esclareça um fundamento básico em que se esteia a prática de análise linguística, na próxima e última seção deste texto, dou a saber o princípio da Dupla Articulação da Linguagem.


  
2. A dupla articulação da linguagem

O francês André Martinet, expoente da Lingüística Funcionalista da Escola Lingüística de Praga1, interessou-se pelos estudos da fonologia descritiva, da fonologia diacrônica e da Lingüística Geral. Uma de suas mais importantes contribuições é, decerto, a teoria da Dupla Articulação da Linguagem.
Baseando-se na proposição de Saussure, segundo a qual a língua é constituída pela interdependência entre dois planos (o dos sons e das idéias), o lingüista francês propôs que todo enunciado articula-se em dois planos: o do conteúdo, o qual corresponde à 1ª articulação; e o da expressão, que se refere à 2ª articulação.
O plano do conteúdo compreende as unidades lingüísticas significativas. A menor dentre essas unidades é o monema2. Por outro lado, o plano da expressão encerra as unidades lingüísticas destituídas de significado. A menor unidade desse plano é o fonema; este é definido como a mínima unidade sonora distintiva. O fonema é destituído de significado; mas estabelece distinção significativa entre palavras.
Destarte, se ocorresse ao falante a idéia de ‘refeição noturna com a família’, ele poderia expressar (plano da expressão) seu pensamento (plano do conteúdo) mediante os monemas: “jant-“, “-a”, “-r”, de cuja concatenação resultará o lexema jantar.
Tradicionalmente, entende-se que o plano da expressão refere-se à fonologia, já que nesse plano figuram os fonemas; e o plano do conteúdo reúne as unidades morfológicas (monemas e lexemas) e sintáticas (sintagma e oração). Destarte, o enunciado nós jantamos cedo, pode ser articulado como: nós – jantamos-cedo, caso em que se verificam três vocábulos. A forma “jantamos” pode ser dividida em: “jant-“, “-a”, “-mos”. Essas unidades (vocábulos e monemas) compõem o plano da 1ª articulação. O mesmo enunciado pode ser articulado como: /n/, /ó/, /S/, /j/, /a/, /N/, /t/, /a/, /m/, /o/, /S/, /s/, /ê/, /d/, /o/. Nesse caso, explicitam-se seus fonemas. Essa divisão corresponde à 2ª articulação. Veja-se o quadro na próxima página:

        
                       


Martinet ensinou que o recorte analítico pode explicitar as unidades lingüísticas significativas, dentre as quais a menor é o monema (unidade mínima significativa de análise); e as unidades lingüísticas destituídas de significado (os fonemas). O componente semântico é depreendido das unidades pertencentes à 1ª articulação. Assim como Martinet, que se baseou na dicotomia ‘significado/ significante’, de Ferdinand de Saussure, para desenvolver sua teoria da Dupla Articulação da Linguagem, Hjelmslev, estruturalista dinamarquês que radicalizou as idéias de Saussure, em seu livro Prolegômenos a uma teoria da linguagem (1943), propôs uma subdivisão entre os planos do conteúdo e da expressão, em cada um dos quais inclui as noções de ‘forma’ e ‘substância’ (conceitos saussurianos). Destarte, no plano do conteúdo, há uma forma, que consiste numa relação sêmica e refere-se à própria estruturação das idéias. Em coelha, há a relação entre o significado ‘coelho’ e o ‘gênero feminino (“ela”)’. Outrossim, nesse plano, há uma substância, que se refere ao pensamento amorfo, desestruturado. Corresponde, pois, à idéia que os falantes tem desse animal: “coelha” é a fêmea da espécie “coelho”.
Também, no plano da expressão, verificam-se a forma e a substância. Esta corresponde aos sons desestruturados: representa a massa fônica sem valor funcional. Isso nos lembra a Fonética, estudo que se ocupa dos “fones” (ou seja, de todas as realizações sonoras da fala). Assim, em gato, distinguem-se os fones: [g], [a], [t], [u]. A forma refere-se à estruturação dos sons na cadeia da fala. Os sons são considerados sob o ponto de vista funcional (fonemas). Do binômio forma/ substância, pode-se depreender, portanto, a distinção entre fonologia (estudo da forma dos sons) e fonética (estudo da substância dos sons).
Finalmente, cabe observar que, consoante a proposição de Hjelmslev, a língua é responsável por relacionar os dois níveis. No entanto, como se verá no esquema a seguir, a língua restringe-se à forma, já que, em consonância com Saussure, Hjelmslev também relaciona “substância” a “fala”; afinal, na proposição de Saussure, a fala é uma realidade não-sistemática.

Note-se ainda como o substantivo coelha pode ser segmentado, consoante o ponto de vista de Hjelmslev:





Está claro o refinamento com que o princípio da dupla articulação da linguagem aparece em Hjelmslev. Ao invés de propor um recorte dicotômico apenas, de acordo com o qual o plano das idéias se articularia ao plano material, sem qualquer subdivisão interna, o lingüista entende que, no âmbito das unidades significativas, deve-se distinguir entre o significado “bruto” (substância) e o significado estruturado (forma); e, no âmbito das unidades da expressão, deve-se distinguir entre a natureza físico-articulatória (substância) e a natureza sistêmico-funcional dos sons, atribuindo à língua a função de relacionar a forma do conteúdo à forma da expressão. Segundo a proposição de Hjelmslev, há, pois, um princípio estrutural (formal) quer no plano das idéias, quer no plano da expressão. Hjelmslev, assumindo a articulação da “forma do conteúdo” com a “forma da substância”, reafirma radicalmente a idéia saussurriana de que a língua é forma, e não substância.
Por fim, cumpre mencionar que a dupla articulação da linguagem consiste num princípio assaz relevante aos estudos lingüísticos3.


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NOTAS

          1.  A designação Escola Lingüística de Praga aplica-se a um grupo de estudiosos que participaram do Círculo Lingüístico de Praga (1929). Nessa abordagem, a língua é considerada um sistema funcional, em que o componente estrutural coexiste com o componente funcional. “Funcional”, na perspectiva desses estudiosos, diz respeito à propriedade de a língua servir fundamentalmente à comunicação; a língua é, pois, um sistema de comunicação.

2. O termo monema recobre a noção de morfema do estruturalismo. Martinet denomina de monemas as unidades da primeira articulação, mas distingue, entre estas, os lexemas, monemas que se situam no léxico, dos morfemas, monemas que se situam na gramática.

3. A teoria de André Martinet apresenta uma conclusão fundamental acerca da natureza da linguagem humana: o princípio da economia lingüística. Esse princípio pode ser definido como o fato de que o sistema lingüístico permite ao falante a produção de um número infinito de enunciados mediante um número limitado de unidades. Veja-se que o português, com apenas 28 fonemas (19 consoantes, 7 vogais e 2 semivogais), permite-nos produzir um número, teoricamente, ilimitado de enunciados. Por exemplo, produzimos novas palavras na língua, basicamente, mediante processos derivacionais, os quais consistem na junção de elementos mínimos recorrentes a bases morfológicas; logo, não memorizamos todas as palavras de nossa língua. O princípio de economia lingüística evita, portanto, que nossa memória fique sobrecarregada e assegura a dinamicidade e eficiência do sistema. Note-se, destarte, que, para adquirir uma nova palavra, utilizamos o material já existente no léxico: dispondo de “computar”, formamos “computação”, mediante a junção de “-ção” à base “computa(r)” (já disponível).





domingo, 12 de outubro de 2014

"A morte é a maneira de ser que a realidade humana assume desde que passa a existir. Tão logo um homem começa a viver, já é suficientemente velho para morrer".(Heidegger)



A morte como minha possibilidade própria

A interpretação existencial da morte de Marin Heidegger


Os passos abaixo de Fernando Pessoa, dois dos quais colhidos de seu O Livro do Desassossego, servirão para ancorar o desenvolvimento deste breve e despretensioso estudo sobre como o problema da morte foi abordado na filosofia de Martin Heidegger (1889-1976).
O primeiro enunciado de Pessoa, que se topa logo abaixo, rejeita a separação entre sensibilidade e razão, entre sensação e pensamento. Essa indissociabilidade entre pensar e sentir deve, desde já, ser conectada à noção de compreensão de que se serviu Heidegger, a qual encerra a sensibilidade. Ademais, essa indissociabilidade deve também se articular ao modo como o homem tem acesso ao próprio ser. Heidegger dirá que a existência é, primeiramente, sentida. Não é chegado ainda o momento em que faremos incursão no pensamento de Heidegger; por isso, consideremos, por ora, o segundo passo de Pessoa.


 “O que em mim sente está pensando”.
    

Neste passo a seguir, Pessoa põe o pensamento a serviço do sentir e identifica o pensar com o viver. Sentir e pensar são o mesmo que viver. É importante retermos essa indissociabilidade entre pensar, sentir e viver, em primeiro lugar, porque a própria experiência de leitura é forma de vivência que articula pensar e sentir; em segundo lugar, porque desejo que o leitor, mais do que pense com Heidegger, compreendendo aquilo de que ele deu testemunho, sinta também, a seu modo próprio, evidentemente, o modo como ele procurou dar conta da dimensão existencial da morte.


  “Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar”    (p.101).


Sem tencionar uma análise do excerto abaixo, limito-me a externar sobre ele algumas palavras. Seu tópico textual é a morte, conforme se vê claramente. Chamo atenção para o fato de que Pessoa reconhece o que Heidegger, conforme veremos, já havia reconhecido: mesmo em face de um morto, nós não temos uma experiência de morte. Experimentamos o pesar, o luto, mas jamais o evento existencial da morte. Trata-se, nesses casos, da morte como um fato do qual tomamos consciência imediata, de uma morte alheia. É desse modo que o homem imerso na cotidianidade percebe a morte: a morte é percebida como um acontecimento do mundo, genérico. Certamente, há muito que se por a descoberto no texto de Pessoa; no entanto, deixo ao leitor essa tarefa de escavação de sentidos. Deleite-se!



“Considero então que coisa é esta a que chamamos de morte. Não quero dizer o mistério da morte, que não penetro, mas a sensação física de cessar de viver. A humanidade tem medo da morte, mas incertamente, o homem normal bate-se bem em exercício, o homem normal, doente ou velho, raras vezes olha com horror o abismo do nada que ele atribuiu a esse abismo. Tudo isso é falta de imaginação. Nem há nada menos de quem pensa que supor a morte um sono. Por que o há-de ser se a morte se não assemelha ao sono? O essencial do sono é acordar-se dele, e da morte, supomos, não se acorda. E se a morte se assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela. Não é isso, porém, o que o homem normal se figura: figura para si a morte como um sono de que não se acorda, o que nada quer dizer. A morte, disse, não se assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo, nem sei como alguém pode assemelhar-se a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência dela, ou coisa com que comparar. A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida. O cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira” (p. 71).



1. Martin Heidegger (1889-1976)



       Heidegger é reconhecidamente um dos filósofos alemães mais importantes que atuaram no século XX. Nascido em Messkirch, foi professor na Universidade de Freiburg (1916), onde estudou com Hurssel.
Sua obra mais importante é Ser e Tempo (1927). Esse estudo, inacabado, marca seu distanciamento relativamente à fenomenologia de seu mestre Hurssel e inaugura um modo próprio de encaminhar a reflexão filosófica sobre o sentido profundo da existência humana, bem como sobre a metafísica, e o significado de sua influência no desenvolvimento do pensamento ocidental.
A tradição o situa entre os filósofos da Existência, muito embora ele próprio, Heidegger, recusasse esse rótulo. Os estudiosos de Heidegger concordam, em geral, em que ele é um filósofo cujo pensamento é extremamente difícil de entender, o que torna a tarefa de estudar sua filosofia bastante espinhosa, mormente para aqueles que, sem algum treinamento prévio, entram em contato diretamente com sua obra.
As dificuldades que estorvam a busca pela compreensão de Heidegger são de duas ordens. A primeira das quais diz respeito ao vocabulário de que se serviu o filósofo (sabe-se que Heidegger criou uma terminologia própria, a fim de dar forma às suas concepções). A segunda dificuldade repousa na incompletude de sua obra, o que torna seu discurso reticencioso.
Tais dificuldades não devem constituir razão suficiente para nos desencorajar de experienciar a originalidade de seu pensamento. Heidegger buscou recuperar a importância fundamental da questão do ser, que, na esteira do pensamento moderno, foi relegada em favor de questões atinentes ao conhecimento e à ciência. Seu objetivo consistiu em recuperar o sentido original do ser, não sem antes lançar por terra a ontologia tradicional.


2. O ponto de partida: a morte é constitutiva da essência da existência

Porque se situa no limite da existência, a morte é, por definição, o não-experimentável. Ainda que se postule a possibilidade de uma continuidade do ser, após a morte, a experiência do fim continuaria impossibilitada enquanto evento existencial.
Heidegger tomará como ponto de partida de suas reflexões sobre a morte a concepção da morte como constitutiva da existência mesma. Em Ser e Tempo, seu esforço consistirá em mostrar que a morte é um evento singular, uma possibilidade própria de cada um, e não uma mera negação da existência.



             2.1. O sentido original do Ser

Antes de me deter a considerar como o problema da morte foi desenvolvido por Heidegger, é necessário esclarecer a busca do sentido original do ser, levada a efeito por ele (sentido negligenciado pela metafísica, que remonta a Platão e a Aristóteles).
Heidegger notará que, na metafísica tradicional, a diferença ontológica entre ser e ente se diluiu, de modo que a pergunta pelo sentido do ser se reduziu à pergunta pela essência dos entes. Mas o ser de que nos falava, por exemplo, Parmênides, não é o ente, mas a condição de possibilidade dos entes. Perguntar-se pelo sentido do ser equivale, portanto, a perguntar-se pelo horizonte em que o ser se constitui como possibilidade de compreensão (aqui se deve entender “entrar em relação com”) dos entes. O ser é da ordem da condição que torna possível a existência dos entes, que são os indivíduais. O ser é da ordem do acontecimento inaugural, presença totalizante, do qual os entes, tomando parte, são dados imediatamente acessíveis à experiência sensível. Daí a trivialidade que Heidegger redescobrirá: todo ente é no ser. É aí que reside o espanto para os gregos. O ente recolhido no ser tornou-se para os gregos o mais espantoso, nota Heidegger.



            2.2. O Dasein e o mundo

O ser humano, para Heidegger, é existência. Heidegger pensará o ser humano como ser-no-mundo. Em primeiro lugar, cumpre notar, com Heidegger, que, desde o nascimento, antes mesmo de desenvolver qualquer reflexão teorética sobre o mundo, o ser humano está envolvido com o mundo, nas diversas atividades de que participa: brincando, estudando, trabalhando, convivendo, etc. O mundo, portanto, não é externo ao homem; não preexiste a ele. Por isso, o homem surge como ser-no-mundo, isto é, envolvido com o mundo; e o mundo é copresente com o homem. O homem é um ente ocupado com o mundo; o mundo e a existência deste ente privilegiado que é o homem, porque é ele que se pergunta pelo sentido do ser – são dados de forma imediata.
Vale frisar esta ideia: não há ser humano sem mundo, nem mundo sem ser humano. Esclareça-se o termo Dasein, agora. O Dasein se costuma traduzir como ser-o-aí. Essa forma de tradução sugere que a condição humana está sempre lançada numa situação ou circunstância no mundo. Acrescente-se que o Dasein é um índice formal da condição humana, que, diferentemente do que sucede com os demais entes, existe na indeterminação de seu ser. O homem ou Dasein é ente indeterminado em seu ser. Basta dizer, por ora, que estamos longe da concepção tradicional de homem como ser racional.
Tome-se, agora, a indeterminação do Dasein, enquanto ser-no-mundo. Como ser-no-mundo, o Dasein está irremediavelmente lançado nesta condição: estar no mundo estrutura fundamentalmente o seu ser. Esse ser é sempre indeterminado, é ser de possibilidades. Somos o que somos em função do que realizamos em dadas circunstâncias; e sempre realizamos com base nas possibilidades que se abrem em contextos previamente fixados. Aqui cabe dizer que a postura teorética é sempre posterior a essa relação primeira e engajada do Dasein com o mundo.
O ser humano não só propõe a questão sobre o sentido do ser, mas já é o ente que compreende implicitamente esse sentido, ente que compreende os demais entes com que se relaciona e o ser que ele é.
Em vista do exposto, cabe reter que Heidegger mostrará que a busca pelo horizonte de compreensão do ser impõe a análise prévia do ser humano, graças à qual se revela a estrutura da compreensibilidade do ser. Compreende-se que se deve buscar o sentido do ser pela análise existencial do Dasein. Essa tarefa recebeu o nome, em Ser e Tempo, de Analítica Existencial.


3. A analítica existencial

Cumpre, nesta etapa, compreender qual é o objetivo a que se destina a analítica existencial. Notemos, desde já, que esse objetivo é revelar o horizonte humano de compreensão do ser. Mas não se trata de procurar uma nova definição do ser humano. O Dasein não pode ser explicado por meio de categorias precisas; ele é pura indeterminação. Urge salientar que, agora, não há mais um fundamento metafísico em que se deve apoiar a existência humana. O ser humano é um projeto; como tal, ele se realiza na existência. Como projeto, o Dasein se faz a si mesmo a partir das possibilidades abertas nos contextos em que se encontra.
Conquanto seja o ser humano um ente que existe no modo de possibilidades, sempre a fazer-se, não se segue daí que as possibilidades de existir no mundo sejam ilimitadas. Somos seres de possibilidades, mas essas possibilidades são limitadas por contextos geográfico, político, econômico, social e cultural. A isso Heidegger chamou de facticidade. A facticidade é o fato de o Dasein estar sempre lançado em possibilidades limitadas pela estrutura do mundo.
A morte terá um lugar de destaque no quadro da analítica existencial, porquanto a morte, em sua imprevisibilidade, indica a indeterminação da essência humana. A importância de pensar a morte nesse quadro de análise repousa no fato de que ela, a morte, introduz o elemento da finitude e torna possível pensar a temporalidade da existência. Pela morte, torna-se possível pensar o Dasein em sua condição existencial.
Portanto, Heidegger não está interessado em examinar a morte como fenômeno biológico ou como um fenômeno genérico de extinção. Devemos antecipar um ponto que trataremos de desenvolver mais adiante. Heidegger não se ocupa de pensar a morte como um fato que atinge a todos os seres humanos, mas como uma possibilidade própria de cada um. Evidentemente, ele reconhecerá que a forma de conceber a morte como fato do mundo é comum ao homem imerso na cotidianidade. Mas veremos, em tempo, que a morte, considerada no quadro da analítica existencial, é uma dentre as possibilidades – a possibilidade suprema, decerto – abertas ao Dasein.



            3.1. A existência decadente

Segundo Heidegger, a experiência comum e cotidiana da morte mascara seu sentido originário. É justamente por sua condição de ser-no-mundo que o homem facilmente acaba por existir na não-verdade, compreendendo a si mesmo e o mundo a partir das representações coletivas, das crenças recorrentes em sua sociedade. Esse modo de existir na não-verdade Heidegger chamará de decadência.
O mundo das ocupações cotidianas é também um mundo compartilhado. Os outros estão dados de modo tão imediato quanto o mundo e a própria existência. Sucede, contudo, que, no cotidiano, o convívio assume a forma de uma absorção no modo de ser dos outros. Pensemos, por ora, na função dos padrões culturais. Os indivíduos que vivem num dado contexto cultural assumem modos de ser, sentir, agir e pensar determinados pelos padrões estabelecidos por sua cultura. Cada um é como o outro é em seu modo de ser. A própria necessidade de identificação com o grupo depende da incorporação de certos hábitos de pensar, agir e sentir fixados pela cultura a que pertence os indivíduos.
É fácil ver como, no cotidiano, o homem é absorvido no impessoal. O impessoal não é ninguém determinado; mas é o modo padronizado de conduzir a existência, que cada um assume, sem disso ter consciência. Heidegger dirá que, no mundo cotidiano, “cada um é igual ao outro e nenhum é ele mesmo”.
Há, portanto, um modo de ser fundamental da cotidianidade, qual seja, o da decadência. O que é esse modo de ser? É o que o ser humano é na cotidianidade: um ente de tal modo ocupado com o mundo, que se deixa absorver por esse mundo, sem disso aperceber-se. Trata-se de uma condição tranqüilizadora, embora inautêntica. Mas a própria inautenticidade é uma possibilidade dentre as possibilidades de ser. Na impessoalidade, o Dasein não se reconhece como ser de possibilidades, tampouco assume sua condição de agente responsável pelo próprio ser. Ele tão-só deixa-se conduzir pelo modismo, pelas opiniões correntes, repisadas, pelos modos de se comportar gerais, os quais são assumidos como “o jeito certo de ser”.
No tangente à morte, na inautenticidade, o Dasein a assume como evento alheio, como um fato do mundo, como ocorrência que arrebanha a todos os outros. Morre-se todos os dias; a morte é um acontecimento conhecido, já dado no mundo. Na cotidianidade, o homem foge da morte na medida em que a trata como um acontecimento que lhe é comum (não só eu morrerei como os outros também), estranho (trata-se da percepção da morte como a morte dos outros), e por vir (situada fora do domínio de sua existência, enquanto ser ocupado com o mundo).



             4. O ser-para-a-morte


A compreensão existencial da morte supõe a admissão de que o Dasein é também um ser-para-a-morte. Mas ainda não atingiu a autenticidade quem não singularizou o ser-para-a-morte.
Inicialmente, deve-se entender que a expressão ser-para-a-morte caracteriza a condição de estar destinado à morte. Mesmo no modo impessoal de existir, as pessoas costumam aceitar que caminham para a morte; elas têm certeza de que morrerão, mas esse caminhar para a morte é ainda generalizado; afinal, todos caminhamos para a morte inevitável.
Heidegger, no entanto, argumentará que, no cotidiano, o homem não consegue perceber a morte em seu sentido pleno, a saber, enquanto fenômeno existencial irrecusavelmente próprio e irremediavelmente indeterminado. Esse ente absorvido no modo do impessoal se acostumou a esquivar-se de considerar a iminente possibilidade da própria morte. Na medida em que o Dasein é um projeto (seu ser é indeterminado), sempre aberto a possibilidades, deve ele assumir a possibilidade da própria morte, sob pena de incorrer numa “inconsistência existencial”. Destarte, ele continua impossibilitado de alcançar uma compreensão autêntica de seu ser.
Percebendo a morte como sempre possível, um sempre aí inscrito na estrutura de sua existência, o ser humano reconhece-se como sempre inacabado, em construção, como projeto a realizar-se em suas possibilidades de existência; por outro lado, a perspectiva da certeza da própria morte e da indeterminação de seu acontecimento, revela aquilo que talvez não se realize.
A interpretação existencial da morte pretende, portanto, revelar a estrutura ontológica da morte como ser-para-o-fim, articulando-a à compreensão fenomenológica do ser humano como projeto lançado no mundo. Como ente lançado no mundo, o homem está constantemente construindo a si mesmo a partir de possibilidades não determinadas. Uma vez sendo no mundo, o Dasein tem em face de si inúmeras possibilidades de ser, donde resulta a constatação ôntica segundo a qual jamais se pode predizer, no momento do nascimento, o que será e como viverá uma pessoa.
Por outro lado, sendo projeto, o ser humano está desde sempre sujeito à possibilidade suprema – que é a morte: “a morte está sempre flertando com as possibilidades do ser humano” (Doro, 2011, p. 138). Evidentemente, ela é da ordem da impossibilidade, do nunca mais das realizações humanas. A morte é a possibilidade da impossibilidade das possibilidades humanas. Até aqui, creio estar claro que a morte é, para o ser humano, como um abismo para o qual se orienta a caminhada. Por isso, “para morrer basta estar vivo”. A morte é interrupção sem deixar nada pendente, uma vez que o ser humano é caminho aberto, nunca completado.
Da libertação da concepção cotidiana da morte depende a compreensão que o homem tem de si como ser-para-o-fim. Ele só pode alcançar essa compreensão quando remover as formas de encobrimentos do mundo público do impessoal. Mas aquela compreensão não se alcança por meio da reflexão; o acesso ao próprio ser só se dá pelos sentimentos. A existência, dirá Heidegger, é primeiramente sentida. Desses estados de humor pelos quais o homem compreende-se verdadeiramente como ser-para-a-morte, destaca-se o papel da angústia.
A angústia, não tendo um objeto próprio, é gerada por nada, ou pelo próprio existir no mundo (condição esta indeterminada). Ao contrário do medo, que tem uma causa que o desencadeia (medo de altura, de barata, etc.), a angústia é desprovida de causa ou objeto. Ela se acompanha do tédio, o qual revela a gratuidade insignificante do mundo das ocupações: as coisas e as tarefas se esvaziam de sentido e a existência se experiencia em sua facticidade. Ou seja, a angústia esfacela a tranquila familiaridade do mundo cotidiano, do que resulta seja a condição de ser lançado sentida profundamente.
Uma vez rompida a tranquilidade do mundo das ocupações, uma vez liberto do modo de ser impessoal, pela angústia, o homem se dá conta do modo como, de fato, está no mundo: entregue à própria responsabilidade. Agora, o homem experiencia-se como o autor da própria vida; por isso, sua responsabilidade sobrecai-lhe como um peso: ele é responsável pelas possibilidades de ser. É nesse instante mesmo em que se percebe responsável pelas possibilidades próprias de ser que a possibilidade mais própria, qual seja, a de ser-para-a-morte, se revela intransigente e insuperável.
O tédio, que acompanha o estar angustiado, é o sentimento de urgência para passar o tempo. Por isso, o homem tende a não hesitar em recorrer aos passa-tempos, como meio de escapar à angústia. Ora, ocupando o tempo, o passa-tempo não permite que o tempo convoque o homem a assumir suas possibilidades existenciais.
O homem só existe para a morte: é um ser-para-o-fim. É essencial e constitutivamente um ser-para-a-morte, o que significa viver angustiado. Advirto o leitor de que não deve interpretar o “para”, em “existe para a morte”, como índice de finalidade; mas de ‘direção’. Essa condição a que o homem está lançado irremediavelmente quando do seu nascimento não deve paralisá-lo. O ser-para-a-morte é ser angustiado, é verdade; mas essa condição é também libertadora. Estar angustiado não se confunde com melancolia ou desânimo. Estar angustiado é o estado existencial de quem assume total responsabilidade pelo próprio existir. Por isso, a angústia, em vez de paralisar o homem, o liberta da alienação – isto é, da inautenticidade determinada pelo impessoal, de tal modo que ele se torna livre para escolher suas próprias possibilidades de ser. “Eu sou minhas possibilidades”, escreve Heidegger..




5. De que modo a compreensão da possibilidade da morte é decisiva para a condução da existência?


Com a questão que dá título a esta seção, levo a cabo este texto. Heidegger sustentará que é tão somente pela consciência da finitude e da gratuidade da vida que o ser humano pode determinar o curso de sua existência, sem o peso das influências do meio social – influências estas que a controlam.
Eis, portanto, o núcleo do conceito existencial da morte, segundo Heidegger: encarada como possibilidade própria e intransferível, a morte torna possível a condução autêntica da existência.
Compreender-se como o ser-para-a-morte significa tomar o indivíduo humano enquanto ente que antecipa a possibilidade da morte. Não se trata, evidentemente, de por-se sob o risco de morrer, tampouco de compreender a morte como um fato. Ser-para-a-morte é perceber, num nível fundamental da existência, a dimensão afetiva da angústia como modo de o homem sentir-se como ser-no-mundo, ser entregue à sua responsabilidade. Não é a reflexão – insisto nisto – que dá ao ser humano o acesso ao seu ser; mas a angústia que o faz de modo originário. Tampouco o medo diante da morte o faz.
Um exame detido da estrutura do Dasein deveria levar em conta, entre outras, a dimensão que, necessariamente ligada à morte, foi, no entanto, desconsiderada: a da temporalidade. O Dasein está entretecido no tempo; seu ser é fundamentalmente futuro. Contente-se o leitor com o fato de que eu não poderia jamais estender-me para além dos limites fixados pelo estágio de minha compreensão da filosofia de Heidegger. Minha contribuição foi bastante modesta: mais do que provocar no leitor um entendimento de Heidegger, gostaria de que  incorporasse o sentido existencial da morte num nível pré-reflexivo; enfim, que ele sentisse o que significa o “tão logo nasce, o homem já é suficientemente velho para morrer” (Heidegger).