sábado, 16 de agosto de 2014

"No princípio, era o verbo e onde está o verbo está o homem" (BAR)


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                  Novos caminhos e novos pensares
                    Linguagem, mundo e leitura

Aos professores-pensadores

                                                     

Que me seja dado dizer algumas palavras sobre as condições de produção deste discurso, inicialmente. Supondo que nem todos aqueles que me leem compreendem o que são essas condições de produção do discurso, apresso-me, então, em esclarecê-las. As condições de produção do discurso compreendem: a) saberes supostos sobre o mundo (sobre as práticas sociais); b) saberes supostos sobre os pontos de vista recíprocos dos interactantes. À luz dessa perspectiva sociocognitiva-interacional, o ambiente físico-social, ou seja, a situação concreta em que se dá a interação não tem importância em si mesma, exceto quando a tomamos como constructo cognitivo. Quero dizer que essa situação extralinguística só passa a exercer influência sobre a produção e interpretação/compreensão do discurso quando transformada em palavra por meio dos filtros construtores de sentido, de que se servem os interactantes (Charaudeau, 2010). Se o leitor ainda não atingiu uma compreensão satisfatória do que é esse constructo cognitivo, esforço-me, pois, por fazer-me entender, para o que lanço mão de uma estratégia metacomunicativa, que consiste em reelaborar o que disse anteriormente. Isso só é possível porque, na qualidade de usuário da língua, disponho de um conhecimento metacomunicativo (e o leitor também dispõe dele, evidentemente), que me permite produzir um texto evitando qualquer tipo de perturbação em sua compreensão. Mais adiante, considerarei, com mais vagar, esse tipo de conhecimento, ao qual se reúnem outros tantos. No esforço por me fazer entender, direi que a situação extralinguística só influencia a produção e compreensão do discurso enquanto ambiente semiotizado já inserido num saber compartilhado entre os usuários da língua. É esse saber suposto como partilhado com meu interlocutor que me permite esperar que, ao solicitar ao garçom “uma caipirinha”, ele me traga uma bebida específica e não uma moça originária da roça. O ambiente físico-social – o bar, por exemplo – não constitui a condição determinante para a adequada interpretação de “uma caipirinha”; também não é o bar (ambiente físico) que garante minha expectativa sobre a adequada compreensão dessa expressão pelo meu interlocutor, mas é o contrato comunicativo que nos liga e que torna possível que compartilhemos o mesmo saber sobre o que é “caipirinha”. Tanto eu quanto meu interlocutor dispomos de um modelo de contexto ou de um modelo sociocognitivo que reúne todos os conhecimentos subsumidos no frame “bar”. Esses conhecimentos dizem respeito, entre outras coisas, ao fato de que bares são locais em que as pessoas se reúnem para beber e comer, em que há garçons que as atendem, etc. Em virtude daquele contrato comunicativo, espero que meu interlocutor estabeleça uma relação entre o significado por mim pretendido quando da enunciação de “uma caipirinha” e o modelo de contexto que eu suponho ele compartilhe comigo. Necessário é que nossos modelos sociocognitivos, nesse caso, sejam compartilhados e que a interpretação de “uma caipirinha” seja feita em consonância com esse modelo sociocognitivo partilhado. Disso se segue que são as condições de produção, tomadas como conjunto de saberes partilhados, que governam o ambiente físico e não o contrário; ademais, as condições de produção só influenciam o processo de interação verbal na medida em que assumem a forma de saberes supostos como partilhados pelos usuários da língua. Cabe dizer que usei os termos modelos de contexto, contexto sociocognitivo e discurso sem defini-los. O contexto sociocognitivo abrange os modelos de contexto. Embora discurso seja, por vezes, usado como sinônimo de texto, empreguei o termo discurso como domínio que compreende tanto textos efetivamente realizados como as condições de produção. A língua não existe fora do discurso. Em tempo, explicitarei a definição de texto que norteará a articulação das reflexões sobre a questão central a cujo desenvolvimento destino este estudo.
Ciente de que me alonguei sobre o conceito de condições de produção e de que, por isso, nada disse sobre as condições de produção deste discurso, esclareço, então, que elas envolvem algumas suposições prévias minhas sobre a falta de percepção, tanto entre as pessoas que se servem da língua em sua vida ordinária, quanto entre professores de português, particularmente, ainda muito habituados a reduzir ensino de língua a ensino de análise gramatical de formas linguísticas descontextualizadas e de nomenclatura, do papel sociocognitivo-interacional que desempenha a linguagem verbal na relação do homem, ente cuja existência se desenvolve num domínio essencialmente simbólico, com a realidade. Não pretendo tão-só retomar a questão da intrínseca e complexa relação entre linguagem, cognição-percepção, realidade e cultura - questão que pode ser denominada de fabricação da realidade -; pretendo revisitá-la para estender a compreensão dela de modo tal, que ilumine o modo de ver e trabalhar outra questão que lhe está intimamente atrelada: a da referenciação. Portanto, neste texto, intento contribuir para alargar a forma como se pensa o fenômeno da referenciação quando do trabalho com a leitura em sala de aula. Além disso, para os que, não sendo profissionais de ensino de língua, se interessam por questões inegavelmente filosóficas, espero contribuir com uma compreensão geral de referenciação como atividade discursiva de construção cognitiva da própria realidade. Espero poder contentar os que, não sendo linguistas, mas acalentados por um pendor filosófico, suspeitam de que exista uma realidade objetiva pronta e uma verdade independente de nós. Compensarei o teor especulativo desta exposição com dois textos que servirão para ilustrar muitas das ideias desenvolvidas aqui.
A primeira questão à qual dispensarei minha atenção foi recentemente explorada no texto O domínio do simbólico, publicado no dia 6 de abril de 2014 neste blog. Nesta nova oportunidade, eu a revisitarei tendo em vista a ampliação da compreensão do fenômeno de referenciação. Pontuem-se, pois, os objetivos perseguidos neste texto:

1) Mostrar que o que chamamos de realidade/ mundo é uma construção sociocognitiva que se realiza no discurso;
2) Mostrar que a língua que falamos condiciona nossa maneira de perceber/interpretar o mundo e de nele agir;
3) Os processos de referenciação, uma vez que são processos de construção de objetos-de-discurso, são processos de negociação versões públicas do mundo.
No tocante aos referidos textos que servirão para corroborar a tese, por mim esposada, segundo a qual a referenciação é uma atividade discursiva por meio da qual se constrói cognitivamente a realidade com a qual interagimos, tomamos um trecho de A importância do ato de ler (2006), de Paulo Freire, e o texto Vaguidão específica, de Millôr Fernandes. Ambos os textos ilustrarão o modo como podemos trabalhar a referenciação tendo em conta o fato de que ela não é uma atividade de identificação de referentes que se situam no mundo, mas uma atividade discursiva de construção de objetos-de-discurso e, como tal, de construção sócio-cognitiva e interativa do próprio real. Veremos que o texto de Millôr Fernandes é, sobremaneira, relevante para dar apoio a essa perspectiva. Considerem-se, pois, os textos, que se fazem acompanhar de considerações gerais sobre sua temática.


 TEXTO 1


                                                     A Importância do ato de ler

 (...) A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. Ao ensinar a escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado – e até gostosamente – a “reler” momentos fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de ler se veio em mim constituindo.
Ao ir escrevendo este texto, ia tomando distância dos diferentes momentos em que o ato de ler se veio dando na minha experiência existencial. Primeiro, a “leitura” do mundo, do pequeno mundo em que me movia; depois, a leitura da palavra que nem sempre, ao longo de minha escolarização, foi a leitura da “palavramundo”.
A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de “ler” o mundo particular em que me movia – e até onde não sou traído pela memória -, me é absolutamente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores, algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nós – à sua sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores. (...)

(Paulo Freire – A importância do ato de ler: 2006, pp. 11-12)



TEXTO 2


A Vaguidão Específica

“As mulheres têm uma maneira de falar que eu chamo de vago-específica”.
(Richard Gehman)

- Maria, ponha isso lá fora em qualquer parte.
- Junto com as outras?
- Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer qualquer coisa com elas. Ponha no lugar do outro dia.
- Sim, senhora. Olha, o homem está aí.
- Aquele de quando choveu?
- Não, o que a senhora foi lá e falou com ele no domingo.
- Que é que você disse a ele?
- Eu disse para ele continuar.
- Ele já começou?
- Acho que já. Eu disse que podia principiar por onde quisesse.
- É bom?
- Mais ou menos. O outro parece mais capaz.
- Você trouxe tudo para mim?
- Não senhora, só trouxe as coisas.
- Mas traga, traga. Na ocasião, nós descemos tudo de novo. É melhor senão atravanca a entrada e ele reclama como na outra noite.
- Está bem, vou ver como.

(Millôr Fernandes)


                  
No texto 1, de Paulo Freire, é discutida a experiência da leitura como forma de reconstrução da experiência de viver. Na experiência de leitura, no contato reflexivo com a palavra, o sujeito se apropria do seu próprio mundo. O texto permite-nos avançar reflexões sobre a relação dinâmica entre palavra (linguagem) e realidade, entre palavra e mundo.
No texto 2, é reconstruída uma situação dialógica na qual estão envolvidos dois interactantes: um no papel de “patroa”; outro, no de “empregada doméstica”. Esse texto é, particularmente, interessante para patentear muitos aspectos que serão teorizados aqui: em primeiro lugar, o texto suscita questões sobre como é possível que as protagonistas do discurso se compreendam, se elas fazem largo uso de formas não-definidas, não-descritivas, ou seja, não-referenciais tais como “outras”, “outro dia”, “aquele”, “tudo”, “as coisas”, etc.; em segundo lugar, sobre como é possível que o leitor consiga reconstruir a coerência do texto, consiga atribuir-lhe um sentido; enfim, consiga entendê-lo. Noto, de passagem, que o título – aliás, todo título, na maioria das vezes – fornece pistas sobre o assunto do texto e o que podemos esperar encontrar neste texto. O título “a vaguidão específica” sugere, pelo menos dois sentidos: a primeira forma de entendê-lo – e me parece ter sido este o efeito de sentido pretendido pelo autor – pode ser parafraseada como: há um modo vago de falar exclusivo das mulheres; a segunda forma, não menos importante para efeito de construção de um sentido, pode ser parafraseada como: é um modo de falar cuja vaguidão não elide o entendimento mútuo. É oportuno dizer que toda prática discursiva está ancorada por contextos sociocognitivos que os interactantes mobilizam por ocasião da interação. A dependência do uso da linguagem desses contextos precisa ser evidenciada.
Um caso particular de dependência do discurso em relação à situação em que ele ocorre é o do emprego de expressões dêiticas (que indicam, “apontam para”,”mostram” objetos, coisas na situação de fala, sem nomeá-los). Assim, se digo “pegue isso e coloque ali”, só é possível saber o que “isso” indica e que lugar o “ali” indica, se tanto o objeto quanto o lugar estão presentes, acessíveis no momento da enunciação. O saber como usar estas formas deve ser partilhado entre os interactantes, evidentemente. A forma “isso” tem de tomar como escopo um objeto identificável na situação de fala; ademais, seu emprego pressupõe a unicidade do objeto. Se fosse usado numa situação em que houvesse diversos objetos diante do interlocutor, sua reação esperada seria perguntar qual dos objetos a expressão “isso” indica, ou seja, qual dos objetos deveria ser deslocado de lugar. É claro que o fato de sabermos como empregar “isso” não impede mal-entendidos. Pode suceder que alguma de suas condições de uso não seja satisfeita, o que acarretaria a não-identificação, pelo menos não imediatamente, do objeto indicado.
Vou-me demorar, doravante, na abordagem da relação entre linguagem e realidade. Retomo esse tema, com vistas a encaminhar o tratamento que será dispensado à questão da referenciação, a qual – cumpre reiterar – é uma atividade discursiva responsável pela construção de versões públicas da realidade.


1. A especificidade do ser humano

Não custa lembrar que a linguagem verbal ou a palavra está na base da consciência reflexiva. A consciência reflexiva é que habilita o homem a pensar em si mesmo, consciência que, não se reduzindo ao “eu”, permite, no entanto, ao homem reconhecer-se como um “eu”; é essa consciência que não só funda a diferença entre indivíduo e mundo, mas também se torna objeto de reflexão de si mesma. Essa consciência só é possível graças à palavra ou a linguagem verbal. A linguagem verbal é o sistema simbólico através do qual o homem transforma os objetos de suas experiências sensíveis em ‘dados’ de sua consciência; é pela língua que o homem constitui e estrutura suas experiências, cria e ordena o mundo, dotando-lhe de significações.
Em O que é realidade? (2006), Júnior ilustra como entender essa relação fundante entre palavra e consciência no homem:

“Quando digo “Japão”, por exemplo, torno-me consciente de uma região do planeta que no momento me é inacessível, que não pode ser vista nem tocada por mim. O animal não pode fazer isto: está irremediavelmente preso, aderido aos seus sentidos. A consciência animal não vai além daquilo que seus órgãos dos sentidos trazem até ele. O animal está indissoluvelmente ligado ao aqui”
(p. 18)


Tendo em conta o excerto de Júnior, preciso frisar o seguinte: não se deve concluir que os animais não-humanos não tenham consciência, tampouco que não possam ter consciência de si (recentemente, as neurociências vêm reunindo evidências de que certas espécies desenvolvem uma consciência de si); também não estou sugerindo qualquer sentido de superioridade do homem em relação aos animais não-humanos. Estou interessado em assinalar o papel fundamental que desempenha a palavra na vida do homem como ente consciente de si, como ente que não está irremediavelmente preso a uma relação imediata com o mundo. Pela palavra, o homem torna presente a si o que está ausente. Já foi dito amiúde que os animais têm um habitat, que seu corpo é uma extensão do meio em que vivem e que o homem, ao contrário, não tem um habitat e que sua existência é marcada por um desarrancamento em relação à natureza. Esse desarrancamento inaugura o próprio espaço da cultura que, em última instância, é o espaço do simbólico.

“Pela palavra, o homem criou também o tempo, ou a consciência dele. Posso pensar no meu passado, e não só no meu passado, mas no de toda a espécie humana; com a palavra encontro e crio significações para aquilo que vivi ontem, anteontem, ou para aquilo que outros homens viveram três séculos atrás” (p. 19).


A segmentação do tempo em presente, passado e futuro é uma projeção da consciência humana. O tempo físico, o tempo real é um presente sempiterno. Somente o presente é o real. A palavra permite ao homem construir a temporalidade da consciência. Pela palavra, me relaciono com o não-ser que chamo de futuro; pois, na realidade, não há o futuro; só há o instante presente. Ao nomear esse não-ser de “futuro”, torno-o uma possibilidade presente à minha consciência, para a qual me projeto (posso pensá-lo, posso pensar-me vivendo nesse “futuro”). Consideremos outro trecho de Júnior, abaixo:

“(...) o meio simbólico criado pela linguagem humana, linguagem que capacita do homem a proferir o seu “eu”. (...) Somos mais que nosso corpo: somos também a consciência deste corpo, que sabemos finito. Neste sentido é que, em linguagem filosófica, se fala da transcendência humana: o homem transcende, vai além da imediaticidade do aqui e agora em que está o seu corpo” (pp. 19-20).


O homem é um ser capaz de autotranscendência – vai além de suas condições naturais, é excesso em relação a seu programa natural geneticamente herdado. A linguagem verbal funda o reino de liberdade do homem em relação ao imperativo da natureza. A dimensão do simbólico lhe é tão importante, que o homem é o único ente capaz de se suicidar. Isso não deixa de ser espantoso: o suicídio é a forma última de o homem rebelar-se contra as restrições impostas pela natureza. O suicídio marca, de modo definitivo, quão importante para a existência do homem é esse domínio das significações, conforme nota Júnior:

“O suicídio é o exemplo mais extremo de como este universo de significações construído pelo ser humano chega a ser-lhe mais significativo, mais importante que a dimensão meramente física. Muitas vezes, seu corpo está em perfeitas condições, mas o homem se mata. E se mata porque a vida deixou de fazer sentido, perdeu a sua coerência simbólica: não há mais valores ou significados sustentando a existência” (p.20).


O desmoronamento do sentido significa a própria ruína do homem. Sem significados, a existência humana se torna insuportável. O homem está condenado a viver na teia de significações que ele mesmo construiu; quando essa teia se rompe, é a sua própria existência que corre risco de extirpar-se. Por que a existência humana não se sustenta sem significados? É preciso compreender o que é existir para a condição humana.

As coisas e os animais são, enquanto o homem existe. Existência é justamente a vida (biológica) mais o seu sentido. Sentido que advém da linguagem, instauradora do humano, que advém da palavra, criadora da consciência reflexiva e do mundo. (...) Pela palavra se faz o mundo. Somente com a palavra surge isto a que chamamos mundo” ( p.20, grifos meus).


No princípio, era o verbo e onde está o verbo está o homem. O verbo é que sustenta a sua existência. Não há existência para homem fora do domínio do simbólico. A linguagem é a dimensão que relaciona a ordem natural com a ordem do simbólico. Existir é esse lançar-se para fora, para fora da ordem natural; mas esse movimento de ruptura não faz o homem viver num vazio, mas num universo entretecido de significações. Existir é estar em relação contínua com esse universo de significações, é estar imerso nesse universo, é mover-se nesse universo de significações, que acaba por totalizar as duas ordens: a da natureza (então, significada) e a da cultura. O que chamamos de “mundo” é a reunião da ordem natural e da ordem simbólica numa totalidade dotada de significados. O mundo é um conceito fabricado pelo homem. Por isso, sem o homem, não existe o mundo. Acompanhemos o que nos ensina a esse respeito Júnior:

“(...) as coisas, as árvores, rios, pedras, montanhas já não estavam aí antes de surgir o homem e sua linguagem? Sim, mas ainda não eram o mundo. Mundo é apenas e tão-somente um conceito humano. Mundo é a compreensão de tudo isto numa totalidade, é ordenação deste aglomerado de seres num esquema significativo, só possível ao homem através de sua consciência simbólica, linguística. Sem esta consciência, sem alguém que dissesse “isto é o mundo”, tudo continuaria apenas um conglomerado de coisas. O mundo – que é um conceito essencialmente humano – apenas surge com o homem. Animais e vegetais continuam presos neste aglomerado chamado meio ambiente. Só o ser humano habita o mundo. Mundo e homem surgiram juntos e permanecessem indissoluvelmente ligados (p.22, grifo meu).


Na vida ordinária, em que nos movemos e nos relacionamos com o mundo pragmaticamente, tendemos a pensá-lo e a reduzi-lo a um conglomerado de coisas ou seres. A suposição, bastante espontânea, segundo a qual as “árvores”, “pedras”, “montanhas” já estavam no mundo antes do advento do homem é uma suposição calcada sobre a concepção de linguagem como nomenclatura. Pensamos que essas coisas já existiam e que coube a nós apenas nomeá-las, ou seja, colocar “rótulos”. Quase ninguém se dá conta, pois isso demandaria algum tempo de reflexão, de que as coisas só existem para homem quando nomeadas. O que não tem nome simplesmente não existe para a consciência humana. É claro que aquelas coisas que chamamos de “árvores”, “pedras” e “montanhas” já estavam no planeta antes do surgimento do homem, mas elas não estavam ali como “árvores”, “pedras” e “montanhas” num sistema significativo. Elas não compunham uma ordem significativa que se chama “mundo”. Elas estavam pura e simplesmente, fechadas em si mesmas, mas não totalizavam um mundo, porque não tinham ganhado ainda um investimento simbólico, que funda o domínio de abertura delas a uma consciência capaz de representá-las na forma de conceitos. Ao dar nome, o homem faz distinções e impõe uma ordem; portanto, cria um mundo. Uma vez nomeadas, as coisas se tornam identificáveis, discerníveis à consciência humana. E elas passam a tomar parte de uma ordem significativa. As palavras não são rótulos; elas criam conceitos pelos quais o homem estrutura suas experiências de mundo. Tomemos a palavra “peixe”. Seu significado pode ser verbalizado como “animal vertebrado aquático”. Agora, pensemos o que me ensina essa palavra, ou seja, a palavra enfeixa uma série de conhecimentos, porque ela mesma é uma forma de conhecimento. Quando uso a palavra “peixe”, sei que identifico certo animal (o que me permite dizer que o diferencio de “árvores”, “pedras”, “montanhas”). A palavra “peixe” compõe-se do traço [+ animal]. Ela categoriza para mim um objeto do mundo. Mas também a palavra “canário” designa um animal, seu significado também inclui o traço [+ animal]. Mas “peixe” e “canário” são animais com características e hábitos muito distintos. O peixe vive na água, ele nada; o canário não, ele voa; o peixe tem escamas; o canário tem penas. Se fôssemos decompor em traços o significado dessas duas formas linguísticas, teríamos o seguinte resultado, não exaustivo:

PEIXE                                         CANÁRIO
[+ animal]                                 [+animal]
[+ vertebrado]                           [+ vertebrado]
[+aquático]                                [- aquático]
[+ escamas]                               [- escamas]
[- penas]                                    [+ penas]
[- canto]                                     [+ canto]
[- bico]                                       [+ bico]

O que estou tentando mostrar é que as palavras não são meros rótulos de coisas, mas formas pelas quais as coisas são transformadas em conceitos que entram a fazer parte de nossa consciência na forma de conhecimento. O processo de categorização do mundo pela palavra tem como base nosso aparelho perceptual-cognitivo, moldado por práticas sócio-culturais. A categorização é uma atividade linguística em cujo cerne se acha a percepção e a cognição, sempre pensadas como domínio de experiências culturais. Precisamos perceber diferenças e semelhanças entre um ente e outro para, abstraindo as diferenças, categorizá-los. O “peixe” e o “canário” compartilham traços que nos permitem categorizá-los como [ANIMAL] em oposição a “planta”, que categorizamos como [VEGETAL]. Mas, mesmo na classe [ANIMAL], há inúmeras diferenças entre os indivíduos, donde a necessidade de fazer novas categorizações. Desde já, necessário é dizer que a categorização não é um processo discreto; ela é sempre instável e dependente do discurso. Antes do homem e da palavra, não havia ordem na natureza. Pense-se no caso do ornitorrinco.
Uma mesma realidade será categorizada de modo diverso, segundo as experiências culturais das comunidades humanas. Povos diferentes farão categorizações distintas com base em suas experiências culturais. Devemos também ter em conta o fato de que as categorizações não incidem apenas sobre elementos do mundo natural; tudo o mais que toma parte da experiência humana pode ser categorizado. Leia-se o que nos ensina Fiorin (2004), em Teoria dos signos:

“Imaginemos que uma pessoa mata a outra. Essa ação pode ser categorizada como assassinato, como acidente, como cumprimento do dever, como ato de heroísmo, como perda temporária da razão. Essa categorização determina nossas atitudes: prendemos o assassino; perdoamos quem foi vítima das circunstâncias; elogiamos o policial que matou o sequestrador que mantinha pessoas como reféns, porque cumpria o seu dever; damos uma medalha ao herói que, na guerra, matou o inimigo. (...) a língua não é uma nomenclatura aplicada a uma realidade cuja categorização preexiste à significação” (p. 57)



Volvendo olhares para o excerto de Fiorin, dele depreendemos que o modo como categorizamos as experiências de mundo vai determinar o modo como agimos, atuamos no mundo e reagimos a essas experiências. Por isso também a língua é uma forma de ação social; pelo uso da língua, agimos sobre o outro e reagimos às ações do outro. Toda ação social, já ensinava Weber, é ação dotada de significado. A língua cumpre, pois, duas funções fundamentais: ela dota nossas experiências de sentido e nos permite agir significativamente no mundo e sobre o outro. Retomemos a lição de Júnior no tangente ao significado de “mundo”.

“Mas afinal, o que é o mundo? Numa fórmula simples (...): mundo é o que pode ser dito. Mundo é o conjunto ordenado de tudo aquilo que tem nome. As coisas existem para mim através da denominação que lhes empresto. Que isto fique claro: só podemos pensar nas coisas através das palavras que as representam; entendendo-se “coisas” aí não em seu sentido estritamente físico, material. Ideia, sentimento (...) existem para mim, tornam-se objetos do meu refletir, pelos nomes. Amor, justiça, fraternidade, raiva, democracia são conceitos que fazem parte do meu mundo porque criados e reconhecidos por meio da palavra (pp. 22-23)”.


Cumpre ressaltar o que está pressuposto neste passo de Júnior: amor, justiça, fraternidade, raiva, democracia não existem sem o investimento verbal que lhe damos. Decerto, justiça, fraternidade e democracia são abstrações feitas pelos homens e só existem na medida em que são nomeadas. Que diremos do amor e da raiva? O amor e a raiva não seriam “fatos brutos” do mundo? Afinal, não percebemos, algumas vezes, entre os animais essa experiência de cuidado e carinho, que categorizamos como “amor”? Sim, a experiência é real e independe de nós (embora a noção de “fatos” seja muito problemática); nós a percebemos, mas o que chamamos de “amor” é uma invenção nossa. Ademais, o conceito de “amor” está investido de representações imaginárias construídas sócio-historicamente. O amor romântico, por exemplo, é, sem dúvida, uma invenção literária que atende bem aos interesses de um mundo burguês. E quanto à raiva? Não é ela uma emoção também? Nós não a sentimos? Sim, nós a sentimos, ela é natural e inata. Mas só passa a existir quando nomeada, pois só quando é nomeada torna-se conceito, e, portanto, passível de ser pensada. Para que “amor”, “raiva”, “justiça”, “fraternidade” e “democracia” se revistam de existência, sejam objetos postos à reflexão pelo homem, precisam ser nomeados, o que significa dizer: precisam ser transformados em conceitos.
Pode-se dizer, com Júnior, que o ato de nomear é fundador da existência:

“Definitivamente: o que existe para o homem tem um nome. Aquilo que não tem nome não existe, não pode ser pensado. (...) Algumas “coisas”, alguns conceitos existem para nós sem serem especificamente nomeados pela linguagem [verbal], mas vêm à luz através de outros sistemas simbólicos criados pelo ser humano. A linguagem é o sistema fundamental e primordial de criação e significação do mundo, mas além dela, foram desenvolvidos outros, como o da matemática, o da química, das artes, etc.” (p.23, grifo meu).



O mundo também pode significar acervo de conceitos e conhecimentos de que dispõe um indivíduo. Assim, “os limites da minha linguagem significam os limites de meu mundo” (Wittgenstein). Quanto maior é a quantidade de palavras que conhecemos, tanto mais apurada é nossa capacidade de articular conceitos, e tanto maior é o mundo, maior é o alcance e amplitude de nossa consciência reflexiva.
Uma vez que a linguagem ordena a realidade, tornando-a significativa, a realidade passa a ser, fundamentalmente, estabelecida e mantida por ela. É com base na linguagem (bem como a partir de suas condições materiais) que um povo constrói, em práticas culturais, a sua realidade. A construção da realidade passa, necessariamente, pelo uso da língua. A língua que usamos permite-nos organizar e interpretar a realidade, bem como ordenar nossas ações.
Nossa língua condiciona a nossa maneira de perceber/ interpretar o mundo e de nele agir. A língua está dialeticamente ligada às condições materiais de existência, especialmente nas sociedades divididas em classes. Cumpre insistir em que nossa percepção é influenciada pela língua que falamos. Visão, audição, olfação, gustação e tato são moldados culturalmente, o que equivale a dizer que o são também linguisticamente.
Suponhamos que uma tribo africana disponha, em sua língua, de cinquenta formas de expressão do conceito de “estar andando”. Cada uma dessas formas faz distinções relativamente ao que é percebido. Por exemplo, uma expressão pode descrever um traço específico do modo de andar: seja “balançando os braços”. Outra expressão pode incluir o traço ‘gingando os quadris’, e assim sucessivamente. Obviamente, desde a infância, o indivíduo percebe movimentos, vê pessoas andando, mas sua visão, sua percepção do movimento serão educadas, treinadas, porque ele precisa saber usar corretamente cada expressão verbal correspondente a um modo específico de andar de seus semelhantes. Esse indivíduo conseguirá, portanto, perceber nuances, sutilezas; em suma, conseguirá fazer distinções que indivíduos que vivem em outros contextos culturais e que usam outra língua não conseguirão fazer espontaneamente. Depreende-se daí que a língua que usamos condiciona o desenvolvimento de certo modo específico de perceber o mundo. Essa é uma questão extremamente instigante, que retomarei mais adiante quando trouxer à baila a hipótese de Sapir-Whorf.
Pondo termo a esta seção, segue-se este último passo de Júnior, cujas ideias básicas são destacadas em seguida:

“O ser humano move-se, então, num mundo essencialmente simbólico, sendo os símbolos linguísticos os preponderantes e básicos na edificação deste mundo, na construção da realidade. (...) O mundo, para mim, circunscreve-se àquilo que pode ser captado por minha consciência, e minha consciência apreende as coisas através da linguagem que emprego e que ordena a minha realidade. Assim, o real será sempre um produto da dialética, do jogo existente entre a materialidade do mundo e o sistema de significação utilizado para organizá-lo”. (p. 27)


1) O ser humano não existe senão num universo essencialmente simbólico;

2) As palavras são os símbolos básicos na edificação da realidade;

3) O mundo é a totalidade acessível à minha consciência;

4) As coisas do mundo só tomam parte de minha consciência quando transformadas em conceitos por força da função de simbolização da linguagem;

5) O real é fabricado numa relação dialética entre a materialidade do mundo e a linguagem que lhe (ao real) determina uma ordem.



1.2. Linguagem, realidade, cultura e cognição

O linguista Izidoro Blikstein, em seu livro assaz intrigante Kaspar Hauser ou A Fabricação da Realidade, declara, na contracapa:

“Para o senso comum, a realidade parece não constituir problema algum: real é todo o universo estável e tangível de som, cores, formas, espaços e movimentos. Trata-se, no entanto, de uma ilusão: na verdade, o que julgamos ser a realidade não passa de um produto da nossa percepção cultural. Percebemos os objetos que as nossas práticas culturais já definiram previamente, em outras palavras, a realidade já foi fabricada por toda uma rede de estereótipos culturais, que condicionam a percepção. Tais estereótipos, por sua vez, são garantidos e reforçados pela linguagem(ênfase minha).

Este livro baseou-se no filme “O Enigma de Kaspar Hauser”, de W. Herzog (1974). O protagonista Kaspar Hauser foi criado num sótão até os 18 anos sem ter contato com qualquer pessoa. Por volta de 1828, aparece em Nurembergue, portando uma carta na qual há referências a sua misteriosa origem. Atônito, vê-se diante de um mundo incompreensível. A ele tudo assustava: o riso, os movimentos, a lógica, o pensamento, a fala, etc. À página 17, Blikstein, a propósito do seu objetivo, escreve:

“Kaspar Hauser: linguagem, mundo, realidade, percepção, significação, cognição... assim é que, procurando desvendar os enigmas do filme de Herzog, fui sendo levado, pouco a pouco, a revisitar um antigo e problemático tema, situado num entrocamento por onde passam a linguística, a semiologia, a antropologia, a teoria do conhecimento, etc.: trata-se da relação entre língua, pensamento, conhecimento e realidade. Até que ponto o universo dos signos linguísticos coincide com a realidade “extralingüística”? Como é possível conhecer tal realidade por meio de signos linguísticos? Qual o alcance da língua sobre o pensamento e a cognição?

Essa intricada questão sempre me provocou fascínio; decerto, decorrente de meu amor à linguagem e da consciência de sua importância fundamental na existência social dos seres humanos. A compreensão das palavras que se seguem ao passo de Blinkstein, referido acima, não dispensa  a consideração prévia dos pressupostos abaixo:

1º pp. A linguagem organiza as experiências dos homens numa estrutura dotada de sentido;
2º pp. O discurso não espelha a realidade, mas a reconstrói, de acordo com os propósitos e os pontos de vista do falante/escritor;

3º pp. A linguagem é um elemento estruturador do real e a base mais profunda das sociedades humanas;

4º pp. Há relação intrínseca entre linguagem e cognição;

5º pp. Tanto a linguagem quanto a cognição são fatos de ordem social;

6º pp. Os processos cognitivos não se dão apenas na cabeça das pessoas, mas, enquanto processos sociais, dão-se nas práticas sócio-interacionais em que as pessoas estão envolvidas.

Pode-se afirmar, seguramente, que tanto a linguagem como a cognição se realizam nas práticas sócio-interacionais. Essas práticas, evidentemente, estão envolvidas e determinadas pela cultura. Importa ter em conta, fundamentalmente, o seguinte: a linguagem não é um mero instrumento de comunicação, mas, tomada numa acepção sóciocognitivista-interacional, a linguagem é uma prática social, ou seja, um tipo de ação conjunta, ação que se faz com os outros e que demanda a mobilização de diversos sistemas de conhecimentos armazenados na memória dos usuários.  Os sistemas cognitivos constituem formas de estruturação dos conhecimentos culturalmente determinados em nossa memória. Ingedore Koch (2004: 32), apresenta a seguinte definição de cognição, de acordo com a perspectiva assumida aqui:

“Cognição, aqui, define-se como um conjunto de várias formas de conhecimento, não totalizado por linguagem, mas de sua responsabilidade: os processos cognitivos, dependentes, como linguagem, da significação, não são tomados como comportamentos previsíveis ou aprioristicamente concebidos, à margem das rotinas significativas da vida em sociedade”.


Urge definir o conceito de cultura, com vistas a elucidar a reflexão que se tem desenvolvido até aqui. Cultura é um desses termos científicos polissêmicos, definido diferentemente de acordo com a perspectiva do estudioso. Pode-se admitir, à guisa de melhor clareza, a distinção entre cultura material e cultura simbólica. A primeira encerra as produções do espírito humano, concretizadas em obras de artes, livros, teatro, música, etc. A segunda é de ordem significativa, existe na mente das pessoas, representada nos padrões artísticos e nos mitos. Pensando a relação entre cultura e linguagem, é preciso saber que a linguagem é, ao mesmo tempo, produto e meio de expressão, propagação e conservação da cultura. Também convém ter em conta o fato de que as culturas são dinâmicas e diversificadas.
Cinjo-me, contudo, a referir o seguinte passo de Roberto da Mata, colhido de Você tem cultura?, no qual se nos esclarece o conceito de cultura:

Cultura é um conceito-chave para a interpretação da vida social. Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um código, através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilha de parcelas importantes deste código (cultura) que um conjunto de indivíduos, com interesses e capacidade distintas e até mesmo opostas, transformam-se num grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Podem, assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhe forneceu normas que dizem respeito aos modos mais (ou menos) apropriados de comportamento diante de certas situações”.


Em geral, o homem comum, porque imerso no seu sistema cultural, não se dá conta dos traços mais imediatos de sua cultura, ou seja, das normas que governam as relações sociais e os comportamentos exigidos em determinadas situações (embora as domine quase “inconscientemente”). Por exemplo, os brasileiros, em face de um comentário elogioso, tendem a dar respostas que mitigam a intensidade de um elogio ou o efeito que lhes causa. Assim é que, numa situação em que uma mulher faz um elogio ao vestido de uma amiga, como, por exemplo, “Que lindo esse vestido, está arrasando!”, esta tenderá a dizer algo como “que nada, comprei numa ferinha... foi baratinho!”. A menção ao baixo valor do artigo deve-se ao fato, culturalmente determinado, de que ser rico no Brasil é errado ou de que ostentar um artigo de luxo é sinal de alto poder aquisitivo, e alto poder aquisitivo, em nossa sociedade, é sinal de esnobismo, esvaziamento espiritual.
Não é desses aspectos culturais, no entanto, que me ocupo aqui. Viso a provocar no leitor a consciência de que a cultura funciona como uma espécie de lente por meio da qual interpretamos, organizamos e compreendemos a realidade. Sabe-se, por exemplo, que, segundo os primeiros relatos dos colonizadores da América, os índios não viram (perceberam) as caravelas que se aproximavam, visto que não constituíam elas dados da experiência deles (experiência culturalmente determinada). Logo, as caravelas se confundiam com a paisagem e não eram, pois, consideradas uma informação ou um ‘dado’ interpretável.
Vale salientar, desde já, que por percepção entende-se a faculdade pela qual se atribui significado a dados sensoriais. A percepção organiza as sensações. As palavras de Marilena Chauí (2008: 133) lançam luzes sobre esse conceito:

“(...) na realidade, não temos uma sensação isolada de outras, mas só temos sensações na forma de percepções, isto é, como reunião de muitas sensações ou como sínteses de várias sensações. A percepção seria, pois, uma síntese de sensações simultâneas.”

 A sensação é o efeito produzido pelas qualidades dos objetos sobre nós. Fique claro, pois, que a percepção interrelaciona-se com a cultura, linguagem e cognição para a construção do real.
Convém, doravante, considerar, com o devido acuro, a oposição tradicional entre o idealismo e o realismo. A perspectiva filosófica idealista, conquanto se insira em correntes distintas de pensamento, assume como postulado básico a crença em que a realidade exterior deve ser interpretada em termos da realidade interior ou mental. Epistemologicamente, o idealismo, de que Descartes é um dos expoentes rememorados, tende a reduzir a problemática do conhecimento ao papel do sujeito conhecedor, o que equivale a reduzir a matéria ao pensamento. Platão cuja teoria das idéias é, segundo Marcondes (2008), erroneamente, chamada de idealismo, poderia situar-se entre os filósofos que professavam o idealismo. No entanto, como adverte Marcondes, Platão preconizava um “realismo das ideias”, porquanto o mundo das idéias puras, de que falava, existiria independentemente do nosso conhecimento ou pensamento.
O realismo assume que a realidade exterior existe independentemente do conhecimento que se possa ter dela. Na perspectiva realista, o conhecimento decorre da concordância entre as idéias ou juízos e a realidade.
Revisitar essa problemática é importante, porque, ao admitir, com Coseriu, que a realidade resulta da interpretação humana, não significa que eu esteja negando a existência do mundo que se mostra aos nossos olhos.
Portanto, convém atentar para as lúcidas palavras de Marcuschi (2007: 142), com as quais encerra o capítulo 6 de seu livro Cognição, Linguagem e Práticas Interacionais:

“Se o fato de não podermos dizer o mundo em si é inevitável, isso não significa que o mundo conhecido seja sempre produto de nossas atividades cognitivas. Portanto, não há motivo para o alvoroço: o mundo extramental existe. Contudo, tal como dizia a quarta tese inicialmente afirmada, todos os objetos de nosso conhecimento são produzidos no discurso, embora  não se achem confinados ao discurso e podem ser intersubjetivamente comunicados” (ênfase do autor).


Marcuschi acrescenta ser o mundo independente de nossas crenças, mas estas não são independentes dele. Cabem algumas observações acerca desse passo do autor. A posição do linguista é, em parte, também por mim acolhida: de fato, o mundo,  enquanto manifestação material apreendido pelos sentidos, existe. No entanto, quando interpretamos a existência ou realidade como essencialmente significativa, interpretação na base da qual se acha o papel valoroso e inegável da linguagem, parece-me lícito admitir que o real existe para os homens porque faz sentido para eles. Se, por mundo, entendemos uma totalidade estruturada significativamente, então esse mundo não existe antes do advento da palavra. A própria condição de sermos, ao mesmo tempo, homo sapiens e homo loquens impõe-nos a necessidade de pensar o real enquanto existência significativa ou simbólica. É nesse ponto que minha argumentação acarretou, certa vez, em comunidades virtuais de debate filosófico e cognitivista, muita controvérsia. Mas reavivar minha posição é necessário aqui. Alhures, argumentei que uma “montanha”, por exemplo, enquanto elemento do mundo natural, enquanto realidade do mundo físico, está aí, dada, mas só passa a existir quando é nomeada. A palavra montanha não é um rótulo ou uma etiqueta que colocamos nas coisas ou nos seres. Essa concepção simplista ademais e própria do senso-comum não se sustenta, quando dispensamos um olhar cientificamente orientado, que considera a relação entre linguagem, percepção, cognição, cultura e realidade. A realidade pode ser ressignificada, adquirindo um sentido mais profundo e totalizante. Assim, para muitos povos, a montanha é a morada dos deuses. Para empresários capitalistas, interessados na exploração de minérios, a montanha se torna uma fonte de lucro. O fato que se deve ter em conta é que a designação montanha não é um rótulo, mas uma forma de categorização de uma coisa, que, por força da função simbólica da linguagem, à qual se relacionam a percepção, a cognição e a cultura, torna-se ‘dado’ de nossa consciência e assunto de nossos discursos. As palavras criam conceitos, por meio dos quais organizamos as nossas experiências de mundo.
Talvez, fosse válido perguntar se o meio-ambiente faz sentido para um determinado animal. E, talvez, pudéssemos admitir que o faz, no sentido de que o animal já nasce programado geneticamente para todos os atos de sua existência. A relação entre o animal e o mundo é governada pelo instinto. No entanto, ainda que admitamos que haja uma ordem natural na realidade em que vivem os animais, como leões, gorilas, chimpanzés, etc., decerto, falta ao universo deles uma ordem racional e simbólica. Muitos filósofos advogaram que a possibilidade de se pensar no real advém da racionalidade inerente ao real; em outras palavras, não só o homem é racional, mas também a realidade. Mas a faculdade da razão, na acepção de capacidade de elaborar conceitos, formar juízos e estabelecer relações entre eles, apóia-se na faculdade da linguagem.
Reitero que o fato de sermos seres racionais e linguísticos impõe-nos, no mínimo, a dúvida sobre a existência de uma realidade autônoma, ou seja, independente de uma mente que a pense e a compreenda. Não há pensamento conceitual sem linguagem.  As palavras permitem, segundo Vygotsky, a produção de sistemas conceituais que são constitutivos do pensamento. Vygotsky, em A formação social da mente (2007: 10), nesse tocante, destaca:

“(...) o momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual, que dá origem às formas puramente humanas de inteligência prática e abstrata, acontece quando a fala e a atividade prática, então duas linhas completamente independentes de desenvolvimento, convergem” (ênfase do autor).

Vygostsky ensina que a fala da criança torna-se tão mais importante quanto mais complexa é a ação exigida pela situação. O psicólogo notou que, muitas crianças pequenas, uma vez privadas, temporariamente, do uso da linguagem, em dada situação, são incapazes de resolver um problema que lhes é dado. A fala, à semelhança dos olhos e das mãos, tornam-se, na tenra idade infantil, um instrumento fundamental para a realização de tarefas.
Agora, pode-se concluir que não haveria esse meio de trocas, relações e atividades, a que damos o nome de sociedade, sem linguagem.


2. O mundo como construção do discurso

“O homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu”
(Clifford Geertz)


As estruturas de nossos conhecimentos e das instituições que lhes dão suporte não é uma ordem natural. Essa ordem é, essencialmente, cognitiva e interativamente semiotizada; é uma ordem histórica e sócio-interacional.
Em A construção do Mobiliário do Mundo e da Mente, texto que se topa no livro Linguística e Cognição (2005), Marcuschi apresenta-nos a questão que será desenvolvida aqui. Essa questão


“(...) [é] saber que estamos construindo modos de existência e referenciação e não apenas comunicando fatos ontológicos. As coisas não estão no mundo da maneira como as dizemos aos outros. A maneira como nós dizemos aos outros as coisas é decorrência de nossa atuação intersubjetiva sobre o mundo e da inserção sócio-cognitiva no mundo em que vivemos. O mundo comunicado é sempre fruto de um agir intersubjetivo (não voluntarista) diante da realidade externa e não de uma identificação de realidades discretas” (p. 52, grifo meu).




Vou-me esforçar por mostrar que o texto ou discurso não é um retrato do mundo, não espelha o mundo. Uma vez aceitemos essa perspectiva, é o próprio estatuto da verdade que sofre uma mudança sensível. A verdade não resulta de uma pura correspondência entre a linguagem e mundo. O problema da verdade se desloca para a natureza do dito e para a natureza do acesso ao mundo. A verdade não pode mais ser encarada como uma questão de correspondência entre um enunciado e o fato. Consoante nota Marcuschi,

“(...) as coisas são não porque as pensamos, mas porque elas podem ser pensadas e o seu modo de ser não é uma questão empírica e sim uma questão cognitiva (p.53)”.


A fim de ilustrar o que muda em termos de estatuto da verdade, considerem-se os dois enunciados abaixo:

(1) Tiradentes foi um traidor.
(2) Tiradentes foi um herói.

A questão premente, quando consideramos (1) e (2), consiste em pergunta qual deles encerra um valor de verdade. Em (1), Tiradentes é categorizado, por força da ocorrência do verbo “ser”, como “um traidor”; em (2), como “um herói”. Vê-se como é difícil decidir qual dos enunciados é verdadeiro, quando tomamos a noção de verdade supondo que ela resulte de uma correspondência entre o dito e o mundo. Como o próprio Marcuschi notará, trata-se de uma visão simplista de verdade. Se assumirmos como pressuposto a definição de verdade como resultado de correspondência entre o enunciado e o mundo, deparar-nos-emos com embaraçosos problemas, à medida que nos aprofundamos na investigação do universo discursivo. Quero dizer que, uma vez considerada a língua em uso, ou seja, textos reais, a noção de verdade apoiada numa suposta objetividade não se sustenta, pois que ela é resultado de uma visão ingênua sobre a relação entre discurso e realidade. Marcuschi mostrará que a objetividade se funda na intersubjetividade; portanto, a objetividade é construída no discurso, em práticas intersubjetivas mediante o uso da língua e ela supõe, por isso, um acordo entre os interactantes, já que o modo como classificam e ordenam o mundo é parecido, em virtude de compartilharem um código cultural, bem como por serem dotadas de um mesmo equipamento perceptual-cognitivo. Com Marcuschi, cumpre notar:

“(...) a objetividade tem sua fonte na intersubjetividade. As pessoas concordam intersubjetivamente porque classificam e organizam o mundo de forma parecida quando vivem na mesma cultura. Assim, o conhecimento objetivo, a verdade, a categorização, etc. surgem como fruto de uma triangulação entre dois indivíduos e o mundo sem a necessidade de uma relação direta da mente com o mundo e sim a coerência de crenças na relação com o mundo (p.59).


O passo acima expressa, em linhas gerais, a perspectiva do filósofo americano Donald Davidson. Com Davidson, devemos assumir que a verdade não existe independentemente de nós. A verdade e o conhecimento são construções discursivas, elaboradas na relação intersubjetiva, ainda que tomem como ponto de intersecção o mundo empírico e mentes adequadamente equipadas para agir intersubjetivamente; enfim, mentes que agem, no domínio intersubjetivo, com base em princípios e regularidades que funcionam de modo similar.
A linguagem não espelha o mundo. A língua é, sobretudo, uma forma de ação interacional, social, cognitiva e situada (situada porque se realiza em contextos sócio-culturais definidos). A produção das categorias é também uma atividade sócio-cognitiva situada em contextos culturais. Nos exemplos (1) e (2), anteriormente referidos, a tentativa de determinar a verdade com base numa correspondência entre os enunciados e a realidade perde sua razão de ser. A verdade passa a ser alvo de disputa, por força dos dois modos de categorizar o referente “Tiradentes”. Essa disputa é sócio-historicamente determinada e envolve dois ou mais sujeitos sociais inseridos em práticas discursivas. A verdade passa, então, a depender desse domínio intersubjetivo fundante da disputa e da própria objetividade. Não se trata mais de determinar qual dos enunciados descreve ou reflete a verdade, pois a própria verdade está intimamente ligada às esferas de poder. A busca da verdade se realiza pelo exercício do poder (Foucault). Os enunciados (1) e (2) encerram categorizações que expressam pontos de vistas conflitantes de, pelo menos, dois enunciadores para os quais a verdade é objeto de disputa em práticas discursivas atravessadas pelo exercício do poder.
Segundo Marcuschi, é necessário, na busca pela exatidão na compreensão da natureza da categorização, dispensar a noção de representação, assumindo-se que:

“(...) as categorias constituem-se no processo intersubjetivo de pelo menos duas mentes convergindo sobre a melhor forma de construir uma dada proposição diante do mundo (...) a produção de categorias seria uma atividade sócio-cognitiva situada em contextos específicos na tentativa de construir o conhecimento” (p.65).



À luz dessa perspectiva sócio-cognitiva-interacional, o mundo, enfatiza Marcuschi, “não é um grande supermercado com gôndolas universais divinamente mobiliadas, restando aos humanos nomearem esse mobiliário para uso coletivo (...) (p.67)”. Parece-nos que essa é a visão do senso-comum: as pessoas, em geral, pensam o mundo como esse “grande supermecado” cujos produtos já ordenados se apresentam para simples rotulação dos homens. Também à luz daquela perspectiva, a linguagem não é um instrumento transparente, preciso e claro que nos serve para etiquetar de forma universalmente igual cada elemento desse suposto mobiliário. Por conseguinte, enfatiza-se que não há uma relação direta entre linguagem e mundo. O que há então? O que existe é um trabalho social, um trabalho levado a efeito cooperativamente pelos sujeitos sociais, os quais se servem de um sistema simbólico, cuja estrutura semântica vai-se construindo em contextos sócio-culturais, para designar o mundo. O estatuto do conhecimento, à semelhança do que sucedeu com a verdade, também se altera, consoante observa Marcuschi:
“(...) conhecer não é um ato de identificação de algo discreto existente no mundo e mediado pela linguagem: conhecer é uma atividade sócio-cognitiva produzida na atividade intersubjetiva (p. 69)”.


Quando nos ocupamos com a investigação da relação entre discurso e mundo, que nos leva a por em dúvida a visão ingênua, ontologicamente fundada, segundo a qual o discurso espelha uma objetividade do mundo, isto é, que o mundo é tal como dizemos que ele é, o domínio da atividade intersubjetiva se sobrepõe ao domínio da objetividade. Esse domínio do intersubjetivo ganha relevo. A relação entre discurso e mundo é uma relação construída; e para essa construção, concorrem a percepção-cognição, as experiências culturais e a própria linguagem. Assim é que conhecer um objeto como “cadeira”, “mesa” ou “bicicleta”, por exemplo, não significa simplesmente identificar algo que está dado, tampouco é usar um rótulo que lhe caiba, “mas é fazer uma experiência de reconhecimento com base num conjunto de condições que foram estabilizadas numa dada cultura” (Marcuschi, p. 69).
Há, portanto, o mundo dos nossos discursos que não é um reflexo do mundo extralinguístico. O mundo dos nossos discursos é sócio-cognitivamente construído, e “a própria ordem de reflexão sob o ponto de vista de sua organização e dependências lógicas é uma construção predominantemente discursiva” (ib.id.).
As categorias são modelos sócio-culturais. Na vida ordinária, as pessoas designam eventos, fatos, indivíduos, objetos físicos, estados de espírito, etc. com nomes que são adotados pela comunidade em que vivem, visto que todas essas pessoas aprenderam esses nomes nas experiências de vida em comum.
Adotando-se uma visão interacionista no tratamento dispensado à questão da relação entre discurso e mundo , são privilegiadas as relações sociais estabelecidas pelos interactantes por meio dos recursos linguísticos. É por meio dos recursos linguísticos que se elaboram versões públicas do mundo (Marcuschi, p. 71), cuja adequação se estabelece por negociação pública, ajustes, acordos, desacordos, etc. entre os interlocutores e o discurso. Essa adequação não depende de uma presumida relação objetiva com um mundo exterior, mas será sempre construída (p. 72).
A língua, portanto, se nos apresenta como um domínio de possibilidades de trabalhar e retrabalhar as versões públicas do mundo. São as atividades descritivas realizadas pelos interactantes que importam, e não as representações. O que se faz necessário observar é o que eles fazem e como agem para construir uma versão de mundo pública num sistema de co-produção discursiva.
Finalmente, não só o estatuto da verdade e do conhecimento se modifica, mas também o estatuto do sujeito, consoante pondera Marcuschi:

“O sujeito não é apenas enunciativo e sim também social e nesta ação social situada, ele instaura e diz o mundo. Com isto as descrições são reflexivas (elaboram as circunstâncias de sua aparição na mesma medida em que elas se ajustam), indexicais (repousam no contexto em que elas são fabricadas e situadas (invocadas e fabricadas para fins práticos). Portanto, segundo Mondada, “a indeterminação da descrição é indispensável para o seu funcionamento em contexto” (p.135).


Evoca-se aqui, em favor da tese da construção discursiva de versões públicas do mundo, o testemunho de Silva, em seu Linguagem e verdade: jornalismo, linguagem e realidade (2006):

“(...) para se chegar ao mundo/ real a única possibilidade é sendo através da linguagem. Não se nega o mundo objetivo, apenas se afirma que este mundo objetivo é um mundo organizado e estruturado pela linguagem. Olham-se e distinguem-se os objetos como são percebidos e categorizados pela linguagem (p. 32)”.


Não se segue do excerto citado que o mundo extra-mental seja uma projeção do usuário da língua. Pensar assim seria incorrer numa forma de idealismo imaterialista dificilmente sustentável no estado atual do conhecimento nas ciências e filosofias da mente/cérebro. A título de curiosidade, endossando uma perspectiva cujo exame escapa à alçada deste estudo, o eminente físico Stepnhen Hawking, em seu intrigante livro O grande projeto: novas respostas para questões definitivas da vida (2011), esposará e defenderá a tese segundo a qual a própria realidade percebida é dependente de um quadro ou teoria. Ele argumenta que nossa percepção não é direta; nosso cérebro produz um modelo mental. Assim, afirma Hawking, se dizemos que “vejo uma cadeira”, o que está acontecendo é que nosso cérebro está usando a luz refletida pela cadeira para construir uma imagem ou modelo da cadeira. Com bom humor, nota Hawking que “se o modelo for virado de cabeça para baixo, com sorte o cérebro corrigirá antes que a pessoa tente se sentar nela” (p.35).
Creio ser elucidativo o seguinte trecho de Hawkings com o qual ponho termo a esta seção:

“Fazemos modelos não só em ciência mas também na vida quotidiana. O realismo dependente do modelo aplica-se tanto ao conhecimento científico quanto aos modelos conscientes e subconscientes que criamos para interpretar e compreender o mundo do dia a dia. Não há como remover o observador – nós – de nossa percepção do mundo, que é criada pelo nosso processamento sensorial e pelo modo como pensamos e raciocinamos. Nossa percepção – e, portanto, as observações nas quais se baseiam nossas teorias – não é direta, mas antes moldada por uma espécie de lente, a estrutura interpretativa do cérebro humano (p. 34).


O que Hawking nos faz entender, à luz de outro quadro teórico, é o que temos nos esforçado por mostrar: não há acesso imediato ao mundo, assim como a alegada objetividade do mundo é produto de práticas discursivas, em contextos sócio-culturais determinados, nas quais intervém, evidentemente, a atividade de percepção-cognição humana que produz interativamente modelos de mundo. Trata-se, na verdade, de reconhecer que o real não se apresenta pronto; nós não o acessamos diretamente. O que chamamos de realidade é uma construção sociocognitiva e interacional dependente da cultura e da linguagem.


3. Categorização e referenciação: a construção dos objetos de discurso


Doravante, vou-me deter a abordar duas questões fulcrais, cujo entendimento contribuirá para alicerçar um trabalho de leitura à luz do qual o fenômeno da referenciação não seja reduzido a mero mapeamento, no texto, de referentes concebidos como objetos do mundo objetivo ou extralinguístico.
Nesta seção, discorrerei sobre o que nos ensina Mondada & Dubois, em seu artigo Construção dos objetos de discurso e categorização, que se acha no livro Referenciação: clássicos da linguística (2003). Antes de me lançar a essa tarefa, gostaria de referir e comentar, brevemente, dois trechos que avivam a compreensão do fenômeno sui generis que é a linguagem. O primeiro fragmento é de Heidegger; o segundo é do linguista dinamarquês Hjelmslev.

 “O homem – escreve Heidegger – fala sempre. Nós falamos na vigília e no sono. Falamos sempre. Mesmo quando não proferimos palavra, mas escutamos ou lemos, dedicamo-nos a um trabalho ou nos perdemos no ócio. De um ou outro modo, falamos ininterruptamente. Falamos porque o falar nos é conatural. O falar não brota de um ato de vontade. Diz-se que o homem é por natureza falante, e é ponto pacífico que, diversamente da planta e do animal, o homem é o ser vivo capaz da palavra. Com isto não se quer unicamente afirmar que o homem possui, além de outras capacidades, também a de falar. Quer-se dizer que é a linguagem que torna o homem o ser vivo que ele é enquanto homem”.

(Heidegger, 1973 apud. Mondin, 2009, p. 40).

Heidegger nos lembra o que nos torna tão profundamente distintos dos animais não-humanos: a capacidade da linguagem. Essa capacidade não deve ser reunida simplesmente a outras tantas capacidades de que somos dotados; essa capacidade – a capacidade da linguagem – define o que somos, nos humaniza, faz de nós seres humanos. O homem é, essencialmente, homo loquens (ser de discurso, de fala).


“A linguagem (...) é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. Mas é também o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta com a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar de nossa consciência, as palavras já ressoavam a nossa volta, prontas para envolver os primeiros germes frágeis do pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente através da vida, desde as mais humildes ocupações do cotidiano até os momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graças às lembranças encarnadas pela linguagem, força e calor. A linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento; para o indivíduo, é o tesouro da memória, e a consciência vigilante transmitida de pai para filho. Para o bem e para o mal, (...) é a marca da personalidade, da terra natal e da nação, o título de nobreza da humanidade. O desenvolvimento da linguagem está inextricavelmente ligado ao da personalidade de cada indivíduo, da terra natal, da nação, da humanidade, da própria vida, que é possível indagar se ela não passa de um simples reflexo ou se ela não é tudo isso: a própria fonte do desenvolvimento dessas coisas” (Hjelmslev, 1978, p. 179, grifos meus).



Num estilo que se aproxima muito do poético, Hjelmslev, a despeito de usar a forma “instrumento” para designar a linguagem (pelo menos, foi a forma usada pelo tradutor), reforça a profundidade dessa conaturalidade da linguagem, a que se referiu Heidegger. De modo particular, lembra-nos que, sem a linguagem, não haveria estruturas comunitárias complexas que chamamos de sociedade, pois que ela é “a base última e mais profunda da sociedade humana”.
Passemos, agora, a considerar o já referido texto de Mondada & Dubois. Inicialmente, convém atentar para o seguinte passo, em que as autoras nos chamam a atenção para a instabilidade das categorias nas práticas discursivas:

“As categorias não são nem evidentes nem dadas de uma vez por todas. Elas são mais o resultado de reificações práticas e históricas de processos complexos, compreendendo discussões, controvérsias, desacordos. As ciências naturais são, assim, um lugar privilegiado onde se pode observar a dinâmica da categorização e da recategorização e suas evoluções linguísticas e cognitivas. Mais geralmente, a instabilidade caracteriza o modo normal e rotineiro de entender, descrever, compreender o mundo – e lançar, assim, a desconfiança sobre toda descrição única, universal e atemporal do mundo” (p.28).



Previnamo-nos contra a crença de que as categorias não sejam objetos de disputas. As categorias são produzidas e disputadas nas práticas discursivas. Elas são, essencialmente, instáveis, e sua instabilidade funda-se no uso que delas fazemos, dado que elas estão sempre situadas em práticas, as quais, por sua vez, dependem tanto de processos de enunciação como de atividades cognitivas nem sempre verbalizadas. A instabilidade das categorias se deve ao fato de elas se situarem em práticas do sujeito ou de interações em que os interlocutores “negociam uma versão provisória, contextual, coordenada do mundo” (p.29).
Necessário se faz uma digressão, para esclarecer o que se está entendendo por categorização. Em Ferrari (2011), a categorização é o processo pelo qual inserimos em grupos entidades que compartilham entre si certo número de traços. Na linguagem, o processo de categorização é essencial. O mundo do qual falamos, ao usar a língua, é um mundo cujos elementos, as atividades, as qualidades são agrupadas em classes específicas. Novamente, cumpre reiterar – e Mondada & Dubois estão de acordo – que não há uma relação especular entre linguagem e mundo, mas uma relação, necessariamente, mediada pela arquitetura cognitiva dos falantes, tendo em conta características e restrições dela (Ferrari, p. 32).
A categorização é sensível ao contexto sociocognitivo. Os falantes não apenas constroem mentalmente a realidade física exterior, mas também os estados mentais de conhecimento, crenças e intenção de seus interlocutores.
Segundo Mondada & Dubois, é no cerne das atividades discursivas que a instabilidade se deixa ver em todos os níveis de estruturação da língua. A instabilidade se depreende tanto das construções sintáticas quanto da construção de objetos de discurso. Essa instabilidade é especialmente observável nas práticas orais de uso da língua, embora também se deixe notar nos textos escritos. Vejamos um exemplo colhido do seriado de televisão Os Normais. Na cena, Vani está no restaurante e o garçom lhe traz a água que ela pediu. Notemos como ela negocia com o garçom a maneira adequada de categorizar o objeto-de-discurso “água sem gás”.

- Licença, duas águas sem gás.
- Eu pedi água com gás.
- É....a senhora falou sem gás.

- Com gás. Ninguém pede água sem gás. Quando a pessoa quer água sem gás, ela fala simplesmente água.

- Mas foi o que a senhora pediu, água.

- Água com gás. Eu pedi água com gás. Que sem gás vocês enchem na pia.

- A senhora que água da pia?

- Eu quero água com gás. Compreendeu... com...com...gás c-o-m, com ok?



Na situação de interação reconstruída, a personagem Vani solicita ao garçom uma garrafa de água com gás. O garçom, no entanto, traz-lhe uma garrafa de água sem gás. Na tentativa de convencer o garçom de que ele se equivocou, Vani busca negociar a melhor maneira de categorizar o objeto-de-discurso “água sem gás”. A certa altura, ela diz “quando a pessoa quer água sem gás, ela fala simplesmente água”. Para Vani, portanto, “água sem gás” deve ser categorizado como “água”. São duas expressões sinonímicas, segundo seu ponto de vista. O que está em jogo é uma disputa pela extensão do significado da palavra “água” e, por conseguinte, pelo modo mais adequado de categorizar o objeto de discurso “água sem gás”. Um olhar mais apurado dessa cena discursiva leva-nos a entender que é o próprio contrato comunicativo que se busca negociar, pois que se busca ajustar dois contextos sociocognitivos: o de Vani, que inclui a crença de que “água” e “água sem gás” são expressões equivalentes e sinonímicas; e o do garçom, que parece resistir a aceitar tal equivalência. Novamente, os interlocutores negociam significados, colocam em disputa duas maneiras de categorizar um objeto-de-discurso. Trata-se de um exemplo emblemático da concepção de discurso como lugar de disputa, de conflito. Tome-se mais um exemplo de Os Normais. Nesta passagem, Rui estava contando uma piada, quando Vani telefona para ele.

- Ô Vani agora não posso porque tou num gancho de uma piada.

- Tá onde?

- É...tô no gancho. É a parte da piada que  puxa pro final. Depois eu ligo. Aí...ó o cara pergunta e a notícia boa. Aí o médico  responde. Tá vendo aquela enfermeira ali. To traçando ela...quer dizer a noticia boa não era nem pro cara, era pro pro...A Internet tem uma coisa sensacional o cara mandou uma notícia agora e daqui a 5 segundos o mundo inteiro já sabe. Vou ver se tem mais uma aqui.

- O Rui desligou na minha cara.

- Por quê?

- Porque disse que tava num gancho de uma piada

- Aonde?

- Ai, gancho. Aquele pedaço da piada que puxa final engraçado.


Na cena, Rui introduz um objeto-de-discurso – “num gancho de uma piada” – cujo significado Vani não compreende. Rui faz uma categorização cuja compreensão depende de experiências prévias e subjetivas (rotinas) com o “contar piada”. Trata-se de um conhecimento bem específico que Rui detinha e que não fazia parte do background de Vani. Rui poderia selecionar outra forma de categorização mais compreensível, por exemplo, “clímax da piada (?)”; mas decidiu por enunciar a definição do referente “num gancho de uma piada”. A construção dos objetos-de-discurso é sempre cooperativa. No diálogo subsequente de Vani com uma amiga, Vani também se vê em face da necessidade de definir o objeto-de-discurso “num gancho de uma piada”, quando sua amiga lhe evidencia não ter entendido o seu significado.
Nas duas reconstruções de uma situação de fala, tanto o referente “água” quanto o referente “num gancho de uma piada” não devem ser vistos como objetos do mundo exterior, mas como objetos do mundo discursivo, objetos que se constroem discursivamente; que existem, se mantêm, se modificam no discurso.
Segundo as autoras, a construção da sintaxe do discurso na modalidade oral é marcada por hesitações, interrupções da linearidade sintagmática, mudanças e rupturas do tratamento sintático em tempo real. Esses fenômenos indicam que o locutor está operando processos de planificação de escolhas paradigmáticas ou de buscas lexicais.


“(...) hesitando sobre um lexema, o locutor ativa e produz uma lista de lexemas, que podem estar ligados por uma relação de coordenação adicional ou podem constituir uma série de candidatos mutuamente exclusivos, um estando mais apropriado que outro (...) (p. 29)”.


É ponto pacífico a ideia de que a língua funciona pela intersecção entre os planos paradigmático e sintagmático. Ao usar a língua, o falante, de modo quase inconsciente, opera escolhas paradigmáticas e as realiza sintagmaticamente à medida que vai produzindo seus textos. Nesse processo de seleção-produção, sucedem, com frequência, hesitações, lapsos, correções, ajustes, sempre tendo em vista a satisfação das necessidades sociocomunicativas. Ora, quem fala ou escreve quer fazer-se entender e, no momento mesmo em que vai construindo seu texto, vai fazendo escolhas que mais adequadamente servirão para realizar seus objetivos. Esse processo não se dá sem algum custo linguístico-cognitivo e pragmático. Sucede, com frequência, que o falante hesite entre uma forma e outra, que faça ajustes on line em seu texto, que o interrompa num certo ponto para fornecer esclarecimento sobre passagens anteriores, etc.
A fim de ilustrar o fato de que as categorizações são processos discursivos e supõe sempre negociação de objetos-de-discurso, considerem-se o diálogo abaixo:

A – Paulo, aquele seu colega simpático, te ligou.
B – Colega, não. Paulo é meu amigo.

Considerando-se a contribuição do falante A, notemos que ele introduz um objeto-de-discurso que, sintaticamente, constitui uma construção encabeçada por um pronome demonstrativo recognitivo ou dêitico memorial. Isso quer dizer que sua interpretação referencial pressupõe o acesso a um tipo de conhecimento experiencial e socialmente compartilhado. O falante A pressupõe que o referente possa ser recuperado pelo interlocutor B em sua memória de longo prazo. Ambos compartilham o conhecimento sobre a identidade desse referente “Paulo”. Uma vez recuperado pelo interlocutor B em sua memória, o referente fica ativo. Isso permite que ele o recategorize como “meu amigo”. Chamo atenção para o fenômeno da negociação que está na base do processo de referenciação; certamente e por extensão, do uso da linguagem. No turno de A, o referente “Paulo” é categorizado como “colega (simpático)”; mas o falante B, não aceitando a categorização feita, recategoriza o referente como “meu amigo”. Ele o faz com base em representações coletivas correntes em sua sociedade, representações que orientam o uso que fazemos das palavras e se fazem sentir na dinâmica da negociação dos significados. O falante B sabe que, em sua sociedade, chamar alguém de colega é diferente de chamá-lo de amigo. Colega carece dos traços ‘intimidade’ e ‘familiaridade’ que caracterizam o significado de “amigo” (sendo essa caracterização determinada culturalmente). É por isso que é errôneo dizer que “colega” e “amigo” são sinônimos. O uso fixa-lhes domínios de significação diferentes. Usamos o termo “colega” para nos referir a uma pessoa que trabalha conosco, com quem mantemos uma relação estritamente profissional e cordial, mas que não chega a constituir um laço de afetividade. O colega, ao contrário do amigo, não tem (muito) acesso à esfera de nossa vida privada. A canção diz que “amigo é coisa pra se guardar no lado esquerdo do peito”; o amigo é aquele a quem estimamos, a quem temos em grande consideração.
É necessário, pois, esclarecer o que são objetos-de-discurso. Os objetos-de-discurso são as entidades que se constituem em termos das predicações (Neves, 2006). Trata-se de entidades provenientes de uma construção mental, e não de um mundo real independente do discurso. Os objetos-de-discurso, consoante ensinam Mondada & Dubois, se constroem passo a passo. Eles não estão disponíveis como categoria única e pronta para ser empregada, o que significa dizer que, no processo discursivo, eles vão adquirindo propriedades em diferentes etapas de seu uso. Uma vez admitindo-se que os objetos-de-discurso estão submetidos a um processo de construção, de reconstrução, de modificação, de extensão contínuo, a referenciação, para ser adequada, precisa assumir a forma de um processo de construção de um caminho em que diferentes denominações aproximadas se vão ligando umas as outras, sem que nenhuma delas se exclua a cada escolha feita (Mondada & Dubois, p. 30).
A referenciação não deve, pois, ser vista como um processo de cartografia entre palavras, que são tomadas como etiquetas, e entidades “reais” do mundo; ela é um processo que permite explorar as restrições e as potencialidades linguísticas para desenhar uma representação cognitiva socialmente compartilhada da realidade. Por conseguinte, segundo as autoras,

“Os locutores marcam, eles mesmos, os deslizes entre referencialidade e negociação intersubjetiva dos processos de referenciação, pelos comentários metalinguísticos que pontuam seu discurso, reconhecendo, por exemplo, os conflitos entre várias descrições autorizadas pelos diferentes locutores (p.32)”.


Quando nos detemos a investigar o funcionamento da referenciação, se nossa preocupação é buscar entendê-la como fenômeno discursivo responsável pela construção e negociação de modelos públicos do mundo, segue-se que devemos considerar que ela se desenvolve na base de um conflito entre diferentes convenções e diferentes interpretações. Nesse processo, necessariamente conflitual, uma categoria lexical impõe um ponto de vista, um domínio semântico de referência (como vimos nos exemplos anteriores de Os normais e do diálogo referente a “Paulo”), que concorre com outras categorias sugeridas e produz sentido a partir do contraste com as precedentes.
Mondada & Dubois são categóricas ao sustentar que o discurso aponta explicitamente para a não-correspondência entre as palavras e as coisas. A referenciação emerge da manifestação desta distância, da demonstração da inadequação das categorias lexicais disponíveis, de sorte que a melhor adequação vai sendo construída mediante sua transformação discursiva. Nesse trecho que acabo de encerrar com um “ponto”, dou-me conta – e espero que o leitor também seja capaz disto – dessa busca pela melhor adequação das categorizações construídas. Dou-me conta, enfim, da dinâmica da referenciação. Notemos que escrevi, anteriormente, “emerge da manifestação desta distância, da demonstração da inadequação...”. Num primeiro momento, usei “manifestação desta distância”; posteriormente, sempre tendo em vista uma categorização mais precisa e adequada, usei “demonstração da inadequação das categorias lexicais”. A cada lance de linguagem, o objeto-de-discurso se modificou, sem que as cadeias referenciais tenham sido rompidas. No primeiro momento, “manifestação desta distância” refere-se ao aparecimento da distância entre as palavras e as coisas; no segundo momento, trata-se de fazer ver a referenciação como fenômeno que surge do fato de que a inadequação das categorias lexicais na tentativa de construir um modelo de mundo o mais fiel e adequado possível ao contexto construído é inerente ao processo de referenciação.
As tentativas de adequação das categorias lexicais, ou seja, as tentativas de ajustamento das palavras não se dão em relação ao referente no mundo, mas no quadro contextual, tendo em vista a construção do objeto-de-discurso no curso do próprio processo de referenciação.
Segue-se então a proposta de Mondada & Dubois:

“Não se pode mais, a partir de agora, considerar nem que a palavra ou a categoria adequada é decidida a priori “no mundo”, anteriormente a sua enunciação, nem que o locutor é um locutor ideal que está simplesmente tentando buscar a palavra adequada dentro de um estoque lexical. Ao contrário, o processo de produção das sequências de descritores em tempo real ajusta constantemente as seleções lexicais a um mundo contínuo, que não preexiste como tal, mas cujos objetos emergem enquanto entidades discretas ao longo do tempo da enunciação em que fazem a referência. O ato da enunciação representa o contexto e as versões intersubjetivas do mundo adequadas a este contexto” (p. 34, grifo meu).


Mesmo a atividade cognitiva individual, no nível psicológico, não verbalizada, segundo as autoras, é uma atividade constante de categorização e não uma simples identificação de objetos preexistentes. A categorização cognitiva tem seu locus de desenvolvimento no discurso; por conseguinte, ela depende de um tratamento não-exaustivo e sempre seletivo do mundo – tratamento cujas finalidades são transformadas (ib.id.).
Quando consideramos a categorização do mundo, em seu nível elementar, os objetos não são determinados segundo as propriedades intrínsecas do mundo, mas são construídos por meio de processos cognitivos que se dão nas trocas entre sujeitos. Esses processos cognitivos se aplicam ao mundo concebido como fluxo contínuo de estímulos. Assim, o reconhecimento do objeto, mesmo à luz de sua compreensão elementar, não pode ser considerado como resultado da apreensão de propriedades de um mundo já discretizado, mas como resultado da construção de categorias flexíveis e instáveis, que se realiza por meio de processos de categorização responsáveis por produzir categorias potencialmente memorizadas e lexicalizadas (Mondada & Dubois, p. 35).
As instabilidades da referenciação não são, portanto, acidentais, tampouco expressão de simples variações individuais que poderiam ser corrigidas e estabilizadas por uma aprendizagem convencional de “valores de verdade”. Essas instabilidades são inerentes à dimensão constitutivamente intersubjetva das atividades cognitivas.
Reforcem-se, então, alguns pontos:

a) A referenciação é um processo de construção colaborativa de objetos de discurso (Mondada& Dubois, p. 35);

b) Os objetos-de-discurso existem discursivamente, emergem de práticas linguísticas e intersubjetivas. Eles se enriquecem, são alimentados e construídos cooperativamente pelos locutores;

c) Os objetos-de-discurso são sensíveis à variação contextual (p.37).

Na conversação, a vagueza referencial é um fenômeno bastante comum, conforme pontuam as autoras.

“(...) a indicialidade da linguagem e do discurso quebra a ilusão de dar uma descrição única e estável do mundo e sublinha sua necessária dependência contextual. No lugar de ser atribuível a uma falta de eficácia do sistema linguístico e cognitivo, esta dimensão manifesta sua capacidade de tratar a variabilidade das situações através de uma categorização adaptativa (p.40)”.


Acrescente-se ainda que as descrições são impregnadas de incompletude, fato este que explica ser sua produção extremamente dependente do trabalho de interpretação, mediante o qual o locutor as completa e as ajusta ao contexto. As categorias são flexíveis e, portanto, sempre passíveis de modificações.
Não se trata de dizer que as descrições são caóticas, porquanto os sujeitos são dotados de estruturas cognitivas que lhes permitem dar ordem e estabilidade ao mundo; elas não são caóticas também porque os sujeitos dispõem de procedimentos sistemáticos para organizar a co-construção dos objetos-de-discurso (ib.id.).
Assumir a instabilidade das categorias significa reconhecer que elas repousam
 “sobre processos complexos, que operam a um nível psicológico, discursivo, linguístico, advindas de competências sociais, de pontos de vista, de atividades situadas e de práticas intersubjetivas e não de propriedades incertas do mundo” (p.41).



O reconhecimento da instabilidade das categorias suprime a possibilidade de estabilização delas? Segundo Mondada & Dubois, não, a estabilização é possível, especialmente quando consideramos o papel da escrita e revisitamos a noção de protótipos.



3.1. A estabilização das categorias: a noção de protótipos e o papel da escrita


Os protótipos são construções dinâmicas que resultam de julgamentos sobre o grau de prototipicidade (Rosch, 1978). No quadro da teoria das categorias como protótipos, o sistema cognitivo é visto como constructos de invariantes psicológicas, as quais estabilizariam as interpretações que o homem faz do mundo. Essas invariantes seriam os próprios protótipos.
E o que são os protótipos? São os membros da categoria que mais refletem a totalidade da categoria. São os membros que representam os tipos por excelência da categoria. Assim, os protótipos seriam aquilo que se abstrai das construções psicológicas e individuais. Por exemplo, para a categoria [AVE], “canário” é o membro prototípico num continuum em que “galinha” é o menos prototípico. Grosso modo, quer-se dizer que quando pensamos em [AVE] pensamos em “canário” como o exemplo mais típico dessa categoria do que “galinha”. Num enunciado como “A ave pousou na janela”, para efeito de encadeamento, o candidato esperado é “canário” e não “galinha”. Rosch nota que a lexicalização contribui para a estabilização posterior do protótipo.

3.1.2. A visão de Rosch e a crítica de Mondada & Dubois

Cuido necessário dar a conhecer, sem pretender à exaustão, a visão de Rosch sobre o processo de categorização. Posteriormente, explicito a crítica feita por Mondada & Dubois à posição de Rosch.
Segundo Rosch, os nomes, tomados como rótulos, são protótipos e contribuem para a estabilização dos protótipos no curso de diferentes processos. Em primeiro lugar, os protótipos correspondem às unidades discretas da língua, as quais tornam possível descontextualizá-las de acordo com os paradigmas disponíveis na língua. Essas unidades garantem a invariância dos paradigmas em diferentes contextos. O que se dá, em seguida, é que, ao receber um nome, o protótipo, passa a ser compartilhado por muitos indivíduos nas interações linguísticas, o que lhe garante o estatuto de objeto socialmente distribuído, estabilizado no interior de um grupo social. Esse protótipo atinge um grau de desenvolvimento de estabilização, tornando-se, assim, uma representação coletiva chamada estereótipo.
Mondada & Dubois argumentam que a análise de Rosch se assenta numa concepção reducionista de língua como uma nomenclatura, e a denominação se reduz a uma mera cartografia direta dos nomes, tomados como rótulos para as coisas (mesmo quando elas assumem o estatuto de entidades mentais por meio de protótipos).
Além disso, se é verdade que são produtivos os processos de transformação de protótipos para estereótipos, segundo reza Rosch, segue-se daí a necessidade de levar em conta a passagem de um nível estritamente subjetivo para um nível intersubjetivo. Mondada & Dubois ponderam o seguinte:

“Numerosos linguistas já observaram que as unidades lexicais estabilizam convencionalmente os significados das palavras numa comunidade linguística (...)” (p. 43).


À luz do quadro teórico da Linguística Cognitiva contemporânea,

“a evolução dos protótipos e das significações das palavras para estereótipos não se baseia mais em propriedades realistas ou de valores de verdade, mas na codificação social dos modos de falar e de representar o mundo (...)” (ib.id.).

De acordo com essa perspectiva, a anáfora passa a ser vista como um fenômeno de referentes evolutivos. A anáfora consiste no modo de estabilizar ou de focalizar uma denominação particular, excluindo outras possibilidades, ainda que elas estejam potencialmente disponíveis no texto.
No que toca à função de estabilização categorial da escrita, nota Gody (1997, apud. Mondada & Dubois, 2003), a escrita “domestica o espírito”, muda radicalmente os modos pelos quais é possível compreender e pensar o mundo.
A escrita permite dispor e fixar, no domínio das relações espaciais, o fluxo temporal das palavras do discurso oral. Ademais, a escrita permite novas formas de cálculo. Ela permite também estocar, memorizar, reencontrar os dados a serem manipulados cognitivamente e organizá-los numa estrutura sinóptica.

3.2. Visão sinótica

1) Os processos de referenciação, contemplados numa abordagem sociocognitivo-interacionista, são processos de construção de objetos-de-discurso e de negociação de modelos públicos de mundo;

2) A referenciação é produzida por sistemas cognitivos de sujeitos social e culturalmente situados, que atuam em cooperação, em práticas discursivas nas quais se produzem versões públicas do mundo;

3) As categorias e os objetos-de-discurso através dos quais os sujeitos sociais compreendem o mundo não são nem preexistentes às atividades discursivas em que eles estão engajados, nem são dados, mas se elaboram no curso dessas atividades e se transformam de acordo com os contextos. Subjacente a essa perspectiva, está a tese de que as categorias e os objetos-de-discurso são marcados por uma instabilidade constitutiva, que se deixa ver através de operações cognitivas ancoradas nas práticas, discursivas ou não, verbais ou não-verbais e nas negociações desenvolvidas no âmbito da interação.



4. Duas línguas e duas visões de mundo

No seu A língua do Brasil amanhã e outros mistérios (2004), o linguista Mário A. Perini também se ocupará da desconstrução do que considera nossa “teoria ingênua” da relação entre a língua e a realidade. Nas palavras do linguista,

“A ideia de que a diferença entre as línguas se resume em maneiras distintas de se referir aos objetos do mundo natural pode ser chamada a “teoria ingênua” da relação entre língua e realidade. E, como a maior parte das teorias ingênuas, é ao mesmo tempo simples, evidente e incorreta (p. 43)”.


Segundo Perini, “cada língua é expressão de uma concepção de mundo (...) cada língua reflete uma maneira própria de categorizar as entidades que compõem o mundo” (ib.id.). Vejamos alguns exemplos.
Em inglês, o limão amarelo se diz lemon, e o limão verde se diz lime. É claro que nós, falantes nativos de português, percebemos a diferença cromática entre os limões, mas essa diferença é codificada de modo diferente em português. No inglês, a codificação é lexical, de modo que se categorizam duas entidades distintas. Em português, a codificação se faz no nível da construção sintática, em que se atualiza uma estrutura de modificação com a adjunção do adjetivo ao substantivo núcleo (SUBST. + ADJ.) Em inglês, a codificação se realiza por designação; em português, por modificação, isto é, a um substantivo é acrescido um adjetivo que o caracteriza. Para nós, o limão verde e o limão amarelo é a mesma fruta; para os falantes de inglês, são frutas distintas.
Considere-se o arco-íris. Para nós, o arco-íris se divide em seis cores: roxo, azul, verde, laranja, amarelo e vermelho. Há, no português, recursos para expressar uma gama variada de cores e matizes. Por exemplo, azul-marinho, azul-claro, azul-escuro. Mas, nesse caso, expressa-se uma tonalidade da cor azul, que é a cor primária, para nós.
Somos levados espontaneamente a crer em que aquelas seis cores são dadas pela natureza; afinal, nós as percebemos, e a língua portuguesa nada tem a ver com isso. No entanto, adverte Perini,

“Ledo engano: as línguas segmentam o espectro solar cada uma à sua maneira, e seus falantes juram que essa é que é a segmentação certa” (p.43).


Ocorre que, em russo, o azul se divide em duas cores básicas: sinny designa azul-escuro; e goluboy, azul-claro. Para os russos, portanto, o espectro solar tem sete cores, e não seis. Novamente, tanto os russos como nós percebemos claramente a diferença entre azul-claro e azul-escuro; mas categorizamos linguisticamente essa diferença segundo os padrões determinados em nossa língua: os russos categorizam duas cores; nós, apenas uma.
A sintaxe também fornece exemplos interessantes. Os tempos do passado em português e em inglês não se correspondem. Assim, se quisermos traduzir para o inglês “eu trabalhava”, teremos de usar “I worked”. Acontece que “I worked” também traduz “eu trabalhei”. Como o inglês não contempla a distinção que o português faz ‘trabalhei/trabalhava’, falantes nativos de inglês que estão começando a aprender a falar português lidam com dificuldades inevitáveis (embora não insolúveis).
No inglês, a forma “I have worked” pode ser traduzida para o português como “Eu trabalhei”. Assim, “I have worked in this school” se traduz como “Eu trabalhei nesta escola”. O português não autoriza, em muitos casos, o emprego do pretérito perfeito composto (PPC) desacompanhado de um adverbial aspectual de duração. Uma frase como “Eu tenho fumado dois cigarros” não é aceitável em português, já que lhe falta um adverbial de duração ou de iteração (cf. Eu tenho fumado dois cigarros por dia (iteração)). Uma frase como “I have travelled to London tree times” é traduzida em português como “Eu viajei para Londres três vezes”. A forma “*Eu tenho viajado para Londres três vezes” não é aceitável em português. Nesse caso, o adverbial expressa quantidade definida, condição esta incompatível com o uso do PPC.
Todos esses exemplos patenteiam que a língua está estritamente relacionada a uma maneira de ver o mundo. Segundo Perini, “cada língua ilustra uma das infinitas maneiras que o homem pode encontrar de entender a realidade” (p.52). Cada língua natural “recorta” o real de modo diferente e específico. Com Perini, devemos reconhecer que

“Falar uma língua é ver o mundo de certa maneira, e falar três línguas é, até certo ponto, ter a capacidade de ver o mundo de três maneiras diferentes” (ib.id.).


A hipótese de Sapir-Whorf ficou conhecida por suas duas versões: uma mais forte que não resistiu a experimentos ulteriores, sendo, portanto, rejeitada; e outra mais fraca, ainda válida. A versão mais forte da teoria sustenta que a linguagem determina o pensamento, de modo que só podemos ver, ouvir e experimentar com base nas categorias e distinções codificadas na linguagem. Essa é a tese do determinismo linguístico prevista pela hipótese. A outra tese é a do relativismo linguístico, segundo a qual as categorias e distinções codificadas num sistema linguístico são exclusivos desse sistema e incomparáveis aos de outros sistemas linguísticos.
A versão mais fraca da hipótese prevê que a estrutura da língua de uma comunidade influencia a percepção e a memória. Em Linguagem e Linguística (1987), John Lyons dá-nos a saber o seguinte caso:

“(...) falantes monolíngues de zuni, uma língua indígena americana, que não codifica a diferença entre laranja e amarelo, tinham mais dificuldade do que falantes monolíngues de inglês ou do que falantes de zuni que também sabiam inglês de tornar a identificar, depois de certo tempo, objetos de uma cor que era imediatamente codificável em inglês, mas não em zuni. Entretanto, o efeito não era tal que os falantes de zuni fossem incapazes de perceber a diferença entre um objeto amarelo e um objeto laranja, se se pedisse que os comparassem” (p. 227).




5. A perspectiva sociocognitivo-interacionista: apresentação de conceitos


Após esta longa discussão, ao longo da qual foram lançados os alicerces para um trabalho com a leitura que, tomado como escopo de preocupação o fenômeno da referenciação, rejeite, desde o início, a concepção ingênua e largamente endossada, quer pelos não-especialistas, quer por professores de português atuantes no ensino básico, segundo a qual os textos que produzimos e que lemos fornecem um retrato do mundo, permitem-nos o acesso a um mundo real ou objetivo, concepção esta a que se atrela a crença de que há textos objetivos que tornam acessível uma verdade objetiva, passo, agora, a apresentar, a dilucidar e a sistematizar os pressupostos e conceitos que me parecem relevantes para a fomentação de um ensino de leitura que tenha em mira, fundamentalmente, a emancipação intelectual e humana dos aprendizes.
Considerem-se, inicialmente, alguns pressupostos, que serão apresentados, à luz da visão sociocognitivo-interacionista da linguagem. Os processos cognitivos baseiam-se na percepção e na capacidade de atuação física no mundo. Mente e corpo não são duas substâncias estanques, por isso a mente é um fenômeno corporificado (poderíamos dizer, que a mente é o que o cérebro faz), e os aspectos motores e perceptuais, bem como as formas de raciocínio abstrato são todos de natureza semelhante e profundamente interrelacionados.
Tendo em vista o exposto, nossa cognição resulta de nossas ações e de nossas capacidades sensório-motoras. Os conceitos emergem e se desenvolvem nas atividades nas quais os organismos estão engajados. Essa é a forma pela qual eles atribuem sentido ao mundo. As operações cognitivas não se dão apenas no interior do cérebro dos indivíduos, mas resultam da interação de várias ações conjuntas por eles realizadas.
De acordo com essa visão, a língua é uma atividade intersubjetiva, é uma forma de ação conjunta. Seguimos, de perto, Koch (2004), ao sugerir que

“(...) as ações verbais são ações conjuntas, já que usar a linguagem é sempre engajar-se em alguma ação em que ela é o próprio lugar onde a ação acontece necessariamente em coordenação com os outros (...) Essas ações se desenrolam em contextos sociais, com finalidades sociais e com papeis distribuídos socialmente” (pp. 31-32).


Por cognição, entendemos, com Koch, um conjunto de várias formas de conhecimento que, não se reduzido ao domínio da linguagem, é, no entanto, de sua responsabilidade. Nesse sentido, faz-se mister admitir que

“(...) não há possibilidade integrais de pensamento ou domínios cognitivos fora da linguagem, nem possibilidades de linguagem fora de processos interativos humanos. A linguagem é tida como o princípio mediador da interação entre as referências do mundo biológico e as referências do mundo sociocultural” (p.32).


Textos definem-se como entidades multifacetadas resultantes de um processo extremamente complexo de interação social e construção social de sujeitos, conhecimento e sentidos. O texto é o lugar de interação entre atores sociais e de construção interacional de sentidos (p. XII).
Também assumo o postulado segundo o qual a interação social pelo uso da língua se caracteriza, essencialmente, pela argumentatividade.



5.1. Contextos

Contextos são constructos subjetivos e socialmente fundados, e elaborados pelos interactantes e dizem respeito às propriedades da situação que eles supõem sejam relevantes. A noção de contexto esposada se assenta numa interface mental entre o discurso e situações sociais. Segundo Dijk (2012),

“Os usuários da língua, além de atuar com sequências de proposições, precisam também ter alguma representação analógica da realidade para derivar inferências aceitáveis da realidade” (p. 90).


Contextos são modelos mentais, e os modelos mentais são representações cognitivas de nossas experiências. Adotaremos o conceito de contextos sociocognitivos (Djik, 2012). Contextos sociocognitivos compreendem todos os tipos de conhecimentos armazenados na memória dos interactantes e que são mobilizados por ocasião da interação social. Tais conhecimentos são elencados abaixo:

- conhecimento linguístico;
- conhecimento enciclopédico ou de mundo;
- conhecimento de situação;
- conhecimento superestrutural;
- conhecimento sobre gêneros textuais;
- conhecimento estilístico;
- conhecimento intertextual.



5.1.2. Modelos de contexto

Os contextos são um tipo de modelo mental da experiência cotidiana. Todos os eventos comunicativos e as interações verbais são formas de experiência cotidianas. Também nós os experienciamos, construímos, definimos ou interpretamos no momento em que deles participamos.
Os modelos de contexto representam a interação verbal; eles organizam os modos como nosso discurso é estruturado e adaptado estrategicamente à situação comunicativa global (Djik, 2012, p.107). Os modelos de contexto constituem a interface entre a sociedade, a situação e o discurso.



5.2. Referenciação

A referenciação – cumpre reiterar – constitui uma atividade discursiva mediante a qual se constrói toda uma rede de objetos-de-discurso, o que significa dizer se constrói cognitivamente a realidade com a qual interagimos.
Temos insistido que a realidade é construída, ao que devemos acrescentar é mantida e alterada não somente pela forma como nomeamos o mundo, mas também, mormente, pela forma como interagimos com ele sociocognitivamente. Nós construímos e interpretamos nossos mundos na interação com o entorno físico, social e cultural (Koch, 2006, p. 79). A discursivização ou textualização do mundo, que se realiza pelo uso da língua, não deve ser vista como elaboração de informações, mas sim como (re)construção do próprio real. Assim, segundo Koch (2006, p.81),

“(...) Ao usar e manipular uma forma simbólica, usamos e manipulamos tanto o conteúdo como a estrutura dessa forma. E, deste modo, também manipulamos a estrutura da realidade de maneira significativa”.


É importante notar que, uma vez admitida a referenciação como um processo de construção de objetos-de-discurso, a interpretação da expressão anafórica, seja nominal, seja pronominal, deixa de ser uma busca por localizar um segmento linguístico ou um objeto específico no mundo, para tornar-se o estabelecimento de uma ligação com algum tipo de informação que se encontra no modelo textual. O modelo textual é a representação construída a partir do texto (ou discurso), que opera como uma memória compartilhada, “publicamente” alimentada pelo próprio texto. É uma espécie de representação mental do texto, que se define pela estruturação de conceitos e proposições. Quando ouvimos ou lemos um texto, construímos em nossa memória episódica, uma representação textual que compreende conceitos e proposições. Além disso, a essa representação mental do texto liga-se a construção de um modelo episódico ou de situação que o próprio texto reconstrói. O leitor ativa, em sua memória, modelos de situação similares, os quais registram cognitivamente suas experiências, mediatas ou imediatas. Esses modelos encerram acontecimentos, ações, pessoas, enfim, todos os elementos da situação representados no texto. Por modelo, devemos entender estruturas complexas de conhecimentos que representam nossas experiências em sociedade e que servem de base aos processos conceituais.
Os objetos-de-discurso são dinâmicos. Uma vez introduzidos, podem ser modificados, desativados, reativados, construindo-se ou reconstruindo-se, assim, o sentido no curso da progressão textual.
Modelos sociocognitivos são formas de representação dos conhecimentos na memória pelos sujeitos sociais, em consonância com suas práticas culturais, suas atitudes com relação a essas práticas e aos atores sociais, variáveis espácio-temporais.
Inferenciação é uma atividade linguístico-cognitiva pela qual o interlocutor ou leitor, atendo-se à informação explícita no texto, levando em conta o contexto sociocognitivo, constrói novas representações mentais ou estabelece uma relação entre segmentos textuais ou entre informação explícita e informação implícita (Koch, 2006).
O fenômeno de referenciação é visto como coesão referencial. Por coesão referencial, entende-se o fenômeno semântico-discursivo pelo qual um elemento presente na superfície do texto faz remissão a outros elementos nela presentes ou acessíveis no modelo textual (memória textual) construído pelo leitor por ocasião da leitura. Seguem-se os exemplos abaixo:
(3) O homem não sabia ler, por isso ele não soube dar a resposta.
(4) Pedro adorava jogar futebol. O menino sonhava em ser jogador.

Tradicionalmente, (3) e (4) ilustram um caso de remissão anafórica, visto que as formas remissivas “ele” e “o menino” devem ser interpretadas em dependência aos referentes, anteriormente introduzidos, “o homem” e “Pedro”, respectivamente. Tendo em conta a noção de anáfora, adotada aqui, a relação anafórica em (3) e (4) deve ser explicada pelo recurso ao modelo textual. Uma vez introduzido, o referente fica ativo na memória do leitor. Uma relação anafórica é bem-sucedida quando o leitor é capaz de estabelecer uma relação entre um elemento da superfície textual e o referente inscrito em sua memória ou modelo textual. Assim, em (3), o pronome “ele” refere-se a um elemento que já se encontra ativo na memória de curto termo do leitor, ou seja, é acessível no modelo textual construído. O leitor estabelece assim uma relação linguístico-cognitiva entre “ele” e “o homem”, ou seja, a interpretação de “ele” é dependente da acessabilidade no modelo textual do referente “o homem”, que constitui informação dada.



5.2.1. Princípios operacionais da referenciação

Os princípios operacionais da referenciação devem ser contemplados tendo em conta a relação entre leitor e texto. São três os princípios pelos quais a referenciação é operada: ativação, reativação e desativação.
Na ativação, um referente até então não mencionado é introduzido no fluxo textual, de modo que passa a ter um endereço cognitivo na rede de conceitos do mundo textual construído pelo leitor no momento da leitura. Na reativação, um nódulo já introduzido é reativado e novamente ativado na memória de curto termo do leitor, por meio de uma forma referencial, permanecendo no foco de sua consciência.
Na desativação, outro nódulo é introduzido, deslocando a atenção do leitor daquele que estava no foco de sua consciência anteriormente. Seu estatuto textual é de inferível.
È preciso reconhecer, portanto, que, durante a leitura, os estados dos referentes se modificam na consciência do leitor. Assim é que um referente se diz ativo, quando está no foco da consciência do falante/leitor. O locutor pressupõe que este referente está ativo na consciência do seu interlocutor. O estatuto desse referente é o de informação dada. Dado o enunciado “O Flamengo continua na zona do rebaixamento. O time da gávea joga amanhã contra o Palmeiras”, o referente “O Flamengo”, uma vez introduzido, mantém-se ativo na consciência do interlocutor/leitor e é, assim, recuperado pela forma referencial “O time da gávea”.
Um referente é semiativo, quando está na periferia do foco da consciência do falante, em seu conhecimento prévio. Se um conceito ativo sai do foco da consciência, ele vai imediatamente para um estado inativo. O estatuto do referente semiativo é o de informação acessível. Se continuássemos o texto da seguinte maneira

(3) O Flamengo continua na zona do rebaixamento. O time da gávea joga amanhã contra o Palmeiras. O técnico Vanderlei Luxemburgo não poderá contar com o atacante Alecsandro, mas diz que o time está preparado.
O referente “O Flamengo”, depois de retomado por “o time da gávea”, sai do foco da consciência do leitor, já que outro referente vem ocupar essa posição, a saber, “O técnico Wanderlei Luxemburgo”, mas continua na periferia do foco, ou seja, continua semiativo e facilmente acessível. Assim, o leitor não tem dificuldade de ligar “o time”, em “o time está preparado” ao referente “o Flamengo”.
Um referente é inativo quando não se encontra no foco nem na periferia da consciência, mas está arquivado na memória de longo prazo do falante/leitor. Não está focalizado imediatamente, nem semiativo, por ter sido mencionado anteriormente. Seu estatuto é de informação nova. Assim, por exemplo, o referente “as condições do discurso”, que procurei elucidar no início deste texto é um referente, a esta altura, inativo, embora possa ser inferível. Se eu o reintroduzo nesse momento do texto, esse referente será novamente ativado na consciência do leitor. É o que está acontecendo agora.



5.2.2. Predicação e referenciação

A construção de todo enunciado está baseada em dos mecanismos: a predicação e a referenciação.
Por meio da predicação termos, que designam entidades, são associados a um predicador, que designa propriedades ou relações. A predicação é o resultado da atribuição de um certo número de termos a um predicador. O predicador é o responsável por determinar a estrutura da predicação, ou seja, a estrutura relacional. A função de predicador é desempenhada pelo verbo. O verbo é o predicador, por excelência.
Por meio da referenciação, os termos da predicação passam a orientar o falante para as entidades envolvidas na predicação. Essas entidades são constructos mentais. A referenciação é uma ação cooperativa pela qual os falantes, referindo-se a essas entidades por meio de termos, introduzem objetos-de-discurso para ir construindo redes referenciais que contribuirão para compor a tessitura textual.
A predicação designa um estado-de-coisas. O estado-de-coisas é uma codificação linguístico-cognitiva que o falante faz da situação. O estado-de-coisas “encena”, no enunciado, um evento ou uma experiência de um “mundo”, no qual se distinguem as entidades envolvidas como participantes da situação. O termo situação está sendo usado aqui num sentido geral para designar ação, evento, estado ou processo.
Como eu já me ocupei da referenciação, gostaria de explicar, portanto, o conceito de predicação que, como se verá, é também uma atividade básica na construção do mundo discursivo. Disse, anteriormente, que o verbo é o predicador, por excelência, e isso é verdade; mas há predicadores não-verbais, que não me interessarão aqui. Os verbos predicadores são os verbos plenos, ou seja, verbos cujo significado descreve, por si mesmo, ações, eventos, processos e estados e, sobretudo, determina uma estrutura predicativa. Verbos plenos são dotados de significado lexical, significado este que é ele mesmo um “recorte” de um tipo de experiência do mundo biopsicossocial. Nesse sentido, o verbo “cantar” é um verbo pleno, ao passo que o verbo “estar” não é um verbo pleno. Não se segue daí que seja um verbo “esvaziado” semanticamente, mas apenas um verbo que, não comportando um significado descritivo, ou seja, um significado diz respeito a dados do universo de nossas experiências biopsicossociais, não é capaz de estabelecer uma estrutura de predicação. O significado de “estar” (e correlatos) está em dependência do contexto sintático em que ocorre; é um significado construído na relação com os termos com os quais se articula na cadeia sintagmática. Por isso, “estar com dor de cabeça” não significa o mesmo que “estar em Florianópolis”, ou seja, o significado da oração com “estar” varia segundo o tipo de constituinte (predicador) que se pospõe a esse verbo. Em minha tese de doutorado, empreendi uma investigação exaustiva dos usos de “estar” (e também do verbo “ser”).
A predicação se estrutura em dois domínios: um formal (ou sintático) e outro semântico. O domínio formal ou sintático é o do estabelecimento pelo predicador da estrutura relacional. Nesse domínio, o predicador abre espaços vazios ao seu redor, que devem ser preenchidos por seus argumentos. O domínio semântico é o da determinação pelo predicador das propriedades semânticas que devem comportar seus argumentos. Essas propriedades são seus traços sêmicos (mínimas unidades que compõem o significado da palavra) e seus papéis semânticos (que decorrem da interpretação que os falantes fazem relativamente ao modo como as entidades estão envolvidas na situação descrita no estado-de-coisas). É preciso, no entanto, entender que os dois domínios foram separados aqui por razões didáticas; eles são, na realidade, indissociáveis; e o domínio semântico é o domínio-base, já que é a semântica do verbo que prevê o número de espaços vazios a serem preenchidos pelos argumentos do verbo. O argumento corresponde a cada constituinte que entra a fazer parte da estrutura relacional determinada pelo predicador. Vejamos dois exemplos, que nos ajudarão a compreender o fenômeno da predicação:

     (4) Pedro        deu      a caneta     ao irmão.
     argumento 1   predicador  argumento 2  argumento 3

(5)  A escuridão    amedrontava     o menino.
     argumento 1    predicador      argumento 2


Adotemos as variáveis X, Y e Z para representar cada uma das entidades que devem ocupar os espaços vazios em torno do verbo. Assim, em (4), temos X dar Y  a Z; em (5), temos X amedrontar Y. Devemos, pois, representar a estrutura relacional, no domínio formal, da seguinte maneira:

(4a)   X       DAR      Y     a Z

(5a)   X       AMEDRONTAR  Y


(4a) e (5a) determinam que, todas as vezes em que usamos os verbos “dar” e “amedrontar”, nossos enunciados, com estes verbos, preveem essa estrutura. Note-se que falo em “prever”, pois, no uso da língua, condições contextuais explicam a ausência de um ou outro argumento. Deve-se reter, não obstante, que o significado do verbo “dar” prevê uma estrutura relacional do tipo (4a); e o significado do verbo “amedrontar” prevê uma estrutura relacional do tipo (5a). Os espaços correspondentes a X, Y e Z devem ser preenchidos lexicalmente.
Sucede que “dar” descreve um estado-de-coisas de ‘ação’; e “amedrontar”, de ‘estado’. Assumindo-se os traços [dinamicidade], [duração] e [controle] para caracterizar os estado-de-coisas, diremos que as ações são um tipo de estado-de-coisas que comporta os traços [+ dinâmico], [- durativo] e [+ controle]. O traço [controle] se aplica à entidade que preenche a posição de sujeito e que pode ou não exercer controle sobre (ou ter responsabilidade direta por) o estado-de-coisas designado. Em (4), a entidade “Pedro” controla a ação, ou seja, é responsável pela ação. Os estados se caracterizam pelos traços [- dinâmico], [- durativo] e [+/- controle]. Em (5), o sujeito não exerce controle sobre o estado descrito. Os sinais (+) e (-) significam, respectivamente, ‘presença’ e ‘ausência’ do traço.
Como é o predicador o centro irradiador da estrutura semântico-sintática da oração, segue-se que é ele que determina essas propriedades do estado-de-coisas. Assim, o verbo “dar” prevê os traços [+ dinâmico], [+ controle] e [- durativo]. Preciso advertir que o traço [dinamicidade] não se confunde com o traço [duração]. A dinamicidade de um estado-de-coisas diz respeito à representação de uma ‘força’, de um ‘movimento’ nesse estado-de-coisas; a duração, por sua vez, descreve o prolongamento desse estado-de-coisa num espaço de tempo representado, construído no enunciado. Não se trata do ‘tempo real’, mas do tempo de referência (interno) construído no estado-de-coisas. Assim, se dizemos “Quando cheguei em casa, mamãe passava roupa”, devemos distinguir três variáveis de relação de tempo: o momento da enunciação (ME), que corresponde ao agora do falante; o momento que serve de ponto de referência do fato expresso pelo verbo (PR); e o intervalo de tempo, que é o segmento da linha do tempo em que se situa o fato designado pelo verbo (IT). Assim, o PR é passado em relação ao ME, ou seja, os dois fatos descritos aconteceram num tempo passado em relação ao momento da produção do enunciado; mas o IT é contemporâneo do PR, ou seja, a situação descrita na primeira oração encabeçada por “quando” é contemporânea da situação descrita na oração subsequente.
Retomando-se os exemplos (4) e (5), devemos atentar para o fato de que os verbos “dar” e “amedrontar”, na medida em que selecionam seus argumentos, determinam as propriedades semânticas que eles devem comportar. Assim, por exemplo, não poderíamos construir uma frase com o verbo “dar”, cujo sujeito fosse preenchido por um substantivo [- animado]. Uma frase como “A cenoura deu a caneta ao meu irmão” é, obviamente, absurda. Mas ela serve para mostrar um fato interessante: o verbo “dar” (decerto, todos os verbos predicadores) faz exigências quanto aos traços semânticos que devem comportar seus argumentos. Quando usado na acepção de ‘transferir algo da posse de X para a posse de Y’, o sujeito de “dar” deve, necessariamente, comportar o traço [+ animado] (na maioria das vezes, [+ humano], ainda que possamos admitir que cachorros possam “dar” a chave ao seu dono, quando treinados). O argumento 2, que representa a entidade a quem transferimos alguma coisa, também deve comportar o traço [+ animado] ou [+ humano]. Vamos ignorar, por ora, casos de metonímia, quando, por exemplo, dizemos “Dei tudo que tinha a instituições de caridade”. Ainda nesse caso, podemos argumentar que essas instituições são produtos de ações humanas, existem enquanto entidades construídas pelo homem e são pessoas que representam a instituição que recebe o donativo (são elas, em última instância, os destinatários).
O verbo “amedrontar” também faz exigências semânticas. Seu sujeito deve ser uma entidade [+ animada], visto que não é possível que uma coisa como “parede” experiencie medo. Creio que o leitor já deve ter entendido. O fenômeno da predicação nos evidencia como nós construímos na língua nossas experiências, as organizamos dando-lhes uma materialidade linguística. É graças ao mecanismo de predicação que nossas experiências de mundo são estruturadas e representadas nos enunciados que produzimos.
Gostaria, apenas, de acrescentar que as entidades que compõem a estrutura relacional de (4) e (5) desempenham papéis no estado-de-coisas representado. Em (4), o sujeito é o agente da ação; o argumento 2 (objeto direto, na tradição gramatical) é o objeto (aquilo que é transferido); e o argumento 3 representa o destinatário (a pessoa a quem se destina o objeto). Em (5), o sujeito, argumento 1, representa a causa (coisa ou evento que provoca uma experiência, torna real um acontecimento), e o complemento, argumento 2, representa o experienciador (é quem experiencia o sentimento de medo). Nesse caso, “a escuridão” não deve ser interpretado como [agente] porque lhe falta os traços característicos do papel de agente, a saber, [animação] e [intencionalidade]. Agentes são animados e têm a intenção de praticar alguma coisa, de realizá-la. Ademais, “amedrontar” não designa uma ação, mas um ‘estado’ que é provocado em alguém. É notável como essas questões de semântica estrutural suscitam, necessariamente, reflexões filosóficas e, certamente, questões que são da alçada das ciências cognitivas. Elas nos dizem algo sobre a estrutura da mente humana.


6. A relação autor-texto-leitor: tipos de conhecimentos e estratégias


Tudo que se procurou apresentar e desenvolver neste texto diz respeito às modalidades oral e escrita da língua. É claro, no entanto, que, como estejamos preocupados em propor um roteiro de trabalho que aproveite ao professor no ensino de leitura, a noção de texto que devemos ter em conta é a de texto escrito, a qual supõe a interação entre duas instâncias básicas: a de autor (produtor do texto) e a de leitor (co-produtor, e não mero receptor, do texto). Autor e leitor são ambos agentes de um mesmo processo: o da produção de sentido. O autor ou produtor do texto tem uma intenção, tem um projeto de sentido que pretende realizar pela produção de seu texto. Essa produção, ou melhor, no momento em que vai produzindo o seu texto, o autor vai produzido um sentido para seu texto, que pode ser ou não, o sentido reconstruído pelo leitor. Este é também um produtor de sentido: cabe ao leitor reconstruir o sentido pretendido pelo autor. Há uma longa e densa teorização sobre o sentido que excede os propósitos deste estudo. Empreendê-la aqui demandaria muito mais tempo e espaço. Basta entender que não há apenas um sentido para o texto, mas muitos sentidos. Também é importante ter em conta a ideia de que o sentido não está no texto em si, mas é produzido na relação entre autor, texto e leitor. Consoante disse anteriormente, textos são atividades de constituição interacional de conhecimentos, de sujeitos e de sentidos. Os sentidos se constroem na interação entre os interactantes através dos textos.
Não estou ignorando que as condições de produção do texto variam, segundo se trata de produção oral ou de produção escrita. É verdade que o leitor não participa, efetivamente, da produção do texto escrito sobre o qual se debruça no ato de leitura, mas ele é co-produtor do sentido pretendido quando da produção do texto. E poderíamos até dizer que, de certo modo, o leitor, imageticamente, se faz presente no momento da produção do texto pelo autor, visto que o leitor do texto é uma imagem construída pelo autor. Por ocasião da produção de seu texto, o autor constrói uma imagem de leitor para o texto. A produção do texto supõe uma audiência, um certo número de leitores em potencial. O autor também é uma imagem construída pelo texto e pelo leitor por ocasião da leitura; o autor não é o indivíduo empírico, mas uma função do discurso. O discurso não é o lugar constitutivo de autores (a autoria supõe a atribuição de uma obra e demanda uma discussão que não caberia aqui). O discurso é o lugar de constituição de sujeitos, de sujeitos sociais. O sujeito não é senhor de seu discurso; apenas tem a ilusão de sê-lo; não é um sujeito adâmico que toma de modo inaugural a palavra; o sujeito é sempre atravessado por muitas vozes; vozes que falam através do seu discurso.
Convém, no entanto, ater-me ao conteúdo desta seção. Essa seção se destina à exposição e à descrição dos quatro grandes sistemas de conhecimentos de que dispõem autor e leitor por ocasião do processamento textual. O autor, quando da produção de seu texto, mobiliza esses quatro sistemas de conhecimento; assim também o faz o leitor, por ocasião da leitura.
Quer para a produção, quer para a interpretação/compreensão de um texto, é necessário dispor-se de conhecimento linguístico. Quem não sabe alemão, jamais poderá produzir um texto em alemão. Portanto, para se produzir textos, é necessário dispor de saberes referentes à gramática e ao léxico da língua. É preciso, portanto, saber o significado das palavras e como usá-las, saber construir enunciados segundo as regras previstas pela gramática da língua. O conhecimento linguístico é responsável pela articulação som e sentido. Além disso, recobre também a capacidade de estabelecer relações entre os componentes da superfície textual mediante os recursos coesivos.
Todavia, o conhecimento linguístico apenas, embora necessário, não é suficiente para que os usuários da língua possam produzir textos que atendam adequadamente aos seus propósitos sociocomunicativos. Eles precisam dispor também de outros conhecimentos. Passarei a elencar e definir cada um deles.
O conhecimento enciclopédico ou de mundo se encontra armazenado na memória de cada indivíduo, quer se trate de conhecimento de tipo declarativo a respeito de ocorrências do mundo, quer de tipo episódico, constituído por modelos cognitivos socioculturalmente determinados e adquiridos através da experiência. Há, na literatura, diversos tipos de modelos cognitivos propostos, entre os quais refiro:

a) frames: constituem conjuntos de conhecimentos armazenados sob certo “rótulo”, sem que seja necessário ordenação entre eles.
Por exemplo, o frame Carnaval ativa em nossa memória uma série de conhecimentos. Se somos brasileiros, especialmente cariocas, pensamos em blocos de rua, Cordão do Bola Preta, Desfiles das Escolas de Samba, alegorias, fantasias, Marquês de Sapucaí, etc. Nós detemos de uma série de conhecimentos sobre esse frame. Assim também, o frame Show ativa uma série de saberes a respeito da experiência relativa a show em geral. Sabemos que há uma banda ou cantor, normalmente, que se apresenta; há o palco onde eles tocam; há um lugar próprio para a realização do espetáculo. Para participar do show como espectadores, precisamos comprar ingressos, etc.

b) esquemas: recobrem conjuntos de conhecimentos armazenados em sequência temporal ou causal.

Pensemos no cotidiano de um cidadão comum. Pensemos num dia de sua vida. Esse dia se estrutura em hábitos ou rotinas. É claro que as descrições variarão em alguma medida por força de nossas experiências pessoais. Pensemos num típico domingo em família. Se ele é passado em casa, talvez boa parte do tempo estejamos assistindo televisão, após o almoço, ou tirando um cochilo, antes do jogo começar.

c) planos: constituem conjuntos de conhecimentos sobre como agir para atingir determinados objetivos.

Pensemos na situação em que se busca vencer uma partida de futebol.

d) scripts: recobrem conjuntos de conhecimentos sobre modos de agir estereotipados em uma dada cultura, incluindo-se aí modos de comportar-se  linguísticamente.

A língua dispõe de várias fórmulas de cortesia. Pensemos também nos rituais religiosos, como batismo. Quando vamos a um enterro, assumimos determinados comportamentos previstos culturalmente para essa situação. Dizemos “meus pêsames pelo falecimento de seu marido”, ou algo parecido; mas não “sinto muito por seu marido ter batido as botas”.
Os modelos cognitivos constituem, portanto, estruturas complexas de conhecimentos que representam as experiências que vivenciamos em sociedade e que servem de base para processos cognitivos. Nosso conhecimento de mundo está, portanto, organizado em nossa memória na forma de modelos cognitivos, como os que descrevi aqui.
A importância desses modelos no processo de interpretação/compreensão textual é enorme, visto que da mobilização desses modelos por ocasião da leitura depende a possibilidade de construir um sentido para o texto, isto é, de construir sua coerência.
Nenhum texto fornece todas as informações necessárias à sua compreensão. Grande parte das informações está implícita e deve ser inferida pelo leitor com base nos modelos cognitivos armazenados em sua memória.

O conhecimento sociointeracional é igualmente indispensável tanto para a produção quanto para a interpretação/compreensão de textos. O conhecimento sociointeracional recobre o conhecimento sobre as ações verbais realizadas, sobre as formas de interação por meio da língua. Esse conhecimento se subdivide em:

a) conhecimento ilocucional: esse tipo de conhecimento permite-nos reconhecer os objetivos ou propósitos que um falante ou autor, em dada situação, pretende atingir. Trata-se de conhecimentos atinentes a tipos de atos de fala, que se verbalizam, comumente, por formas características, ainda que possam também se realizar por formas indiretas, o que exige do interlocutor o conhecimento necessário a seu reconhecimento.
Há um exemplo muito recorrente na literatura a cuja referência eu não poderia me furtar. Imagine uma situação (aliás, muito comum) em que uma pessoa, amigo ou não, se dirija a nós com o seguinte enunciado: “Você tem um cigarro?”. A despeito de a forma do enunciado, a que se acrescenta uma entonação específica, ser a de pergunta, nós somos capazes de captar a intenção de nosso locutor. Nós sabemos que o que ele está realizando, na verdade, é um pedido, de tal sorte que uma resposta do tipo “sim” é inapropriada. É claro que sempre podemos nos fazer de desentendidos, por pilhéria ou implicância; mas isso demonstraria que nós detemos o conhecimento de que o enunciado realiza um pedido, ainda que tenha a forma característica de uma pergunta. Esse exemplo é um caso típico de ato de fala indireto. Nesse caso, há um descompasso entre a forma do enunciado (forma de pergunta) e a intenção da qual ele é a realização. Nós, porque detemos conhecimento sociointeracional (mais especificamente, ilocucional), somos capazes de compreender a intenção subjacente a esse enunciado e, portanto, de manifestar a reação não-verbal adequada, qual seja, em caso afirmativo, cedendo um cigarro ao interlocutor. Lembro que podemos responder com um “tenho”, mas essa forma deve acompanhar-se do ato de dar um cigarro, pois, somente nesse comportamento não-verbal, demonstramos ter entendido que se tratava de um pedido e não de uma simples pergunta.

b) conhecimento comunicacional: este tipo de conhecimento diz respeito a normas comunicativas gerais (seja claro, diga a verdade, seja relevante, etc.); à quantidade de informação que se deve por acessível, numa situação concreta, para que o nosso interlocutor seja capaz de reconstruir o objetivo pretendido por nós; à seleção da variedade linguística adequada a cada situação de interação e à adequação dos tipos de texto (descritivo, narrativo, dissertativo, etc.) às situações comunicativas. É preciso dizer que todos os falantes de uma língua detêm, portanto, uma competência comunicativa, que lhes permite usar essa língua. A competência comunicativa consiste na capacidade que têm os usuários não só de construir enunciados numa língua, segundo os padrões previstos pela gramática dessa língua, mas também de adequar suas produções linguísticas às diferentes situações de interação. Um falante é tanto mais competente comunicativamente quanto mais é capaz de mobilizar um vasto repertório de variedades linguísticas e de fazer uso delas de modo adequado às diversas situações de interação. Um falante sociocomunicativamente competente é aquele que, detendo um rico repertório de variedades linguísticas, consegue fazer uso delas tendo em vista parâmetros situacionais que governam sua adequação de uso. Portanto, usar uma variedade linguística de prestígio numa situação em que ela não é desejada ou esperada é tão comunicativamente inapropriado quanto usar uma variedade linguística não prestigiada socialmente numa situação em que a variedade de prestígio é esperada ou mesmo exigida.

c) conhecimento metacomunicativo: é aquele que permite ao produtor do texto evitar perturbações pervisíveis na comunicação ou resolver conflitos efetivamente ocorridos mediante a inserção no texto de sinais de articulação ou apoios textuais e mediante atividades específicas de formulação textual, como paráfrases, repetições, correções, glosas, etc.

Esse tipo de conhecimento engloba os vários tipos de ações linguísticas que auxiliam o locutor/autor a assegurar a compreensão do texto e a conseguir a aceitação pelo interlocutor/leitor dos objetivos pretendidos. O produtor do texto pode, assim, monitorar o fluxo verbal no momento mesmo em que ele se dá, ou pode, no caso da escrita, ajustá-lo posteriormente.

d) conhecimento superestrutural: diz respeito ao conhecimento sobre modelos textuais globais, que permite aos falantes reconhecer textos como exemplares de determinado tipo ou gênero. Esse tipo de conhecimento também abriga saberes sobre as macrocategorias que distinguem vários textos, sobre como organizá-los e sobre como se ligam seus objetivos e estruturas globais.



6.1. Conhecimento procedural

A cada um dos tipos de conhecimento aqui apresentados e definidos, corresponde um saber específico de como utilizá-los. Trata-se do conhecimento procedural, o qual se constitui de procedimentos ou rotinas por meio dos quais aqueles sistemas de conhecimento são mobilizados. O conhecimento procedural funciona como um tipo de “sistema de controle” dos demais sistemas, porque permite adaptá-los ou adequá-los às necessidades dos interlocutores no momento da interação (Koch, 2004, p. 25).
O conhecimento procedural compreende, portanto:
a) saberes sobre práticas culturais próprias da sociedade em que vivem os interactantes;
b) domínio das estratégias de interação, como preservação de faces, representação positiva do self, polidez, negociação, atribuição de causas a mal-entendidos ou fracassos na comunicação, etc.

Cabe lembrar que o processamento textual é estratégico, já que tanto o autor quanto o leitor mobilizam no processo mesmo de interação os diversos sistemas de conhecimento armazenados em sua memória.

6.2.  Teses básicas

Pondo termo a esta seção, explicito três teses básicas que se depreendem do conjunto de questões discutidas neste texto:

1a) Para que duas ou mais pessoas se compreendam mutuamente, é necessário que seus contextos sociocognitivos sejam, pelo menos, parcialmente, semelhantes;

2a) O conhecimento são estruturas estabilizadas na memória de longo termo, que são empregadas para o reconhecimento, a compreensão de situações e a interação social. Tais saberes são constituídos a partir de estados provisórios de conhecimento elaborados pela memória operacional e são resultado de nossas atividades de construção de sentido e de interpretação de situações e eventos. ´´É por isso que se pode falar em construção de conhecimento.

3a) A coerência não está no texto em si, mas é construída pelo leitor numa dada situação em que interage com o texto. A coerência liga-se à capacidade de o leitor calcular um sentido para o texto. Por isso, é, a um só tempo, um princípio de inteligibilidade e princípio de interpretabilidade do texto. A coerência se constrói na interação entre autor, texto e leitor numa dada situação de comunicação.
A coerência se constrói por meio de processos cognitivos operantes na mente dos usuários e desencadeados pelo texto e pelos contextos sociocognitivos.



7. Avaliando os textos


Não tenho a intenção de empreender uma análise exaustiva dos textos de Paulo Freire e de Millôr Fernandes. Vou-me cingir a explorar as duas questões que motivaram a produção deste texto, a saber, a não-relação especular entre mundo e texto e a referenciação. No domínio desta última, estarei preocupado em mostrar que as relações anafóricas devem ser vistas não como relações de remissão no nível da superfície textual, mas como uma atividade discursivo-cognitiva pela qual o leitor, com base em seus contextos sociocongitivos, estabelece (por inferenciação) uma ligação entre um termo presente na superfície textual e uma informação armazenada em seu modelo textual.






TEXTO 1


                                                 A Importância do ato de ler

 (...) A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. Ao ensinar a escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado – e até gostosamente – a “reler” momentos fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de ler se veio em mim constituindo.
Ao ir escrevendo este texto, ia tomando distância dos diferentes momentos em que o ato de ler se veio dando na minha experiência existencial. Primeiro, a “leitura” do mundo, do pequeno mundo em que me movia; depois, a leitura da palavra que nem sempre, ao longo de minha escolarização, foi a leitura da “palavramundo”.
A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de “ler” o mundo particular em que me movia – e até onde não sou traído pela memória -, me é absolutamente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores, algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nós – à sua sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores. (...)

(Paulo Freire – A importância do ato de ler: 2006, pp. 11-12)


Desde já, é preciso enfatizar que o próprio autor reconhece ser o seu texto uma atividade pela qual ele recria e revive a experiência vivida antes de adquirir a linguagem. Vê-se, pois, que o texto não é um retrato fiel de sua experiência pessoal. O texto a recria, lhe dá certa ordem. O texto (re)constrói um mundo em que a experiência de leitura da palavra é inseparável da experiência de leitura (interpretação/compreensão) do mundo. Neste mundo construído pelo texto, o autor revisita, em sua memória, suas experiências de infância nas quais interagia, ainda sem o domínio da linguagem, diretamente com o mundo à sua volta. Mas essa “revisita” é também uma reconstrução da experiência vivida. É interessante notar que o “eu” de “me vejo então...” (linha 18) não é o mesmo “eu” reportado. Há um desdobramento do sujeito do discurso: o eu que vê (que lembra) no momento da enunciação reconstrói a experiência vivida pelo eu da infância. A sumária descrição do mundo natural (“...rodeada de árvores...”), que constitui um cenário em que se apreende a interação do eu do passado com a realidade imediata é também uma construção da subjetividade do autor, mas de um autor que é um sujeito sócio-histórico.
As expressões destacadas em negrito constituem objetos-de-discurso introduzidos como informação nova. Uma vez introduzidos no modelo textual, eles passam a ter um endereço cognitivo na memória do leitor. Assim é que “a leitura do mundo” e “a leitura da palavra” assumem o estatuto de referentes ativos na memória do leitor. Por estarem ativos, podem ser recuperados quando da introdução das formas remissivas “leitura desta” e “leitura daquele”. Em seguida, um novo objeto-de-discurso é introduzido: “a compreensão do texto”. Na verdade, não se trata de um objeto-de-discurso novo, mas semi-novo (se poderíamos dizer assim), porque “texto” é interpretado por associação com os referentes anteriores constituídos de “a leitura”. É isso que explica a possibilidade de usar o artigo definido para introduzir um referente novo. Esse referente fica ativo na memória do leitor e reaparece no modelo textual no constituinte “texto e contexto”. Cabe notar, no entanto, que, com a introdução desse novo referente, o referente “a leitura” assume o estatuto de semiativo. Ele saiu do foco da consciência do leitor, mas não a ponto de deixar de ser acessível.


TEXTO 2


A Vaguidão Específica

“As mulheres têm uma maneira de falar que eu chamo de vago-específica”.
(Richard Gehman)

- Maria, ponha isso lá fora em qualquer parte.
- Junto com as outras?
- Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer qualquer coisa com elas. Ponha no lugar do outro dia.
- Sim, senhora. Olha, o homem está aí.
- Aquele de quando choveu?
- Não, o que a senhora foie falou com ele no domingo.
- Que é que você disse a ele?
- Eu disse para ele continuar.
- Ele já começou?
- Acho que já. Eu disse que podia principiar por onde quisesse.
- É bom?
- Mais ou menos. O outro parece mais capaz.
- Você trouxe tudo para mim?
- Não senhora, só trouxe as coisas.
- Mas traga, traga. Na ocasião, nós descemos tudo de novo. É melhor senão atravanca a entrada e ele reclama como na outra noite.
- Está bem, vou ver como.

(Millôr Fernandes)

O texto de Millôr Fernandes reconstrói uma situação dialógica em que uma patroa orienta a empregada doméstica na arrumação da casa. A compreensão deste texto é extremamente dependente da capacidade de o leitor construir um modelo de contexto adequado. A fim de levantar a hipótese segundo a qual o texto reconstrói um diálogo entre uma patroa e sua empregada e a situação reconstruída é de arrumação da casa, o leitor precisa recorrer a seu contexto sociocognitivo. O leitor ativa em sua memória um frame ou script, um modelo cognitivo, que representa sua experiência com arrumação da casa.
Por maior que seja a fidelidade da descrição da experiência, essa experiência é sempre experiência textualizada. Não é o mundo que se deixa ver no texto, mas uma versão do mundo, uma versão de uma experiência de mundo. Entre o texto e o mundo, há sempre a mediação do ponto de vista de um enunciador.
Esse texto deve ser lido considerando-se duas dimensões: a que põe em interação leitor e texto; e a que põe em interação as personagens da cena interna ao discurso. Da perspectiva do leitor, a compreensão do texto depende, fundamentalmente, de um incessante trabalho de inferenciação levado a efeito pelo leitor com base em seu contexto sociocognitivo, que lhe permite produzir hipóteses sobre o conteúdo referencial de expressões como “isso”, “lá fora”, “as outras”, etc. O texto não esclarece nada a respeito da natureza dos objetos-de-discurso, mas o contexto sociocognitivo que permite a ativação pelo leitor do frame “arrumação da casa” permite-lhe inferir que “coisas” pode designar “caixas”, “malas”, roupas”, etc.
Da perspectiva das personagens, elas conseguem se entender porque seus contextos sociocognitivos são partilhados e os referentes são constantemente ativados e recuperados no momento mesmo da enunciação. É claro que devemos considerar a liberdade literária do autor e o seu propósito de caricaturar a realidade. Numa situação efetiva de uso, seríamos obrigados, para que houvesse compreensão, a usar expressões referenciais em alguns momentos. Quero dizer que, em certos momentos da interação, haveria a necessidade de especificar o referente de que se trata. Por exemplo, em vez de “no lugar do outro dia”, se produziria “na lavanderia”. No ponto em que a empregada diz “não, só trouxe as coisas”, quase certamente se usaria uma expressão referencial, para responder satisfatoriamente à questão da patroa, que usou a forma “tudo”. Vejamos:

- Você trouxe tudo para mim?
- Não senhora, só trouxe as coisas.




Por mais que as personagens saibam do que estão falando, é pouco provável que a patroa saiba, a esta altura, de que coisas se trata, especialmente porque a arrumação envolveu- supomos - o deslocamento de objetos diversos. Para evitar a sobrecarga de memória, seria necessário lembrar ao interlocutor os referentes no modelo textual construído. Nesse ponto, numa situação de uso efetivo, o interlocutor seria obrigado a dar a conhecer o referente ou, ao menos, acrescentar uma expressão especificadora, dizendo algo como “Não, senhora, só trouxe as roupas e os livros que estavam no quarto”, ou “... só trouxe as coisas que estavam no quarto” (mas, ainda aqui, haveria a probabilidade de o interlocutor não conseguir acessar imediatamente em sua memória o referente de “coisas que estavam no quarto”).

terça-feira, 5 de agosto de 2014

"Pensar sobre Deus é pensá-lo como entidade do discurso" (BAR)

                                                      
                                            


                              A natureza trina de Deus
                               Um retorno às raízes históricas



“No seu trabalho, o historiador não parte dos fatos, mas dos materiais históricos, das fontes, no sentido mais extenso deste termo, com a ajuda dos quais constrói o que chamamos fatos históricos. Constrói-os na medida em que seleciona os materiais disponíveis em função de um certo critério de valor, como na medida em que os articula, conferindo-lhes a forma de acontecimentos históricos. Assim, a despeito das aparências e das convicções correntes, os fatos históricos não são um ponto de partida, mas um fim, um resultado. Por conseguinte, não há nada de espantoso em que os mesmos materiais, semelhantes nisto a uma matéria-prima, a uma substância bruta, serviram para construções diferentes. E é aí que intervém toda a gama das manifestações do fator subjetivo: desde o saber efetivo do sujeito sobre a sociedade até as determinações sociais mais diversas”.

(Adam Schaff)


O texto de Adam Schaff que serve de epígrafe se topa na contracapa do seu livro História e Verdade (1983) e sua apresentação se impõe para chamar a atenção do leitor sobre o que significa servir-se do testemunho histórico na tentativa de edificar alguma construção de verdades. Ainda que o historiador se sirva de materiais históricos disponíveis para atingir, em seu trabalho, algum sentido de verdade, essas fontes, por si mesmas, não lhe dão a verdade. O historiador sempre trabalha sobre esses materiais históricos, construindo uma versão da verdade histórica. Os fatos históricos são sempre produtos do trabalho do historiador sobre esses materiais históricos. Os fatos históricos não são dados de antemão. A subjetividade do historiador está imiscuída nesse trabalho de construção dos fatos históricos. Como os fatos históricos são o resultado desse trabalho de elaboração sobre os materiais históricos acessíveis a um historiador, um mesmo conjunto de materiais históricos pode conduzir outro historiador à construção de fatos históricos distintos. É sempre bom lembrar que a história não é linear: há sempre retrocessos, rupturas e influências mútuas entre os acontecimentos, em diferentes épocas e lugares. As relações de causa e efeito entre os acontecimentos históricos é uma projeção da razão humana. É o homem que atribui aos fatos históricos certa forma lógica, certa ordem e coerência. É razoável dizer que a consciência histórica, enquanto atividade reflexiva sobre a história, é sempre um fenômeno que se constrói num porvir; o sentido da história, enquanto produto do trabalho de reflexão do homem sobre o passado, é construído num olhar retrospectivo, isto é, no espaço de tempo categorizado como futuro. O sentido da história não se faz acessível imediatamente aos homens em cada instante em que se desenrolam suas ações. Eles mesmos quase sempre não se reconhecem como os verdadeiros agentes históricos. Enquanto fazem a história, produzem as condições que lhe turvam a consciência desse fazer: eles creem, assim, que a história se desenvolve por uma força própria, ela mesma depositária de sentido, ou pela atividade de deuses.
Nesse trabalho de elaboração pelo historiador sobre os materiais históricos disponíveis, intervém certo critério de valor e certa forma de articulá-los. A forma de acontecimentos históricos é produto de certo modo de articulação dos materiais históricos disponíveis sobre o qual recai o trabalho do historiador. Em suma, o historiador jamais narra simplesmente os fatos passados, jamais conta o que aconteceu no passado, mas reconstrói o passado, na medida em que confere certa forma (estrutura) aos acontecimentos passados. Se há um trabalho narrativo do historiador, esse trabalho é, em seu desenvolvimento mesmo, uma forma de interpretação (entenda-se reconstrução, ordenação, pela atribuição de sentidos) dos acontecimentos do passado.
Gostaria de que o leitor tivesse em conta o que aqui se disse sobre o trabalho do historiador durante a leitura deste texto. Dois pressupostos estarão a sustentar o edifício das reflexões, a cujo trabalho de construção me lanço:

1º pressuposto: o conceito de Deus é resultado de um trabalho de construção sócio-histórico e ideologicamente determinado, ao longo do qual intervieram inúmeras disputas apaixonadas com vistas a determinar qual das interpretações, então em disputa, era a interpretação correta.

2º pressuposto: as disputas que se desencadeavam na tentativa de determinar a natureza de Deus, embora se pautassem pela suposição de que Deus é dotado de uma realidade transcendente à história, se revelam, à luz de um exame histórico-crítico, disputas sobre qual deveria ser o significado “correto” de um objeto-de-discurso, em cujo processo de significação e ressignificação intervém o domínio do histórico.

No tangente ao pressuposto primeiro, preciso esclarecer que emprego o termo ideológico para caracterizar um sistema de crenças, de ideias e valores que produzem uma falsa consciência da realidade, em virtude da qual os homens acreditam que as ideias existem independentemente das condições sócio-históricas em que elas são produzidas. A própria consciência, no trabalho de falsificação da realidade pela ideologia, não se percebe como produto sócio-histórico, mas como existindo independentemente dessas condições. Assumo, portanto, o que nos ensinou Marx sobre a ideologia. A ideologia é, em suma, o modo ilusório (ou seja, abstrato e invertido) pelo qual os homens representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Quanto ao segundo pressuposto, convém dizer que um objeto-de-discurso é sempre um referente construído e reconstruído na atividade discursiva, sem que seja necessário que ele tenha um objeto correspondente no mundo extra-mental. Objetos-de-discurso constituem entidades que se originam de uma construção mental, e não de um mundo sensível. É no discurso que esses objetos são postos, delimitados, transformados, desenvolvidos, etc. (Neves, 2006). Por isso, parece-me que Deus pode ser reduzido a um objeto-do-discurso, já que, no quadro de uma hermenêutica da suspeita, “Deus” deve revelar-se tão-só como entidade do discurso, o que não significa negar-lhe a influência sobre a vida prática daqueles que o consideram como fonte última de todo sentido possível. Mesmo, nesse caso, Deus não deixa de ser um objeto manipulado, em práticas discursivas, pela cognição humana, cujo desenvolvimento é sempre da ordem do social.
A fim de ilustrar o conceito de objeto-de-discurso, considerem-se as seguintes frases abaixo:

(1) Esse menino precisa tomar juízo.
(2) Esse moleque precisa tomar juízo.
(3) Esse aborrecente precisa tomar juízo.

Nas três frases, o SN (sintagma nominal) sujeito é categorizado de modos distintos. Há três formas distintas de referenciação. Em (1), a lexicalização “menino” é “neutra”, quando comparada às lexicalizações de (2) (moleque) e (3) aborrecente. Nesses dois últimos casos, as categorizações incluem um traço de pejoratividade. As três expressões descritivas se referem a uma mesma entidade categorizada de modos distintos. O uso do demonstrativo “esse” pressupõe a possibilidade de identificação dessa entidade pelos interlocutores. Para que uma referenciação seja bem-sucedida, é necessário que o conhecimento do referente seja acessível ao interlocutor, quer por ser pressuposto como partilhado com ele, quer por pistas textuais mapeadas no processo de leitura. Nos três casos, a entidade supostamente existe no mundo extralinguístico, mas isso não tem importância quando se considera a referenciação e os objetos-de-discurso. Os usuários da língua, ao produzir um discurso, negociam um universo de discurso do qual falam. O mundo do discurso não espelha o mundo real. Referenciação implica interação e intenção, de modo que, na referenciação, ou seja, no processo pelo qual os interlocutores constroem e reconstroem continuamente uma rede de objetos-de-discurso, importa considerar se eles referiram-se a uma entidade cuja identidade pretenderam ou não definir. O referente é um objeto construído no e pelo discurso. Todos os objetos de conhecimento são objetos de discurso (Marcuschi, 2007).
Quando se diz “Deus é o criador do universo”, a expressão definida “o criador do universo” é uma categoria em que se coloca o referente designado por “Deus”. Trata-se de uma categoria cognitivamente estabelecida. O uso do artigo definido “o” supõe a unicidade desse Deus criador, ou seja, ele é o único Deus responsável pela criação do universo, e não há outro. Se a frase é produzida por uma pessoa que nasceu e se desenvolveu numa sociedade cujos valores, costumes, formas de viver estão calcados sobre a tradição judaico-cristã, as expressões “Deus” e “o criador do universo” ativará  uma série de conhecimentos, produzidos e disseminados nessa cultura da qual depende sua constituição como sujeito histórico -  conhecimentos estes indispensáveis à compreensão do enunciado. Por exemplo, essa pessoa interpretaria “Deus” como um deus pessoal e único, um deus que é pai, de quem se acredita enviou seu único Filho para salvar a humanidade, etc. Se, no entanto, esse mesmo enunciado fosse produzido por um hindu, aquelas expressões ativariam outros conhecimentos como parte de seu background cultural. Nesse caso, por exemplo, Deus referir-se-ia a Brahma, que é o deus criador do universo no hinduísmo, deus que tem uma esposa, chamada Sarasvati, etc. Como os enunciados são sempre produtos sócio-históricos, seus modos de recepção variarão segundo essas condições.
Em suma, a discursivização ou textualização do mundo não se reduz a um processo de elaboração de informações; ela é um processo de (re)construção da própria realidade. A referenciação é uma atividade sócio-interacional-cognitiva através da qual se vão construindo objetos-de-discurso.

Os acontecimentos que se vão impor à meditação, doravante, se estendem entre os séculos I e IV E.C (da Era Cristã)


1. Contextualização: Por volta de 320 E.C.

Considere-se, em princípio, o seguinte passo de Armstrong, colhido de Uma história de Deus (2008). O trecho se reporta ao século IV E.C.

“Por volta de 320, uma ardente paixão teológica tomou conta das igrejas do Egito, Síria e da Ásia Menor. Marinheiros e viajantes cantavam modinhas proclamando que só o Pai era o verdadeiro Deus, inacessível e único, mas o Filho não era nem coeterno nem incriado, pois recebeu a vida e o ser do Pai” (p. 147).



Antes de me ocupar com o desenvolvimento das questões que mais diretamente me interessam, gostaria de retomar o que expus sobre o conceito de referenciação e objetos-de-discurso, tendo em vista a necessidade de ilustrá-los mais uma vez, com base no referido excerto. O texto de Armstrong não deve ser concebido como resultado de encadeamentos de informações objetivas sobre estado-de-coisas num tempo passado determinado, mas como um processo interacional de construção de sentidos e de uma versão da realidade. Compreendamos de que modo a realidade é construída no texto. Tomemos as expressões “uma ardente paixão teológica”, “o Pai”, “o verdadeiro Deus”, o “Filho” (outras poderiam ser consideradas). Essas expressões introduzem objetos-de-discurso, a partir dos quais se constroem predicações (atribuição de relações, propriedades). Assim, por exemplo, de “uma ardente paixão teológica” diz-se que “tomou conta das igrejas do Egito, Síria e da Ásia Menor”. A expressão “uma ardente paixão teológica” categoriza certo modo de ver/interpretar o interesse pela igreja por uma questão teológica determinada. O referente “uma ardente paixão teológica” é introduzido no discurso e fica ativo na consciência do leitor. O enunciado “uma ardente paixão teológica tomou conta das igrejas do Egito, Síria e da Ásia Menor” representa um estado-de-coisas (uma espécie de cena do “mundo” lingüística-cognitivamente construída), no interior do qual duas entidades são predicadas: “uma ardente paixão teológica” (sujeito) e “das igrejas do Egito...” (objeto). As expressões definidas “o Pai” e o “Filho” pressupõem que os referentes são partes do conhecimento de mundo do leitor; elas remetem, respectivamente, a “Deus” e a “Jesus Cristo”. “O Pai” é categorizado como “o verdadeiro Deus”. Essas diferentes formas de categorizar os referentes vão ter efeito sobre a construção da argumentação. Note-se que “o verdadeiro Deus” é qualificado como “inacessível” (incognoscível) e “único”. Ora, o que se fez foi construir uma representação cognitivo-discursiva do referente descrito com a expressão “o Pai”. As expressões descritivas “o Pai” e “o verdadeiro Deus” denotam propriedades que permitem identificar o referente cognitivo que representa o Ser transcendente e criador do universo. Note-se que, quando se trata de explorar a noção de objetos-de-discurso como entidades postas no e pelo discurso, não escapamos de recorrer a contínuas categorizações do referente, cuja existência ou não no mundo extra-mental não tem importância.  
Se pedíssemos a alguém que reescrevesse o texto, o que teríamos como resultado seria mais do que uma nova versão do texto, mas sobretudo uma outra versão do mundo textualmente construída. Quem estivesse selecionando, no processo de reescrita, suas próprias palavras e modos de encadeá-las, estaria construindo seu modo próprio de perceber/compreender/ ordenar o mundo.
As expressões que destaquei ativa uma série de conhecimentos de mundo no leitor. Ao ler o texto, ele reconhece, com base nesse conjunto de conhecimentos, que “o Pai” é uma forma de categorizar o “Deus” judaico-cristão. Ele sabe também que “o Filho” categoriza Jesus Cristo. Com um pouco de atenção, ele infere que “uma ardente paixão teológica” (que já encerra rastros de autoria, pela presença do adjetivo “ardente”) diz respeito a uma questão que envolve a relação entre “o Pai” e “o Filho” e que, em última instância, é o problema de como determinar a natureza desse “Filho”.
Prossigamos, no entanto. Havia quem, naquele tempo, dissesse que o Filho provinha do nada; outro dissertava sobre a distinção entre a ordem criada e o Deus incriado. Havia pessoas que afirmavam ser o Pai maior que o Filho. Consoante observa Armstrong: “As pessoas discutiam essas questões abstrusas com o mesmo entusiasmo com que hoje discutem futebol” (ib.id.).
O presente texto, portanto, versa sobre o processo pelo qual se foi construindo uma representação de Deus que se tornou a compreensão correta da natureza de Deus, pelo menos para os católicos. Esse processo culminou na doutrina da natureza trina de Deus. Mas até que se tenha chegado a desenvolvê-la, sucederam muitas disputas em torno de qual seria a interpretação “correta”. Dois personagens se destacam nesse cenário: o presbítero de Alexandria chamado Ário e seu rival Atanásio, bispo de Alexandria. Outros atores sócio-históricos, cuja influência nesse processo foi significativa, serão trazidos à cena, muito embora o foco de minha atenção recaia sobre a disputa entre Ário e Atanásio cujas visões estavam no centro das calorosas discussões no interior da Igreja cristã primitiva.
O período de tempo a que se reportam as reflexões que serão desenvolvidas se estende entre os séculos I e VI E.C., tempo em que a fé cristã avançava no mundo romano-helenístico.

2. O Desafio de Ário

A controvérsia sobre a natureza de Jesus e sobre sua relação com Deus foi animada ainda mais por Ário, famoso professor cristão de Alexandria, Egito, do século IV. Ário lançou um desafio que os bispos julgaram impossível ignorar. Esse desafio consistia na questão: Como Jesus Cristo poderia ser Deus do mesmo modo que Deus Pai?
Ário não negava a divindade de Cristo, a quem chamava “Deus forte” e “Deus pleno”, mas considerava blasfêmia pensar que ele era divino por natureza. Ário alegava que o próprio Jesus disse que o Pai é maior que ele. A controvérsia se acirrou tanto que exigiu a intervenção do imperador Constantino, o qual convocou um sínodo em Nicéia, na atual Turquia, a fim de que a questão fosse debatida.
Embora hoje o nome de Ário esteja ligado à heresia, naquele tempo era difícil dizer que ele estava errado.
Orígenes, padre e eminente pensador, nascido por volta de 185 em Alexandria, defendia uma doutrina semelhante à de Ário. Segundo Orígenes, o Deus único e uno preexiste à pluralidade das coisas. Retoma-se aqui o problema do uno e do múltiplo no platonismo. Orígenes deu ênfase à unidade que, para ele, precedia toda a multiplicidade. Por isso, também precedente é a unicidade e simplicidade de Deus. Deus é a única e suprema realidade, é puro espírito, o que significa que é inteiramente imaterial. Também Deus é pura razão e origem de toda a razão, eternidade precedente ao tempo e absolutamente transcendente, incognoscível e incomensurável, e eternamente necessário.
A época de Orígenes é marcada, como se sabe, pelo encontro da fé cristã com a filosofia grega e, por consequência, pelas insistentes tentativas de aperfeiçoamento conceitual da fé cristã em Deus. É claro que o clima intelectual da Alexandria já não era o mesmo desde os tempos de Orígenes. As pessoas já não estavam tão seguras de que o Deus de Platão podia conciliar-se com o Deus da Bíblia. É nesse ambiente de efervescência e suspeita teológicas que Ário e Atanásio passariam a sustentar doutrinas surpreendentes para qualquer platônico. Eles consideravam que Deus criara o mundo a partir do nada (ex nihilo), e buscaram basear sua posição nas Escrituras. É preciso acentuar, com Armstrong, a originalidade da visão desses teólogos:

“Na verdade, o Gênesis não diz isso. O autor sacerdotal sugere que Deus criou o mundo a partir do caos primordial, e a ideia de que Deus tirou todo o universo de um vazio absoluto era inteiramente nova (p.148)”.


Essa ideia era estranha não só ao pensamento grego, como também não ocorreu a pensadores como Clemente e Orígenes, aos quais a teoria platônica da emanação agradava.
Compreendamos a visão de Ário. O problema que preocupou os primeiros cristãos e, particularmente, Ário, é o da relação entre o Pai (Deus) e o Filho (Jesus). As discussões que se seguiram daí culminaram no estabelecimento da doutrina da Trindade, conhecida hoje por cristãos católicos (não que todos os fiéis católicos a compreendam ou com ela se importem).
No século IV, Ário propunha uma doutrina que diferia da doutrina aceita pelos cristãos proto-ortodoxos, os quais já haviam logrado êxito na quase completa eliminação de outras heresias, como a dos ebionitas, a dos marcionitas e de outros tantos grupos gnósticos. Era quase unânime, nas esferas da Igreja, a aceitação da doutrina segundo a qual Jesus era, de fato, divino, embora houvesse apenas um Deus. Mas, se só existia um Deus, como poderia também Jesus ser Deus?
A solução dada por Ário fora embasada no Novo Testamento e em pensadores cristãos anteriores. Ela consistia em dizer que Cristo era um ser divino, mas estava subordinado ao Deus Pai em poder e essência. Na origem, havia apenas um Deus único, mas Deus, nos primórdios, criara um segundo ser divino, seu filho Jesus Cristo, por intermédio do qual Deus criou o universo. Cristo (o Lógos) se fez humano na encarnação.
A visão de Ário supõe que, em um tempo passado e distante, Cristo não existia. Ele passou a existir em um dado momento por obra de Deus. No entanto, posto que fosse divino, não era igual a Deus Pai, porquanto era o Filho, condição esta que o subordinava ao Pai.
O Pai e o Filho não eram da mesma substância (ousia), mas eram semelhantes em substância. Vou pormenorizar essa ideia; antes de fazê-lo, porém, preciso dizer que essa visão foi assaz popular na época, ainda que houvesse alguns teólogos cristãos que dela discordassem. Veremos que o oponente mais conhecido foi um jovem diácono da igreja de Alexandria, chamado Atanásio. Ele, juntamente de outros teólogos, argumentara que Cristo tinha a mesma substância de Deus Pai e que eles eram totalmente iguais, e que jamais houve um tempo em que Jesus inexistia.
O Evangelho segundo João afirma que Jesus era o Lógos. O Lógos foi o instrumento de que se serviu Deus para criar todos os seres. Portanto, todos os seres diferiam totalmente de Deus. Ário sustentava, por isso, que Jesus não era Deus por natureza, embora tivesse sido promovido ao status divino pelo próprio Deus. Jesus diferia de todos nós, porque fora criado diretamente por Deus e porque serviu de meio para que Deus criasse todas as outras coisas. É preciso reter a ideia de que a divindade não era inerente a Jesus, segundo acreditava Ário. Ela era uma recompensa de Deus.
Ora, se Deus era Pai, então o Filho era anterior ao Pai e não poderia ser da mesma substância do Pai. Mas Ário estava convencido de que os cristãos foram salvos e divinizados por Jesus. Jesus lhes abriu o caminho. Jesus viveu uma vida humana perfeita; se não tivesse sido humano, concluía Ário, não haveria esperança alguma para nós. Ele tinha de ser humano, ou melhor, perfeitamente humano, para que fosse um modelo a ser imitado. Era na contemplação da vida humana e perfeita do Filho que os cristãos se tornariam divinos. Imitando Jesus, eles se tornariam “perfeitas criaturas em Deus”.
Deve-se sublinhar que, enquanto Ário situava Jesus no mundo criado, Atanásio o situava no mundo divino. Ário se preocupou em enfatizar a diferença essencial entre o Deus único e todas as suas criaturas. Ário era um homem muito versado nas Escrituras e se valeu de uma grande quantidade de seus textos para endossar sua doutrina. Para ele, Cristo, o Verbo, era apenas uma criatura como nós, ou seja, era humano.
Segundo o livro dos Provérbios (8: 22), Deus criou a sabedoria já no início: “O Senhor me possuiu no princípio de seus caminhos, desde então, e antes de suas obras”. A Sabedoria, de acordo com esse texto, foi o agente da criação. Essa mesma ideia se topa em João (1:3) – “Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do foi feito se fez”. Em João, lemos que O Verbo estava com Deus no início.


3. A visão gnóstica no século IV

No século IV, os cristãos comungavam da visão gnóstica do mundo, à luz da qual este mundo era inerentemente imperfeito e frágil. Esse mundo – mundo que habitamos – era separado de Deus por um abismo.. O cosmo era frágil e totalmente dependente de Deus. Isso está no cerne da doutrina da criação ex nihilo. Deus e os homens eram muito diferentes. Deus criara do nada abissal cada um dos seres que habitam o mundo e podia, quando quisesse, abandoná-los.

“Não havia mais uma grande cadeia grande cadeia do ser eternamente emanando de Deus; não havia mais um mundo intermediário de seres espirituais que transmitiam o mana divino ao mundo (Armstrong, p. 148)”.


A ascensão de homens e mulheres na cadeia do ser a Deus não poderia se dar por esforços próprios deles. Apenas Deus, que os criara a partir do nada, poderia garantir sua eterna salvação. Somente Deus que lhes conservava a existência é que podia salvá-los da morte eterna.


4. A figura salvífica de Jesus Cristo

Os cristãos estavam convencidos de que Jesus Cristo os salvou quando de sua morte e ressurreição. Estavam certos de que, graças a Jesus, eles haviam se livrado da extinção e de que, um dia, viriam a tomar parte da existência de Deus, que é o Ser e a Vida. Cristo lhes permitiu ultrapassar o abismo que se interpunha entre eles e Deus. Mas havia um problema: De que modo o fez Jesus?
Cristo, o Verbo, afinal, pertencia ao reino divino ou à frágil ordem criada? Em suma, a questão que perturbava Ário e Atanásio, particularmente, era a de determinar a natureza de Jesus.


5. A visão de Atanásio

Atanásio, bispo de Alexandria e opositor de Ário, era menos otimista no tangente à capacidade humana de conhecer verdadeiramente a Deus (entenda-se: participar da substância de Deus). Ele via a humanidade como inerentemente frágil, já que proviemos do nada e retornamos ao nada quando pecamos.
É tão-somente por meio de seu Lógos que Deus dá ao homem a graça da salvação. É porque  só Deus é o Ser perfeito que o homem se livra da aniquilação. O Lógos não poderia contribuir para salvar o homem, se fosse ele mesmo, Lógos, humano. Segundo Atanásio, o Lógos se fez carne para nos dar vida. Descera ao mundo perecível e corruptível para nos ofertar uma parte da imortalidade de Deus.
Na reunião em Nicéia, em 20 de maio de 325, os bispos, preocupados em resolver a crise, não estavam todos de acordo com Atanásio. A maioria deles preferiu adotar a posição intermediária entre Atanásio e Ário. Não obstante, Atanásio conseguiu impor sua doutrina. Sob a vigilância do imperador, apenas Ário e dois tenazes companheiros se negaram a assinar o credo. Destarte, a doutrina da criação ex nihilo se tornou oficial, não sem a ressalva de que Cristo não era uma simples criatura ou éon (emanação de Deus). O Pai, o Criador; e o Filho, Redentor, eram o mesmo (Armstrong, p.151).
A verdade é que unanimidade fora sempre estranha à história do desenvolvimento dos cristianismos primitivos. Constantino se agradava do acordo, conquanto nada soubesse de questões teológicas. Após o concílio de Nicéia, os bispos persistiam em ensinar o que ensinavam antes, e a crise prolongou-se por mais sessenta anos (Armstrong, p.152).
Atanásio enfrentou dificuldades para tornar seu credo aceitável, não por acaso foi exilado cinco vezes. A que se devia – vale perguntar – a dificuldade para tornar sua doutrina aceitável? Em parte, a dificuldade repousava sobre o termo grego homoousion (“feito da mesma substância”). Tratava-se de um termo que acarretava muita controvérsia, dado que não era atestado nas Escrituras e tinha uma conotação materialista.
Ademais, a doutrina de Atanásio ignorava muitas questões importantes. Por exemplo, conquanto declarasse que Jesus era divino, silenciava sobre como o Lógos poderia ser “da mesma substância” do Pai sem ser um segundo Deus.

5.1. A contribuição de bispo Marcelo

Em 339, coube aos bispo Marcelo, de Ancira – amigo fiel de Atanásio – dar uma solução ao problema, afirmando que o Lógos não podia ser um ente eterno. O que era, pois, o Lógos? Segundo Marcelo, era tão-somente uma qualidade interna de Deus. Em vez do termo problemático homoousion, Marcelo sugeriu o termo homoiousion, que significa “de natureza semelhante”. Muitos cristãos estavam, no entanto, tenazmente convencidos da essencialidade da divindade de Cristo. Tal como Marcelo, eles temiam que se dissolvesse a unidade divina. Marcelo parecia acreditar que o Lógos era apenas uma fase temporária: ele emergira de Deus na criação; fez-se carne em Jesus e, uma vez completando a redenção, tornaria a integrar a natureza divina, de modo que o Deus Uno fosse completo.
Marcelo acabara por convencer Atanásio de que suas visões eram conciliáveis. Os que sustentavam ser o Lógos da mesma substância e os que sustentavam que ele era semelhante em natureza com o Pai eram irmãos, que só discutiam sobre terminologia. Essa saga manobra ideológica de Marcelo visava claramente a consolidar uma aliança de poder no interior da Igreja. Ao delimitar sua posição político-teológica, Marcelo identificava, ao mesmo tempo, um adversário em comum: Ário. Era Ário que devia ser promovido à condição de adversário, pois que era ele quem afirmava que o Filho era completamente distinto do Pai e que tinha uma natureza também diferente. O leitor talvez esteja, a esta altura, convencido de que todos os debates eram infrutíferos, conforme nos assinala Armstrong, “para alguém de fora, essas discussões teológicas são pura perda de tempo: ninguém consegue provar nada em definitivo e a disputa só cria dissensão” (p. 153). De fato, mas, prosseguindo Armstrong, “para os participantes, esse debate nada tinha de árido, mas abordava a natureza da experiência cristã” (ib.id.).
Àrio, Atanásio e Marcelo concordavam, no entanto, na ideia de que Jesus trouxe ao mundo algo novo e não mensuraram esforços para dar conta disso, por recurso a conceitos simbólicos. Somente por meio de símbolos se poderia alcançar realidades inefáveis.
A tendência dogmática, tão profundamente marcante na história cristã, viria a exigir a adoção de símbolos corretos ou ortodoxos.

“Essa obsessão doutrinária, única do cristianismo, podia facilmente levar a uma confusão entre o símbolo humano e a realidade divina. O cristianismo sempre foi uma fé paradoxal: a poderosa experiência religiosa dos primeiros cristãos superava suas objeções ideológicas à infâmia de um Messias crucificado. Agora, em Niceia, a Igreja optaria pelo paradoxo da Encarnação, apesar de sua visível incompatibilidade com o monoteísmo” (ib.id.).


Espero, pois, esteja claro que grande parte da Igreja cristã, à época, estava dividida no tocante à questão de determinar se Jesus era da mesma substância que o Pai ou se era apenas de  “substância similar”. Historiadores posteriores notaram, com alguma ironia, que a Igreja estava dividida apenas pela letra “i”: homoousias ou homoiousias.


5.2. Os teólogos de Capadócia e a Igreja cristã ortodoxa oriental

 A dúvida acossava ainda os cristãos: se só existia um Deus, como o Lógos poderia ser divino?
Três eminentes teólogos da Capadócia, no leste da Turquia, apresentaram uma solução que acabou por satisfazer a Igreja ortodoxa oriental. Eram eles Basílio, bispo de Cesária (329-79), seu irmão Gregório, bispo de Nissa (335-95), e seu amigo Gregório de Nazianzo (329-91).
Os capadócios eram profundamente espirituais e muito se agradavam da especulação filosófica; todavia estavam convencidos de que somente a experiência religiosa poderia solucionar o problema de Deus.
Esses teólogos eram versados em filosofia grega e, portanto, não encontraram dificuldade em constatar uma diferença fundamental entre o conteúdo factual da verdade e seus aspectos mais vagos.
Platão estabelecera uma oposição entre a filosofia, fundada na razão e, por isso, demonstrável, e o ensinamento, não menos importante, irredutível à demonstração científica. Aristóteles, por seu turno, havia notado que as pessoas iam aos cultos dos mistérios não para aprender (mathein), mas para experimentar (pathein). Inspirado em Aristóteles, Basílio fez a mesma distinção num sentido cristão. Para Basílio, havia dois tipos de ensinamentos: dogma e kerygma. Trata-se de ensinamentos essenciais à religião. Kerygma é o ensinamento ministrado pela Igreja ao público. Ele se baseia nas Escrituras. Dogma, a seu turno, representa a verdade bíblica em seu sentido mais profundo, somente apreensível pela experiência religiosa e exprimível pela forma simbólica.
Destarte, foi gestada a crença de que, a par da clara mensagem dos Evangelhos, havia um ensinamento secreto ou esotérico transmitido pelos apóstolos. Os símbolos litúrgicos e os ensinamentos de Jesus ocultavam um dogma que expressava uma compreensão mais elaborada da fé. Logo, a distinção entre esotérico e exotérico seria indispensável à história de Deus. Judeus e muçulmanos – não só cristãos – também desenvolveriam uma tradição esotérica.
O que Basílio queria mostrar é que nem toda verdade religiosa podia ser expressa e definida pelos cânones lógicos. A ideia de doutrina “secreta” significava irredutibilidade à explicação lógica, e não conhecimento privado de iniciados. Como todas as religiões se ocupam de uma realidade inefável, que transcende os conceitos e as categorias do entendimento humano, é de se esperar que o discurso produzido sobre ela seja confuso.
Portanto, segundo Basílio, as Escrituras encerram um significado espiritual nem sempre explicável. É preciso frisar o que separava fundamentalmente a Igreja cristã ocidental da Igreja cristã oriental. No ocidente, a Igreja cristão construiu sua teologia com base no kerygma; na Igreja ortodoxa grega, por outro lado, toda considerável teologia era silenciosa ou apofática. Segundo o entendimento de Gregório de Nissa, o conceito de Deus é um mero simulacro, uma falsa imagem, um ídolo. Jamais revela Deus. Deus em sua essência é incognoscível. Portanto, os cristãos deviam eliminar de sua fé quaisquer conceitos.
Quando nos debruçamos sobre a história dos estudos dos primórdios do cristianismo, encontramos a oposição entre a ortodoxia (a crença certa) e a heterodoxia (crença diferente). A heterodoxia, quando em confronto com a ortodoxia, era vista como heresia. Evidentemente, todos se consideravam ortodoxos, ou seja, todos achavam que estavam certos. Quando as pessoas supõem que suas crenças estão erradas, em geral, se apressam a abandoná-las pelas crenças corretas.
O desenvolvimento do cristianismo fez proliferar as tentativas de elucidar a natureza de Jesus. O problema – vale reiterar – que preocupava os pensadores cristãos consistia em explicar como Jesus podia ser divino, se havia um único Deus. Grande parte dessas tentativas, em que pese sua aceitação periódica, acabou por ser rejeitada. Para alguns cristãos proto-ortodoxos, elas eram plenamente aceitáveis; para outros, no entanto, eram heréticas (Ehrman, 2010, p. 275)
Retomando a posição de Atanásio, após muitas disputas que se estenderam durante o século IV e, mesmo parecendo certa a vitória de Ário, foi a visão de Atanásio que atraiu a unanimidade entre os  Pais da Igreja. A posição de Atanásio viria a se tornar, portanto, a posição ortodoxa.
No que consistia a visão de Atanásio sobre o problema atinente à natureza de Deus? Ela consistia na afirmação de que há três pessoas em Deus. Elas não são diferentes entre si. No entanto, cada uma delas é igualmente Deus. Todas as três são seres eternos.Todas são feitas da mesma substância de Deus. Eis o que se consagrou chamar a doutrina da Trindade.
No texto do Catecismo da Igreja Católica (2000), registra-se o seguinte no tocante à doutrina da Santíssima Trindade:

A Trindade é Uma. Não professamos três deuses, mas um só Deus em três pessoas (...) As pessoas divinas não dividem entre si a única divindade, mas cada uma delas é Deus por inteiro: “O Pai é aquilo que é o Filho, o Filho é aquilo que é o Pai, o Espírito Santo é aquilo que são o Pai e o Filho, isto é, um só Deus por natureza (p. 76 – ênfase no original).


Faz-se mister salientar que essa doutrina não se encontra explicitamente no Novo Testamento. Nem mesmo no Evangelho segundo João, no qual Jesus é retratado como divino. Aí é discutível a ideia de que três pessoas formariam uma única substância. Escribas posteriores ficaram atônitos com tal lacuna, o que os levou a inserir, em pelo menos um ponto, uma referência explícita à Trindade (1 João 5: 7-8).
Como se vê, a Trindade é uma invenção cristã posterior, que se assenta, segundo Atanásio e outros pensadores cristãos que com ele concordavam, em passagens das Escrituras, muito embora, na verdade, não apareça em nenhum dos livros que compõem o Novo Testamento. Em seu Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? (2010), Ehrman nota que:

“Em três séculos Jesus deixou de ser um profeta apocalíptico judeu para se tornar o próprio Deus, um membro da Trindade. O cristianismo inicial é decididamente impressionante” (Ehrman, p. 280).



Doravante, concentremos nossa atenção nos capadócios, a fim de, esclarecendo a relação deles com Atanásio, mais clara se torne a posição deste último.
Os capadócios estavam muito interessados – diria até, ansiosos – por explorar a ideia de Espírito Santo, a terceira pessoa da Trindade.
Os fiéis estavam embaraçosos com relação ao Espírito Santo. Eles não sabiam o que era, afinal, o Espírito Santo. Seria Deus ou algo mais?
Paulo afirmou que o Espírito Santo renova, cria e significa; todavia, todas essas atividades competem exclusivamente a Deus. Segue-se daí que o Espírito Santo tem de ser divino, e não um ente ou criatura.
É então que os capadócios buscam em Atanásio uma fórmula que lhe aproveitou na disputa com Àrio. Com essa fórmula, postula-se que Deus possui uma essência única (ousia), inacessível ao nosso conhecimento, e três expressões (hypostases) pelas quais ele se torna conhecido.
Por ousia, entende-se, desde os gregos (especialmente, em Platão e Aristóteles), “substância” ou “essência”. Por hypostases, as formas exteriores do objeto. A hypostasis significa expressão exterior da natureza interior a alguém. Assim, Deus só é acessível à experiência humana na forma de hypostases e permanece incognoscível como ousia. Em outras palavras, os homens só conseguem conhecer a Deus por meio de suas manifestações na forma do Pai, do Filho e Espírito, mas não são capazes de conhecer a essência de Deus.
Os capadócios viam uma diferença importante entre ousia e hypostasis. A ousia de um objeto é o que o faz ser o que ele é (sua essência); por seu turno, a hypostasis, é o objeto visto de fora. Por vezes, os capadócios usaram o termo prosopon para designar o que designava hypostasis. Originalmente, prosopon significava “força”, mas logo agregou vários significados. Por exemplo, por prosopon podia-se entender a expressão facial indicativa de um estado de espírito, ou ainda um papel ou personagem que o indivíduo assume conscientemente.
Hypostasis e prosopon passaram a significar também o eu individual tal como aparece ao observador. Por conseguinte, ao sustentarem que Deus é uma ousia em três hypostases, os capadócios queriam dizer que Deus em si mesmo é Uno, porque há apenas uma autoconsciência divina. No entanto, no momento em que dão aos homens uma pálida experiência de si, Deus o faz na forma de três pessoas. O si mesmo de Deus permanece inacessível aos homens.
Destarte, segundo Gregório de Nissa, as hypostases Pai, Filho e Espírito não devem ser identificadas com o próprio Deus, uma vez que são apenas três termos que se usam para falarmos das energeias (atos) pelas quais ele se deu a conhecer. Esses termos têm valor simbólico, já que servem para a expressão, em imagens, do inefável. Cabe, então, atentar para a lição de Armstrong, abaixo:

“Os homens têm experimentado Deus como transcendente (o Pai, oculto em luz inacessível), como criativo (o Logos) e como imanente (o Espírito Santo). Mas essas três hypostases são apenas vislumbres da Natureza Divina, que está muito além da imagística e da conceitualização. A Trindade, portanto, não deve ser vista como um fato literal, e sim como um paradigma que corresponde a fatos reais na vida oculta de Deus” (p. 158).



6. Considerações finais


Um estudo de Deus que o tome como objeto-de-discurso, como objeto cognitivo, à luz de uma hermenêutica da suspeita, ajuda-nos a compreender que Deus não se revela ao homem como Ser, porque não é senão um conceito/referente construído pela produção de textos que são formas de cognição social. O conceito de Deus é produto de elaborações da cognição humana, sócio-historicamente determinadas. É a própria instituição religiosa que dispõem de todo um aparelho ideológico-simbólico e de agentes especializados (teólogos e bispos) aos quais delega o poder de, servindo-se desse aparelho, fabricar, não sem dissensões e disputas, o conceito de Deus.
Dizer que Deus é Pai, que Deus é o Ser Único é produzir formas de categorizá-lo, a saber, é produzir operações pelas quais damos formas cognitivas a um referente que não existe fora do discurso. Essa categorização é uma operação cognitivo-discursiva e não se assenta, de modo algum, na posse do conhecimento de Deus como ser em si, origem de tudo, realidade transcendente. O único conhecimento de Deus possível, se considerarmos os pressupostos aqui adotados, é o conhecimento de Deus como objeto-de-discurso que enfeixa e expressa uma tradição sócio-histórica determinada, estruturada em valores, práticas discursivas e outras produções culturais, como as artísticas.
Na qualidade de referente, a saber, na qualidade de entidade do discurso, Deus é hipostasiado na fala dos homens, isto é, os homens falam dele como se falassem de uma substância que, embora oculta, necessariamente existe para além de toda história e antes da emergência de qualquer discurso sobre ela. Nesse caso, sem se darem conta disto, eles já estão transitando pelo terreno da ideologia, caso em que a consciência não se reconhece como produto de condições sócio-históricas.