sábado, 15 de março de 2014

"O tempo da escrita não se esgota" (BAR)

                                  

                             O homem medíocre

                                   Uma leitura


1. Notas introdutórias

A autoria nos blogs

Em comentário destinado a uma amiga, seguidora fiel de meu blog, observei-lhe que, segundo creio, o tempo dos blogs chegara ao fim. A razão por que creio que seja este o caso se deve à ausência de comentários que, outrora, eram fartos, em meu blog. Em momento algum, ocorreu-me que esse silêncio dos leitores talvez se devesse ao desinteresse deles por meus textos em função de sua baixa qualidade (dos textos). De certo modo, parece-me que eu mesmo tenho andado desestimulado com este gênero discursivo (o blog). Ainda que eu saiba que um ou outro blogueiro consiga prosperar no meio editorial, vindo a publicar livros graças à atividade como blogueiro, nunca aspirei, através do blog, a alguma projeção no mercado editorial. O meu blog veio à luz por uma razão bastante pessoal: eu necessitava exteriorizar-me. Não obstante, não pretendi jamais fazer dele uma espécie de diário (aliás, esta é a definição que lhe é atribuída – “diário eletrônico” – pelos especialistas nos estudos dos gêneros do discurso).
O que torna difícil a um blogueiro alcançar algum grau de notabilidade? Não está em questão (ainda que se pudesse aventá-la) o grau de competência do blogueiro como sujeito de escrita. Outra questão importante é saber por que os leitores tendem facilmente a silenciar sua presença como visitantes do blog. O caminho para responder a essas duas questões encontrei no livro de Dominique Maingueneau, Doze conceitos em análise do discurso (2010). Em um dos capítulos desse livro, o linguista e especialista em Análise do Discurso se dedica a discutir a questão da autoria; e uma das seções de seu texto é destinada ao tratamento do estatuto do autor em blogs. No que tange à influência do mídium sobre o estatuto do autor, observa Maingueneau:

“[o mídium] tem precisamente o efeito de minar certas condições de acesso ao estatuto de autor”.
(p. 39)


O primeiro problema relativo aos blogs, segundo o autor, diz respeito à sua proliferação. Veja-se o que ele nos diz sobre esse problema:

“Nada mais limita a produção, a não ser a boa vontade do blogueiro e, bem entendido, as restrições impostas pelo programa ou pelo servidor que o hospeda”.
(p. 40)


Na medida em que não há limites para a produção, exceto os relacionados ao programa, toda sorte de conteúdos pode ser divulgado, inclusive os mais triviais. A proliferação dos blogs torna a raridade uma qualidade difícil de ser atingida. Nota Maingueneau que a proliferação de produtores, bem como o desaparecimento dos responsáveis por filtrar os produtos disponibilizados ao público leitor, “tornam improvável o destaque de figuras proeminentes” (ib.id.). Os blogs favorecem uma confrontação direta entre “uma oferta virtual ilimitada e leitores aleatórios surgidos de uma multidão insondável”. Assim, por um lado, a proliferação de blogs, mediando a veiculação  dos temas ou conteúdos mais diversos, torna dificultosa a proeminência de blogueiros que exibem talento; por outro lado, uma vez aberto ao público em geral, o blog fica sujeito à leitura de uma grande quantidade indiferenciada de pessoas nem sempre qualificadas para avaliar as ideias do blogueiro. Além disso, pode-se esperar que blogs que encerrem textos cujos temas demandam um grau mais elevado de conhecimentos especializados possam desencorajar certo número de leitores ou provocar observações que não contribuem para a manutenção de um diálogo entre o produtor e o leitor. Uma das razões por que é difícil consagrar a qualidade de um texto é que seus leitores não são, muitas vezes, suficientemente especializados para avaliá-lo. No caso dos blogs, é comum que esses leitores façam parte de um “enxame de indivíduos pseudônimos que deixando “comentários” no site, se autodesignam avaliadores” (pp. 40-41). Isso, decerto, dificulta também a constituição de uma obra e, portanto, de uma imagem de autor consistente.
Maingueneau observa que a estabilidade dos textos não é segura e, por isso, torna-se incerta a construção de uma memória.

“A cada hora, a cada minuto, o texto colocado on-line pode ser modificado em seu conteúdo, em sua apresentação ou em sua posição na arquitetura do site; de modo que se torna impossível afirmar qual é a boa versão do texto”.
(p. 41)

No excerto acima, Maingueneau considera a questão da autoria relativamente ao problema de os blogs permitirem que os textos publicados sofram alterações segundo a vontade de seus produtores em curtos espaços de tempo. A construção de uma memória de autor depende de que seus textos não sofram grandes alterações ao longo do tempo. Diferentemente do que sucede com o texto tradicional, as modificações incessantes dos blogs se regulam por restrições de curtíssimo tempo: os blogs precisam ser renovados incessantemente, sob pena de seus seguidores se enfadarem de visitá-lo, o que os leva a passar para outros sites com um clique apenas.
Não pretendendo estender essa discussão para além dos limites dos propósitos a que ela se destina, refiro, sumariamente, o que torna difícil o reconhecimento dos blogueiros, consoante Maingueneau:

“O problema para os blogueiros que aspiram ao reconhecimento é se destacar da multidão de outros blogueiros”.
(p. 42).

A alusão ao problema da autoria no blog teve, unicamente, um propósito motivacional para o empreendimento que se seguirá. Minha escrita costuma ser autocrítica. Tenho por hábito colocar em questão meu próprio labor enquanto agente da escrita.

2. Uma proposta de leitura

Este edifício verbal se alicerça sobre um único objetivo estruturante: produzir uma leitura de uma seção dedicada ao tema do homem medíocre no capítulo cujo título é o próprio tema , na obra O homem medíocre (2011), de José Ingenieros. Minha leitura não pretende recobrir toda a extensão do capítulo, de modo que outras dimensões do homem medíocre, levadas em conta pelo autor, estarão de fora do escopo de minha leitura. Esse objetivo estruturante se orienta por outro objetivo, mais específico, que consiste em demonstrar de que modo esse tipo humano é socialmente produzido. A tese deste texto é que não basta apenas descrever esse tipo de homem; é preciso também – e principalmente – compreender como ele é produzido pela estrutura social. Não se tratará aqui de condenar a mediocridade, mas de compreender-lhe a gênese social. Que os medíocres existam é um fato que procura patentear Ingenieros; a mim caberá oferecer uma interpretação do modo como esse tipo humano, tal como é caracterizado pelo autor,  é socialmente produzido.

2. “No verdadeiro homem medíocre, a cabeça é um simples adorno”.

Começarei por apresentar como o homem medíocre é descrito por Ingenieros. O seguinte trecho, tomado ao autor, merece considerações. Nele me deterei a fim de interpretá-lo.

“Há certas horas em que o pastor ingênuo, fica assombrado ante a natureza que o envolve. A penumbra se espessa, a cor das coisas se concentra no cinza homogêneo das silhuetas; todas as ervas evaporam perfume com a primeira umidade crepuscular; aquieta-se o rebanho para deitar e dormir; o sino longínquo toca seu aviso vespertino. A impalpável claridade lunar se embranquece ao se derramar sobre as coisas, algumas estrelas inquietam com seu brilho trêmulo o firmamento e um rumor distante de riacho que brinca nos matagais parece conversa sobre misteriosos temas. Sentado sobre a pedra menos áspera que encontra à margem do caminho, o pastor contempla e emudece, convidado em vão a meditar pela convergência do lugar e da hora. Sua admiração primitiva é simples estupor. A poesia natural que o rodeia, ao se refletir na imaginação, não se transforma em poema. Ele é, somente, um objeto no quadro, uma pincelada, um acidente na penumbra. Para ele, todas as coisas sempre foram assim e continuarão sendo, desde a terra que pisa até o rebanho que conduz”.
(p. 37 – grifos meus)


Os fragmentos destacados, em negrito, servem de pistas para a interpretação que farei deste texto. Servem, de resto, para validar a minha interpretação. Ainda que assombrado com o mundo, o pastor ingênuo é aquele que não se questiona sobre a existência do mundo; o mundo, para ele, é algo dado; sua relação com o mundo é de passividade, ainda que as coisas do mundo, o real como presença pareçam convidá-lo à meditação. O pastor ingênuo é desprovido da admiração que alimenta o espírito filosófico. Sua admiração é um estupor. Ele permanece em estado de entorpecimento em face do mundo que o rodeia. A poesia do mundo não é traduzida em atividade criativa de sua inteligência, por isso o pastor não se interessa por explorar o significado das coisas que se põem diante de si. Ele é mero espectador. Ingenieros diz ser o pastor “mero objeto no quadro”, o que sugere a ideia de que ele, pastor, é só um ente entre os outros no cenário natural. É ainda um ente contingente como tudo o mais, que não dá à luz pensamentos reflexivos sobre o fato do Ser (do Real, de seu lugar no mundo). O pastor ingênuo é o típico conformista e conformado: ele está acomodado ao mundo e convencido da permanência de todas as coisas. Tudo que vê, que experimenta está disposto numa ordem imutável.

Acrescenta, a seguir, Ingenieros,

“A imensa maioria dos homens pensa com a cabeça desse ingênuo pastor”.
(p. 37)


Ingenieros nega ser possível a essa maioria de homens compreender uma linguagem que visasse a explicar “algum mistério do universo ou da vida”. Tampouco essa maioria está apta a compreender que tudo que existe e que conhecemos evolui eternamente (está em fluxo, em eterno devir, direi com base em Heráclito), que é possível ao homem aperfeiçoar-se “na contínua adaptação (...) à natureza”.
Sem certo nível ético e alguma educação intelectual – observa Ingenieros -, não são possíveis os ideais, senão os fanatismos e as superstições:

“Os que vivem debaixo desse nível [do nível ético] e não adquirem essa educação permanecem sujeitos a dogmas que os outros impõem, escravos de fórmulas paralisadas pela ferrugem do tempo”.
(ib.id.)

Aos que assim vivem, suas rotinas e seus preconceitos se lhe afiguram invariáveis. A mediocridade é definida por Ingenieros como a ausência de características pessoais que permitem ao indivíduo distinguir-se da coletividade social. O medíocre caracteriza um tipo de homem massificado, indistinto, absorvido pelos hábitos, pelos costumes da vida social. A sociedade, lembra Ingenieros – “oferece a todos o mesmo fardo de rotinas, preconceitos e domesticidade; basta reunir cem homens para coincidirem na impersonalidade” (p. 39). O homem medíocre é facilmente domesticado pela estrutura social. É aquele que, carecendo de características específicas, é produto do meio, das circunstâncias, da educação que herdou, das pessoas que lhe orientaram a vida: “a sociedade pensa e deseja por ele [sic.]”.
Ingenieros assume que a personalidade individual se forma no momento em que um indivíduo se diferencia dos demais; é, portanto, na relação com os outros, que desenvolvo minha personalidade. Essa personalidade é construída socialmente, ou seja, é construída na dialética da identificação-diferença. Para muitos homens, segundo Ingenieros, essa diferenciação permanece no imaginário.
O homem medíocre é alguém que

“Não tem voz, mas eco.” (p. 39)

É alguém cuja sombra “não há linhas definidas” (ib.id.). Os homens medíocres “atravessam o mundo às escondidas, temerosos de que alguém possa recriminar a ousadia de existir em vão, como contrabandista da vida” (p. 40).
É necessário fazer uma digressão, a fim de precisar o que o autor entende por ideal, visto que o conceito de ideal é a chave para a distinção entre os tipos de homem descritos pelo autor, entre os quais estão o homem medíocre, o idealista e o homem prático. No excerto abaixo, Ingenieros apresenta-nos o que chama de idealista perfeito:

“O idealista perfeito seria romântico aos vinte anos e estóico aos cinquenta; é tão anormal o estoicismo na juventude como o romantismo na idade madura. O que ao princípio acende sua paixão deve se cristalizar mais tarde em suprema dignidade: essa é a lógica de seu temperamento”.
(p. 25)


A forma como Ingenieros concebe o ideal, que tratarei de expor adiante, é também importante para distinguir entre os idealistas e o homem prático. No fragmento abaixo, o autor mantém que dos ideias depende o progresso (é interessante ver a influência da ideologia positivista sobre o pensamento do autor, ao dar um caráter eufórico à noção de progresso).

“Sem ideais seria inconcebível o progresso. O culto do “homem prático”, limitado às contingências do presente, implica em renunciar a toda imperfeição. O hábito organiza a rotina e não projeta nada para o futuro; só dos criativos a ciência espera suas hipóteses, a arte seu voo, a moral seus exemplos, a história suas páginas luminosas (...)”.
(p. 22)


Segundo Ingenieros, aos homens criativos devemos a vivacidade e a dinâmica da humanidade; os homens práticos não fazem outra coisa senão vegetar na sombra, se beneficiando dos esforços daqueles. Assim,

“Nada se pode esperar dos homens que iniciam a vida sem abraçar apaixonadamente um ideal: para os que nunca foram jovens todo sonho parece sem sentido. E não se nasce jovem: a juventude deve ser adquirida. E sem um ideal não se adquire”.
(p. 23)


Nesse trecho, cabe destacar o fato de Ingenieros não se referir à juventude como uma fase da existência humana, mas como uma qualidade daqueles que “abraçam um ideal apaixonadamente”. Segue-se daí que mesmo os que já não são mais jovens podem ser dotados de uma juventude que, de resto, é sinônimo de ideal. Creio necessário fazer outra digressão, a fim de que o sentido que produzo para esse fragmento de Ingenieros encontre apoio em certa compreensão teórica da linguagem. Dizendo muito brevemente – e correndo o risco de simplificar demais o que se segue – urge notar que ninguém diz ou escreve tudo que pretende dizer ou escrever. As palavras proferidas ou escritas estão cheias ou carregadas de silêncio. Nem a linguagem nem o silêncio são transparentes. O silêncio, porque atua no desvão entre pensamento-palavra-coisa, não se dá diretamente à observação. O silêncio não fala, mas significa. Ele é a realidade da significação; é o real do discurso (Orlandi, 2007, p. 29). Mas o silêncio de que falo não é o vazio; o silêncio está pleno de sentido. Ele não está disponível na superfície do texto; é fugaz; atravessa as palavras. O silêncio é o fundamento do sentido. A incompletude da linguagem é fundamental em todo discurso. Ao dizer, não dizemos tudo; temos a ilusão de dizê-lo. A incompletude é que torna possível o múltiplo, que é fundamento da polissemia.
Retomemos a interpretação do referido trecho de Ingenieros, com vistas a notar que todo idealista é jovem, ainda que tenha ele cinquenta anos. Trata-se de uma inferência que encontra apoio no texto, mas que não decorre de uma afirmação explícita do autor. Ela se baseia no silêncio (num deles) que escorre pelas palavras.
O que é, então, o ideal para o autor? Ingenieros não admite divórcio entre o ideal e a realidade. O ideal não é uma forma de mistificar o real ou de negá-lo, ou  mascará-lo. Veja-se o que escreve a esse respeito o autor, no trecho abaixo:

“Todo ideal é sempre relativo a uma realidade imperfeita. Não há ideais absolutos”.
(p. 19)

Além da relatividade dos ideais – ideia que está implícita -, o autor autoriza a construção da seguinte inferência: os ideais decorrem da própria imperfeição da realidade. Melhor dizer imperfectibilidade, a fim de evitar qualquer conotação valorativa. Toda realidade é imperfeita, porque inacabada. O inacabamento da realidade torna-a suscetível a ações transformadoras. Se a realidade fosse perfeita (acabada), os ideias não seriam necessários, como também desnecessário seria modificar-lhe a ordem.
Os ideais estão em permanente transformação (tal como a realidade) e buscam o aperfeiçoamento ilimitado. Cada época, observa Ingenieros, compreende certos ideais que assinalam melhor o futuro. E quando os ideais sucumbem, é porque não passaram de crenças falsas, “ilusões que o homem forja sobre si mesmo ou quimeras verbais que os ignorantes perseguem dando golpes na sombra” (p. 20).
Os ideais – parece claro – não são concebidos por Ingenieros como eflúvios da imaginação inoperantes no processo do real; ao contrário, escreve o autor: “sem ideais seria inexplicável a evolução humana” (ib.id.). Novamente, aqui o autor adere à crença positivista numa forma de progresso ou evolução da humanidade. Mas disso não me ocuparei. O que importa destacar, para os propósitos deste ensaio, é o fato de os ideias iluminarem nossas ações no mundo. Nossas ações são fatos do mundo tanto quanto o são os ideais relativamente ao processo histórico. Os ideais são como o motor do movimento do devir. Eles “vivem da verdade, que vai se forjando”, de modo que “nenhum ideal prosperará se não estiver de acordo com o seu tempo (p. 21).
Ideais são fontes de inquietude naqueles que os nutrem, por isso “os idealistas são obrigatoriamente inquietos” (p. 23).

2.1. Os medíocres e os idealistas

Considere-se, nesta seção, a oposição estabelecida pelo autor entre o tipo medíocre e o tipo idealista. Começarei pelo medíocre. Na verdade, retomo e desenvolvo as considerações anteriormente expostas sobre esse tipo de homem.
Os homens medíocres são desprovidos de personalidade (no sentido que lhe atribui Ingenieros). Eles vegetam no meio porque moldados por esse meio. Eles são homens domesticados, para os quais “tudo parece uma superfície quieta como no lamaçal”. Pela falta de personalidade, eles não são capazes de iniciativa e de resistência. Nada aprendem, nem ensinam. Vivem diluídos no tédio sem dele ocupar-se.
O homem medíocre, bem como a personalidade, em geral, só pode ser definido relativamente à sociedade em que vive; em outros termos, tendo em conta sua função social. Para Ingenieros, ao contrário do que acreditava Aristóteles e, mais tarde, Pascal, o homem normal não existe, nem pode existir, porque

“A humanidade, como todas as espécies viventes, evolui sem cessar. As mudanças operam-se de forma desigual em numerosos agregados sociais, diferentes entre si. O homem considerado normal numa sociedade não o é em outra [relativismo cultural]; o de mil anos atrás não seria o de hoje, nem o do futuro”.
(p. 43)


Ingenieros nos lembra a relatividade das normas, a relatividade dos padrões sociais de normalidade. Se o homem é uma espécie que evolui e, se é o homem que cria a norma, também esta muda conforme mudam as condições sócioeconômicas, culturais e políticas em que vivem os homens.
Ingenieros se apega a um ideal de perfeição humana, que seria atingido no término do processo evolutivo. O conceito de evolução é ambíguo: às vezes, parece recobrir a evolução darwiniana; outras, parece designar um processo de melhoria na vida social da humanidade. O homem medíocre é um meio entre o imbecil e o gênio, mas o é sem disso suspeitar.

“Sua característica peculiar, absolutamente inequívoca, é a sua deferência pela opinião dos outros. Nunca fala; sempre repete. Julga os homens como ouviu dos outros”.
(p. 45)


Numa passagem bastante interessante à compreensão do homem medíocre, Ingenieros escreve: “o homem é um valor social” (p. 46). Como valor social, o homem é sempre posicionado relativamente os demais homens na estrutura social. Como valor social, os indivíduos são definidos nas relações que estabelecem em si no interior da estrutura social.
O indivíduo, segundo Ingenieros, é produto da herança genética, a qual lhe fornece as faculdades mentais, e da educação, que compreende as influências do meio social do qual ele é um membro integrante. A ação educativa molda as tendências hereditárias à mentalidade coletiva de modo tal, que o indivíduo se aclimatiza na sociedade.
Três fatores definem a personalidade de um indivíduo: a) herança biológica; b) imitação social; c) variação individual. Consoante Ingenieros, a criança é um animal da espécie humana cujo desenvolvimento, na educação, é guiado pelos que a estão ao derredor. Ao longo do processo educativo, a criança aperfeiçoa a capacidade de distinguir entre as coisas inertes e os seres vivos, reconhecendo estes como seus semelhantes.
As influências do meio biossocial é decisiva em sua formação. Quando essa influência predomina na formação da personalidade da criança, ela se desenvolve (Ingenieros prefere a palavra “evoluir”) como um membro de sua sociedade. Como tal, a criança incorpora hábitos por imitação.
Com a maturidade, à medida que se desenvolvem e se enriquecem suas experiências individuais, o homem pode tornar-se uma pessoa distinta da massa indiferenciada que integra o tecido social. Ingenieros opõe a imitação, que desempenha um papel extremamente relevante na formação da personalidade, à invenção, responsável pela produção das características individuais. A imitação é sempre conservadora e a ela devemos a produção de hábitos; a invenção, por seu turno, possibilita o aperfeiçoamento individual e o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo mediante a imaginação.
É evidente que a vida em sociedade requer a adaptação do indivíduo à estrutura social; mas essa adaptação é variada e dependente do equilíbrio entre o que imita e o que inventa. O indivíduo pode imitar ou inventar conforme as disposições determinadas por sua herança genética. Também pode fazê-lo segundo as aptidões adquiridas graças à sua herança psicológica.
É a variação, segundo Ingenieros, que determina a originalidade. Para ele, “variar é ser alguém” (p. 47), diferenciar-se dos demais é afirmar um caráter próprio que nos liberta da condição de meros reflexos dos outros.


“A função capital do homem medíocre é a paciência imitadora; a do homem superior é a imaginação criadora”.
(p. 47).


Vê-se que Ingenieros estabelece uma relação hierárquica entre o homem medíocre (inferior) e o homem idealista (o superior). A persistência na imitação caracteriza a mediocridade num indivíduo, ao passo que uma imaginação criadora o liberta dessa condição. A que aspira o homem medíocre? Responde Ingenieros: “a se confundir entre os que o rodeiam” (ib.id.).
O homem original, ao contrário, tende a se diferenciar dos demais. Os homens medíocres são os que, submetidos a uma educação imitativa, copiam das pessoas que os cercam uma personalidade social perfeitamente adaptada.

“O homem medíocre é uma sombra projetada pela sociedade”(p. 48).


Sumariando o que se expôs até aqui, cumpre notar que o homem medíocre é aquele que:
a) sendo um imitador, está perfeitamente adaptado para viver em rebanho;
b) reflete as rotinas, os preconceitos e dogmatismos que servem à sua domesticidade;
c) herda “a alma da sociedade”.

Como os homens medíocres se caracterizam fundamentalmente pela imitação das características alheias, são eles desprovidos de ideais. A capacidade para imitar os padrões sociais é consequência do próprio processo de socialização, de modo que todos os homens, medíocres ou não, são imitadores da mentalidade social; no entanto, apenas os que não são medíocres exibem uma personalidade distinta, que é resultado de variações adquiridas no curso de suas experiências individuais.
Convém assinalar a semelhança entre o homem medíocre de Ingenieros e o filisteu de Schopenhauer. Em sua obra A sabedoria da vida (2012), o filósofo alemão identifica-o ao homem comum que vive ocupado com os prazeres sensuais (dos sentidos). O filisteu não tem gozos espirituais, não aspira a adquirir conhecimentos. Ele é caracterizado por uma apatia e lugubricidade que o privam de regozijar-se. Ele por nada se interessa. Os filisteus buscam relacionar-se com os que podem satisfazer as suas necessidades sensuais. Segundo Schopenhauer, o filisteu, “quando encontra-se com pessoas dotadas dessa riqueza interior [forças espirituais], acaba por se exceder em antipatia e até no ódio, porque sente em sua presença um sentimento importuno de inferioridade e uma inveja surda, secreta, que oculta com o maior cuidado, acumulando-a para que ela se converta em raiva muda” (p. 57).
Em Kirkegaard, o filisteu é o homem que se satisfaz tão-somente com as ofertas de entretenimento de sua sociedade. É o homem imerso e idiotamente feliz em suas rotinas. Tal como o homem medíocre, descrito por Ingenieros, o filisteu de Schopenhauer e de Kierkegaard experimenta a realidade em consonância com os limites estreitos fixados pelo meio que o circunda. Para um esclarecimento proveitoso sobre o filistenismo em Kierkegaard, remeto o leitor ao texto Kierkegaard e o filistenismo, publicado neste blog.
Em contraste com os homens medíocres, os idealistas tendem a se rebelar contra os dogmas sociais que os oprimem. Nota Ingenieros, no que toca ao comportamento desse tipo de homens, o que se segue:

“Resistem à tirania da engrenagem niveladora, rejeitam qualquer repressão, sentem o peso das honrarias com que tentam domesticá-los e tornam-se cúmplices dos interesses criados, dóceis, maleáveis, solidários e uniformes na mediocridade comum”.
(p. 24).


O tecido social se compõe de forças conservadoras, nem sempre perceptíveis, que massificam os indivíduos e repudiam as diferenças, condenando os que, resistindo às ondas da massificação, aos ventos robustos do conformismo esforçam-se por construir uma personalidade firme e distinta.
Os idealistas são individualistas, porquanto resistem às forças de massificação; o que não os impede de interessar-se pelo viver em comum, ou seja, pelo social. Segundo Ingenieros, “sua independência é uma ação hostil aos dogmáticos” (ib.id.). Ao contrário dos homens medíocres, os idealistas são conscientes do que são, por isso vivem animados pelo desejo de afirmar sua individualidade. Seus ideais podem tanto codificar a sua ventura suprema quanto acarretar uma eterna desventura. No tocante à noção e ao valor do individualismo, observa Ingenieros:

“Todo individualismo, como atitude, é uma revolta conta os dogmas e os falsos valores respeitados pelos medíocres; revela energias ansiosas por expansão, contidas por mil obstáculos opostos pelo espírito gregário. O temperamento idealista chega a negar o princípio de autoridade, foge dos preconceitos, destaca toda imposição, desdenha as hierarquias independentes do mérito”.
(pp. 30-31)


A individualização caracteriza o comportamento dos idealistas; por outro lado, a massificação molda o comportamento dos medíocres, que a ela aderem. Os ideais que tornam certo grupo de homens distinto contribuem para individualizar os seus membros. Os idealistas são indiferentes aos partidos, às seitas; e, se não encontram neles ideais que se afinam com os seus, conservam sua indiferença indefinidamente. Também não se admiram das leis cujos ditames não se refletem nos costumes; e resistem a mudar de opinião sobre os que as apóiam, tampouco são condescendentes com o sofrimento dos que as toleram.
Tendo apresentado a caracterização do homem medíocre feita por Ingenieros e tendo estabelecido a oposição entre esse tipo de homem e o tipo idealista, destino as próximas seções e subseções ao tratamento do modo como a sociedade fabrica os homens medíocres. Trata-se, conforme notei no início deste texto, de tentar fazer uma gênese desse tipo humano.

3. A fabricação do homem medíocre

3.1. O papel da socialização

Em A construção social da realidade (2007), Berger e Luckmann desenvolvem o conceito de socialização, distinguindo entre socialização primária e socialização secundária. Os autores observam, inicialmente, que a sociedade é uma realidade, ao mesmo tempo, objetiva e subjetiva. O fenômeno social se estrutura em três momentos, quais sejam: a exteriorização, a objetivação e a interiorização.
Todo membro individual de uma sociedade exterioriza seu próprio ser no universo social e interioriza esse universo como realidade objetiva. Os autores notam que “o indivíduo não nasce membro da sociedade, mas “nasce com a predisposição para a sociabilidade” e, consequentemente, para “tornar-se membro da sociedade” (p. 173).
Viver em sociedade significa tomar parte da dialética social. Em outras palavras, significa viver segundo os modos de exteriorização, interiorização e objetivação, que são momentos da socialização.
A fase inicial do processo da dialética social é a interiorização. Nessa fase, a criança apreende ou interpreta de modo imediato um acontecimento objetivo como acontecimento dotado de sentido. Em outras palavras, ela percebe esse acontecimento como resultado de processos subjetivos dos outros. Nesse momento, esse acontecimento torna-se significativo para ela.
A dialética entre os domínios objetivo e subjetivo da interiorização se esclarece quando entendemos que

“(...) a subjetividade dele é (...) objetivamente acessível a mim e torna-se dotado de sentido para mim, quer haja ou não congruência entre os processos subjetivos dele [outro] e os meus”.
(p. 174)


Portanto, a interiorização está na base da compreensão dos outros indivíduos com os quais nos relacionamos e da apreensão do mundo como realidade social dotada de significado. A interiorização é o processo pelo qual não só compreendo os processos subjetivos momentâneos do outro, mas também compreendo o mundo deles e me aproprio desse mundo, tornando-o o meu mundo também. No momento em que assumimos o mundo dos outros como nosso também, estabelecemos uma contínua identificação com esse outro. Agora, participamos cada qual um do ser do outro.
Quando esse grau de interiorização é atingido, tem início a socialização. A socialização é o processo de inserção ampla e consistente, contínuo e ininterrupto do indivíduo no mundo objetivo da sociedade ou de um setor dela (p. 175).
A socialização pode-se apresentar sob duas formas: a socialização primária e a socialização secundária.
A socialização primária é a forma de socialização que o indivíduo experiencia na infância, em decorrência da qual se torna um membro da sociedade. Essa socialização cumpre um papel, em geral, mais importante para o indivíduo e serve de base para toda a socialização secundária. A socialização secundária, a seu turno, recobre qualquer processo subsequente que insere o indivíduo em novos setores do mundo objetivo da sociedade. Essa socialização opera sobre indivíduos já socializados.
Quando nasce, a criança já encontra um mundo social objetivo organizado, no interior do qual ela será situada e no qual se dará seu desenvolvimento humano (psicossocial, cognitivo, emocional, etc.), por força do trabalho disciplinador, socializante levado a efeito pelos outros significativos (pais, avós, professores, etc.). O papel desempenhado por esses outros significativos merece aqui destaque. Em primeiro lugar, eles se impõem ao indivíduo em processo de socialização desde a infância. Em segundo lugar, as definições que eles fazem da situação desse indivíduo (por exemplo, “você ainda é uma criança”, “você ainda é incapaz de compreender isso”, “crianças levadas não ganham presente”, etc.) apresentam-se a ele como realidade objetiva.
No processo de socialização primária, a criança identifica-se com os outros significativos por diversos modos emocionais. Ela absorve os papeis e as atitudes dos outros significativos, ou seja, interioriza-os, assumindo-os como os seus.
Devemos salientar que é através dessa identificação que a criança construirá sua personalidade. A personalidade, socialmente construída, é produto de um processo dialético que envolve identificação e diferenciação, mas que, inicialmente, reflete as atitudes tomadas pelos outros significativos em relação ao indivíduo. Assim, a criança torna-se o que é mediante a ação dos outros significativos para ela.
O desenvolvimento da personalidade constitui um processo dialético no curso do qual a identificação que se dá pela ação dos outros coexiste com a autoidentificação. Também a identidade, objetivamente atribuída, se relaciona à identidade subjetivamente construída. Notam Beger & Luckmann que

“De fato, a identidade é objetivamente definida como localização em um certo mundo e só pode ser subjetivamente apropriada juntamente com este mundo”.
(p. 177 – grifo meu)


Finalmente, não custa lembrar que a linguagem constitui o mais importante veículo da socialização. Ora, a sociedade, a identidade e a realidade se cristalizam no sujeito através do processo de interiorização, e essa cristalização se dá concomitantemente com a aquisição da linguagem.
Espero que o que vim desenvolvendo acerca do fenômeno da socialização não deixe escapar à consciência do leitor a conclusão de que a constituição de uma mentalidade ou comportamento medíocre – o que seria o mesmo que dizer a constituição do homem medíocre – dependerá da forma como se desenvolve a socialização da criança, especialmente em sua modalidade primária. Se, ao longo desse processo, teve peso maior a identificação acrítica com os outros significativos, se o grau de domesticação do indivíduo excedeu o grau de diferenciação, é muito provável que viva entorpecidamente amalgamado com o entorno social.
A socialização é o processo geral de desenvolvimento do indivíduo humano. Há aspectos implicados nesse processo que me parecem ser determinantes na produção de homens medíocres. As próximas subseções serão destinadas à consideração desses aspectos.

3.2. O lugar das representações sociais

Na sociologia, Durkheim denominou a representação social de representação coletiva. O conceito de representação social recobre a relação entre significação, realidade e imagem. Na filosofia, esse conceito se situa no confronto entre dois pontos de vista: um à luz do qual uma realidade ontológica é encoberta por falsas aparências do mundo sensível (platonismo); outro à luz do qual haveria entre a realidade ontológica e o sujeito uma espécie de “tela de construção do real”, a qual seria a significação do mundo construída pelo sujeito.
Esse segundo ponto de vista, sustentado por Wittgenstein, entre outros, mantém que as representações não testemunham o mundo, mas são o próprio mundo. Assim, o conhecimento da realidade não se daria senão na forma de representações construídas pelo sujeito.
O que é, pois, uma representação social? Na psicologia social, as representações sociais supõem as faculdades humanas de simbolização e de atribuição de significados nas relações que os homens mantêm com a realidade. Essas representações são, portanto, definidas como conjuntos de crenças, conhecimentos e opiniões que os indivíduos, pertencentes a um dado grupo social, produzem e compartilham acerca de objetos sociais.
Durkheim as via como um dos principais tipos de “fatos sociais”. Para ele, as representações sociais são crenças, ideias, valores, símbolos que dão forma a modos de pensamento e sentimento, que são gerais e permanentes numa sociedade ou grupo social particular e que são compartilhados pelos membros dessa sociedade ou grupo como propriedade coletiva.
Convém destacar dois aspectos das representações sociais que, uma vez compreendidos, iluminam sua relação com o conceito de homem medíocre.
O primeiro aspecto tange ao fato, notado por Giddens, de que as representações sociais são dotadas de uma existência “virtual” fora das mentes individuais. Assim, essas representações se tornam apreensíveis quando tomam forma material em cartas, livros, jornais, documentos oficiais, etc., ou seja, em gêneros discursivos ou formas de linguagem. Esses gêneros ou materiais simbólicos codificam e indicam as representações sociais. São também os principais canais pelos quais elas são comunicadas no interior de uma sociedade.
O segundo aspecto é atinente ao fato de as instituições sociais serem construídas com base nas representações sociais. Importante é notar que as instituições sociais são responsáveis por cristalizar as relações sociais em padrões distintos e recorrentes, de modo que elas podem tomar a forma de costumes e, num nível mais formal, serem práticas juridicamente sancionadas.
A comunicação das representações sociais de um indivíduo a outro é a atividade básica nos modos como as pessoas se socializam tomando parte das representações compartilhadas em sua sociedade ou grupo social.
Portanto, a interação e a associação entre os indivíduos são intimamente dependentes da comunicação das representações sociais, em virtude da qual é possível manter a circulação das representações numa sociedade.
Tome-se, doravante, a relação entre linguagem e representações sociais. De imediato, um pressuposto se nos impõe: o homem, ao usar a linguagem, transforma o outro e, ao fazê-lo, é transformado pelos efeitos de sua fala.
A linguagem, sendo um produto da atividade social, sendo forma de ação social, reproduz, mediante os significados de suas expressões, os conhecimentos e os valores sociais cristalizados. Dito de outro modo, a linguagem reproduz uma dada visão de mundo, a qual é produto das relações desenvolvidas nas esferas de produção da vida material, a fim de garantir a sobrevivência do grupo social.
Durante o processo de aquisição de sua língua materna, a criança vai-se inserindo na história de sua sociedade. Essa inserção, que se vai tornando, ao longo do seu desenvolvimento psicossocial e cognitivo, cada vez mais consistente, leva-a a reproduzir o processo de hominização através do qual os homens se produziram. É assim que ela torna-se, ao mesmo tempo, produto e produtora da história do seu grupo social.
O processo de reprodução das relações sociais, que tem seu início na infância, encontra raízes no modo como a criança, ao usar a linguagem, constrói as representações sociais, as quais se definem como rede de relações que ela, criança, estabelece entre significados e situações vivenciadas e importantes para a sua sobrevivência. Evidentemente, a criança constrói essa rede de relações a partir da situação social a que está vinculada.
Assinale-se, ainda, o fato de que as representações sociais se produzem no discurso, ou seja, nas práticas sociocomunicativas, historicamente determinadas, nas quais o sujeito avalia a posição de seus interactantes – também sujeitos sociais - , tendo em vista o controle e coordenação de seus comportamentos. É nesse momento que o sujeito busca construir um personalização. Assim, a representação social se estrutura com base nos objetivos da ação do sujeito social e também com base nos elementos que parecem favoráveis ou desfavoráveis às posições que ele assume.

3.3. Linguagem e ideologia
3.3.1. Notas elementares sobre o materialismo histórico

Quem quer que pretenda considerar seriamente o fenômeno da ideologia não pode escusar a menção à contribuição de Marx. Nesta subseção, farei alguns apontamentos sobre o método designado de materialismo histórico. Explicitarei alguns pressupostos relevantes ao desenvolvimento do que se seguirá. Não pretendo ser exaustivo. Direi, inicialmente, que a interpretação histórica proposta por Marx toma os acontecimentos históricos como fundados em fatores econômico-sociais, quais sejam, técnicas de trabalho e de produção, relações de trabalho e de produção). Marx, com a contribuição de Engels, sustentava que as formas históricas assumidas pelas sociedades humanas dependem das relações econômicas que predominam durante as fases que conformam o seu processo de desenvolvimento.
O materialismo marxista é um materialismo da práxis. A práxis é a relação dialética entre homem-trabalho-natureza: para satisfazer suas necessidades, os homens constroem os meios necessários para tanto; quando atingem seu fim, os homens modificam a própria natureza. Ao modificarem a natureza pelo trabalho, os homens modificam a si mesmos. A noção de prática recobre a atividade concebida como fenômeno determinado por condições materiais independentes dela e, no entanto, modificáveis por ela. Só relativamente, entretanto, as condições materiais são determinantes, porque elas próprias são produto da ação histórica. Também só são materiais em um sentido muito relativo, porque a prática que as modifica na história é condicionada não só pela base material da sociedade, mas igualmente por fatores ideais.
Embora a infra-estrutura econômica (base econômica da sociedade) determine, em última instância, os fenômenos da superestrutura (fenômenos intelectuais, artísticos, políticos, jurídicos – domínio das instituições e das ideologias), não se segue daí que o domínio econômico seja o único fator determinante. A produção das ideias e das representações incide sobre a atividade material do homem, e os fatores superestruturais podem tornar-se determinantes da forma das lutas históricas.
Definirei, brevemente, os conceitos de classe social, ideologia e alienação, do ponto de vista marxista, visto que eles são importantes para compreender de que modo o homem medíocre é socialmente produzido. Quando consideramos a formação das classes sociais, devemos levar em conta que elas se constituem de indivíduos que se veem obrigados a sustentar uma luta contra outra classe. Assim, uma classe só se forma a partir dessa luta; do contrário, eles continuariam em confronto uns com os outros a fim de se determinarem como mais competentes. As classes sociais não são nem ideias nem coisas, mas relações sociais determinadas pelo modo como os homens se dividem no trabalho, na produção de suas condições materiais de existência, de modo a instaurar formas determinadas da propriedade, pelo modo como eles reproduzem e legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio das instituições sociais e políticas; e também pelo modo como representam para si mesmos o significado dessas instituições através de sistemas determinados de ideias que exprimem e escondem o significado real de suas relações (o que se chama ideologias).
Tomada em sua acepção geral, a ideologia é parte integrante da cultura de todos os sistemas sociais e, como tal, serve para explicar e justificar a existência de um sistema. Por exemplo, na família, a ideologia pode servir para definir a natureza e a finalidade da vida familiar; na religião, pode servir para manter um sistema de comportamentos em relação a forças sagradas.
Ademais, uma ideologia pode servir de plataforma para movimentos sociais e/ou  políticos que visam à transformação da sociedade. Nesse sentido, movimentos feministas, por exemplo, podem se servir de um conjunto de ideias que explicam e justificam suas ações e os objetivos pretendidos.
Não obstante o potencial revolucionário que pode assumir a ideologia, o conceito, em Marx, está intimamente ligado às condições de dominação de uma classe sobre a outra. Em Marx, a ideologia é uma ilusão necessária à dominação de classe. É o modo ilusório (ou seja, abstrato e invertido) pelo qual os homens representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Em consonância com Marx, poder-se-ia definir a ideologia como um conjunto sistemático de crenças, valores e atitudes que, refletindo os interesses de grupos dominantes, serve para perpetuar sua dominação e seus privilégios.
Mais adiante, retomarei o conceito de ideologia, com vistas a compreender sua relação com a consciência, momento em que trarei à cena a contribuição de Reich, à luz da qual podemos compreender, com mais clareza, de que modo a ideologia molda o ser mesmo do homem e, particularmente, do homem medíocre.
Alienação é um conceito, tomado a Hegel, e desenvolvido por Marx, no paradigma de seu materialismo histórico, para caracterizar a condição em que se encontram tanto os trabalhadores quanto a própria atividade de trabalho, no modo de produção capitalista, quando eles vendem sua força de trabalho e quando se dá a separação entre eles, trabalhadores, e o produto do seu trabalho.
A alienação é, para Marx, uma forma de relação historicamente determinada, ou seja, típica da relação capital-trabalho assalariado. Na alienação, o trabalho torna-se trabalho forçado, o homem, a natureza se separam completamente, e os trabalhadores não se reconhecem mais no produto de seu trabalho. O trabalho alienado é um trabalho exterior ao trabalhador, ou seja, um trabalho que não pertence à essência do trabalhador. O trabalhador não se afirma em seu trabalho, mas nega-se. Essa é a condição do trabalhador alienado: a de um trabalhador que, negando-se no trabalho, sente-se insatisfeito, infeliz e mortificado.
Por conseguinte, tudo que, na verdade, constitui condição e resultado da natureza interior do homem (a criatividade, o trabalho) aparece, na sociedade burguesa e na sua economia, como esvaziamento e alienação. Em suma, o trabalho alienado é aquele no qual o produtor não se reconhece no produto de seu trabalho, porque as condições desse trabalho, suas finalidades e seu valor não dependem do próprio trabalhador, mas do proprietário das condições do trabalho.
O conceito de alienação também será retomado, quando considerarei a relação entre a linguagem, o pensamento e a ação. Atendo-me à relação entre ideologia e linguagem, tópico desta seção, é importante dizer, de início, com base em Bakhtin, que toda palavra é constituída de fios ideológicos. De acordo com essa perspectiva, a linguagem é o lugar privilegiado da produção e reprodução da ideologia, particularmente da ideologia da classe dominante, que detém o poder econômico, político e o poder de pensar e “conhecer” a realidade. Esse poder torna-a portadora de “verdades” inquestionáveis e de valores absolutos. A realidade passa a ser compreendida, experienciada pelo resto da sociedade a partir dessas “verdades” e valores dominantes. As classes oprimidas e excluídas dessa esfera de poder já não percebem mais os antagonismos gerados pela dominação e vividos no cotidiano. Esses antagonismos são escamoteados e aparecem, por força das explicações ideológicas, como “naturais” ou “universais”.
A criança, portanto, ao falar, reproduz a visão de mundo do seu grupo social, as ideologias que enformam e cvonservam as relações sociais desse grupo, e é conduzida de modo que aja sem perturbar ou questionar a ordem vigente.
Esse processo de domesticação do indivíduo no processo social produz também rotulações que servem para posicionar os sujeitos como “anormais” ou “marginais”, caso se demonstrem resistentes ao processo de domesticação – e “normais” ou “bem adaptados”, sempre que se demonstram resignados a ele.
A ideologia determina e é determinada pelos comportamentos sociais dos indivíduos, bem como pela rede de relações sociais que constituem o próprio indivíduo. O homem constitui, pelo uso da linguagem, nas relações com o outro, o seu eu e o eu-do-outro e, por esse eu é constituído. Ou seja, o eu e o eu-do-outro se constituem reciprocamente nas relações que estabelecem entre si pelo uso da língua.
Retomando a noção de classes sociais, cumpre dizer que elas se definem como relações sociais na esfera de produção da vida material da sociedade (Marx). A relação de dominação que uma classe exerce sobre outra se reproduz por meio da superestrutura (ideologia e instituições). As instituições são responsáveis por determinar os papéis sociais e as relações sociais de cada indivíduo.
A seção seguinte será destinada à discussão sobre o conceito de consciência e sua relação com a ideologia. Nela, também me ocuparei da relação entre alienação, linguagem, pensamento e ação, visto que a consciência deve ser vista tanto relativamente à alienação quanto à linguagem, pensamento e ação.
Lançando as sementes dessa problemática, termino esta subseção notando que a forma primeira assumida pela consciência é a alienação, uma vez que os homens não se percebem como produtores da sociedade e como transformadores da natureza. Em A ideologia alemã, a consciência está intrinsecamente ligada às condições materiais da produção da existência, das formas de intercâmbio e cooperação, e as ideias originam-se da atividade material. Os homens, assim, por força da ideologia, não representam nessas ideias a realidade de suas condições materiais, mas o modo como essa realidade aparece na experiência imediata deles. Assim é que as ideias tendem a ser uma representação invertida do real, de modo que o que é origem se representa como consequência, e vice-versa.

4. Consciência e ideologia
4.1. Consciência social/ consciência de classe e consciência de si

A consciência não é mero fenômeno psíquico, mas um fenômeno de base material; ela é produto socioideológico. Ela se constrói nas relações sociais por meio das trocas linguísticas. Sua realidade é o signo (Bakhtin). É, portanto, pelo uso da palavra, que se constitui a consciência; é por meio da palavra, que se dá o contato da consciência com o mundo exterior a ela.
Tomada em sua relação com a consciência de classe, a consciência social é mais abrangente. Aquela é um processo em cujo cerne se acha o grupo a que um indivíduo pertence. Quando ele se percebe como um sujeito submetido às mesmas condições de opressão e exclusão de outros membros da mesma classe, ele, então, desenvolve a consciência de que essas condições são produzidas nas relações de produção que caracterizam a totalidade social num dado contexto histórico.
O desenvolvimento de uma consciência de si supõe a percepção pelo indivíduo do pertencimento a um grupo cujas condições sociais não foram escolhidas pelos membros desse grupo. O pertencimento a um grupo, cujas ações expressam uma consciência social pode contribuir decisivamente para o desenvolvimento pelo indivíduo de uma consciência de si.
Assim, o indivíduo consciente de si é necessariamente consciente de que é membro de uma classe social. Esta consciência é indispensável à transformação quer de suas ações individuais, quer de si mesmo, enquanto indivíduo.
Pelo exposto, não é difícil concluir que o homem medíocre não chega a desenvolver, em sentido rigoroso, uma consciência de si como sujeito social participante da dinâmica social. Sequer se percebe como um sujeito cujas condições reais de existência são as condições sociais de sua classe social – condições determinadas pelo modo de produção da vida material. Isso parece estar relacionado ao grau do modo como a estrutura social se encarna em seu ser, a intensidade com que a ideologia determina a estrutura de sua consciência.
Retomemos a lição de Marx sobre a ideologia, a fim de evidenciar como ele entende a consciência. Marx assentou suas teorias sobre a ideologia numa concepção materialista de consciência. À luz dessa concepção, a consciência é indissociável da matéria social – matéria que é as relações sociais, entendidas como relações de produção (em Marx, matéria também recobre o modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições materiais de existência e o modo como pensam e interpretam essas relações); a consciência  é um reflexo propriamente humano das condições materiais de existência.
Todas as ideias produzidas pelos homens – vale reiterar – estão intimamente vinculadas com o mundo material, ou seja, em última instância, com o modo de produção material de sua existência. Assim, uma consciência que se mantenha estritamente vinculada ao real produzirá ideias reais; por outro lado, uma consciência que se vai distanciando da realidade concreta (tome-se a consciência religiosa como exemplo) – por força do processo histórico-social da alienação do trabalho – tenderá a produzir ideias irreais, reflexos invertidos do real, embora permaneça vinculada ao mundo concreto, se bem que se torne um reflexo invertido dele, uma imagem distorcida dele.
Encerrarei este texto com a lição de Reich sobre o modo como a ideologia determina a consciência, dá forma a uma estrutura psíquica que, produzida por condições materiais da vida social, se adapta consistentemente a elas, reproduzindo-as. Antes, porém, retomo, conforme mencionado anteriormente, a questão da alienação e a relacionarei aos domínios da linguagem, do pensamento e da ação.

4.2.  A alienação: uma cisão no interior do próprio indivíduo

A constituição das classes sociais, a instituição da propriedade privada e a realização da divisão do trabalho produzem contradições permanentes entre os indivíduos. Um estado, portanto, cuja institucionalização se assenta sobre um conflito entre os interesses dos indivíduos, perturbando-lhe o sentimento de autodefesa individual produz condições nas quais o indivíduo, dependente da coletividade, é incapaz de defender seu interesse próprio senão dificultando a satisfação dos interesses dos outros indivíduos que compõem a sociedade.
Essa contradição permanente se enraíza na vida dos indivíduos, lançando-os uns contra os outros, dividindo-os em proprietários e não-proprietários. Um abismo entre o indivíduo e a espécie humana se deixa ver quando do distanciamento do homem de sua condição animal;  livre do jugo dos instintos naturais, o homem, pelo trabalho, começa a gozar de certa autonomia e, assim, a dominar a natureza. Nesse momento, o instinto dá lugar às formas especificamente humanas da consciência.
Sucede, contudo, que esse processo de humanização do homem não se dá sem a instituição de uma divisão entre os indivíduos. Assim, cria-se uma cisão entre o indivíduo e a espécie, e essa cisão assume a forma de uma separação entre a vida privada e a vida pública do homem.
A cisão entre o indivíduo e a espécie no interior dos indivíduos leva-os a terem de si mesmos uma visão fraturada, porque não se reconhecem como integrados numa espécie. A unidade do gênero humano é seriamente afetada pela divisão do trabalho e pela propriedade privada.
Os indivíduos se veem privados das condições que lhes permitem compreender claramente o que eles possuem em comum uns com os outros. Disso resulta que as diferenciações individuais são concebidas como independentes da história concreta e das condições materiais de vida dos homens.
Os próprios tipos humanos são produtos de condições socioeconômicas nas quais os indivíduos experimentam em si mesmos uma cisão entre o indivíduo e a espécie. Os medíocres são tipos individuais profundamente cindidos e absorvidos em estruturas socioeconômicas e ideológicas que lhes estorvam a percepção de si mesmos como agentes sociais capazes de atuar no sentido da transformação social. A alienação, portanto, produz as condições que conduzem os medíocres a adaptar-se resignadamente ao status quo, que não cessam de reproduzir, em virtude da assimilação das ideologias dominantes e dos padrões sociais a elas associados. 

4.3. Alienação e a relação entre linguagem, pensamento e ação

No domínio individual, a consciência deve ser pensada como um processo de que participam, necessariamente, o pensamento, a ação, mediados pela linguagem. O homem age no mundo, produzindo-o e transformando-o, e seu agir supõe a atividade de pensamento e planejamento. O homem pensa e planeja suas ações, e estas, depois de realizadas, são pensadas e avaliadas. Esse processo de avaliação e reflexão sobre as ações levado a efeito vai determinar o curso das ações subsequentes. Evidentemente, o pensar as ações que se executam só é possível por meio dos significados produzidos por uma língua.
O pensar é uma atividade fundamental nas ações individuais. Toda ação implica um não-agir. Se ajo de modo X, deixo de agir de modo Y. No entanto, ação e não-ação coexistem no pensamento para o indivíduo. Ou o indivíduo age ou não age, ou age de um modo tal, e não agirá de outro modo. O pensar ajuda-o a prever as consequências de suas ações e o leva a tomar uma decisão entre agir ou não agir.
Pensar a contradição entre ação e não-ação serve para justificar a decisão tomada. Pode dar-se o caso de a justificativa – que se constitui pela linguagem – ser produto subjetivo que reproduz a ideologia dominante. Isso é possível porque a linguagem, que constitui e estrutura o pensamento, é produto sócio-histórico, ao mesmo tempo em que constrói as relações sociais. Por isso, pensar uma ação pode, por vezes, servir à reprodução da ideologia dominante e, portanto, dos interesses da classe dominante.
No entanto, é também pelo pensamento, que jamais pode divorciar-se da ação, que se confrontam possíveis consequências, quer imediatas, quer mediatas. Pelo pensamento, o indivíduo pode recuperar experiências anteriores, identificando as circunstâncias nas quais as ações transformam um dado estado-de-coisas e as circunstâncias em que elas conservam o estatus quo.
Em suma, importa reter o seguinte: não é pelo pensamento que se transformam as reais condições de existência dos indivíduos ou grupos sociais – o que, de resto, seria aderir a uma forma ideológica de ver a relação do homem com o mundo. É na práxis que se podem modificar aquelas condições. Os antagonismos só se superam pelas ações de homens que, organizados em grupos, sindicatos, conscientes das causas reais de suas reais condições sociais de existência, são capazes empreender movimentos políticos revolucionários, manifestações que visam a subverter a ordem estabelecida, questionando as estruturas de dominação, pressionando as autoridades políticas, reivindicando melhores condições de vida, etc. Assim, todo o processo de transformação de uma dada ordem social supõe a ação refletida, teoricamente orientada por homens capazes de pensar as contradições no curso mesmo em que agem a fim de transformá-las.
No cotidiano, entretanto, os indivíduos agem por força dos hábitos. Essas ações habituais dispensam o pensar, e porque o dispensam, acabam por reproduzir os valores e as ideologias dominantes. Nesse sentido, elas servem à manutenção das relações sociais existentes marcadas pela opressão de uma minoria sobre uma maioria de indivíduos. Elas não transformam as condições sociais existentes, reproduzindo estruturas de consciência alienada.

4.4. O modo de ser da consciência

A ideologia não é o conteúdo da consciência, mas seu modo de ser. A ideologia não se compõe apenas de palavras, mas principalmente de atitudes e se constitui em práticas cotidianas, por vezes, permeadas pelo discurso.
Nessa seção última, considero o modo como Reich pensa a relação entre ideologia e consciência e define o conceito de caráter. Procuro mostrar que a contribuição de Reich contribui significativamente para pensarmos como o homem medíocre é produto de condições sociais determinadas.
Reich assume o postulado segundo o qual o homem não pode ser devidamente compreendido senão como totalidade, que reúne corpo e consciência. Destarte, o que quer que ocorra na consciência, racional ou instintivamente, também acontece no nível corporal.
Não se deve distinguir, por exemplo, em consonância com essa visão, uma doença somática de uma doença psíquica. Toda e qualquer doença – e tudo o mais que toca à realidade humana – deve ser pensada relativamente ao todo orgânico que é o homem.
Segundo Reich, tudo aquilo que o homem apreende em sua relação com o mundo é não só racionalmente analisado pela consciência, mas também é assimilado pelo domínio corporal, de modo que a estrutura fisiológica do homem se amolda às situações experienciadas por ele no meio biossocial.
A noção de caráter toma forma e consistência a partir do desenvolvimento dessa compreensão do homem como totalidade constituída por corpo e consciência interligados. Por caráter, Reich entende a maneira estereotipada de um indivíduo agir e reagir. Assim, o caráter não é um fenômeno ético-psicológico do indivíduo, mas uma realidade corporal e psicologicamente constituída.
Nossas escolhas e certas atitudes que tomamos têm a forma que têm em função das reações de nosso corpo. A consciência, a percepção e as decisões racionais ancoradas nelas estão intimamente ligadas ao corpo da pessoa.
O caráter não é o que a pessoa pensa ser, mas aquilo que ela é de fato. É, assim, o modo como ela vivencia o mundo, como ela se sente, como ela reage às vivências e às sensações no mundo.
Se, de uma perspectiva existencialista, que remonta a Sartre, admitirmos que o ser do homem é o nada, que o homem não se define por essência alguma, que é um projeto para o qual todas as possibilidades estão abertas, como explicar que todas as pessoas reajam de forma bastante padronizada? Como explicar a padronização de suas reações?
Nesse caso, é necessário admitir que a padronização dos comportamentos e das atitudes humanas é determinada de fora. Isso nos leva de volta à questão da ideologia.
A ideologia é um fenômeno eminentemente social; é uma prática de massas. Por outro lado, a sociedade se compõe de indivíduos e, a fim de que uma ideologia se torne expressão de um grupo social, necessário é que ela seja encarnada por cada indivíduo do grupo. Mas, como fenômeno individual, ela deixa de existir. Ainda assim, ela precisa ser interiorizada por cada indivíduo, para, somente então, assumir seu status de fenômeno social.
Ora, se é a ideologia que orienta e normatiza o pensamento e as práticas dos indivíduos, somente ela pode tornar as reações dos indivíduos ao mundo estereotipadas. Desse modo, a padronização das sensações e das reações humanas são explicadas: ela é essencialmente um fenômeno ideológico.
A concepção fenomenológica de ideologia, inspirada em Reich, consiste em tomar a ideologia  como um domínio material do processo social. A ideologia materializa-se – e só por isso é que existe concretamente –, na medida em que se encarna no ser do homem, ou seja, quando participa da estrutura de sua consciência.
O “nascimento” de uma ideologia é um processo através do qual uma dada estrutura social é interiorizada no homem, tornando-se ela mesma a estrutura psíquica do indivíduo.
O que Reich chama de caráter é, portanto, essa estrutura psíquica que se torna expressão da ideologia social. Noto, a título de acréscimo, que a estrutura psíquica do homem é, na realidade, segundo Reich, a estrutura dos instintos, na qual a libido desempenha um papel fundamental. Desse modo, a interiorização da ideologia social no indivíduo é realizada basicamente através da sexualidade, pois é o instinto sexual responsável por distribuir os fluxos de energia por todo o corpo.
A sexualidade, como objetive a satisfação, é, por natureza, libertária. Mas, uma sociedade cujos grupos vivessem apenas segundo o imperativo da libido não exibiria, de modo algum, os mesmos objetivos e características das sociedades que conhecemos. Freud negava que uma sociedade sob a regência da libido fosse possível; só pode haver vida social pela repressão, em algum grau, dos instintos, principalmente, da sexualidade. Se, em Freud, a sexualidade é reprimida em favor da cultura ou da civilização; em Reich, essa repressão se dá em nome da dominação – que, em última instância, é econômica.
Para concluir, é necessário fazer ver que o poder de domínio e fascinação da ideologia se deve ao fato de ela agir diretamente sobre a libido – a energia vital e fundamental do ser humano. Operando sobre os instintos, a ideologia é uma atitude pré-racional. A razão mesma só existe por um ato ideológico.
Assim, a estrutura de uma sociedade deve sua perpetuação aos modos como organiza os homens, cuidando para que eles sejam incapazes, pelos modos mesmos como estão organizados, de se rebelarem contra a ordem vigente.
É assim que as crianças passam a interiorizar ou introjetar as práticas sociais, de sorte que se habituam a responder de modo previsível aos estímulos do mundo e da sociedade. A introjeção dessas práticas, acrescida da repressão da sexualidade livre e dinâmica, acarreta as reações estereotipadas que se sedimentam no corpo, constituindo o que Reich chama de couraça muscular. Essa couraça é a própria encarnação no indivíduo da estrutura de caráter, que exprime a ideologia social dominante que reproduz cotidianamente o status quo.
De tudo que foi exposto, parece evidente que o homem medíocre, de cuja descrição nos dá testemunho Ingenieros, é produto de condições sócio-históricas nas quais a reprodução ideológica das estruturas de dominação e a influência incisiva da alienação no ser do homem constituem processos determinantes da constituição de consciências conformadas à estrutura social que elas encarnam.











sexta-feira, 7 de março de 2014

"Viver sem filosofar é o que se chama ter os olhos fechados sem nunca os haver tentado abrir." (Descartes)

                                                Resultado de imagem para Descartes


                                                        Filósofos em cena

                                        Cogito, ergo sum
                                                                    (Penso, logo existo)

Ao longo deste texto, debruçar-me-ei sobre a questão do Cogito cartesiano. Antes de atacá-la, serão necessárias algumas considerações prévias que lhe darão uma consistência contextual. Como a questão sobre a qual versa este texto se assenta na distinção entre alma e corpo, convém apresentar, em linhas gerais, como o conceito de alma (em oposição ao corpo) foi definido e desenvolvido na tradição filosófica. Posteriormente, vou-me deter a considerá-lo na filosofia de Platão, cuja posição sobre o tema determinou o caminho das especulações posteriores (cite-se a influência que o pensamento de Platão exerceu sobre o de Santo Agostinho). Em seguida, trago à cena o itinerário da filosofia de René Descartes, etapa em que me deterei a discorrer sobre a questão do Cogito.

1. Anima

Do latim anima, a alma se opõe ao corpo e é um dos princípios do composto humano. Trata-se dos princípios da sensibilidade e do pensamento. A alma torna o corpo vivo distinto da matéria inerte ou da máquina. Para Aristóteles, a alma é “o ato primeiro de um corpo natural organizado”.
Na filosofia antiga e clássica, a alma é tomada como sinônimo de espírito e se opõe ao corpo. Se, por um lado, o corpo está destinado à destruição, ao perecimento, a alma, por outro lado, é indestrutível. É preciso dizer, no entanto, que os antigos falavam de uma imortalidade da alma (ver Platão) e não do espírito.
Na filosofia contemporânea, usa-se apenas a forma espírito. A partir de Kant, questões como a imortalidade da alma não faziam mais parte da alçada da filosofia. Como nos interesse compreender o conceito de alma no racionalismo de Descartes, devemos ter em conta que, em sua filosofia, alma é sinônimo de espírito. Descartes concebia a alma como uma substância completamente distinta do corpo.
Na filosofia antiga e clássica, a alma era vista como o sopro ou princípio da vida e do movimento. Ainda que a ela esteja associado um sentido religioso, a alma ou o espírito recobre a atividade pensante e pode chegar a identificar-se com a mente.
Decerto, a ideia de espírito abriga as atividades intelectuais. Para os materialistas, não há o dualismo corpo-alma, de modo que a alma é tão material quanto o corpo, embora ela assuma uma forma mais sutil da matéria.



2. A alma para Platão

Que a brevidade com que tratarei da questão da relação entre a alma e o corpo em Platão não sinalize uma compreensão empobrecida ou descuido interpretativo meu é coisa com que me preocuparei ao situar o dualismo alma-corpo no pensamento platônico. Não é difícil sustentar que a filosofia platônica deu margem a uma interpretação dualista.
O problema da alma, em Platão, pode ser visto sob duas perspectivas: a primeira toca à relação entre a alma e o corpo e consiste em saber se a alma é ou não separada do corpo; a segunda diz respeito à imortalidade da alma. À parte a distinção feita por Platão entre corpo e matéria – que o cristianismo tratou de tomar como sinônimos -, para Platão, o corpo é mortal; e a alma, imortal. Platão nos legou a crença numa vida após a morte e também a crença em que a alma preexiste ao corpo. E muitas religiões se apropriaram dessa compreensão, ainda que seus doutrinadores sequer tenham consciência disso.
Platão sofreu, como se sabe, influência da doutrina pitagórica, que não só sustentava a imortalidade da alma, mas também a possibilidade de a alma, após a morte do corpo, habitar outros corpos. Ainda que eu esteja ciente de haver certas contradições em Platão, por exemplo, quando admite que o corpo é um suporte da alma tornando possíveis, assim, as sensações – entendimento este que aponta para uma imprescindibilidade do corpo em relação à alma -, mantenho-me no curso de uma interpretação dualista que, em todo caso, Platão autoriza, ao pensar a relação entre a alma e o corpo.
A alma é; o corpo também é. Assim, eles são o mesmo; no entanto, o corpo é a seu modo: é mortal, é perecível; a alma é imortal, imperecível. Nesse sentido, se opõem. A morte nunca atinge, no homem, a alma. Ela foge do corpo, escapando à morte. Daí depreender-se a ideia do corpo como cárcere da alma. Uma vez perecido o corpo, a alma se liberta. No mundo das coisas sensíveis, a alma existia habitando o corpo. Quando a morte atinge o homem, apenas o corpo perece; a alma, todavia, retorna a uma além-mundo donde proveio.
O argumento platônico – aliás como todo argumento – não pretende provar nada, mas convencer. E sua lógica supõe que tudo tem o seu contrário; o contrário da morte é a vida, mas não a vida cujo fim ela decretou: sua lógica não se encerra aí. Ela nos leva a compreender uma continuidade da vida no “além-vida-morte”. Destarte, antes de nascermos neste mundo, antes de vivermos esta vida, já vivíamos em outro mundo e uma outra vida.


3. O racionalismo de Descartes

Descartes (1596-1650), filósofo e matemático francês, é considerado na tradição da historiografia filosófica o pai da filosofia moderna. Embora seja conhecido por ter descoberto a lei da refração, em ótica, seu trabalho mais famoso é uma obra filosófica, intitulada de Meditações sobre a filosofia primeira. Ela orientou as especulações sobre a filosofia da mente e epistemologia por, pelo menos, trezentos anos.
Descartes ventilou questões atinentes ao modo como conhecemos o mundo, valendo-se, para tanto, de um ceticismo radical. A única coisa de que dizia poder ter certeza é de nossa própria existência. Essa certeza toma forma na máxima “Cogito, ergo sum”, traduzida, comumente, como “penso, logo existo”.
Seu objetivo, nas Meditações, era a construção do edifício do conhecimento sobre sólidas fundações. Ao submeter à revisão as crenças que tinha, Descartes se deu conta de que elas eram, por vezes, contrárias entre si. Resolveu, então, por ordem a esse emaranhado de crenças, de sorte que pudesse justificar uma proposição com base em outra por inferência.
Seria, evidentemente, dispendioso e mesmo impossível examinar uma crença por vez. Descartes decidiu, pois, lançar mão de um método: o método da dúvida. Por esse método, se questionava sobre a origem de suas crenças. Se a origem delas se revelasse falível, a crença devia ser descartada; se, ao contrário, se revelasse infalível, ele poderia estar seguro de que qualquer crença da mesma origem garantiria os princípios do conhecimento.
Descartes critica tudo que aprendeu na escola, porque não repousava sobre fundamentos ou princípios sólidos. Para se fundar na certeza, o conhecimento deveria iniciar-se pela busca de princípios absolutamente seguros. O método serve ao homem para conduzir bem a sua razão (para Descartes, a razão é a faculdade de bem julgar e de discernir o verdadeiro do falso). Serve-lhe também para procurar a verdade nas ciências. A busca da verdade depende de que sigamos um caminho reto, seguro e certo, isto é, um método.
O bom método deve exibir as seguintes características, segundo Descartes:

1) Deve permitir o conhecimento do maior número possível de coisas;
2) Deve compreender o menor número de regras possível;

O método cartesiano se pretende universal e se inspira no rigor da matemática e se assenta no encadeamento racional. Para Descartes, o método é sempre matemático, visto que no horizonte do filósofo estava o ideal matemático. A matematização do mundo era a ambição cartesiana. Para tanto, o conhecimento deve ser completo e inteiramente dominado pela razão.
Aspirando à brevidade, não vou apresentar as quatro regras fundamentais do método cartesiano. Passo, doravante, a considerar o porquê de Descartes ser considerado um racionalista. O estudo da filosofia de Descartes faz-nos ver o primado da Razão sobre os sentidos na busca pelo conhecimento e pelo estabelecimento da verdade. Descartes concebia o homem como um animal racional. Sustentava que a razão ou o bom senso era distribuída igualmente entre os homens, conquanto observasse que nem todos os homens se servissem dela corretamente, donde se segue a necessidade de um método para a boa condução da razão.
No século XVII, tempo em que vivera Descartes, o racionalismo é definido como a doutrina que, por oposição ao ceticismo, atribui à Razão humana a capacidade exclusiva de conhecer e de estabelecer a verdade. O racionalismo se opõe ao empirismo, por considerar a Razão como independente da experiência sensível. A razão é inata, imutável e igual em todos os homens. O racionalismo, em oposição ao misticismo, rejeita toda e qualquer intervenção dos sentimentos e das emoções (Descartes separa a Razão da Emoção). No domínio do conhecimento, a única autoridade admitida por um racionalista é a Razão.

3.1. As verdades primeiras

Por intuição, Descartes entendia um conhecimento direto e imediato, que nos permite aceitar uma coisa como verdadeira. A intuição é a visão da evidência. Uma idéia é evidente sempre que é uma ideia clara e distinta. Uma ideia clara se impõe a nós em sua verdade imediata, sem que possamos dela duvidar. Uma ideia é distinta quando não se confunde com nenhuma outra.
Segundo Descartes, além da intuição, precisamos nos valer do raciocínio discursivo, bem como da dedução. A dedução é uma demonstração que conduz o espírito (a alma) a uma conclusão certa, com base num conjunto de proposições que se encadeiam necessariamente umas as outras, segundo uma ordem: cada proposição deve estar ligada àquela que a precede e àquela que a segue.
Descartes advoga que devemos rejeitar como falsas todas as crenças das quais não podemos duvidar. Só devemos aceitar as coisas indubitáveis. A dúvida, em Descartes, não se confunde com a dúvida cética, que serve para sustentar a impossibilidade de o conhecimento humano atingir a verdade. Descartes objetivava a verdade; por isso, sua dúvida visava a encontrar uma primeira verdade, que se impusesse ao espírito de modo que ele aderisse a ela com absoluta certeza. Trata-se de uma dúvida metódica, voluntária, provisória e sistemática. Não é possível atingir a verdade, se, antes, não pusermos todas as coisas em dúvida. São falsas todas as crenças das quais não podemos duvidar. Por isso, Descartes rejeita os dados dos sentidos: eles, muitas vezes, nos enganam. Além disso, rejeita os raciocínios: por vezes, eles nos induzem ao erro.

4. O Cogito

Após duvidar de tudo, Descartes descobre a primeira verdade, expressa na fórmula Penso, logo existo. A primeira observação sobre essa máxima é que ela não é uma prova, não deve ser interpretada como uma prova. Ela é um saber imediato, uma espécie de intuição intelectual, por meio da qual se conclui do “eu penso” o “(eu) existo”.
Lembremos que duvidar de tudo que julgava saber não era o fim da filosofia cartesiana. Descartes não era um cético; ele buscou por em revista tudo aquilo  que acreditava ser verdadeiro, com vistas a atingir uma primeira certeza. Essa primeira certeza é a da existência de um “eu pensante”. Não podemos duvidar nem de que pensamos nem de nossa existência, já que o fato mesmo de duvidar é pensar e, para duvidar, precisamos, necessariamente, existir. Quem pensa é uma substância; como tal, precisa existir enquanto pensa. Tendo-se assegurado de sua existência, Descartes, perguntando-se sobre “quem sou eu”, conclui ser uma substância que pensa. Ele identifica o “eu” à alma; e a alma, ao pensamento. Assim, ele estabelece o primado do espírito, fazendo dele algo completamente distinto do corpo. Fica estabelecido o dualismo cartesiano: a alma é uma substância completamente distinta do corpo.
Com base na primeira verdade, Descartes chega à segunda verdade: a da existência de Deus. Ele argumenta que o exame das ideias desse “eu” leva à certeza da existência de Deus. É Deus quem garante as verdades matemáticas e nos permite, através delas, agir sobre o mundo. Deus também assegura a existência do mundo, campo da atividade humana. Recuperando o argumento de Santo Anselmo, Descartes “prova” a existência de Deus: por definição, o ser perfeito é aquele que possui todas as perfeições. A existência é uma perfeição; logo o ser perfeito (Deus) existe. Pressuposta, nesse argumento, está a ideia de que a existência é um atributo de Deus tanto quanto o é a perfeição.
Faço uma digressão, a fim de trazer à cena o chamado Argumento Ontológico de Santo Anselmo (1033 -1109), evocado por Descartes. Santo Anselmo, que se baseava no pressuposto segundo o qual não poderia haver oposição entre a Fé e a Razão, manifestava grande confiança na capacidade de a Razão poder demonstrar a verdade dos dogmas revelados. Ele era um verdadeiro racionalista, ainda que nutrisse grande confiança na Revelação. Santo Anselmo assume a premissa segundo a qual Deus é o ser perfeito além do qual não é possível pensar um ser maior e mais perfeito. Esse Ser não poderia existir apenas em nossa inteligência ou pensamento, porque, assim, poderíamos supor existir na realidade um ser ainda mais perfeito. Seres que existem na realidade são mais perfeitos do que os que só existem na inteligência. Como Deus é o ser mais perfeito além do qual nada maior pode ser pensado, é necessário que Deus exista tanto na inteligência quanto na realidade.
Volvemo-nos a Descrates. O sentido da fórmula “penso, logo existo” consiste em inferir a existência necessária de um eu pensante. A existência dessa substância pensante é a primeira certeza a que chegou Descartes, a qual resistiu à dúvida suscitada pelo argumento do Deus enganador. Essa primeira certeza também se mantém imune à dúvida cética.
O cogito é a fonte de todo o idealismo posterior: o pensamento é a única realidade que é imediatamente dada ao espírito, de modo que qualquer outra realidade deve ser deduzida dele. O idealismo cartesiano é uma filosofia dualista, porque define o corpo e a alma como duas substâncias completas, heterogêneas e essencialmente opostas. As ideias são separadas das coisas. As ideias são modos do pensamento, ao passo que as coisas são modos da extensão.
Fazendo eco a Platão, Descartes sustenta que, em virtude de o eu estar ligado a um corpo, o conhecimento que temos do mundo exterior é confuso, porque provém dos sentidos.

4.1. A distinção entre alma e corpo

Tomem-se excertos da obra Discurso do Método: Meditações (2008), nos quais ficam patentes a distinção entre o físico e o psíquico e a desvalorização dos sentidos como fonte de conhecimento. No primeiro trecho, a seguir, Descartes estabelece a separação entre alma e corpo:
“(...) quando examinara por que dessa não sei qual sensação de dor se segue a tristeza no espírito, e da sensação de prazer nasce a alegria ou então por que essa não sei qual comoção do estômago que se chama fome, nos faz ter desejo de comer, e a secura na garganta nos faz ter a vontade de beber (...) não podia apresentar nenhuma razão, senão que a natureza assim mo ensinava; pois certamente não há nenhuma afinidade e nenhuma relação, pelo menos que eu possa compreender, entre essa comoção do estômago e o desejo de comer (...)”.

(p. 130)


Nesse trecho, a separação entre o psíquico e o físico se depreende dos pares “sensação de dor” e “tristeza no espírito”, “sensação de prazer” e “alegria”, etc. As sensações situam-se no domínio corpóreo; e as emoções de tristeza e alegria, no domínio do espírito.
Abaixo, não é custoso ver a desvalorização dos sentidos como fonte segura para o conhecimento:

“(...) depois, muitas experiência foram pouco a pouco arruinando todo o crédito que dera aos meus sentidos: pois observei numerosas vezes que umas torres que de longe pareciam redondas, de perto se mostravam quadradas, e que uns colossos erguidos sobre as mais altas cumeeiras dessas torres me pareciam estatuetas quando as olhava de baixo (...) encontrei erros nos juízos fundados nos sentidos externos; e não só nos sentidos externos, mas até nos internos: pois há algo mais íntimo ou mais interno que a dor?”.

(p. 130-131)


Após alcançar a certeza de sua existência, Descartes conclui que a sua essência é ser uma coisa que pensa (é o pensamento). Eu sou uma substância pensante. No próximo fragmento, é patente a distinção entre alma e corpo. Destaco os trechos que marcam essa distinção:

“(...) embora talvez - ou antes certamente como o direi em breve – eu tenha um corpo ao qual estou muito intimamente unido, no entanto, porque, por um lado, tenho uma ideia clara e distinta de mim enquanto sou somente uma coisa pensante e não extensa, e, por outro, tenho uma ideia distinta do corpo enquanto é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é certo que eu, ou seja, a minha alma, pela qual sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta do meu corpo e pode ser ou existir sem ele”.

(p. 132)


Descartes não nega a íntima união entre alma e corpo, mas pensa o eu ou se percebe a si mesmo como independente do corpo. A alma e o corpo são tomados como ideias claras e distintas e, como tais, não se confundem; são concebidos como coisas separadas. Eu não sou o meu corpo; sou uma coisa que pensa.
Descartes segue apontando outras evidências que dão base à compreensão da alma e do corpo como duas substâncias completamente distintas. Descobre que aas faculdades de imaginar e de sentir não são indispensáveis para a consciência que ele tem de si mesmo. Essas faculdades dependem, no entanto, da substância pensante (o eu, a alma), à qual estão irremediavelmente ligadas.
Também outras faculdades como a de mudança de lugar não podem ser concebidas, ou mesmo não existiriam sem que estivessem unidas a alguma substância, que Descartes identifica com a substância corporal ou extensa. O conceito claro e distinto dessa substância (o corpo) dá a conhecer que nela há uma espécie de extensão, mas, de modo algum, inteligência. O que dá base para que a relacionemos a uma substância independente.
Descartes não duvida de que é dotado de uma faculdade passiva de sentir, isto é, “de receber e reconhecer as ideias das coisas sensíveis” (p. 132). Porém, a utilidade dessa faculdade depende da existência de uma faculdade ativa habilitada a formar e produzir ideias. Descartes, como se pode ver, subordina a faculdade da sensibilidade à faculdade da inteligência. No excerto abaixo, ele fornece mais um argumento para endossar a distinção entre alma e corpo:

“Ora, essa faculdade passiva não pode estar em mim enquanto sou apenas uma coisa que pensa, visto que ela não pressupõe o pensamento e também que aquelas ideias muitas vezes me são representadas sem que eu contribua de modo algum para tal e até mau grado meu; cumpre, pois, necessariamente, que ela esteja em alguma substância diferente de mim, na qual toda a realidade que está objetivamente nas ideias que são produzidas por essa faculdade esteja contida formal e eminentemente, como notei acima; e essa substância é ou um corpo, isto é, uma natureza corporal, em que está contida formal e efetivamente tudo o que está objetivamente e por representação nessas ideias; ou então é Deus mesmo ou alguma outra criatura mais nobre que o corpo, na qual aquilo está contido eminentemente”.

(pp.132-133, grifos meus)


Descartes recorre, por vezes, a Deus como uma espécie de fiador do conhecimento seguro do mundo. Deus não pode enganar, portanto, fica excluída a falsidade do domínio das ideias ou opiniões sobre as coisas sensíveis. Na passagem, a seguir, é mesmo estranho que Descartes chegue a suprimir a rígida separação entre alma e corpo, mas o texto não parece deixar margem à dúvida sobre essa supressão. Descartes reconhece que tem um corpo dotado de disposições, necessidades, que é capaz de sofrer efeitos como o de dor:

“A natureza também me ensina por essas sensações de dor, de fome, de sede, etc., que não estou só alojado em meu corpo como um piloto em seu navio, mas , além disso, a ele estou unido estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que componho como um só todo com ele”.

(p. 134)

Claro parece que não mais se distinguem corpo e alma. Descartes não só suprime a separação estrita entre a alma e o corpo (“a ele estou unido estreitamente), como também desliza facilmente da ideia de “união estreita” para a de “unidade” (“compondo como um só todo com ele”). Adiante, Descartes considera as sensações de fome, de sede, de dor como “maneiras confusas de pensar” e afirma que elas se originam “da união e da mistura do espírito com o corpo”. Agora, não faz sentido situar as sensações como atributos exclusivos do corpo. Elas assumem formas confusas da atividade do pensamento, porquanto decorrem da mistura do espírito com o corpo.
A natureza é concebida por Descartes quer como reunião ou complexo de todas as coisas dadas a mim por Deus, quer como reunião que compreende muitas coisas que só pertencem ao espírito, como a noção de verdade, a de infinitude, a de irreversibilidade do efeito no tempo, etc. Em sentido estrito, a natureza recobre apenas as coisas que Deus me dá enquanto sou um composto de espírito (alma) e corpo.
Sendo racionalista, Descartes sustenta que somente o espírito permite-nos ter acesso à verdade. O espírito não é responsável por dar vida ao corpo. Descartes diz ser possível ao corpo, concebido como uma máquina composta de ossos, nervos, músculos, etc., mover-se do mesmo modo. A natureza do homem é um composto de alma e corpo. Descartes reconhece que essa natureza é falha e se engana facilmente. Como, então, em face disso, assegurar a bondade de Deus?
A retomada da rigorosa distinção entre alma e corpo se acha no excerto a seguir:

“há uma grande diferença entre o espírito e o corpo”

(p. 137)

O corpo é, por natureza, divisível (res extensa); e o espírito (res cogitans) é inteiramente indivisível. O eu cartesiano é concebido como uma coisa absolutamente inteira. O eu ou essa coisa que pensa é representado como uma totalidade uma. É verdade que o espírito está unido ao corpo, ou assim pareça, mas a eliminação de uma parte do corpo não implica a subtração de qualquer das faculdades do espírito, segundo crê Descartes: a do querer, sentir, conceber, etc.
Essas faculdades estão intimamente ligadas ao espírito, pois que “é o mesmo espírito que se aplica inteiro a querer, a sentir e a conceber, etc.” (p. 137).
Sucede ao contrário com as coisas corporais ou extensas. Elas podem ser segmentadas em nosso pensamento. Nosso espírito pode dividi-las em muitas partes facilmente. Descartes extrai daí a conclusão segundo a qual “o espírito ou a alma do homem é inteiramente diferente do corpo” (p. 139).
O cérebro é a base das impressões recebidas pelo espírito. O espírito as recebe do cérebro. O componente físico atua sobre o mental: o espírito é afetado pela sensação quando o corpo manifesta algum sintoma. Por exemplo, a secura da garganta causa no espírito a sensação de sede, fazendo com que ele leve o composto à satisfação dessa necessidade.
Descartes reconhece que os sentidos indicam muito comumente o verdadeiro quando se referem às comodidades e incomodidades do corpo. O espírito pode servir-se deles para examinar uma mesma coisa e, com o auxílio da memória, relacionar os conhecimentos disponíveis no presente aos obtidos no passado. Graças ao entendimento, o espírito descobre as causas dos seus erros.

4.2. A relação mente-corpo

Há, ao menos, uma região da experiência que não se esclarece facilmente pela razão. Ao descobrir, com Descartes, que sou uma substância pensante, impôs-se-me a compreensão de que meu corpo é uma substância distinta de mim, cuja essência consiste em pensar. Ademais, dei-me conta de que há coisas materiais diferentes de meu corpo que se movimentam no espaço-tempo.
Descobri também que posso compreendê-las como figuras geométricas por meio do espírito. Não obstante, persiste o problema de saber como meu corpo – uma res extensa (coisa extensa) – pode interagir com a minha mente, a substância pensante que sou.
Descartes nos fez ver que o corpo age sobre a mente, quando, por exemplo, a sensação de sede causa-me o desejo de beber água. Todavia, quando nos detemos sobre a questão ainda não se nos afigura ao espírito clara e distintamente como um ato corporal pode afetar um sentimento na mente. Como o corpo, substância material, pode afetar a alma, substância imaterial?
A substância pensante é clara e distintamente acessível ao pensamento; o corpo também pode ser conhecido do mesmo modo, quando considerado como uma máquina. Mas, na medida em que eu sou um composto de alma e corpo, o modo como essas duas substâncias distintas se relacionam continua me sendo um mistério.
A esta altura, preciso esclarecer o que Descartes entende por substância. Para ele, é o que pode existir por si mesmo, é o que tem existência independente. Descartes foi chamado de dualista por assumir a existência de duas substâncias apenas, conforme vimos: a substância corpórea, que ocupa espaço e é divisível; e a substância pensante, que não ocupa espaço e é indivisível.
Mas o próprio Descartes reconhece ser Deus também uma substância, de modo que já não são mais duas as substâncias de que se constitui a realidade, mas três. Ocorre que a definição de substância por ele adotada supõe que ela seja algo independente, que existiria independentemente de qualquer outra coisa, o que nos leva a concluir que somente Deus, por definição, deveria ser considerado uma substância. Aliás, essa foi a posição assumida por Espinoza, que marcou sua filosofia como um monismo. 
Coube a Descartes conferir um lugar central ao problema da interação entre mente e corpo na filosofia. Ele se notabilizou pelo modo como o enfocou. Ainda que o dualismo corpo-mente fomente discussões calorosas na filosofia contemporânea, filósofos há hoje que reconhecem que o dualismo não fornece uma explicação satisfatória sobre o modo como pensamos a nós mesmos, à luz do que sabemos por meio da ciência atual.
O dualismo cartesiano não se desenvolveu nos mesmos moldes do dualismo medieval. Descartes postulou a existência de duas substâncias distintas: res extensa e res cogitans. Ele insistiu na independência dessas substâncias e julgou ser o “eu” uma consciência unitária e transparente a si mesma.
As faculdades mentais eram atividade de um “eu” presente e capaz de existir sem o corpo.
A teoria cartesiana enfrentou visões adversárias. Na concepção de Aristóteles, por exemplo, a alma, denominada de pneuma, era uma coisa física. O cristianismo jamais se desprendeu da ideia, forjada pela visão ortodoxa da Igreja, de que a ressurreição se estendia ao corpo e à alma, portanto, ao composto corpo-alma. Destarte, nem os cristãos se sentiram dispostos a acolher a visão cartesiana, que não cessava de fazer apelo ao Deus cristão, da existência de uma alma completamente independente do corpo.
A inovação de Descartes repousa em ter conferido à substância pensante independência relativamente ao corpo. Hoje, no entanto, dispomos de conhecimentos, advindos das ciências do cérebro, que endossam uma objeção de peso ao dualismo cartesiano: como sustentar que o pensamento seja independente do corpo, mais especificamente, do cérebro, se há evidências de que certas faculdades mentais são prejudicadas ou deixam de existir quando certas regiões cerebrais são lesadas? É certo que lesões no cérebro suprimem certas possibilidades de pensamento.
Não obstante, do ponto de vista lógico, a concepção de Descrates da imaterialidade da alma não deixa de ser válida. Ele notou bem que, no homem, a existência se funda na capacidade de o eu ser concebido como distinto do corpo. A noção de conceber tem um papel importante no postulado da distinção entre o corpo e a alma. Descartes argumentou que o que pode ser concebido como algo distinto poderia ser tomado como existindo de modo distinto. Descartes recorre a noção de Deus para assegurar que a separação fosse possível.
O raciocínio de Descartes esclarece-se com o seguinte encadeamento de ideias: se posso conceber o “eu” como uma substância pensante (um conhecimento que se me dá de imediato), então posso imaginar esse “eu” prescindindo de um corpo; desse modo, o corpo não precisa ser parte essencial da natureza do eu.
Espinosa assumiu, contrariamente ao dualismo cartesiano, uma posição que se acomoda bem à perspectiva funcionalista da mente. Segundo Espinosa, mente e corpo são uma mesma substância. Essa substância única encerra o atributo do pensamento e da extensão. A mente é um modo finito da substância infinita concebida como pensamento; o corpo é um modo finito da substância infinita concebida como extensão. Para Espinosa, portanto, mente e corpo são uma única coisa, ainda que, da perspectiva em que nos situamos, os concebamos como sistemas irredutíveis um ao outro.
No que tange à teoria funcionalista da mente, os estados mentais são considerados como componentes do software; e os estados corporais (cerebrais) são concebidos como componentes do hardware. À luz dessa concepção, fisiologistas e neurocientistas se ocupam da atividade cerebral como se estivessem considerando componentes do hardware; ao passo que psicólogos tratam das atividades mentais como sistemas de input e oupt de informação, ou seja, como propriedades de um software.