sexta-feira, 16 de agosto de 2013

"Regra é, em primeiro lugar, gestão da vida quotidiana." (Max Weber)

                        

"Poder é toda chance, seja ela qual for, de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra a relutância dos outros."
(Max Weber)


                                  A instituição religiosa
            Uma leitura introdutória da sociologia de Max Weber                            


As ideias articuladas por Bryan Magee, em seu Confissões de um filósofo (2001), no excerto abaixo, não me agradam por terem sido, até o momento em que as deparei, desconhecidas de mim, mas, ao contrário,  me agradam justamente por já terem sido, antes mesmo de elas se me depararem nesse livro, trazidas à luz por mim em alguns de meus textos. Não é razoável concluir daí que eu esteja a reivindicar a originalidade de tais ideias (coisa que não me ocorreria fazer, porque tenho consciência de que a originalidade, quando se trata de produção de ideias ou discursos, não passa de uma noção enganosa ou mítica). Se me agrado de tê-las encontrado na pena de Magee, é porque me apercebi da afinidade entre nossos pensamentos. Afinal, quem não se contentaria em topar ideias suas em obras de grandes autores, especialmente se eles são filósofos? Quando esse é o caso, podemos estar seguros de que nosso pensamento vem sendo desenvolvido por um caminho justo e sem desníveis. Atendamos, então, ao que nos escreve o autor:

“(...) Lorde Acton disse que se deveria aprender tanto com a escrita quanto com a leitura. É uma frase profunda. Escrever sobre um tema força a pessoa a estudá-lo de forma organizada e com um objetivo em foco; a ler toda a literatura essencial a respeito dele; a cobrir todo o terreno, sem deixar lacunas substanciais; e essa atividade oferece um forte motivo para esclarecer os detalhes mais triviais, para não deixar passar erros”.
(ÊNFASE MINHA, p. 36)



A ideia básica segundo a qual escrever nos incita a nos deter no estudo prévio de um tema se afina com a ideia de que o próprio trabalho de escrita supõe uma reelaboração do conteúdo compreendido. Durante a atividade de escrita, o conhecimento que adquirimos, depois de algum tempo em que estivemos debruçados sobre um livro, é sistematizado, reorganizado, reconstruído, reconhecido, de sorte a tornar-se ainda mais transparente e aderente ao nosso espírito. Em suma, aprendemos tanto com a leitura quanto com a escrita. Por conseguinte, a ideia de que o exercício da escrita contribui para nos esclarecer ainda mais sobre temas ou questões que nos ocupam conveio a mim, em certa feita, em que me questionava sobre os fins a que servia minha laboriosa dedicação a esse exercício. A minha formação acadêmica, em si mesma, parecia-me insuficiente para lograr a posição de resposta, sem embargo de ela ter-me conduzido, há mais de dez anos, aos jardins verbais onde, desde então, encontro refúgio e contentamento. Dois, são, portanto, os objetivos basilares a que visa o meu trabalho de escrita: instruir-me e contentar-me. Sinto contentamento durante o próprio exercício da escrita e ele se aviva na consciência da instrução que desse exercício decorre.
Este texto destina-se à discussão do tema religião, à luz da sociologia da dominação, proposta pelo sociólogo alemão Max Weber. As questões sobre as quais repousarão minhas reflexões serão duas: 1ª) Qual a visão de Max Weber sobre a religião?; 2ª) De que modo, segundo ele, a religião exerce seu poder sobre seus fiéis?. Proporei uma abordagem do tema que se estruturará nas seguintes etapas: 1) considerarei, em primeiro lugar, o que é pensar dialeticamente, com vistas a chamar a atenção para o fato de que qualquer trabalho intelectual deve ser orientado pela certeza de que a realidade não se esgota na elaboração de nossas sínteses; 2) na segunda etapa, introduzirei o leitor no pensamento de Max Weber, sem visar à exaustão; 3) na terceira etapa, discuto o conceito de instituição; 4) na quarta etapa, me ocupo da discussão do conceito de instituição religiosa; 5) na quinta etapa, retorno a Max Weber, para apresentar sua perspectiva sociológica sobre a religião.


1. Pensar dialeticamente

O conceito de dialética será aqui contemplado tendo em conta as perspectivas de Hegel e Marx. Vou começar por situá-lo no pensamento de Hegel.
Na filosofia de Hegel, a dialética designa um movimento da razão através do qual é possível superar uma contradição. Não sendo um método, a dialética envolve um movimento, em conjunto, do pensamento e do real.
Quando compreendida no domínio da História, a dialética, ensina-nos Hegel, serve para pensar a história como uma sucessão de momentos, que compõem uma totalidade. Cada momento se apresenta em oposição ao momento precedente. Um determinado acontecimento nega as limitações de um momento anterior, superando-o, na medida em que o leva a um estágio superior.
A dialética, na visão de Hegel, possibilita o acesso ao saber absoluto, visto que do movimento do pensamento pode-se deduzir o movimento do mundo. Logo, o pensamento humano pode conhecer a totalidade do mundo.
A dialética marxista, contudo, torna-se um método. Segundo Marx, a dialética leva-nos a considerar a realidade socioeconômica de uma dada época como uma totalidade atravessada por contradições, entre as quais a da luta de classes. Coube especialmente a Engels transformar a dialética no método do materialismo e na forma como se realiza o movimento histórico, no domínio do qual a Natureza constitui uma totalidade coerente, cujos fenômenos se condicionam reciprocamente. Também devemos a Engles a concepção de dialética como estado de mudança e movimento, como espaço onde o processo de mudanças quantitativas produz, por cumulação e avanços abruptos, mudanças de ordem qualitativa. A Natureza é, pois, considerada um lugar de contradições internas, um lugar em que os fenômenos apresentam uma face positiva e outra negativa, um passado e um futuro. As tensões ou oposições que daí se depreendem é que provocam a luta de tendências contrárias. Dessa luta redunda o progresso.
No domínio da dialética marxista – que me interessa aqui -, o conhecimento é entendido como um processo que tende a totalizações. A atividade humana, por sua vez, é concebida como um processo de totalização, que, no entanto, não se finaliza. A realidade é complexa; ela envolve, necessariamente, relações diversas entre seus elementos componentes. A fim de compreender adequadamente essa complexidade, que é inerente à realidade, o homem tem de proceder de tal modo, que construa uma visão de conjunto, a partir da qual possa examinar acuradamente cada elemento da totalidade.
É preciso notar, no entanto, que a complexidade da realidade sempre excede o conhecimento que podemos ter dela. Há sempre alguma coisa que escapa às nossas sínteses. Elaborar sínteses é parte indispensável do trabalho de pensar dialeticamente a realidade. A síntese é a visão de conjunto por meio da qual o homem consegue apreender o significado da realidade sobre a qual se debruça, numa dada conjuntura. A totalidade – é preciso dizer -, não é senão a estrutura significativa percebida quando da construção da visão de conjunto. Em outras palavras, a visão de conjunto nos dá a totalidade (estrutura) da realidade.
Dizer que o conhecimento da realidade é um processo que aponta para totalizações é reconhecer que há totalidades mais abrangentes e totalidades menos abrangentes. Destarte, no trabalho de construção de um pensamento orientado dialeticamente, há que determinar o nível de totalização pretendido. Se estou interessado em examinar, por exemplo, os movimentos de protestos recorrentes no Brasil neste ano, sou forçado a limitar o escopo de minha análise ao conjunto da sociedade brasileira, discriminando, nesse domínio, os aspectos referentes às esferas econômica, política, histórica, sem perder de vista as contradições persistentes nessa sociedade. Se, por outro lado, eu pretendo avaliar esses protestos tendo em conta seu impacto nas relações político-econômicas do Brasil com as grandes potências mundiais, precisarei de um nível de totalização mais amplo.
Ignorando-se o fato de que, na prática, nem sempre temos a necessidade de determinar uma totalidade que recubra um nível máximo de totalização, por exemplo, a filosofia da história, a dialética consiste numa atividade intelectual através da qual o pensamento vai-se construindo por etapas, num trabalho contínuo sobre totalidades de níveis variados de abrangência.
De uma perspectiva dialética, a realidade é estruturalmente constituída de contradições. O todo é compreendido tendo em conta as contradições entre suas partes, e as partes são consideradas em sua relação com o todo. Não se admite, assim, abstrair as partes do todo, nem se admite pensar o todo ignorando as partes.
A realidade é essencialmente contraditória. Eis um princípio que sustenta a dialética. A contradição encontra-se na base do movimento do próprio real. A contradição supõe uma relação em que os elementos se definem em oposição uns aos outros. Os elementos implicados numa relação de contradição se definem sempre negativamente: um se define por aquilo que o outro não é. Assim, o senhor se define na relação com o escravo; e o escravo se define na relação com o senhor. O senhor é aquilo que o escravo não é; e o escravo é aquilo que o senhor não é. Na dialética, a contradição não é um mero erro de raciocínio. Embora não se oponha à lógica, a dialética a ultrapassa.

Princípio básico da dialética marxista: a realidade é uma totalidade sempre aberta; é um processo que nunca se fecha e que jamais se reduz ao conhecimento que se tem dela. A realidade é sempre mais rica do que o conhecimento que podemos ter dela.

Tendo em conta as considerações feitas aqui sobre o conceito de dialética, ou melhor, sobre o que é pensar dialeticamente, passarei a concentrar minhas reflexões no tema a cujo desenvolvimento e discussão me proponho neste texto. Esforçar-me-ei por tornar tão menos custosa quanto possível a percepção pelo leitor da orientação metódica de meu pensamento, cujo movimento não cessará de articular domínios mais abrangentes com menos abrangentes. Meu ponto de partida será, portanto, apresentar Max Weber ao leitor não familiarizado com ele. Nessa apresentação, faço um resumo do pensamento sociológico desse autor.

2. Max Weber (1864-1920) e sua sociologia compreensiva

O caminho que se abre me conduzirá a construir uma visão de conjunto da sociologia de Max Weber. Filósofo e sociólogo alemão, nascido em Efurt, Max Weber é um dos principais responsáveis pela formação do pensamento social contemporâneo, sobretudo do ponto de vista metodológico. Uma de suas preocupações foi determinar, para as ciências sociais, um modelo explicativo próprio, que diferisse do modelo das ciências naturais (Japiassú & Marcondes, 2008, p. 281).
Entre suas contribuições, avulta a distinção entre a razão instrumental e a razão valorativa. Ocupando-se da análise da sociedade contemporânea, Weber procurou investigar os traços fundamentais do Estado moderno, da sociedade e da burocracia que exerce naquele um papel central.
Sua obra mais influente é A ética protestante e o Espírito do capitalismo (1904-05), na qual empreendeu um estudo em que visa a demonstrar que, para explicar o aparecimento do capitalismo, é necessário levar em conta os aspectos éticos, religiosos e culturais que o tornaram possível. Assim, na visão de Weber, não se pode examinar o surgimento do capitalismo por uma visão reducionista, qual seja, por uma visão que se limite ao domínio econômico.

2.1. A sociologia de Weber

São vários os interesses de Weber, entre os quais convém mencionar: a preocupação em definir a singularidade do Ocidente moderno; a formulação de uma explicação causal para a gênese da sociedade ocidental; seu empenho em mostrar como a ação se orienta por valores; e sua insistência no modo pelo qual as pessoas, vivendo em diferentes contextos sociais, conferem sentido às suas vidas. Acrescente-se que a religião também figurou na agenda de interesses desse autor.

Metodologia de Weber. Opondo-se aos modelos sociológicos desenvolvidos por pensadores consagrados como Augusto Comte e Èmile Durkheim, Weber propôs uma abordagem crítica de teorias holísticas, à luz das quais as sociedades se concebem como unidades quase orgânicas, cujas partes de inter-relacionam perfeitamente compondo um “sistema” de estruturas objetivas. As escolas afinadas com essa perspectiva holística da sociedade pensam o indivíduo como um sujeito cuja ação é determinada pela estrutura social e a interação social como meras formas particulares de expressão da totalidade social. Weber se opõe à ideia de que as sociedades são totalidades fechadas, cujas partes compõem uma unidade consistente. Ele via, ao contrário, nas sociedades, as possibilidades de tensão, a fragmentação, os conflitos manifestos, a manipulação de poder.
Weber combateu com vigor a perspectiva das escolas positivistas, para as quais as ciências sociais deveriam ocupar-se na construção de sistemas fechados de conceitos apropriados para dar conta da classificação da realidade de um modo definitivo. Para Weber, as causas de eventos individuais só podem ser elucidadas por meio da compreensão de outras estruturações individuais.

Tese de Weber. As pessoas exibem a capacidade de interpretar suas realidades sociais, de atribuir um sentido subjetivo a determinados aspectos delas e de empreender ações independentes. Para Weber, os indivíduos gozam de liberdade para escolher.
Constitui uma proposição fulcral de toda a sociologia weberiana buscar “compreender interpretativamente” as maneiras pelas quais os indivíduos percebem sua própria ação social. Segundo o autor, a ação social é dotada de sentido subjetivo e sobre ela deve recair a atenção dos sociólogos.
Weber, conquanto reconheça que as pessoas são agentes sociais, não as considera apenas na dimensão social. Para ele, elas têm a capacidade de interpretar ativamente as situações, as interações e as relações em que se envolvem, com base em valores, crenças, interesses, emoções, poder, autoridade, leis, costumes, hábitos, ideias, etc. O autor insta em que é possível aos sociólogos compreender o significado da ação dos indivíduos. Essa “compreensão racional” implica uma apreensão intelectual do sentido atribuído pelos atores sociais às suas ações. Também, segundo Weber, é possível aos sociólogos buscar compreender intuitiva e empaticamente o significado da ação dos indivíduos, sempre que se concentrarem na apreensão do “contexto emocional em que se dá a ação” (Kalberg, 2010, p. 34).
O interesse principal de Weber abriga, portanto, o compreender a motivação para uma ação observável; o compreender de que maneira se dá a variação do sentido subjetivo de um ato, tendo em vista suas diversas motivações; o compreender como essas motivações influenciam o curso da ação.
Já vimos que Weber está preocupado em compreender como agem os indivíduos em determinadas situações e quais sentidos eles atribuem às suas ações. Essa preocupação o leva também a buscar explicar de modo causal como se constituem esses indivíduos históricos. É a realidade da vida em que eles estão imersos, é a singularidade característica dela que estão sob o foco da atenção do autor.
Na busca por compreender o significado das ações sociais, excedem em importância os quatro tipos de ação propostos por Weber. Os quatro tipos de ação social são dotados de sentido subjetivo. O primeiro tipo é a ação racional referente a fins. Nesse tipo de ação, levam-se em conta os fins, os meios e as consequências, que são ponderados racionalmente. As pessoas consideram as diferentes relações entre meios e fins e entre fins e suas consequências, bem como a validade de outros fins possíveis (Kalberg, 2010, p. 35). O segundo tipo é a ação racional referente a valores. Nesse caso, a ação se determina por uma crença no valor que tem em si mesma uma conduta ética, estética, religiosa, etc. As perspectivas de sucesso da ação não são tão importantes. Esse tipo de ação envolve sempre ‘ordens’ ou ‘demandas’ (ib.id.). O terceiro tipo é a ação afetiva. Esse tipo de ação é determinado por afetos e estados sentimentais que experimenta o agente no momento mesmo em que atua. A ação afetiva envolve um apego emocional relativamente aos dois tipos de ação anteriores. O quarto tipo é a ação tradicional. Ela é determinada por hábitos arraigados e por costumes seculares. Quase sempre funciona como uma resposta rotineira a estímulos comuns.
A classificação das ações sociais, tal como proposta por Weber, o auxilia na tentativa de compreender orientações difusas de ação (Kalberg, p. 36).
Em suma, o modelo teórico de sua sociologia compreensiva visa a orientar os sociólogos na compreensão da ação social tendo em vista as intenções do próprio agente.


3. A instituição
3.1. A sociedade como realidade objetiva

Em A construção social da realidade (2007), Berger & Luckmann introduzem o tema das origens da institucionalização, dando-nos a conhecer a diferença existente entre os modos de o homem e de os animais não-humanos se relacionarem com o ambiente em que vivem. Os animais não-humanos mantêm relações biologicamente fixas com o ambiente. Eles vivem, quer como indivíduos, quer como espécies, em mundos fechados, de tal modo que a organização de seus mundos é predeterminada pelo equipamento biológico inato presente nas diferentes espécies. O organismo deles é uma extensão do ambiente natural.
Não se negando a dimensão natural ou biológica do ser humano, a relação do homem com o ambiente deve ser entendida tendo em conta a tensão entre dois fatos relacionados à existência consciente do homem: o homem é um corpo (como o é qualquer animal), mas também tem um corpo, o que sugere que, no homem, não se identificam totalmente o ser e o corpo. O homem experimenta a si mesmo como um ente que não se identifica inteiramente ou não se confunde com o seu corpo; para o homem, o corpo serve à guisa de um instrumento para atuar no mundo. Nas palavras de Berger & Luckmann,

“(...) a experiência que o homem tem de si mesmo oscila sempre num equilíbrio entre ser um corpo e ter um corpo, equilíbrio que tem de ser corrigido de vez em quando (...)”.
(p. 74)


Não se pode ignorar, evidentemente, as consequências para a compreensão do comportamento humano no ambiente material e para a compreensão de atividades de produção de significados subjetivos, quando se considera essa especificidade da experiência que o ser humano tem de seu próprio corpo. Entre essas consequências, destaquem-se as seguintes: 1) a autoprodução do homem é sempre uma atividade que se faz com outros, é sempre, portanto, uma atividade social; 2) os seres humanos produzem um ambiente humano em conjunto, em interação com outros seres humanos; 3) essa produção do ambiente humano não se dá sem uma totalidade de formações socioculturais e psicológicas de que os homens tomam parte; 4) quando se lançam olhares sobre os fenômenos humanos, claro fica que se está diante de um reino social; 5) humanidade e sociabilidade estão intrinsecamente relacionados.
O ambiente social fabricado pelo homem supõe uma ordem, uma direção e uma estabilidade. Donde a questão, com Berger & Luckmann (p. 75): como se explica essa estabilidade da ordem humana?
Berger & Luckmann se propõem a responder a essa questão chamando a atenção para a precedência da ordem social ao desenvolvimento individual do organismo. Embora a capacidade para abrir-se para o mundo, para exteriorizar-se nesse mundo, seja inerente à constituição biológica do homem, a ordem social é que se apropria previamente dessa capacidade e a direciona ou a transforma. A ordem social converte essa capacidade de abertura ao mundo, biologicamente determinada no homem, em um relativo fechamento ao mundo. É assim que a ordem social consegue assegurar a estabilidade e a direção para a conduta humana (Berger & Luckmann, p. 76).
Escusa dizer que a ordem social não é determinada biologicamente, nem redunda de quaisquer elementos naturais. A ordem social não faz parte da natureza das coisas, não se apresenta como se fosse produto do ambiente natural do homem, muito embora haja fatores naturais que influenciam a forma da ordem social. Mas essa influência não mascara o fato de que a ordem social é produto unicamente da atividade humana. Nesse tocante, precisam os autores:

“Tanto em sua gênese (ordem social resultante da atividade humana passada) quanto em sua existência em qualquer instante do tempo (a ordem social só existe na medida em que a atividade humana continua a produzi-la) ela é um produto humano”.
(p. 76)


Embora não se possa derivar a ordem social existente dos dados biológicos, não se pode negar que a necessidade dessa ordem social provém do equipamento biológico humano (p. 77).

Como se dá a institucionalização? À página 77, escrevem os autores: “toda atividade humana está sujeita ao hábito”. O hábito é um aspecto fundamental do processo de fabricação da realidade institucional. Toda ação que se reitera muitas vezes molda-se num padrão, que passa, então, a ser reproduzido com economia de esforço e que é compreendido como padrão por quem a executa. O hábito torna possível que a ação seja reproduzida também no futuro da mesma maneira e com a mesma economia de esforço que o foi no passado. Isso é verdade tanto para a atividade social quanto para a atividade não-social. Mesmo um indivíduo solitário realiza ações habituais em seu cotidiano.
É preciso notar que as ações habituais revestem-se de significado para o indivíduo. Esse significado é assumido como rotina no conjunto de conhecimentos armazenados em sua memória. Esses conhecimentos são avaliados como “certos” e estão sempre disponíveis para orientar ações futuras. Acerca do valor do hábito, esclarecem-nos os autores:

“O hábito fornece a direção e a especialização da atividade que faltam no equipamento biológico do homem, aliviando, assim, o acúmulo de tensões resultantes dos impulsos não dirigidos”.
(p. 78)


Assim, liberam-se energias que podem ser direcionadas para decisões que se impõem na maior parte do tempo. O hábito escusa a necessidade de que cada nova situação seja definida, etapa por etapa. Ele permite que uma grande quantidade de situações componha um conjunto no qual elas se apresentam predefinidas. Logo, a atividade que se realiza nessas situações pode ser antecipada.
Os processos de formação de hábitos estão na origem de toda institucionalização. Isso vale também para o caso hipotético de um indivíduo isolado. Não se pode ignorar que esse indivíduo solitário, supondo-se a formação de um “eu”, também terá de converter em hábito sua atividade, em consonância com a experiência biográfica construída num mundo de instituições sociais que precede seu estado de solidão.
Podemos avançar um pouco mais na compreensão do processo de institucionalização, retendo a ideia de que esse processo ocorre quando as ações habituais são tipificadas reciprocamente por tipos de atores sociais. Qualquer uma dessas tipificações constitui uma instituição. Para efeitos de compreensão da institucionalização, não só a reciprocidade das tipificações importa, mas também a tipicidade das ações e dos atores das instituições.
As tipificações das ações habituais que vão redundar nas instituições – ou melhor, que são as instituições – são partilhadas entre os atores sociais. Elas são acessíveis ao grupo social, e a própria instituição tipifica os atores e as ações individuais. Essa ideia é ilustrada de modo bem simples por Berger & Luckmann no seguinte passo:

“A instituição pressupõe que as ações do tipo x serão executadas por atores do tipo x. Por exemplo, a instituição da lei postula que as cabeças serão decapitadas de maneiras específicas em circunstâncias específicas, e que tipos determinados de indivíduos terão de fazer a decapitação (carrascos, ou membros de uma casta impura, ou virgens de menos de certa idade ou aqueles que foram designados por um oráculo)”.
(p. 79)


Como se vê, é a própria instituição que regula as ações desempenhadas pelos agentes sociais e que lhes fixa papeis determinados na estrutura institucional. As instituições, notam Berger & Luckmann, “implicam (...) a historicidade e o controle” (ib.id.). Historicidade porque as tipificações das ações se constituem no curso de uma história de que tomam parte os agentes sociais. As instituições têm sempre uma historia e são produto dessa história. Disso se segue não ser possível compreender adequadamente uma instituição sem lançar olhares sobre a história de sua constituição.
Creio fundamental reter a ideia de que as instituições, por força mesmo de sua existência, controlam a conduta humana, fixando-lhe previamente padrões na base dos quais ela se desenvolverá. A direção da conduta humana coloca-se sob o governo desses padrões. Isso evita que a conduta dos indivíduos tome outras direções potenciais mas não desejáveis para uma instituição. O caráter controlador é inerente, portanto, à instituição e é anterior a quaisquer dispositivos de sanções mobilizados para produzir apoio à instituição. O controle está entranhado na realidade de qualquer instituição, conforme notam Berger & Luckmann abaixo:


“Dizer que um segmento da atividade humana foi institucionalizado já é dizer que este segmento da atividade humana foi submetido ao controle social”.
(p. 80)



Constitutiva do processo de institucionalização é a objetivação, conceito que remonta a Hegel e Marx, e que diz respeito ao processo através do qual os produtos exteriorizados na atividade humana assumem um caráter de objetividade. Portanto, todo universo institucional é atividade humana objetivada. Mas essa objetividade não existe independentemente da atividade humana que a produziu, embora assim apareça à consciência individual.
Compreendamos bem o paradoxo que daí decorre. Em primeiro lugar, claro é que a objetividade do mundo institucional é produzida e construída pelo homem. Com efeito, é o homem quem produz o mundo institucional, a ordem social. No entanto, é ele também que experimenta esse mundo como uma coisa diferente de si ou estranha a si mesmo. O homem percebe esse mundo como algo que se produziu independentemente de sua atividade. A relação entre o homem, que é o verdadeiro agente produtor, e o mundo social, que é produto da atividade do homem, é uma relação dialética, visto que há uma atuação recíproca do homem e do mundo: um age sobre o outro. Assim, o produto (mundo) age sobre o produtor (homem), bem como o produtor age sobre o produto.
A esta altura, três verdades se nos impõem à consciência reflexiva: a) a sociedade é um produto humano; 2) a sociedade é uma realidade objetiva; c) o homem é produto social (Berger & Luckmann, p. 87). Há quatro aspectos do mundo institucional que nenhuma análise pode negligenciar, segundo Berger & Luckmann. São eles:

1) sua realidade objetiva. O mundo institucional é experimentado como uma realidade objetiva, a saber, como uma realidade marcada por uma historicidade que antecede ao nascimento do indivíduo e cujas origens ele ignora;

2) sua perpetualidade. Toda instituição se perpetua, porque não só já existia antes do nascimento do indivíduo, mas também porque continuará existindo depois de sua morte;

3) a sua historicidade. A própria história desse mundo institucional é dotada de objetividade. A biografia de um indivíduo se reduz a um episódio situado na história objetiva de sua sociedade.

4) sua facticidade inegável. As instituições com que se defrontam os indivíduos são fatos inegáveis e eles as percebem como tais.

Consoante ensinam Berger & Luckmann, “as instituições estão aí, exteriores a ele [o indivíduo], persistentes em sua realidade, queira ou não” (p. 86). As instituições  resistem às tentativas de alterá-las ou de evadir-se delas. Elas exercem um poder coercitivo sobre os indivíduos, quer devido ao seu caráter de facticidade (elas estão aí como “já dadas”), quer por força dos mecanismos de controle que lhes dão sustentabilidade.
Cumpre frisar que a realidade objetiva das instituições se impõe, mesmo que o indivíduo não compreenda a finalidade ou os seus modos de funcionamento. Ele pode até considerá-los herméticos, pode não compreender muitos aspectos da ordem social e pode considerar opressivas as formas como eles se lhe apresentam; no entanto, não pode evitar reconhecê-los como reais.
“Existindo as instituições como realidade exterior, o indivíduo não as pode entender por introspecção. Tem de “sair de si” e apreender o que elas são, assim como tem de apreender o que diz respeito à natureza”.
(p. 86)


A linguagem desempenha um papel fundamental na objetivação das instituições. Antes, contudo, de eu me deter a avaliar a importância da linguagem nesse processo, é preciso compreender a função da legitimação, como um fenômeno, necessariamente dotado de materialidade linguística, que atenderá às necessidades de permanência da instituição e seu reconhecimento pela geração futura.
Legitimação. O mundo social existe somente na medida em que é transmitido a uma nova geração. Esse processo de transmissão se realiza na forma de interiorização pelos indivíduos, na socialização, das estruturas institucionais (suas normas, ideias, valores, ideologias...). Portanto, o mundo social existe apenas quando do surgimento de uma nova geração.
Esse mundo social cuja própria existência depende do aparecimento de uma nova geração precisa ser também legitimado. Por legitimação deve-se entender, pois, os modos pelos quais o mundo social pode ser explicado ou justificado.
A fim de compreendermos mais claramente a função da legitimação na conservação do mundo social, considere-se o fato de que a nova geração recebe a realidade histórica do mundo social na forma de uma tradição. Essa realidade, que silencia sua gênese, não é acessível à memória biográfica dos indivíduos. Vou ilustrar essa inacessabilidade da realidade da instituição à consciência dos indivíduos, pedindo ao leitor que me acompanhe num experimento de pensamento. Imaginemos que João e Maria tenham filhos. Os filhos de João e Maria, não sendo criadores originais do mundo social (como também não o são os seus pais, é claro) não podem ter acesso direto ao significado das instituições. O conhecimento que se lhes tornam acessível o é por um “ouvi dizer”. O significado original das instituições deve ser interpretado para eles por meio de várias fórmulas legitimadoras. Portanto, as formas de legitimação do mundo social, servindo para explicá-lo ou justificá-lo para as novas gerações, visam também a provocar nelas um consenso acerca da validade dos modos de funcionamento da própria instituição.
Evidentemente, essas fórmulas de legitimação precisam ser suficientemente amplas para causar a adesão da nova geração. Ou seja, a história deve ser contada do mesmo modo a todas as crianças. Como observam Berger & Luckmann,

“Segue-se que a ordem institucional em expansão cria um correspondente manto de legitimações, que estende sobre si uma cobertura protetora de interpretações cognoscitivas e normativas”.
(pp. 88-89)


A título de brevidade, cinjo-me a notar que as legitimações são interiorizadas pela nova geração, ao longo do processo de socialização dos indivíduos. As legitimações envolvem interpretações que tanto servem à compreensão do significado da ordem social quanto servem ao estabelecimento de normas de cuja observância depende a participação dos indivíduos nas instituições. Essas interpretações normativas servem, pois, para controlar e regular a conduta dos indivíduos na ordem social.

“A nova geração engendra o problema da transigência e sua socialização na ordem institucional exige o estabelecimento de sanções. As instituições devem pretender, e de fato pretendem ter autoridade sobre o indivíduo, independentemente das significações subjetivas que este passa a atribuir a qualquer situação particular”.
(p. 89)


As definições institucionais previamente existentes devem ser protegidas contra todos os esforços individuais mobilizados na tentativa de produzir redefinições: “as crianças devem “aprender a comportar-se” e, uma vez que tenham aprendido, precisam ser mantidas na linha” (ib.id.).
Èmile Durkheim, em As Regras do Método Sociológico (2008), dá-nos a conhecer uma definição de instituição que capta dois aspectos básicos dela: sua padronização de hábitos e sua objetividade irredutível à consciência individual.

“[instituições] são as maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam a notável propriedade de existir fora das consciências individuais”.
(p. 32)


Sabe-se que uma preocupação especial de Durkheim foi definir um “fato social”. Dentre as características de um fato social, por ele apontadas, cabe destacar a sua ação coercitiva sobre as consciências. Assim, os fatos sociais congregam maneiras de agir, de pensar e de sentir que são exteriores ao indivíduo e que são dotados de poder coercitivo, graças ao qual eles se impõem à consciência individual. A coerção, lembra Durkheim, também é parte do processo de educação. Segundo ele,

“Quando reparamos nos fatos tais como são, e como sempre foram, salta aos olhos que toda educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente. Desde os primeiros tempos de sua vida que a obrigamos a comer, a dormir, a beber nas horas certas. Obrigamo-la à limpeza, à calma, à obediência. Mais tarde, obrigamo-la a ter em conta os outros, a respeitar os usos, as conveniências, a trabalhar, etc., etc.”
(p. 35)


Se, com o tempo, a coerção já não é mais percebida, ensina Durkheim, é que ela engendrou hábitos e tendências internas que a substituem. Mas é a própria coerção que, produzindo hábitos e desencadeando tendências individuais, acarreta a não-percepção de seus próprios mecanismos coercitivos.

A objetivação pela linguagem. Tenho repisado a ideia de que a linguagem verbal é responsável por estruturar nossas experiências de mundo. Vale aqui reanimá-la na consciência do leitor, mas orientando-a no sentido de facilitar a compreensão do papel desempenhado pela linguagem no processo de objetivação. A linguagem transforma as parcelas de nossas experiências de mundo em dados de nossa consciência (formas de conhecimento) que passam a ser partilhados na forma de conteúdos comunicados em nossos discursos, nas diversas situações de interação. Em outras palavras, a linguagem objetiva as experiências de mundo partilhadas, torna-as acessíveis a todos os indivíduos numa dada comunidade linguística, fornecendo, assim, um estoque de conhecimentos partilhados coletivamente.
Também a linguagem é responsável por fornecer as categorias pelas quais se pode produzir a objetivação de novas experiências, as quais são incorporadas ao acervo de conhecimentos previamente existentes. Berger & Luckmann lançam uma luz sobre a importância da linguagem no processo de objetivação de nossas experiências: “[a linguagem] é o meio mais importante pelo qual as sedimentações objetivadas são transmitidas na tradição da coletividade em questão” (p. 96). E prosseguem:

“Por exemplo, só alguns membros de uma sociedade de caçadores têm a experiência de perder suas armas, sendo obrigados a combater um animal selvagem unicamente com as mãos. Esta assustadora experiência, quaisquer que sejam as lições de bravura, astúcia e habilidade que produza, fica firmemente sedimentada na consciência dos indivíduos que a sofreram. Se vários indivíduos participam da experiência, ficará sedimentada intersubjetivamente podendo até talvez formar um profundo laço entre esses indivíduos. Sendo, porém, esta experiência designada e transmitida linguisticamente, torna-se acessível e talvez fortemente significativa para indivíduos que nunca passaram por ela”.
(p. 96-97)


Em outras palavras, a experiência reconstruída e transmitida na/pela linguagem perde seu caráter subjetivo, pessoal, individual para assumir um caráter objetivo, dotada de uma facticidade que, assumindo a forma de conhecimento, passa a integrar um saber comum a uma coletividade. A objetivação da experiência por meio da linguagem consiste, pois, numa atividade de transformação da própria experiência em objeto na forma de conhecimento acessível e aproveitável a todos. Assim, a objetivação operada na linguagem permite que a experiência seja incorporada a um vasto conjunto de tradições que são transmitidas mediante processos formativos que envolvem instrução moral, mitologias, narrativas alegóricas religiosas, adágios, etc.
Por fim, cumpre atentar para o modo como as sedimentações coletivas assumem a forma de ideologias.

“(...) Tendo a origem real das sedimentações perdido importância, a tradição pode inventar uma origem completamente diferente, sem com isso ameaçar o que foi objetivado. Em outras palavras, as legitimações podem seguir-se umas às outras, de vez em quando outorgados novos significados às experiências sedimentais da coletividade em questão”.
(pp. 97-99)


Comum às formas de ideologia é o apagamento das causas reais de existência de uma dada realidade. O apagamento dessas causas permite que outras causas passem a preencher o seu lugar. A realidade, contudo, se mantém preservada, já que a ideologia a legitima e a reproduz. Para dar um exemplo do modo como a ideologia, apagando as verdadeiras causas que estão na origem de uma coisa, serve para, não obstante, conservá-la e reproduzi-la, considere-se a escrita dos quatro evangelhos que constam do cânone do Novo Testamento. Ao longo de séculos, inúmeros relatos sobre quem foram os autores dos evangelhos contribuíram para sedimentar a crença de que esses autores foram os apóstolos de Cristo. Cada um dos nomes que se estampa nas páginas dos evangelhos parece provar ser verdadeira essa crença. Mas uma leitura cuidadosa dos textos, orientada por um método denominado de crítico-histórico ajuda a desencavar a verdade que tem por hábito esconder-se quase sempre. Em primeiro lugar, deveríamos nos perguntar por que surgiu aquela crença, ou seja, por que se veiculou a ideia de que os evangelhos foram escritos pelas pessoas que foram apóstolos de Cristo? Porque se pretendia garantir aos leitores que esses textos foram escritos por testemunhas oculares. Deve-se ver aqui o pressuposto de que testemunhas oculares são dignas de confiança; portanto, estão comprometidas em contar o que de fato aconteceu. É claro que, na realidade, não se pode confiar que mesmo testemunhas oculares ofereçam relatos históricos precisos. Mas, deixando de lado, essa questão, o primeiro aspecto da verdade (agrada-me pensar a verdade como um caleidoscópio, que nos encanta à medida que se nos revelam suas múltiplas cores e formas) diz respeito ao fato de que os Evangelhos foram escritos anonimamente. O segundo aspecto é que seus autores não alegam ter sido testemunhas oculares. O terceiro aspecto é que os nomes que figuram nas páginas desses livros foram acrescidos posteriormente por escribas e editores, que intentavam informar os leitores sobre quem acreditavam ser os autores dos textos. Note-se que quem quer que tenha realmente escrito o Evangelho de Mateus não escreveria “Evangelho segundo Mateus”. O quarto aspecto é que esse Evangelho foi escrito na terceira pessoa, ou seja, quem o produziu não participa dos acontecimentos relatados; essa pessoa instaura um “eles” na narrativa (“eles” é “Jesus e os discípulos”). Em João (21:24), lê-se: “Este é o discípulo que dá testemunho dessas coisas e foi quem as escreveu: e sabemos que o seu testemunho é verdadeiro”. Veja-se que se instauram um “ele” (“este é o discípulo”) e um “nós” (“sabemos que...”), de modo que o autor não é o discípulo; aquele alega ter tão-só recebido as informações do discípulo. A verdade não se esgota nesses quatro aspectos, evidentemente. Há as contradições flagrantes quando se dispõem, lado a lado, os quatro evangelhos. A esse fato acrescente-se ainda que o analfabetismo atingia 90% da população do Império Romano e que a minoria rudimentarmente alfabetizada pertencia às classes abastadas. Os apóstolos de Jesus eram, como se sabe, pessoas provenientes das classes populares, falantes de aramaico da Galileia. É bem estabelecido há muito o consenso entre os eruditos sobre o fato de que os Evangelhos foram originalmente escritos em grego, língua que, certamente, não dominavam os apóstolos de Jesus, que eram camponeses das classes menos abastadas e analfabetos. Quem, então, foram os autores? Os próprios Evangelhos auxiliam na construção de hipóteses. Embora não tenham sido os livros mais sofisticados que circulavam no império romano, certamente sua narrativa é bem escrita e estruturada, o que sugere que seus autores eram pessoas com grau de instrução bastante elevado, falantes de grego, que viviam fora das regiões da Palestina. A crença de que eles não eram habitantes da Palestina confirma-se pela observação de sua ignorância sobre a geografia da região e sobre os costumes judaicos, ignorância que se pode deduzir do cotejo do que relatam com o que se sabe sobre a região palestina e os costumes judaicos. Consoante nota Ehrman, em seu livro Quem foi Jesus? Quem não foi Jesus? (2010),

“Quem quer fossem esses autores, eram cristãos de uma geração posterior, com dotes incomuns. Os estudiosos discutem onde viveram e trabalharam, mas sua ignorância da geografia da região palestina e dos costumes judaicos sugere que criaram suas obras em outro lugar do império – possivelmente em uma grande área urbana onde poderiam ter recebido uma educação decente e onde haveria uma comunidade cristã relativamente grande”.
(p.123)


Os quatro evangelhos que entraram a fazer parte do cânone não são os únicos remanescentes; outros muitos foram escritos e associados a outras pessoas que, supostamente, teriam convivido com Jesus. Por razões políticas, ideológicas e teológicas, eles foram rejeitados pelas autoridades proto-ortodoxas. Muitos desses escritos se perderam para sempre, mas outros foram encontrados, como os evangelhos de Pedro, de Judas e de Maria Madalena. Outro aspecto da verdade sobre a produção ou reprodução dos quatro evangelhos canônicos é que os originais se perderam para sempre; os que foram incluídos na Bíblia são cópias de cópias, produzidas por escribas, que alteraram os textos voluntariamente, ou por inaptidão, ou pelo esgotamento provocado pelo próprio trabalho árduo de copiar manualmente palavra por palavra.
Uma sucessão de “apagamentos” fomentou a crença, acalentada por bilhões de pessoas no mundo atual, de que os quatro evangelhos que constam da Bíblia são os textos originais produzidos pelos verdadeiros apóstolos de Jesus. Evidentemente, esses “apagamentos”, produzidos por narrativas ideológicas, se deram e se perpetuaram  a partir de condições sócio-históricas profundamente marcadas por disputas, conflitos, interesses antagônicos que animavam aqueles que tomavam parte das esferas de poder (político, ideológico e teológico).
Na medida em que oculta da consciência dos indivíduos as verdadeiras causas de uma dada instituição, a ideologia contribui para reforçar atitudes de consenso, de aceitação, de assentimento, desencorajando movimentos sociais insurgentes contra a ordem social estabelecida.

O que é, então, uma instituição?

Toda instituição é um sistema de normas que se relacionam entre si e que se baseiam em valores compartilhados pelos membros de uma sociedade. As instituições determinam formas comuns de agir, pensar e sentir. Elas estão entranhadas na vida social e respondem pelas práticas sociais que elas geram. As instituições são a base da estrutura social, ou seja, são responsáveis por organizar em estruturas dotadas de significados as atividades humanas.
Pode-se ainda entender as instituições como hábitos de grupos, que se desenvolvem de modo independente da vontade e consciência dos indivíduos e sem planejamento. Esses hábitos vão sendo generalizados, à proporção que certas formas de agir, pensar e sentir são largamente adotadas e reiteradas ao longo do tempo, até que se tornam comportamentos rotineiros e axiomáticos. Constituem exemplos de instituições a propriedade privada, a família, o contrato, a lei, a democracia, a cidadania, a religião, a escola, a polícia, a Constituição, etc.
As instituições também podem ser concebidas como aglomerados de normas ou expectativas sociais que se generalizam como obrigatórias e que se sustentam por rigorosas sanções, as quais asseguram a conformidade dos indivíduos a essas normas. As normas de que se constituem as instituições definem os papeis sociais e as relações entre eles.
Creio ser válido ter em conta o que nos escreve Bourdieu, em A Economia das Trocas Simbólicas (2011), a respeito da influência que as estruturas sociais exercem na formação da consciência dos indivíduos:

“Se levarmos a sério (...) a hipótese de Durkheim da gênese social dos esquemas de pensamento, de percepção, de apreciação e de ação, e o fato da divisão de em classes, somos, necessariamente conduzidos à hipótese de que existe uma correspondência entre as estruturas sociais (em termos mais precisos, as estruturas de poder) e as estruturas mentais, correspondência que se estabelece por intermédio da estrutura dos sistemas simbólicos, língua, religião, arte, etc.”.
(p. 33)


Segundo Bourdieu, a religião contribui para impor dissimuladamente princípios que regulam a estruturação da percepção e do pensamento do mundo, particularmente, do mundo social, por meio da imposição de um sistema de práticas e de representações cuja estrutura se calca objetivamente sobre uma base de divisão política que espelharia a estruturação dos domínios natural e sobrenatural do cosmos.
Na seção seguinte, vou estender minhas considerações à realidade institucional religiosa.

4. A instituição religiosa

Espero tenha ficado claro até aqui que a instituição, na medida em que se constitui num espaço de relações sociais, transcende os indivíduos. Também não deve restar dúvida sobre a independência da instituição em relação aos indivíduos. As instituições – vale insistir – são exteriores aos indivíduos e diferem da realidade interior deles, ou seja, do conjunto de seus sentimentos, pensamentos e fantasias.
Vimos também que as instituições são sempre objetivas, porquanto valem para todos os indivíduos. Elas funcionam independentemente da vontade deles. O indivíduo é impotente em face da instituição. Sozinho ele não pode mudá-la. As mudanças, quando ocorrem, resultam das próprias formas de funcionamento da instituição.
Considerando-se o que foi dito, proponho a seguinte definição de instituiçãotoda forma de conduta social que, assumindo um padrão, torna-se independente dos indivíduos. As instituições, conforme vimos, são produtos do hábito, da ação ou atividades que se repetem e ganham existência autônoma. Em suma, a instituição não foi criada pelo indivíduo, nem ele pode destruí-la. Ela se estrutura por regras e por mecanismos de coerção.

Comecemos, pois, por admitir um fato inegável: a religião é uma instituição social. Como tal, ela se estrutura por meio de um conjunto de regras que determinam seu funcionamento interno; é relativamente autônoma em relação aos indivíduos que dela participam. Por isso, devemos concordar com Luís Mauro Sá Martino, em Mídia e poder simbólico (2003), ao afirmar que “as igrejas são um tipo específico de “programação de conduta individual imposta por um grupo social” (pp. 21-22). Do mesmo modo, a pertinência da observação de Marx, em Manuscritos Econômicos Filosóficos (2006), sobre a permanente dependência do homem real à religião endossa a ideia de perenidade suscitada pela noção de “programação da conduta individual”:

“A consumação do Estado é o Estado que se reconhece simplesmente como Estado e separa-se da religião dos seus membros. A emancipação do Estado a respeito da religião não é a emancipação do homem real quanto à religião”.
(grifo meu, p. 29)


Note-se a atualidade do pensamento de Marx. Ele ainda nos ajuda a não nos deixarmos chafurdar nos enganos de uma consciência embotada da realidade: a laicidade do Estado não significa a emancipação do homem concreto em relação à religião.
Acima, escrevi ser a religião uma instituição social. Sua natureza institucional é representada na capacidade que tem as igrejas de tipificarem, nas relações que as constituem, os papeis sociais que devem ser assumidos pelos atores que a compõem.
No tocante à especificidade da instituição religiosa, deve-se reconhecer que a definição dada ao sagrado desempenha um papel decisivo, isto é, é a definição que se dá ao sagrado que constitui a especificidade da instituição religiosa. Assim, compete à instituição religiosa determinar as fronteiras entre pessoas, objetos, rituais, modos de proceder, lugares que se situam entre as coisas deste mundo e as pessoas que travam lutas por apropriar-se legitimamente dos bens imateriais. O sagrado pertence ao domínio atemporal, imaterial, sobrenatural, transcendente; as coisas sagradas exigem profunda deferência, adoção de determinados hábitos e atitudes, veneração; o sagrado define a “região” do divino em oposição ao mundo dos homens. O sagrado se define na relação de contradição com o profano (dialética). Profano é tudo que é estranho à religião ou que viola a santidade das coisas sagradas.
Não pretendendo descer a pormenores sobre a questão da definição do sagrado, gostaria apenas de acenar à necessidade de compreendermos a natureza da instituição religiosa, antes de fazermos incursão na abordagem proposta por Weber do fenômeno religioso. Weber escrevia sobre o tema num momento histórico já afetado pelo paradigma da secularização. A secularização é um processo sócio-histórico que privou as religiões da autoridade sobre as prerrogativas que passaram então a ser partes da competência de autoridades laicas. Com efeito, a secularização levou a religião a perder seu lugar privilegiado no mundo, a perder também o monopólio sobre a produção de sentido da vida e dos fenômenos sociais. A secularização tornou a religião, nota Martino, “um acessório, plenamente dispensável para a compreensão do mundo” (pp. 25-26).
A secularização exibe duas marcas que devem ser aqui apontadas:

1ª) ela destituiu a religião ou a Igreja do poder de controlar institucional e juridicamente o funcionamento da ordem social;

2ª) culturalmente, ela privou a Igreja da prerrogativa de construção e reprodução (por coerção) de dominante uma representação do mundo social, da legitimação de suas regras e, mais atualmente, da imposição de uma opinião tomada como verdade indiscutível.

Se nos volvermos às palavras de Marx, anteriormente aduzidas, e as considerarmos à luz do que nos ensina Martino no excerto abaixo, não será custoso entender por que a separação entre Estado e Religião não acarreta o esgotamento do valor desta última, ou melhor, não acarreta o desinteresse do homem comum por ela. O interesse é mantido não só porque a religião dispõe de mecanismos coercitivos sutis para garantir a adesão à sua ideologia e ao seu sistema de práticas e rituais, mas também porque ela ainda responde pelas grandes questões da existência, quais sejam, a do sentido da vida e a do sentido da morte. Não está, evidentemente, entre as atribuições do Estado moderno, o pretender dar conta dessas questões.

“A série de representações, certezas, dogmas oferecidos pela instituição religiosa, embora tendencialmente desprovida de uma base racional, é uma contínua atribuição de significado, que se reflete no fiel como a certeza plena de estar de posse de um conhecimento senão socialmente reconhecido, individualmente capaz de responder as questões existenciais, de maneira a fornecer resposta e sentido à existência”.
(p. 27)


4.1. A visão de Weber sobre o fenômeno religioso

Weber entendia ser a religião uma forma de ação particular numa comunidade. Para ele, à religião compete regulamentar as relações do sobrenatural com os homens. Weber rejeitava a oposição, comumente aceita, entre modernidade e religião, sustentando, ao contrário, que a religião desempenhou um papel importante na emergência da modernidade.
A religião, pela forma específica de agir em comunidade e de dominar alguns grupos, exibe duas características principais: favorece o estabelecimento de vínculo social e exerce um poder que lhe garante a própria existência. Mas Weber não reduzia a função da religião ao estabelecimento de vínculo social. Em sua famosa obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, Weber mostrou que havia uma influência mútua entre as visões de mundo do protestantismo e do capitalismo. Assim, a ação social, que no interior do sistema religioso é orientada magicamente, não leva os fiéis a afastar-se do mundo. Ao produzir uma ética própria que serve à racionalização do mundo, segundo a premissa da salvação, a religião confere poder de ação no mundo ao fiel.
No importante estudo Economia e sociedade, o sociólogo alemão mostra como surgiu a casta sacerdotal, como a magia se transforma em religião e como daí resultou a Igreja. Além disso, definiu e distinguiu as noções de “igreja” e “seita”.
Como Weber entendesse a religião como um modo particular de ação em comunidade, ele sustentou ser necessário estudar as condições e consequências do comportamento religioso. Ele não hesitou em se posicionar contra a visão predominante de que a religião, insistindo na promessa de uma felicidade no além-mundo, levaria os fiéis a se desinteressar pela única realidade verdadeiramente existente. Para ele, mesmo que a religião tome como referencial de seu discurso o além-mundo, não deixa de reportar-se para a vida na terra.
Weber também considerava racionais os atos religiosos, crença que o levou a demonstrar que há diferentes tipos de racionalidade e que a racionalização da religião contribuiu decisivamente para o surgimento da modernidade.
Não me será possível estender-me sobre essas alegações de Weber. Interessam-me, não obstante, temas que se inscrevem numa sociologia da dominação em que se estriba a sociologia das religiões desenvolvida pelo autor.
O primeiro desses temas se desenvolve a partir do conceito de agrupamento hierocrático”, que recobre a ideia de um grupo no qual se exerce uma dominação particular (espiritual) sobre indivíduos. Weber não deixa escapar duas características marcantes da religião: além do vínculo social que ela engendra, ele destacou o tipo de poder que ela exerce. Também se preocupou em distinguir duas formas de objetivação do que chamou “comunalização religiosa”. A primeira dessas formas é a igreja, que se define como uma instituição burocrática de salvação extensiva e receptiva a todos os homens, no interior da qual a autoridade é representada pelo padre. A segunda forma é a seita, que consiste num tipo de associação voluntária pelos crentes que se demonstram dispostos a romper, de modo mais ou menos marcado, com o entorno social. Nesse tipo de associação, a autoridade é exercida por um líder carismático.
É preciso ressaltar, contudo, que, no modelo sociológico de Weber, Igreja e seita são tipos ideias que não encontram repercussão empírica, muito embora sejam úteis como ferramentas para a investigação da realidade empírica.
Finalmente, cabe ainda considerar os tipos de autoridade religiosa identificados por Weber com base na observação sobre as diferentes formas pelas quais o poder é legitimado na vida social. Para o autor, há três modos de legitimação do poder: o primeiro é o modo racional-legal; o segundo é o modo tradicional; o terceiro, o modo carismático.
A legitimação pelo modo racional-legal diz respeito à autoridade administrativa. Essa autoridade impessoal se funda na crença comum no valor dos hábitos, na naturalidade da transmissão de cada função (por exemplo, de um modo hereditário). A autoridade carismática, por seu turno, é um tipo de poder pessoal, cuja legitimidade se calca sobre uma aura reconhecida num dado indivíduo.
No campo religioso, aqueles três modos de legitimação do poder correspondem a três tipos ideias de agentes: o padre, o feiticeiro e o profeta. O padre encarna a autoridade religiosa exercida na esfera burocrática da salvação. O feiticeiro exerce uma autoridade que lhe garante o lugar de portador de uma tradição junto a uma comunidade que o reconhece como tal. O profeta é a autoridade religiosa pessoal que se impõe como fonte legítima de uma revelação que ele mesmo anuncia.
Se a autoridade institucional do tipo “padre” é atribuída ao religioso a quem compete dirigir a comunidade no cotidiano, garantindo sua continuidade por longo tempo, a autoridade carismática do tipo “profeta” se desinteressa pela gestão da vida cotidiana.

Não tive a intenção de me alongar sobre as questões desenvolvidas por Weber em sua abordagem sociológica da religião. Contento-me com a possibilidade de ter conseguido estimular no leitor o interesse por aprofundar seus estudos sobre Weber e sua sociologia. 

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

"A filosofia não é um conhecimento divorciado da vida" (BAR)

                           


                             A potência filosófica de existir


Poder-se-ia apontar várias razões por que uma pessoa decide dedicar-se aos estudos filosóficos. Embora possam ser várias, algumas, talvez, se destaquem desse conjunto quantitativamente indefinível por sua relação inextricável com experiências de vida, em que o psiquismo foi profundamente abalado. Suponho que não sejam raros os filósofos que passaram a filosofar e a conviver com o legado da tradição filosófica por força de traumas que certos acontecimentos lhes provocaram na alma. A ideia de que a decisão pela incursão nos estudos de filosofia e pelo exercício contínuo de filosofar pode ser consequência de experiências traumatizantes e  a de que o exercício mesmo de filosofar é uma forma de responder ativa e racionalmente ao abalo dessas experiências tomaram corpo em meu espírito, durante a leitura do prefácio da obra A potência de existir (2012), do filósofo francês contemporâneo Michel Onfray.
Donde provém a eficácia da filosofia para nos sustentar na existência, mesmo depois de termos experienciado os sofrimentos mais atrozes? Terá a filosofia o poder de iluminar a escuridão de nossas dores, contribuindo para nos manter nesse estado de “não-suicídio” (expressão que tomo a Luiz Gonzaga de Bem)?
A fim de explorar essas questões, retomo aqui a leitura que fiz do prefácio do livro A potência de existir (2012), de Michel Onfray. Este livro constitui uma introdução à obra desse filósofo; é, na verdade, uma síntese de seu pensamento filosófico. Sua filosofia é confessadamente hedonista, antiplatônica e anticristã. Seu pensamento foi forjado na esteira de Nietzsche e dos materialistas.
O prefácio desse livro é destinado ao resgate de experiências, vividas entre os dez e quatorze anos de idade, que marcaram a vida do autor profundamente. Conta-nos Onfray que, no começo de sua adolescência, ele fora enviado pelos pais para um orfanato administrado por padres salesianos (padres que pertencem à Congregação de São Francisco de Sales, fundada em 1859, por São João Bosco, para a formação da juventude). O que lá viveu foi não só determinante de sua entrega aos estudos filosóficos, mas também da construção de sua visão de mundo hedonista, antiplatônica e anticristã.
Era 1969, quando Onfray passou a viver, em regime de internato, no orfanato Giel – um amálgama lexical que reúne as palavras “gelo” e “fel”. Embora tenha ido para lá por arbítrio dos pais, o papel de sua mãe foi mais decisivo no destino que sua vida tomaria. No orfanato Giel, Onfray passou quatro anos e conheceu o que ele mesmo, sendo ateu, não hesitou em chamar de “inferno”. Esse “inferno” era dirigido por padres cruéis, hipócritas, pedófilos, pederastas e infensos à inteligência.
Sem pretender me demorar na exposição desse episódio da vida do filósofo francês, gostaria de oferecer ao leitor algumas amostras de sua narrativa desses tempos idos que, embora tenham desencadeado seu interesse pela filosofia, não lhes legou ressentimento ou sentimento de vingança. Ao invés de permitir que uma revolta paralisante se aninhasse em sua alma, Onfray escolheu tomar o caminho que o conduzisse a ampliar sua “potência de existir” (fórmula de que tomou conhecimento pela pena de Espinosa). Onfray respondeu ao legado dessas experiências por meio da prática filosófica, o que equivale a dizer por meio de uma compreensão radical do mundo, de seu lugar no mundo e de si mesmo.
No trecho a seguir, o autor lembra quem fora sua mãe e como era sua relação com ela.

“Meu Deus, como ela deve ter sofrido por não ter conseguido conter o ódio que lhe impingiram e que ela devolvia ao mundo, sem discernimento, incapaz de poupar seu filho! O que pode compreender uma criança com menos de dez anos dessa mecânica cega que envolve, sem que eles queiram, esses atores descerebrados na loucura que os destrói? Uma mãe bate em seu filho como uma telha cai do telhado; o vento não é culpado. Depositando sua filha à porta de uma igreja, minha avó, de quem ignoro tudo, contribui para os movimentos de todas essas infâncias postas sob o signo da negatividade. A força cega que move os planetas conduz num mesmo movimento os seres alimentados com essas energias negativas”.
(p. XV)


Por ter compreendido ter sido sua mãe tão vítima quanto ele, o filósofo não a culpa, já que todos os envolvidos eram atores submetidos a uma mecânica cega, muito embora ele, Onfray, reconhecesse ter estado numa situação ainda mais desfavorável, visto que “desempenhava um papel num palco cujas lógicas ignorava” (ib.id.).
O pai não dissuadiu a mãe de sua decisão. A natureza plácida, sua taxia que lhe enrobustecia um espírito pacífico acomodou-lhe muito bem no papel de cúmplice.
Já no orfanato, Onfray nos oferece suas primeiras impressões daquela atmosfera marcada profundamente por violência, vigilância, disciplina castradora e abusos sexuais.

“Não se escapa de uma prisão não murada. A carne e a alma são vigiadas inclusive a distância, principalmente a distância”.
(p. XVII)


Quando os pais o deixaram, iniciava-se a história de seu fim. É sua existência que seria, desde então, profundamente transformada, lavrada com o cinzel do isolamento, da solidão, do abandono.

“A história do ser se escreve ali, com essa tinta existencial e essa carne que se furta, esse corpo que registra animalmente a solidão, o abandono, o isolamento, o fim do mundo. Arrancando dos costumes, dos rituais, das fisionomias conhecidas, dos lugares íntimos, eu me encontro sozinho no universo, experimentando o infinito pascaliano e a vertigem que se segue. Vórtice da alma e dos humores...”. (p. XIX)


“Vórtice da alma”tal é o impacto causado por esse arrancamento prematuro de seu universo familiar, para ser lançado num mundo hostil, sombrio e apavorante.
Era o fim de Michel Onfray, que teve de lidar com o fato de sua subjetividade ser reduzida a um número.

“Não serei mais que 490, um número que reduz meu ser a esses algarismos. Normal, estou num orfanato, onde abandonam as crianças, logo, elas devem se separar de seu nome próprio para se tornarem um número numa lista. (...) Fui morto ali, naquele dia, naquele momento. Pelo menos a criança em mim morreu e eu me tornei adulto repentinamente. Mais nada me assusta desde então, não temo nada mais devastador”.
(p. XX)


O espírito salesiano – já o disse – não se agrada da inteligência. O sacerdócio era oferecido aos que se deixavam moldar intelectualmente. Nessa atmosfera, os livros atraíam desconfiança e o conhecimento produzia temor. O intelectual era identificado como o verdadeiro inimigo. A culpa estava por toda parte. A punição sobrevinha injustamente pelas mãos impiedosas do capricho e do arbítrio. Nesse ambiente, até mesmo o estudo se desenvolvia sob a pressão do temor:

“A disciplina, os castigos, o lícito, o ilícito, o bem, o mal, a falta, vivíamos em permanência nessa atmosfera. O estudo também transcorre no temor: o mau resultado obtido, não por falta de esforço, mas por falta de inteligência, também é submetido à lei da nota semanal, depois punido”.
(p. XXXIV)


Um dos casos de abuso sexual de que foi testemunha o filósofo envolveu um salesiano encarregado da enfermaria. Conforme nos conta Onfray,

“Duas palavras também sobre o salesiano encarregado da enfermaria, para onde ninguém corre, e com razão: qualquer dorzinha de cabeça vale para quem o procura ter imediatamente a calça abaixada e ser bolinado. Com as calças caídas sobre os sapatos, se protesta observando que não é ali que dói, ouve em resposta que as complicações se escondem em toda parte! Depois, o apalpador de sacos declara, indiferente, que está na hora de voltar à sala de aula e paga tudo avarentamente com um comprimido de aspirina. Fiquei com minhas dores de cabeça para mim...”.
(p.XXXIX)


Os livros, a música, as artes e a filosofia – especialmente a filosofia – avivou-lhe a força necessária para que pudesse suplantar o inimigo do passado, responsável por confinar sua existência em relações íntimas com o medo e a opressão “santa”.

“Para não morrer por causa dos homens e da sua negatividade, houve para mim os livros, depois a música, enfim as artes e sobretudo a filosofia. A escrita coroou o todo”.
(pp. XXXIX – XL)


Toda produção intelectual do filósofo é consequência, conforme ele próprio nota, “de uma operação de sobrevivência efetuada desde o orfanato” (ib.id.). Com Espinosa, passou a expressar em seu pensamento filosófico a “potência de existir”. Com as seguintes palavras, com que dá testemunho de sua sobriedade e sabedoria, Onfray encerra sua visita ao passado salesiano:

“Sereno, sem ódio, ignorando o desprezo, longe de todo desejo de vingança, ileso de qualquer rancor, informado sobre a formidável potência das paixões tristes, não quero nada mais que a cultura e a expansão dessa “potência de existir”.
(p. XL)


Ainda não ataquei, propriamente, as questões anteriormente propostas; mas tão-só as toquei de leve. A experiência relatada por Onfray ilustra a medida da relação irrecusável, a quem quer que se dedique seriamente aos estudos filosóficos, da filosofia com a vida. Não obstante, precisamos avaliar quais são as características da filosofia que tornam-na um instrumento poderoso para alimentar no homem a perseverança em existir cada vez mais.
Antes de encetar nossa investigação, trago à cena as observações feitas por Sponville, em seu Uma Educação Filosófica (2001), sobre o que chama de estado de crise da filosofia. Segundo o filósofo, a crise apresenta duas faces: uma deve ser identificada com a modernidade, na qual se destaca o poder da mídia na formação da opinião das massas, a qual insistentemente preenche o lugar da filosofia; a outra, com a erudição que se manifesta mediante raciocínios vãos e divorciados da vida real. Essa verborragia vazia a que se reduz a prática filosófica, Sponville chama idealismo universitário. Não admira que a disciplina seja tão pouco atraente aos estudantes. Ao se dirigir à classe docente, confessa o filósofo francês:

“(...) muitas vezes, ao ouvi-los, tenho a impressão de escutar uma filosofia morta, que não tenha a opor ao pedagogismo reinante nada mais que um filosofismo caduco e irrisório”.
(p. 139, ênfase no original)


Por pedagogismo – preciso esclarecer -, Sponville entende um sistema de ideias, atitudes e práticas que privilegia a educação em prejuízo da instrução. Esse padagogismo carreia certo número de forças – ideológicas, profissionais, sindicais – que estão intimamente ligadas ao meio docente. Nesse sistema ideológico, reza-se que a escola seja libertadora não só dos indivíduos, mas também da sociedade. Essa apregoada libertação de que a escola deve ser promotora assume a forma de uma promessa de prosperidade para a sociedade que tenha em seu horizonte o futuro e em seu projeto a recusa à transmissão e à conservação do passado – função esta que, segundo Sponville, deve ser imputada à escola. Nas palavras do autor,

“(...) cumpre lembrar que a escola não é o lugar da invenção do futuro (que somente os cidadãos podem e devem assumir), mas da conservação do passado na reprodução do presente”.
(p. 138)


Se a escola tem, consoante pensa Sponville, uma função eminentemente conservadora, não se segue daí que se deve confundir o projeto pedagógico conservador da instituição escolar com o conservadorismo político. Do mesmo modo, não se deve tomar esse projeto como um caminho para a consolidação de práticas reacionárias. Trata-se senão de um compromisso com a conservação de um passado, de uma história, de um patrimônio cultural, que é a própria história do desenvolvimento da cultura ocidental.
Quando se debruça sobre o conteúdo e a finalidade da filosofia, Sponville é enfático: “a filosofia tem (...) fora de si mesma, seu objeto (o real) e seu fim (a sabedoria)” (p. 140). Uma filosofia apartada do real, divorciada da materialidade imanente ao mundo não passa de uma verborragia enfadonha e despropositada. Como poderiam os jovens se sentir atraídos por um discurso (logos) desconectado com a própria existência que o torna possível? Esse logos se reduz, se não encarnado no real, a uma tagarelice que beira à loucura – para parafrasear Sponville (p. 140).
Estando a filosofia comprometida com o real, deverá ela responder aos anseios humanos; e qual outro é tão facilmente universalizável quanto o anseio de felicidade? Tendo em conta o fato de que a felicidade jamais estivera ausente do horizonte humano, oportuno é lembrar a definição de filosofia dada por Epicuro: “a filosofia é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz”. Mas não devemos nos apressar em concluir que a filosofia por si mesma é suficiente para nos conduzir à felicidade. Não percamos de vista o fato de que também a felicidade e a possibilidade de sua fruição são colocadas como uma questão para a filosofia. Ademais, a definição oferecida por Epicuro deve ser entendida à luz de seu ensinamento ético, que propunha como finalidade a ataraxia (ausência de perturbações). O homem feliz, para Epicuro, é o homem que eliminou a dor, o sofrimento mental e físico; é o homem que se libertou do jugo de seus temores. Somente o estado estável de prazer leva à felicidade. Deixemos, no entanto, Epicuro, não sem reter a íntima relação entre filosofia e a vida vivida, para retomar as considerações de Sponville.
Segundo Sponville, o ensino de filosofia serve para dotar os estudantes de conhecimento e instrução. Serve, ademais, para propiciar-lhes a experiência da alegria do repouso na verdade (Espinosa).
Concentrando-se na questão do ensino da filosofia, Sponville identifica os seguintes desafios à prática do professor – que são os desafios de todo professor (não só de filosofia) preocupado com o ensino de leitura e escrita. O primeiro desafio consiste em enfrentar o estado de incultura dos alunos; o segundo, no enfrentamento do domínio deficiente da língua escrita; o terceiro, em enfrentar a desvalorização da abstração e do trabalho com conceitos; finalmente, o quarto desafio repousa no enfrentamento do culto ingênuo das vivências, do imediatismo e da espontaneidade.
A rejeição a assumir esses desafios é desistir do esforço por evitar que a filosofia se torne uma filodoxia, conforme nota o autor:

“Os debates de opiniões substituiriam então os estudos dos textos, a impaciência presunçosa dos falsos saberes triunfaria sobre a paciência do conceito e a filosofia se apagaria, enfim, diante da filodoxia”.
(p. 135)


Sempre que nos ocorre perguntar-nos “o que é filosofia?”, não é sem-razão começar por assumir o óbvio: não se filosofa senão com palavras. Se preferirmos, com discursos. Mas não com quaisquer palavras ou discursos, decerto. As palavras precisam designar ideias gerais ou conceitos. Que a filosofia se faz pelo encadeamento de raciocínios é lugar-comum, mas esses raciocínios devem nos guiar na busca da verdade necessária e universal. A filosofia demanda um trabalho intelectual, rigoroso, metódico, disciplinado. Ela é uma prática teórica, que visa a resultados gerais ou universais. Como prática teórica, não é científica, porque não pode ser logicamente demonstrada, como a matemática, nem empiricamente refutada (à semelhança das ciências experimentais).
A filosofia supõe um trabalho de transcendência realizado pelo próprio homem. O seguinte passo de Sponville, colhido de sua obra A Filosofia (2005), ilumina-nos em que consiste este trabalho de transcendência:

“Filosofar é pensar mais longe do que aquilo que se sabe e do que aquilo que se pode saber”.
(p. 20)


A filosofia não só torna o homem consciente de seus limites, mas também o estimula a ultrapassá-los. Ao que escreve Sponville, eu acrescentaria, fazendo eco a tantos especialistas na área, que filosofar é também submeter ao exame e convocar ao tribunal dos questionamentos, presidido pela razão, as opiniões, as crenças e saberes correntes e cristalizados, que tomam a forma de verdades “sagradas”, inabaláveis, intocáveis.
A filosofia não é a única forma possível de conhecimento, evidentemente. A fim de melhor compreender sua natureza, vamos confrontá-la com o que se costuma chamar de senso-comum. Decerto, enquanto empreendimento de uma razão crítica, a filosofia rejeita as ingenuidades e os preconceitos típicos do senso-comum. Mas o que é o senso-comum?
Em primeiro lugar, devemos reconhecer que ele ocupa um lugar privilegiado na vida de qualquer um de nós, já que ele é o conhecimento imediato, espontâneo, vivido que nos guia em nossas vivências diárias. Assim, podemos definir o senso-comum como a forma de compreensão da realidade imediata pelos indivíduos em suas experiências da cotidianidade. É um saber coletivo que encerra opiniões, hábitos, crenças, superstições, formas de pensamento, valores, ideologias de que se vão apropriando os indivíduos em coletividade de modo acrítico. Essa forma de saber serve, como disse, para orientá-los em suas vivências cotidianas. É o senso-comum que guia as suas ações, as suas formas de perceber/compreender a realidade.
Quando um indivíduo assume uma atitude filosófica, ele, necessariamente, se compromete com a superação desse senso comum, responsável por conformar maneiras de pensar e entender, por determinar hábitos de pensamento. É preciso frisar: mesmo esse indivíduo imbuído de atitude filosófica e, portanto, disposto a examinar toda sorte de opiniões e representações do senso comum, que acaba por conservar uma grande maioria num estado de compreensão superficial e empobrecida da realidade, não consegue prescindir totalmente do senso-comum, dada a sua natureza utilitária, visto que serve para orientá-lo nas suas vivências ordinárias.
O pensamento filosófico surge da urgência de questionar as verdades do senso-comum, por isso não pode prescindir dele. Para o que me interessa, é preciso ficar claro que o senso-comum é uma forma de conhecimento superficial, porque não atinge os fundamentos ou as raízes da realidade; assistemático, porque desprovido de organização e coerência internas; não-metódico, já que o seu desenvolvimento não se dá por etapas predeterminadas, mas segundo as necessidades emergentes das circunstâncias. Para o senso-comum, o poder da tradição é determinante para a manutenção de certas formas de agir e saber. Vale o conhecimento que se demonstrou útil ou eficaz no passado.  Segundo a lógica do senso-comum, as ações, os comportamentos  e os conhecimentos assumidos no presente se justificam com base em sua eficácia ou valor fixados pelas gerações precedentes. Consoante observam Luckesi e Passos (2012):

“O senso comum não está preocupado com as incoerências de suas partes, e muito menos se esse entendimento é válido aqui e acolá ou se só aqui ou só acolá. Sabe que, aqui e agora, nesse momento prático, ele é útil, o depois... e o acolá... do conhecimento são dimensões que não cabem no seu horizonte”.
(p. 38)


O homem acostumado ao labor filosófico busca prevenir-se contra as ilusões que lhes são inculcadas por força de sua socialização. O leitor de Schopenhauer, por exemplo, tendo-o em conta, não descuidará do fato de que a faculdade de deliberação no homem está entre as coisas que mais acarretam dor à sua existência. As dores que experimentamos, muitas vezes, têm sua origem em noções abstratas, em pensamentos que a própria racionalidade fabrica. Se a lucidez no homem pode ser fonte de sofrimentos, a razão também lhe permite ponderar sobre esses sofrimentos e suas consequências. No homem, a faculdade de deliberação é indissociável da faculdade de abstração, de sorte que o próprio comportamento deliberativo no homem se determina por representações abstratas.
Gostaria, doravante, de situar minhas reflexões sobre o valor da filosofia no domínio da urgência de diversão. A filosofia se nos apresenta como um espaço dialógico de resistência à necessidade alienante de “di-vertimento”. Do latim “de-vertere”, diversão significa “desviar a atenção para outro lado”. Pascal entendia a diversão como uma atividade em que o homem se ocupa para evitar defrontar-se com o seu vazio existencial, com sua insignificância num universo infinito, cego e indiferente. Tudo de que se ocupa o homem, desde o exercício de sua profissão, passando pelas atividades políticas, negócios, até o hábito de se deixar estar por longas horas a navegar pela internet pode ser definido, segundo a perspectiva de Pascal, como “di-versão”.
Não só Pascal vem em socorro da ideia de que a filosofia, não negando ao homem os prazeres da diversão, ilumina-lhes o caminho para que se liberte de sua tirania, mas também Kierkegaard e Heidegger. Este último, que também se preocupou com a existência concreta do homem no mundo, estava consciente do fato de que o Dasein do cotidiano (o impessoal) é o homem que se diverte como todo mundo se diverte, que vê e julga como todo mundo, que considera escandaloso o que se comumente considera um escândalo. Para Heidegger, o homem imerso na impessoalidade habituou-se a reproduzir formas homogêneas de pensamento. Seus di-vertimentos também são produtos de hábitos determinados por sua sociedade. Esse homem tende a abordar os problemas de relevância social, cultural, política, histórica, universal segundo os modelos engessados de opinião estabelecida.
A respeito desse homem conformado à cotidianidade e moldado às formas de di-vertimento padronizadas em sua sociedade, mas também prisioneiro dos estímulos sensoriais provenientes da exterioridade, que o faz desarrancar-se de si, Melendo, em Iniciação à Filosofia – Razão, Fé e Verdade (2005), nota:

“(...) justamente entre estes últimos o domínio das modas, das categóricas frases feitas, dos reiterados comportamentos rituais, é o que se manifesta em geral e com mais ênfase. E isso impressiona sobremaneira, porquanto vai acompanhado da ingênua certeza de estar desafiando uma sociedade que, de fato, sem que eles o saibam, submete-os às suas leis (...) às regras de consumo, aos jogos de poder, ao status quo estabelecido”.
(p. 35)


O homem que vive anonimamente no fluxo das massas tende a entreter-se com palavreados, com notícias e debates oferecidos superficialmente pelos meios de comunicação de massa. As palavras de que se serve comunicam conteúdos em torno dos quais se estabeleceu um domesticado consenso. Esses conteúdos são agastadamente reproduzidos. Para ele, a realidade está toda ela revelada e apreendida nesses conteúdos. Os temas de que se ocupa são esvaziados de sua importância e tendem a ser enfocados de uma perspectiva predominantemente subjetiva, valorativa e estreita.
Em suma, o bombardeamento de informações desconectadas de seus contextos reais de existência, o excesso de estímulos sensoriais a que esse homem está suscetível desencorajam-no de imergir no sentido profundo dos acontecimentos e das ocorrências do real.
Antes de me deter a considerar a lição de Kierkegaard sobre a existência concreta do homem – lição que nos ajudará também a compreender o valor da filosofia, quando a consideramos como uma prática discursiva que responde às necessidades vitais do ser humano, quero me demorar um pouco na exposição do aspecto impessoal da natureza do Dasein, segundo Heidegger.
Das Man (o impessoal) é o conceito cunhado por Heidegger para designar os aspectos de nossas vidas que são comuns e que se situam na esfera do anonimato. Esse conceito recobre as vivências dos indivíduos em nossas sociedades de massas, nas quais eles não se distinguem uns dos outros. Mas Heidegger argumenta que o “eu” é sempre impessoal e que não pode ser concebido como substância. Isso não o impede de distinguir um “eu” autêntico do “si-mesmo-impessoal”. Esse eu será cada vez mais autêntico quanto mais capaz de se distanciar das multidões.
Heidegger, no entanto, nega que seja possível ao “eu” ser univocamente autêntico. O eu do Dasein cotidiano é o “si-mesmo-impessoal”. Para esse “si-mesmo-impessoal” a existência não se apresenta como um problema sobre o qual ele deve se debruçar.
De minha parte, considerando-se a filosofia em sua relação dialética com o “si-mesmo-impessoal”, ela se lhe apresenta como um caminho íngreme através do qual pode superar o conformismo, a apatia, o imediatismo das vivências ordinárias.
Kierkegaard também se ocupou da reflexão sobre o homem individual no mundo. Nesse sentido, ele se opõe às filosofias que tenderam a negligenciar a dimensão individual da existência humana, como, por exemplo, as de Spinoza, Hegel e Marx. Para os meus propósitos, considerarei os dois tipos de homem identificados e definidos por Kierkegaard, quais sejam, o homem normal e o homem autêntico.
O homem normal, também chamado por Kierkegaard de filisteu, é o homem que exibe uma “neurose normal”. É o homem que não se diferencia da multidão de que toma parte sua existência cotidiana, cirurgicamente moldada pelos padrões de sua sociedade e cultura. Esse tipo de homem receia arriscar-se; evita defender seus significados, preferindo a imitação de modelos, preferindo perder-se na insignificância da multidão.
Esse homem sente-se bem acomodado ao mundo. O mundo é para ele como um lar onde suas práticas e pensamentos se deixam domesticar. Ele vive no circuito rotineiro de suas obrigações e se confunde com os deveres sociais.
O filisteu, em Kierkegaard, é este homem acomodado numa existência que, raramente, reclama-lhe indagações. Ele conserva-se na crença de que o equilíbrio de sua existência deve ser mantido com vivências que se seguem às vivências “normais” da coletividade. Ele se tranqüiliza com o trivial. Receia enfrentar sua precária condição humana.
O homem autêntico, por outro lado, desafia sua própria fraqueza. É criador de si mesmo. Não teme defender seus significados, suas visões de mundo, mesmo que isso lhe custe dissensões na sociabilidade e um relativo isolamento. Não se posiciona em face do social como um sofredor estéril ou um sonhador que prefere esconder-se. Ele imerge visceralmente na existência, sem receio de enfrentar, em algum momento, seu absurdo.
Esse é o homem deslocado socialmente, que resiste às formas de adaptação das massas à engrenagem social. Autônomo, porque rejeita a heteronomia. Porque não delega a outros atores sociais o trabalho de pensar e decidir em seu lugar. Esse homem é atravessado, penetrado pela inquietude intelectual.
O homem que abdica de viver sob a luz de seu espírito crítico busca, por esse estratagema, escapar à angústia legada por sua própria condição humana. Ele vive num estado de embaçamento, no tocante à compreensão de sua condição. Vive confinado a hábitos de existência que lhes estorvam as percepções da realidade.
A angústia a que me refiro envolve a percepção do homem de sua condição de criatura. A angústia resulta da consciência de que, embora seja uma espécie de animal, o ser humano é cônscio de sua finitude. A angústia envolve um terror, tão bem caracterizado por Becker, em A negação da morte: uma abordagem psicológica sobre a finitude humana (2012):

“(...) ter surgido do nada, ter um nome, consciência de si mesmo, profundos sentimentos íntimos, uma torturante ânsia pela vida e pela auto-expressão – e, apesar de tudo isso, morrer”.
(p. 116)


Filosofar é aprender a viver


Encaminhando estas reflexões a um desfecho que, não encerrando a problemática em torno do valor da filosofia e das razões por que o homem a ela se entrega, possa satisfazer os objetivos aqui perseguidos, volvo olhares sobre a filosofia como uma forma de conhecimento indissociável da vida prática.
Proponho que tomemos a seguinte questão: por que conhecemos? Em outros termos, por que o homem produz conhecimento? A resposta salta evidente: para sobreviver. Para que o homem possa orientar sua vida no mundo, ele precisa conhecer esse mundo. O conhecimento ilumina sua práxis. Não nego que o conhecimento possa servir a outros propósitos, certamente pouco apreciáveis ou mesmo execráveis. Mas, sem conhecer o mundo em que vive, o homem viveria em um eterno estado de escuridão, que o impediria de nele atuar de modo significativo e satisfatório.
A filosofia, enquanto forma de conhecimento (cujas especificidades já apontei em outras ocasiões e que retomo aqui em linhas gerais), deve estar a serviço da vida. Por ser crítica, a filosofia se propõe compreender radicalmente o mundo. Mas também constitui um sistema que fornece ao homem princípios na base dos quais ele orienta suas ações, seus comportamentos, suas práticas. O conhecimento filosófico, portanto, não se fecha em si mesmo, mas se apresenta ao homem como conhecimento-ação que lhe permite atuar critica e lucidamente sobre o mundo, com vistas a atender às suas necessidades que emergem da vida prática.
A filosofia instrumentaliza o homem para que ele transcenda o viver imediato, liberte-se do imediatismo da realidade empírica do cotidiano, enfrente a precariedade de sua condição como ser destinado, desde que chega ao mundo, a morrer (não sem ter de sofrer, muitas vezes, com enfermidades no auge de sua juventude, com a decrepitude, ou mesmo pela morte dos seus) e torne mais eficiente e significativa a sua práxis.
Não há filosofia que não expresse a vida humana, que não se ocupe de questões que tocam à existência humana. São os homens que fazem filosofia e é a eles que ela se dirige, é aos seus problemas, aos seus temores, às suas angústias, às suas tragédias, à sua insensatez, à sua natureza, etc. A filosofia – convém insistir – não é um conhecimento divorciado da vida.
Finalmente, é forçoso reconhecer que a ação sem o conhecimento é cega. O homem, a fim de agir no mundo, precisa saber, precisa conhecer sua estrutura e funcionamento. Quando consideramos as ações na dimensão da existência humana, devemos reconhecer também que essas ações são dotadas de sentido. A razão é também a faculdade que torna possível ao homem atribuir sentido ao mundo e às suas ações no mundo.
A filosofia, portanto, serve ao homem como uma atividade racional, investigativa e metódica que lhe permite por em questão o próprio sentido do mundo e da existência. Nas palavras de Luckesi & Passos (2012):



“(...) o ideal da filosofia não será, de modo algum, manifestar-se como uma forma inconsciente de compreender e orientar a ação; o seu objetivo, pelo contrário, é ser um modo consciente e crítico de pensar e direcionar a vida”.
(p. 79)



É a este propósito, qual seja, “o de pensar e direcionar a vida de modo consciente e crítico” que a filosofia serviu para Onfray, muito tempo depois de ter vivido os anos de terror no orfanato Giel. A filosofia é um antídoto contra os ressentidos e o ressentimento. É, como ensina Luc Ferry, uma forma de o homem “salvar sua própria pele”, com os recursos de que dispõe, pela força motriz de sua razão. Não se filosofa para lamentar, tampouco para fugir às frustrações, aos medos, às angústias. É justamente o contrário. Filosofa-se para, compreendendo as disposições contrárias do universo aos nossos anseios de felicidade, compreendendo a nossa impotência, as nossas limitações, enquanto seres mortais e finitos, compreendendo as nossas habilidades, possamos claramente determinar nosso raio de liberdade de ação e enfrentar, sem recorrer a subterfúgios consoladores, as dores e os sofrimentos que, ainda que muitos de nós prefiramos retocar com a maquiagem de nossas vãs esperanças, insistem em irromper das malhas finas da existência. Preferir a lucidez ao conforto, mesmo que aquela nos revele a miserabilidade, o terror, a tragédia, a ausência de sentido da existência, a verdade crua do sofrimento, a fluidez da felicidade, a fragilidade da vida, as incertezas do futuro, a conspiração inocente e aterrorizante da natureza, é, em suma, o caminho que escolhemos quando nos inclinamos à filosofia. 





quarta-feira, 7 de agosto de 2013

a verdade nossa de cada dia




A senhora verdade

Há uma verdade que grita
Uma que coça
e outra que se esquiva
aos esforços por capturá-la
Qual delas agrada ao filósofo?
E ao poeta?
Ao homem comum?
A verdade tem suas artérias
Mas um só sentido
A verdade gosta de se esconder
É narrativa que se conta
É história que contamos
Que de tanto ser contada
Torna-se como uma segunda pele
Que esconde a vergonha que sentimos
Da nudez do absurdo


(BAR)

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Poemas de um caminhante




Solitário caminhante


Assim seguirei
...decididamente solitário
Caminhando
sem amparos e consolos
levando comigo meu desespero
(que é viver sem nada esperar)
amando no horizonte de meu desejo
o descanso irreparável da vida.

(BAR)



Sensatez

Este mundo é um manicômio
E os verdadeiros loucos
são os que ignoram isso.
Pregando a normalidade
Como quem prega um dogma de fé.

(BAR)




Ponto de vista

A vida não é breve
Ela é até longa demais
P’ra quem já não mais a suporta

(BAR)