domingo, 21 de fevereiro de 2016

Toda crença religiosa torna inútil a filosofia




4 Lições de Marcel Conche
(às quais eu dou minha aquiescência)



1ª lição:

Crer no Deus judaico-cristão é imoral. O cerne do argumento de Conche se afina com minha posição, desenvolvida em alguns textos, nos quais me ocupo com a materialidade histórica da ideia de Deus. Para se crer no Deus judaico-cristão, é preciso se deixar afetar pelo esquecimento, é preciso não ter memória histórica, ou recusar-se a tê-la. Segundo Conche, a memória histórica impõe o dever de negar a existência de Deus.

2ª lição:

A filosofia, hoje especialmente, pressupõe um ceticismo profundo, de tal modo que todo filósofo deve renunciar à pretensão de alcançar uma Verdade em si. Os filósofos jamais se entenderam no tocante a uma proposição filosófica de caráter universal. Não há, por conseguinte, conhecimento filosófico; mas tão-somente pensamentos filosóficos (se preferirmos, interpretações) que se orientam para a apreensão do real segundo uma maneira de aqueles se posicionarem no mundo.

3ª lição:

O Sábio é aquele que consente incondicionalmente no caráter efêmero e universal da Aparência. Tudo que há é da ordem da aparência. Não há um ‘em si’, um fundo nas coisas (uma essência) que se deve aspirar a auscultar. O mundo se reduz a um fluxo de aparências.


4ª lição:

Toda crença religiosa torna inútil a filosofia, porquanto a religião, ao pretender fornecer uma resposta definitiva e incontestável à questão do sentido do mundo e do homem, proíbe a permanência da própria questão como tal. Não há mais questão; tudo está resolvido sem que nada verdadeiramente tenha sido dito ou pensado.
Marcel Conche não faz concessão ao caracterizar o filósofo e o religioso como tipos antagônicos. Assim, o verdadeiro filósofo não tem outra escolha senão decidir-se entre a filosofia e a religião. A filosofia, segundo Conche, não busca a felicidade, mas a verdade (que, no entanto, nunca é do tipo objetiva); por sua vez, a verdade (como acontece com frequência) não significa a felicidade.
Ademais, conforme já se expôs, em filosofia, não é possível uma verdade positiva, objetiva, pois que cada filosofia visa a atingir sua própria verdade. Não havendo, assim, conhecimento filosófico, o ceticismo é a verdade, ou seja, a ausência de verdade (objetiva) é a verdade.
Resta, então, perguntar o que nos oferece a filosofia, na impossibilidade de nos permitir o acesso à verdade objetiva (e nesse tocante, seu antagonismo com relação à religião fica mais saliente). A filosofia nos oferece (e isso não é pouca coisa) a possibilidade de destruir os dogmas, as ideologias e todos os sistemas (filosóficos, políticos, religiosos) que tenham a pretensão de atingir e impor uma verdade positiva. Nesse sentido, o verdadeiro filósofo é antidogmático.
Mas Marcel Conche não ignora que o filósofo possa aderir a uma religião ou a uma ideologia qualquer. Nesse caso, contudo, lembra Conche que ele o faz recusando-se a filosofar até as últimas consequências.


Segundo Conche, portanto,


“terá sido preciso que ele suspenda o direito da razão de questionar sempre. pois nenhuma religião, nenhuma ideologia pode se justificar totalmente, senão seria ciência e conhecimento unanimemente aceitos. O filósofo se torna crente apenas por uma escolha pessoal e arbitrária, que sem dúvida pode explicar a outros, mas não justificar. o verdadeiro filósofo, que não filosofa para contentar o desejo, mas que quer a verdade a qualquer custo, mantém-se portanto à margem de tudo o que é religião ou ideologia. Montaigne, quando escreveu os ensaios em sua torre, deixa a religião de fora: isso é se comportar como puro filósofo”

(p. 99)


E ainda, apesar de minha anuência às quatro lições de Conche, rejeito sua crença de que o sentido da vida deve consistir em legar à posteridade nossos ideais e nossos valores, com vistas a que as gerações futuras nos eternizem (quando morrermos) e levem adiante o trabalho empregado na construção de nossa obra. Cuido que assim se está assumindo como fundamento do sentido da vida a expectativa, a esperança, o desejo, o que nos autoriza a perguntar que vale a um indivíduo viver na esperança de que a sua obra legada seja apropriada e usufruída pelos que lhe sucederão no tempo, se uma vez estando morto, não pode intervir de modo algum no destino de seu legado? Que tem a ver o morto com aquilo que poderão fazer com seu legado? Ademais, querer erigir o sentido da vida sobre a esperança de que continuemos a existir através de nossa obra e do uso e usufruto dela pela posteridade não elimina a vanidade de nossos esforços, já que, de qualquer modo, estaremos mortos e não poderemos responder pelo que as gerações futuras farão de nossa obra... A morte nos priva do direito de intervir. Por isso, não me contento com essa alternativa. Para mim, a vida continua carecendo de qualquer razão de ser... Tudo que fazemos se realiza sobre o fundo de nada... Tudo é vanidade sob o sol.
Toda e qualquer filosofia que pretenda estabelecer um sentido para a vida carece de justificação. Por isso, minha orientação filosófica combina o trágico com o pessimismo. E, acompanhando o pensamento trágico de Clément Rosset, defendo e defenderei até o fim de minha vida que, se há alegria em estar vivo, ela deve ser celebrada como força que resiste a qualquer argumentação. A adesão ao viver significa celebrar o efêmero, a finitude, seu aspecto mutável, sua fragilidade, o risco constante da perda, o sentimento inextirpável do abismo, do Nada, a certeza da ausência de promessas salvíficas e de soluções para o drama da condição humana.


Bruno de Andrade Rodrigues.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Décadence - uma degeneração da vontade

                              


As duas negações do imoralista


Nietzsche não pretendeu destruir toda e qualquer moral, tampouco preconizou que devemos viver sem moral. Nietzsche edificou uma crítica corrosiva contra uma espécie de moral e um tipo de homem produzido por ela. Uma passagem emblemática de Ecce Homo dá-nos a conhecer a espécie de moral e o tipo de homem que estavam na mira da crítica destrutiva nietzschiana:

No fundo são duas negações que a minha palavra imoralista encerra. Eu nego, por um lado, um tipo de homem considerado até agora como supremo, os bons, os benévolos, os benéficos; nego, por outro lado, uma espécie de moral que, por sua autoridade e supremacia, apareceu como a moral em si– a moral de decadência, em termos mais precisos, a moral cristã.[1] (ênfases nossas).


Nietzsche foi, portanto, um crítico mordaz da moral cristã, que viria a entronizar em Deus todos os valores assumidos como superiores, e de um tipo de homem por ela produzido, o tipo decadente. A forma fatigada do niilismo já estava prefigurada nessa tradição moral. O tipo cristão é um tipo de homem cansado da vida. Seu ideal de salvação pressupõe que este mundo não deve ser aprovado, que sua existência só pode valer, ter algum sentido enquanto se pode crer no ‘em si’ que lhe fornece o fundamento.
Devemos também atentar para o fato de que Nietzsche, ao insurgir-se contra a moral cristã cujos valores foram (e ainda são hoje, em grande medida, em muitas partes do mundo) determinantes da formação cultural do homem ocidental, não pretendeu negar a possibilidade de viver segundo algum conjunto de valores morais. Lembremos que Nietzsche reconhece que nós, enquanto viventes, somos obrigados a valorar, a interpretar, a significar o mundo, uma vez que a vida, sendo essencialmente vontade de poder, é interpretação. No aforismo 114 de A Gaia Ciência, escreve Nietzsche: “não existem vivências que não sejam morais no âmbito da percepção sensível”. Como se pode ver, se a moral é um conjunto de sentidos que servem para nortear o viver, então não pode deixar de ser ela um fenômeno intrínseco à vida.
Nietzsche  mobiliza todo um arsenal crítico poderoso para derribar os alicerces de um tipo de moral que se desenvolveu como antítese da vida, para enfraquecê-la enquanto vontade de poder, enquanto jogo de relações de forças que querem dominar, expandir-se. Atacando essa espécie de moral, Nietzsche ataca o niilismo e a metafísica que lhe estão atrelados.
Nietzsche – o contrário de um niilista –esforçou-se por descortinar ao homem as formas pelas quais ele poderia recuperar a pujança de que o adoecimento moral o privou. Nietzsche encontrou valor, sentido onde o niilista não via senão um abismo intransponível, um vácuo de sentido que condenava o homem a existir sem que lhe fosse possível divisar qualquer referencial balizador. O filósofo de Röcken ensinou seu amor fati – seu “engajamento moral alegre”, subsumido na fórmula “eu quero” – como o grande remédio contra o mal do niilismo. Seu além-do-homem está na origem de uma moral ascendente, que surge como consequência do imperativo “sim à vida”. O além-do-homem é o tipo de homem, que sendo criador de valores afirmadores, pode expandir suas forças e intensificar o poder de sua vontade de viver. A nova moral desse homem dionisíaco, liberto da tirania do “Tu-deves”, grande possuidor do mundo, revigorado pelo fortificante “eu quero” não pretende ser mais uma moral universal ou metafisicamente fundada. Essa nova moral acena com o reconhecimento da individualidade fisiológica desse novo homem. Ela se afina com as especificidades fisiológicas de cada indivíduo. Corporificação da vontade de poder, essa nova moral valoriza o prazer como antípoda do dever. Nietzsche contra o kantismo: o “eu quero” substitui o imperativo categórico. Uma moral que se desenvolve em favor da singularidade não se esquiva a abominar toda tentativa de igualação, de nivelamento dos homens e dos valores.
Em suma, Nietzsche não se furtou a oferecer uma moral que viesse a cumprir o papel que a moral tradicional não conseguiu cumprir. Sua moral é própria dos homens livres, criadores; ela preconiza o prazer, a alegria, o riso, o excesso de vida, de força, de poder.


1. Décadence: uma degeneração da vontade

O conceito de decadência é apresentado na forma de um projeto teórico por Nietzsche em Vontade de Potência (2011). A seção Para uma teoria da decadência é principiada com a colocação do problema da decadência.  Nietzsche observa aí que o fenômeno da decadência é necessário “como o desabrochamento e o progresso da vida”[2]. Nietzsche nega haver meios de suprimi-la. Em seguida, censura os teóricos do socialismo por cuidarem haver condições sociais “nas quais o vício, a doença, o crime, a prostituição, a miséria não mais se desenvolvam... Isso seria condenar a vida”.[3] Devemo-nos acautelar de concluir que Nietzsche seja partidário do conformismo: ele não está comprometido com alguma tendência sociopolítica que visa a manter os homens resignados. Parece-nos que seu alvitre encaminha-se na direção de nos chamar a atenção para o fato de que a degenerescência é um fenômeno inevitável e inerente à dinâmica vital. Mais adiante, Nietzsche notará: “a própria decadência não é algo que se deva combater: é absolutamente necessária e peculiar a cada época, a cada povo”[4]. Agora, a decadência, sendo parte inerente do processo vital, é necessária à constituição da vida social. Por que o é? Porque a ela devemos a possibilidade do “desabrochamento e do progresso da vida”.
O que se costumou entender como causas da decadência – o vício, o crime, a doença, o pessimismo, o anarquismo, etc. – é, para Nietzsche, a sua consequência. Entendamos bem: Nietzsche não vê o vício e o crime, por exemplo, como causas da decadência de uma sociedade, mas como sintomas de sua decadência. Se a decadência é inerente ao processo vital, se é necessária à dinâmica social, que devemos, pois, combater? Segundo Nietzsche, “o que devemos combater com todas as forças é a importação do contágio para as partes sãs do organismo”.[5]
A corrupção dos costumes encontra sua origem na decadência. Como podemos, então, definir a decadência? Podemos defini-la como esgotamento do instinto, como desagregação da vontade. Ao referir os tipos gerais de decadência, Nietzsche nos lembra que o cristianismo prima entre os tipos que levam ao adoecimento do espírito. Os tipos decadentes são tipos esgotados. Seus valores são “virtude”, “desinteresse”, o “sofrer junto” (moral altruísta), a negação da vida, etc. Os tipos decadentes aspiram a uma condição na qual não mais sofram; mas isso significa negar a vida, dado que o sofrimento é inerente aos modos de conformação do tecido vital. Para os tipos decadentes, “a vida é considerada a causa de todos os males”[6]. Para eles, o enfraquecimento é tomado como sua verdadeira missão. O que eles querem? O enfraquecimento dos desejos, das sensações de prazer e desprazer; o enfraquecimento da vontade de poder, do sentimento de altivez, etc.
Consoante mostra Nietzsche, Deus é o nome para aquilo que enfraquece, para aquilo que ensina a fraqueza. Ora, Deus é, portanto, antítese da vida. Se vida, enquanto vontade de poder, é aumento de poder, Deus, enquanto nome para o que enfraquece, é impedimento desse aumento de poder.
Para Nietzsche, o tipo forte age e pretende, em sua ação, aumentar seu poder, expandir suas forças, a fim de alcançar, com a expansão da vontade (poder), mais alegria, mais prazer. O tipo fraco, por seu turno, aspira à inação, quer permanecer impassível. Assim, prejudica a si mesmo. Autodestruição – eis um tipo de decadência.

Todas as práticas das ordens religiosas, dos filósofos solitários, dos faquires, são inspiradas por uma justa avaliação do mundo que afirma que uma certa espécie de homem é mais útil a si mesma quando se abstém, tanto quanto possível de agir.[7]



Para Nietzsche, a configuração do modo de ser do tipo cristão é perversão do caráter criador da vida; não porque ele não é criador de valores, mas porque cria valores decaídos, valores que levam à deterioração da vontade de poder. O esgotamento desse tipo decadente empobrece o valor; torna-o nocivo à própria vida. Por isso, é necessário combater a moral cristã e seu tipo decadente de homem. E Nietzsche o fez da seguinte forma: “ensino o não em face de tudo quanto torna fraco – de tudo quanto esgota. Ensino o sim em face de tudo quanto fortifica, do que acumula forças, do que justifica o sentimento de vigor”.[8]
Concluímos esta segunda parte de nosso estudo, referindo uma passagem de Ecce Homo, em que Nietzsche nos conta como veio a se tornar o contrário de um decadente. Ao apresentar essa passagem, gostaríamos de que não passassem despercebidos os seguintes ensinamentos de Nietzsche, que ela nos permite entrever: 1) a filosofia de Nietzsche é uma filosofia inteiramente interessada na criação de um modo de ser; 2) a filosofia de Nietzsche é a expressão de sua própria vontade de poder que se quer a si mesma como vida que se afirma incondicionalmente; 3) a filosofia de Nietzsche é um processo vital consequente dos modos como ele foi afetado pela vida. Por isso, pode-se dizer, seguramente, que o modo como Nietzsche viveu sua filosofia é consequência necessária de um modo próprio de experimentação feita por ele do destinar-se da vida. O destinar-se da vida se encarregou de cunhar um modo de ser nietzschiano, e Nietzsche, por sua vez, soube apropriar-se desse modo de ser para convertê-lo em sabedoria de vida; em uma palavra, em filosofia fortificante e combatente de todas as forças debilitantes da vida.

A parte o fato de que sou um decadente, sou também o contrário disso. Minha prova a respeito é, entre outras coisas, que instintivamente sempre escolhi os remédios adequados para as piores situações: enquanto que o decadente sempre escolheu os remédios mais nocivos a si próprio. Como summa summarum, eu era saudável; como detalhe, como especialidade, eu era decadente (...). Tomei-me a mim mesmo em minhas próprias mãos, recobrei a saúde por mim mesmo: a condição para chegar a isso – todo fisiologista deve admiti-lo – é a de estar fundamentalmente sadio. Um ser tipicamente mórbido não pode tornar-se saudável, muito menos recobrar ele próprio sua saúde; inversamente, para um ser tipicamente saudável, estar doente pode até mesmo constituir enérgico estimulante da vida, de mais vida. Assim, é que vejo agora, de fato, esse longo período de enfermidade: descobri, por assim dizer, novamente a vida, a mim mesmo inclusive, apreciei todas as coisas boas e até as pequenas, como não é fácil que os outros possam apreciá-las – construí minha vontade de saúde, de vida, minha filosofia (...): o instinto do auto-restabelecimento me proibiu uma filosofia de pobreza e de desânimo...[9] (grifos nossos).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRAGA, Antonio C. Nietzsche: o filósofo do niilismo e do eterno retorno. São Paulo: Lafonte, 2011.

BRUCKNER, Pascal. A Euforia Perpétua: ensaio sobre o dever de felicidade. Trad. Rejane Janowitzer. São Paulo: Difel, 2010.

CABRAL, Alexandre Marques. Niilismo e Hierofania: Nietzsche, Heidegger e a tradição cristã – Nietzsche, cristianismo e o deus não-cristão, vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad, Faperj, 2014.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 2000.

COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 129.

FOGEL, GILVAN. O que é Filosofia? – Filosofia como exercício de finitude. Aparecida, SP: Ideia e Letras, 2009.

GAARDER, Jostein. et.al. O livro das religiões. Trad. Isa Maro lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

LYTOARD, J.F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olimpyo, 2008.
                                                
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

________________ Vontade de Potência. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

________________ Além do Bem e do Mal. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

________________ Assim Falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

________________ Aurora. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2013.
_________________ Ecce Homo. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2013.
_________________ O Anticristo. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.
_________________ A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

________________ Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

_________________ Humano Demasiado Humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.


PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.


ROSSET, Clément. A Anti-natureza: elementos para uma filosofia trágica. Trad. Getulio Puell. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.


ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

SOUSA, Mauro A. A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica? In: Maraschin, Jaci; Pires, Frederico Pieper (Orgs.). Teologia e Pós-modernidade: novas perspectivas em teologia e filosofia da religião. São Paulo: Fonte Editorial, 2008. p. 61-90.

VOLPI, Franco. O Niilismo. São Paulo: Edições Loyola, 1999.












[1] Por que sou um destino, § 4.
[2] § 72.
[3] Ibid.
[4] § 73.
[5] Op.cit.
[6] § 76.
[7] § 78.
[8] § 86.
[9] Por que sou tão sábio, § 2.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Trabalho apresentado como requisito para a aprovação na disciplina EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO LINGUÍSTICO no curso de doutoramento / 2010

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O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NAS ABORDAGENS FORMALISTA E FUNCIONALISTA: UMA BREVE DISCUSSÃO


1. Introdução

“(...) é o ponto de vista que cria o objeto”

(Saussure)

 

As reflexões que se estenderão ao longo destas páginas se orientam pela admissão de que a pluralidade teórica da Linguística é necessária e inevitável, porquanto seu objeto de estudo – a linguagem – é heterogêneo, multifacetado e heteróclito. Rechaçamos, portanto, qualquer visão teórica que se pretenda reducionista ou radical e nos baseamos na lição de Neto, em Ensaios de Filosofia da Linguística (2004), segundo a qual cada teoria opera um recorte sobre a realidade, instaurando, assim, seu objeto observacional, o qual constitui “a “região” que a teoria privilegia como foco de sua atenção e é constituído por um conjunto de fenômenos observáveis” (p. 35). É na base do estabelecimento de seu objeto observacional que se erigirá o objeto teórico; este se define por um conjunto de entidades básicas, de pressupostos e de objetivos, além de se fundamentar numa metodologia específica. Veja-se, a título de esclarecimento, o seguinte passo de Neto:

 

“Teorias diferentes podem construir objetos teóricos distintos sobre um objeto observacional que é supostamente o mesmo, bastando para isso reconhecer entidades básicas, predicados e relações no objeto observacional”.

(p. 37)

 

 

Das palavras do eminente linguista, pode-se depreender que o objeto observacional diante do qual estão os gerativistas e os funcionalistas, por exemplo, é o mesmo, a saber, a linguagem. No entanto, o modo como ela será concebida, o aparato conceitual e metodológico de que lançarão mão para estudá-la, os objetivos perseguidos, os pressupostos em que se apóiam serão determinantes da diferença entre dois objetos teóricos – o dos gerativistas e o dos funcionalistas. Destarte, gerativismo e funcionalismo não se ocupam do mesmo objeto teórico. E devemos reconhecer, eticamente, que isso não constitui problema algum; problema há quando se notam atitudes que engendram rivalidades e menosprezo pelo trabalho do outro.

Conquanto nos alinhemos com a perspectiva funcionalista, acreditamos ser equivocada qualquer atitude ou posição que ignore a herança formalista da qual a Linguística moderna, desde Saussure, é devedora. Que a língua seja um sistema de signos, uma estrutura, um sistema de frases, um sistema simbólico responsável por estruturar a realidade, uma atividade intersubjetiva socialmente fundada, etc. – disso não temos dúvida. Resta avaliar as vantagens que nos proporciona a escolha de uma ou outra concepção.

 

1.2. Objetivo

 

Nosso intento é discutir de que modo as abordagens formalista e funcionalista se diferenciam, tendo como parâmetro orientador o conceito de competência.

Evidentemente, dada a natureza desta exposição, não se empreenderá uma discussão exaustiva; vamo-nos cingir aos aspectos fundamentais da distinção entre as duas abordagens, que estejam intrinsecamente relacionados ao conceito de competência.

Visto que os rótulos formalismo e funcionalismo recobrem um vasto espectro de teorias ou abordagens, será necessário fazer algum tipo de abstração. Como representante da abordagem formalista, consideraremos, para efeito de discussão, o gerativismo, tal como foi desenvolvido e propalado pelo seu maior expoente – Noam Chomsky (1957)[1]; por outro lado, vamo-nos ater ao funcionalismo desenvolvido e divulgado por Halliday.

 

 

2. Formalismo e Funcionalismo: uma breve discussão

 

 

Entendendo ser toda teoria um conjunto sistemático de enunciados e conceitos, portanto, um todo coeso e coerente, é lícito afirmar que cada conceito terá sua validade dentro do universo teórico específico no qual é desenvolvido. Ademais, a reflexão sobre um dado conceito permite-nos apontar caminhos que nos levarão ao reconhecimento das bases em que se estabelece a distinção entre duas (ou mais) correntes teóricas.

Para o que nos compete aqui, o conceito de competência é um grande indicador da distinção entre uma e outra corrente teórica. Vamo-nos ocupar, num primeiro momento, em defini-lo no interior do gerativismo; posteriormente, traremos à baila o modo como ele foi reinterpretado e desenvolvido na abordagem funcionalista.

 

 

2.1. A competência linguística no gerativismo

 

Em Estruturas Sintáticas (1980)[2], Chomsky se refere à competência linguística da seguinte forma:

 

“(...) capacidade de um falante do inglês para produzir e compreender novos enunciados rejeitando, simultaneamente, outras sequências novas como não pertencentes à língua”.

(p. 26)

 

 

Dispensando o fato de que neste trabalho, na medida em que constitui uma descrição do inglês, o autor trate da competência relativamente a uma comunidade linguística específica – a dos falantes de inglês, importa notar que esse conceito envolve duas espécies de conhecimento: um operacional; outro avaliativo. Assim, é a competência linguística de que todo falante nativo dispõe que lhe permitirá produzir (e compreender) enunciados em sua língua materna, bem como avaliar as construções dessa língua relativamente ao conjunto de regras previstas pela sua gramática.

 Destarte, serão consideradas gramaticais as construções que resultaram da aplicação das regras previstas pela gramática de sua língua materna; e agramaticais, as que não resultaram dessa aplicação. Evidentemente, a gramaticalidade não se resolve em polos opositivos, mas sobre uma gradação em termos de aceitabilidade.

Em Linguagem e Linguística – uma introdução (1987), Lyons apresenta aquilo que será um aspecto determinante da diferença de compreensão do conceito de competência nas abordagens gerativa e funcionalista.

 

“A competência linguística de um falante é um conjunto de regras que ele construiu em sua mente, pela aplicação de sua capacidade inata para a aquisição da linguagem aos dados linguísticos que ele ouviu à sua volta na infância (...)”.

(p. 173)

 

 

Note-se que o autor alude à relação entre a competência linguística e a hipótese inatista da aquisição da linguagem, segundo a qual a criança nasce com um programa, geneticamente determinado, chamado de Gramática Universal, que lhe permitirá, por um processo de desenvolvimento e maturação, o conhecimento e domínio de sua língua materna. A Gramática Universal é a própria faculdade da linguagem e constitui um conjunto de princípios e parâmetros, na base dos quais a criança irá operar com vistas a se tornar um falante competente em sua língua materna[3]. Os princípios constituem as regras “gerais”, isto é, comuns a todas as línguas; os parâmetros são as regras (ou valores) específicas de uma dada língua. Cabe à criança selecionar, a partir de um input (um conjunto determinado de produções linguísticas a que ela está exposta), a forma que um dado parâmetro tomará na língua em cuja aquisição ela se empenha.

Acrescente-se que a Gramática Universal pode ser vista como uma espécie de programa computacional, responsável pela produção dos enunciados linguísticos. Consoante essa perspectiva, a língua passa a ser considerada um conjunto de sentenças resultantes da operação das regras dessa gramática.

A competência linguística se desenvolve, portanto, na base de uma aptidão inata para a aquisição da linguagem. Na perspectiva gerativista, não é possível pensar a competência sem postular a existência de uma gramática universal inata que está inscrita na mente/cérebro do falante nativo. Nisso residem a coesão e a coerência a que nos referimos anteriormente: não podemos discutir o conceito de competência sem pensá-lo em sua relação com outros conceitos e sem situá-lo na totalidade do quadro teórico de que se origina. É a essa tarefa que nos dedicaremos doravante.

O conceito de competência linguística evoca o conceito de performance ou desempenho. A relação entre competência e desempenho, na forma como Chomsky a apresenta, deve ser pensada dicotomicamente. De um ponto de vista heurístico, a dicotomia competência/ desempenho tem o mesmo valor da dicotomia saussureana langueparole: visa a delimitar o objeto de estudo e, portanto, a determinar a área de interesse da ciência linguística. Tanto a parole saussureana quanto o desempenho chomskiano constituem domínios que estão fora da alçada da Linguística. Lyons dá-nos a saber a definição de desempenho.

 

Desempenho (...) é o comportamento linguístico; e é determinado não apenas pela competência linguística do falante, mas também por uma variedade de fatores não linguísticos que incluem, por um lado, convenções sociais, crenças acerca do mundo, as atitudes emocionais do falante em relação ao que está dizendo, seus pressupostos sobre as atitudes de seu interlocutor, etc. e, por outro lado, o funcionamento de mecanismos psicológicos envolvidos na produção de enunciados”.

 

 

É interessante ver a cisão entre o que diz respeito propriamente ao conhecimento do sistema de regras da língua (da sua gramática) e o que diz respeito ao uso desse sistema. O objeto de estudo do gerativismo será, pois, a competência linguística, e os modelos teóricos ou as gramáticas produzidas constituem hipóteses que visam a descrever e explicar essa forma de conhecimento inato e específico que todo falante nativo tem de sua língua materna.

Na medida em que é feita a separação rigorosa entre competência e desempenho, o primeiro conceito ganha coerência na sua relação com a ideia de um falante nativo ideal inserido numa comunidade linguística homogênea. A preocupação repousa em descrever a competência desse falante abstraído do contexto sócio-cultural; não de um falante concreto e específico, mas do falante-modelo concebido para representar a perfeição atribuída à competência linguística.

Sabe-se que o gerativismo privilegia o estudo da forma em detrimento do uso da língua, o que justifica o fato de ser considerado uma corrente representante do formalismo. No entanto, é preciso reconhecer que a forma (estrutura) é estudada de um ponto de vista interno, o que o diferencia, em parte, do estruturalismo, que se apóia num ponto de vista externo. Assim é que a estrutura da língua resulta da operação das regras da gramática internalizada do falante. A preocupação gerativista recairá sobre o componente subjacente, implícito, não-verificável imediatamente. É claro que não se pode ter acesso à competência linguística do falante nativo senão por meio de suas produções; mas tais produções não exibem tudo que é necessário para descrever e explicar essa competência. Para tanto, os linguistas gerativistas postulam a existência de um nível subjacente, chamado estrutura profunda[4], sobre a qual é calcada a estrutura superficial, dotada de configurações fonético-fonológicas e imediatamente perceptível auditiva ou visualmente.

Como não seja nosso objetivo fazer densa incursão nas especificidades da abordagem gerativa, cuidamos ser necessário retomar a questão central em torno da qual nossa discussão se desenvolve. A esta altura, cumpre notar que o modelo gerativo surge como reação à visão reducionista e mecanicista de linguagem comum aos behavioristas, dos quais o linguista Leonard Bloomfield foi um representante.

O conceito de competência linguística foi a solução encontrada por Chomsky para as dificuldades que permeavam a explicação da aquisição da linguagem pelos behavioristas. Tratava-se de uma explicação de base mecanicista, orientada por um modelo do tipo estímulo-resposta, com o qual era explicado também o comportamento de certos animais. Com o conceito de competência, Chomsky fez ver à comunidade científica a importância da criatividade no processo de aquisição da linguagem; e mais ainda: a criatividade, segundo o eminente linguista, é uma propriedade basilar que distingue os homens dos animais (e das máquinas).

Gostaríamos de pôr termo a essa seção insistindo em que a separação rigorosa entre competência e desempenho implica a necessidade de pensar o conhecimento linguístico inato como algo desvinculado de outras capacidades cognitivas humanas. Assim, cremos não incorrer em erro ao afirmar que a competência linguística é considerada uma forma de conhecimento autônomo.

 

 

2.2. A competência linguística no funcionalismo: uma perspectiva estendida

 

No artigo intitulado de Language, Context, and Text: Aspects of Language in a Social-semiotic Perspective (1989), Halliday e Hasan suscitam a questão sobre o conceito de função. Note-se o que nos ensinam os autores:

 

“In the simplest sense, the word ‘function’ can be thought of as a synonym for the word ‘use’, so that when we talk about functions of language, we may mean no more than the way people use their language, or their languages if they have more than one”.

(p. 15)

 

 

Como se vê, função identifica-se com uso. Pensar em função é pensar na finalidade com que a linguagem é usada, no papel que ela desempenha para os seres humanos. Para os autores, “people do different things with their language” (ib.id.).

Em An Introduction to Functional Grammar (1994), Halliday, no capítulo Clause as exchange, apresentará as quarto funções do discurso que considera primárias: offer (oferta), command (ordem), statement (declaração) e question (pergunta) (p. 69). Pensar a função é, então, pensar o que fazemos quando usamos a língua.

Num estudo exaustivo e minucioso, intitulado de A Gramática Funcional (2004), Neves, discutirá, no primeiro capítulo, a questão das funções da linguagem, preocupando-se, inicialmente, em nos oferecer um quadro sintético, mas não menos esclarecedor, das diferentes formas de se entender o conceito de função. Segundo a autora,

 

“(...) função pode designar as relações:

a) entre uma forma e outra (função interna);

b) entre uma forma e seu significado (função semântica);

c) entre o sistema de formas e seu contexto (função externa)”.

(p. 6)

(ênfase no original)

 

 

Claro está que a última concepção de função é a mais emblemática da perspectiva funcionalista, uma vez que ela nos permite entrever a necessidade de pensar a função em termos da relação entre língua e uso. Nessa relação é que reside a pedra angular do funcionalismo, que se pode exprimir no seguinte princípio: o uso exerce influência sobre a forma linguística. Na perspectiva de um funcionalista, as línguas têm a forma que têm em virtude do uso que delas é feito. Como o uso demanda a mobilização não só da competência linguística, mas também de outras formas de competência ou capacidades, a forma sofrerá pressões de ordem cognitiva e pragmática.

Convém ter em conta até aqui o deslocamento operado pela perspectiva funcionalista: da ênfase sobre a forma passa-se para a ênfase sobre a função; da preocupação com a forma passa-se para a preocupação com o uso. A forma passa a ser um meio para a realização das funções. Destarte, o objeto de estudo do funcionalismo é a língua em uso, ou seja, tomada na sua relação com o contexto sócio-cultural e com as funções às quais ela serve. Não estamos mais diante de um falante ideal, mas de um construtor linguístico social e culturalmente situado. É de se esperar que o conceito de competência linguística ganhe outra dimensão.

Em primeiro lugar, a preocupação com o uso linguístico e, consequentemente, com os fatores contextuais que o determinam impõe a necessidade de repensar o conceito de competência linguística. Os funcionalistas observaram que o uso da língua demanda outras formas de competências ou capacidades. Não basta ao falante nativo conhecer apenas as regras da gramática de sua língua materna, graças às quais é capaz de produzir e compreender enunciados nessa língua. Para ser bem-sucedido nas mais variadas situações comunicativas de que participa, além do conhecimento das regras dessa gramática, ele precisa utilizar suas produções linguísticas de modo adequado. Em suma, dispensando-se pormenores, a competência linguística é reinterpretada como competência comunicativa[5], a qual consiste na capacidade de o falante utilizar sua língua adequadamente para fins comunicativos. A competência comunicativa pressupõe a competência linguística, embora não exatamente nos termos como a concebe Chomsky; mas demanda dos especialistas a percepção de que usar uma língua é muito mais do que saber construir enunciados na base de um sistema de regras gramaticais.

A assunção do conceito de competência comunicativa implica o reconhecimento da importância de levar em conta a habilidade do falante para usar o seu conhecimento linguístico de acordo com as convenções sócio-culturais ou pragmáticas implicadas num contexto. Assim é que a competência comunicativa interage com outras formas de competências ou capacidades. Neves (id.), baseando-se em Dik, apontará quatro capacidades às quais a competência linguística está relacionada: a capacidade epistêmica, a capacidade lógica, a capacidade perceptual e a capacidade social. Todas essas formas de capacidade envolvem manutenção e mobilização de conhecimentos variados. A capacidade social é, particularmente, interessante, por estar intrinsecamente relacionada à competência comunicativa. Referimos o excerto em que Neves define essa capacidade abaixo:

 

“d) a capacidade social: o usuário não somente sabe o que dizer mas também como dizê-lo a um parceiro comunicativo particular, numa situação comunicativa particular, para atingir objetivos comunicativos particulares”.

(p. 77)

 

Deve-se ficar claro, pois, que pensar sobre competência à luz das abordagens formalista e funcionalista implica a necessidade de pensar o modo como elas entendem a aquisição da linguagem. Na medida em que a abordagem funcionalista contempla o papel do contexto e se preocupa com a descrição da língua em uso, a sua concepção de aquisição da linguagem será diferente da concepção formalista.

O paradigma formal advogará que a criança desenvolve sua competência linguística na base de um input desestruturado e empobrecido - trabalho este que será compensado pelo fato de ela ser habilitada inatamente para fazê-lo. A criança é pré-disposta geneticamente a adquirir qualquer língua com uma facilidade e rapidez notáveis. O paradigma funcional, a seu turno, destacará a importância do ambiente, do entorno social na aquisição da linguagem e, portanto, no desenvolvimento da competência linguística (entendida como “competência comunicativa”). Para o funcionalista, o input compreende um conjunto de dados linguísticos estruturado e adequado ao nível de desenvolvimento da criança.

O processo de aquisição de linguagem, na perspectiva funcionalista, se dá pelo desenvolvimento de necessidades e habilidades comunicativas da criança em situações reais de interação com a sua língua. Assim é que a competência linguística não constitui um conhecimento estanque, ou seja, não é separado de todo o complexo cognitivo que permite a aprendizagem pela criança de outras habilidades necessárias à sua vida social.

 

  3. Conclusão

 

Coube-nos patentear, nesta exposição, a importância de se compreender duas correntes teóricas, que, tradicionalmente, são avaliadas de uma perspectiva antagônica, tendo em conta a articulação de seus conceitos com o domínio teórico em que surgiram e se desenvolveram. Ademais, parece-nos conveniente considerar o contexto histórico em que tais modelos apareceram, o que implica também a consideração das motivações que os engendraram. 

Destarte, o gerativismo surge como reação a um modelo teórico de base behaviorista, predominante na primeira metade do século XX, que procurava estudar a linguagem na base de um processo comportamental do tipo estímulo-resposta, ou seja, a criança, num dado ambiente, adquiriria sua língua materna por mera repetição (ou reprodução) dos dados linguísticos a que estivesse exposta. O conceito de competência linguística tem o mérito de apontar a importância da criatividade humana, mormente no que toca à aquisição da linguagem. Chomsky observou que o modelo behaviorista não dava conta do fato de a criança produzir um número, teoricamente, ilimitado de enunciados que nunca teria ocorrido antes em sua experiência linguística, donde se segue que, para ele, a aquisição da linguagem independe de estímulo.

O funcionalismo, a seu turno, também surgirá por uma necessidade de dar conta de certas dificuldades encontradas pelo modelo gerativo. Assim é que muitas questões de que se ocupavam os gerativistas não poderiam ser explicadas satisfatoriamente sem a consideração do uso e do contexto. A crítica basilar dispensada pelos funcionalistas aos gerativistas repousa na tendência destes de fazer completa abstração do uso da língua, operando suas análises em frases apartadas de um contexto real de comunicação, de sorte que, não raro, tais frases eram forjadas pelo próprio analista.

É neste deslocamento de enfoque – da ênfase sobre a forma para a ênfase sobre a função (uso) – que devemos situar a compreensão do conceito de competência, nas duas abordagens em tela. Cremos, assim, que esse conceito, surgido no interior da abordagem gerativa, tem uma inegável importância para o desenvolvimento posterior da Linguística. Disso não se segue que ele será entendido do mesmo modo em outros modelos teóricos, que adotem, por exemplo, uma visão sociointeracional.

O modo como o conceito será entendido dependerá dos pressupostos na base dos quais a teoria foi construída. Na medida em que o funcionalismo adota a concepção de língua como ‘instrumento de comunicação’ (preferimos “lugar de interação”); na medida em que assume como escopo o uso, em que dá ênfase especial às funções comunicativas, em que entende a forma como meio de realizá-las; enfim, em que salienta a importância do contexto situacional e cultural na descrição e explicação do uso da linguagem, é esperado que a sua concepção de competência prescinda da natureza inatista reivindicada pelos gerativistas e que seja compreendida relativamente a outras formas de capacidade.

 

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4. Referências Bibliográficas

 

CHOMSKY, Noam. Estruturas Sintáticas. Lisboa: Edições 70, 1980.

 

CUNHA, Angélica Furtado da. Funcionalismo, in Manual de Linguística. Mário Eduardo Martelotta (org.). São Paulo: Contexto, 2009.

 

HALLIDAY, M. A.K. . An Introduction to Functional Grammar (2ª ed.). London: Edward Arnold, 1994.

 

__________ HASAN, R. Language, Context, and Text: Aspects of Language in a Social-semiotic Perspective. Oxford: Oxford University Press, 1989.

 

HYMES, Dell. On communicative Competence, in The Communicative Approach to Language Teaching. Brumft, C.; Johson, K. (orgs.). Hong Kong: Oxford University Press, 1991.

 

LYONS, John. Linguagem e Linguística: uma introdução. Rio de Janeiro: LTC, 1987.

 

MUSSALIM, Fernanda; Anna Christina Bentes. Introdução à Linguística: fundamentos epistemológicos (vol. 3). São Paulo: Cortez, 2005.

 

NETO, José Borges. Ensaios de Filosofia da Linguística. São Paulo: Parábola, 2004.

 

NEVES, Maria Helena de Moura. A Gramática Funcional. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 

SANTOS, Raquel. A aquisição da linguagem, in Introdução à Linguística: objetos teóricos. José Luiz Fiorin (org.). São Paulo: Contexto, 2004.

 

TRASK, R. L. Dicionário de Linguagem e Linguística. Trad. Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2008.

 

 



 

[1] Ano em que foi publicado seu trabalho revolucionário Syntactic Structures.

[2] Versão portuguesa traduzida por Madalena Cruz Ferreira.

[3] Trata-se da Teoria de Princípios e Parâmetros (Chomsky, 1981. apud. Santos, 2004: 221).

[4] Entende-se por estrutura profunda “qualquer representação abstrata da estrutura de uma sentença que os linguistas postulam para fins de análise”. (Trask, 2008: 98). Atualmente, ela é considerada um expediente analítico com o qual se podem expressar certas generalizações a partir da estrutura superficial.

[5] O conceito foi cunhado por Hymes (1991).