quinta-feira, 23 de maio de 2013

"Deus é um conceito pelo qual medimos o nosso sofrimento." (John Lennon)






A tábua do sofrimento
Um caminho de retorno a Deus



Por que escrevo? Porque preciso pôr alguma ordem às ideias, porque preciso disciplinar o pensamento. Para que escrevo? Para me entreter. Escrever é entreter-me. Nada espero de minha escrita. Sou apenas mais um numa multidão de blogueiros. Não sou um autor; sou apenas o agente de minha escrita, mas não o senhor dela; há um Outro que fala através de mim, que escreve comigo. Sou um sujeito e, como tal, constituído pela ideologia.
Do exposto, é forçoso depreender-se que não levo a sério este trabalho com as palavras. Mas, ao dizê-lo, talvez, eu minta. É verdade, no entanto, que pouco ambiciono. Não suponho haver qualquer sentido transformador em minha escrita. Ela é egocêntrica; só satisfaz a mim mesmo, ou se esforça para tanto.
Neste texto, lançarei olhares sobre a questão do sofrimento no sistema doutrinário cristão. Estou, particularmente, interessado na investigação do papel desempenhado pelo sofrimento na ideologia cristã. Assumo, desde já, que, em meu empreendimento analítico, o sofrimento será tomado como signo, e é justamente seu papel simbólico (no sentido lato da palavra) no interior da ideologia cristã que tratarei de examinar. É mister fazer algumas considerações preliminares.
A fim de investigar o papel simbólico desempenhado pelo sofrimento no cristianismo, necessário é definir o símbolo. Nesse momento, faço a distinção tradicional entre símbolo e signo. O símbolo é um objeto concreto ou físico a que se associam diversos significados. O símbolo é sempre um objeto físico ou uma coisa que representa ideias abstratas. Por exemplo, o círculo pode simbolizar o absoluto, a unidade ou a perfeição; a balança é símbolo da justiça, e assim por diante. O signo, a seu turno, é uma entidade linguística, constituída dicotomicamente de um significante (imagem acústica) e de um significado (conceito). Embora o signo não se cinja ao domínio da palavra (um morfema é um signo, uma frase é um signo e mesmo um texto é um signo complexo), para os meus propósitos, basta entender que signo será aqui tomado como sinônimo de palavra. Mas voltemos ao símbolo.
No cristianismo, sabe-se que a cruz simboliza o sofrimento. Um cristão católico poderia objetar que, na realidade, a cruz para a Igreja católica apostólica romana, é símbolo da salvação. Todavia, é preciso dizer que todo símbolo é polissêmico (o mesmo vale para o signo, evidentemente). O significado ‘sofrimento’ atribuído à cruz coexiste com o significado de ‘triunfo’, que já se situa no campo semântico de ‘salvação’. Mas, no mundo antigo, entre os judeus, a cruz era um escândalo, era sinal de suplício e, portanto, algo extremamente indecoroso. Ao que parece, foi na iconografia cristã, que se estabeleceu a transposição do significado original ‘sofrimento’ para o significado ‘salvação’ ou ‘superação da morte’. Atualmente, para os cristãos, a cruz de Cristo, de onde brotam flores e folhas, simboliza a superação da morte e a salvação.
Essa consideração sobre o simbolismo da cruz servirá de ponto de partida para que compreendamos como o sofrimento, enquanto signo, passou a receber entonações ou valores positivos. A cruz, originalmente, símbolo de sofrimento e suplício, foi reinterpretada pelos cristãos proto-ortodoxos no longo desenvolvimento do movimento cristão, como símbolo da salvação. Pelo sofrimento e morte na cruz, Cristo salvou a humanidade. Não surpreende que o sofrimento passe a ser valorado como um caminho para um bem maior.
Convém também considerar que não estou negando a realidade subjetiva do sofrimento. O sofrimento é uma evidência irrecusável. Assim, entendo o sofrimento como uma perturbação violenta, quer de ordem física, quer psíquica, experimentada por uma pessoa. O sofrimento é uma realidade constitutiva da condição humana. O ser humano não só sofre, mas sabe que sofre. Embora possível em psicanálise, não faço distinção entre dor e sofrimento. Portanto, sofrimento envolve dor. O texto do Catecismo da Igreja Católica (2000) reconhece a indissociabilidade entre o sofrimento e a condição humana:

“A enfermidade e o sofrimento sempre estiveram entre os problemas mais graves da vida humana. Na doença, o homem experimenta sua impotência, seus limites e sua finitude. Toda doença pode fazer-nos entrever a morte”.
(p. 412)


O texto se refere também à causa do sofrimento: a enfermidade, a doença. Diz-nos que esses fatos nos avivam a consciência de nossa impotência e finitude. E acrescenta, a seguir, que a enfermidade pode levar uma pessoa à angústia e à revolta contra Deus – atitude esta natural e esperada. Por outro lado, o próprio Catecismo observa que a doença pode tornar a pessoa mais madura, ajudando-a a discernir, em sua vida, entre o que é essencial e o que não é essencial, de modo a conduzi-la às coisas essenciais. Não é custoso inferir que, entre as coisas essenciais, está, evidentemente, Deus. O sofrimento (doença, enfermidade) provoca no sofredor um anseio por buscar a Deus, por retornar a ele. Há também um sentido moral no sofrimento, porquanto é graças a ele que o homem orienta sua vida pelo discernimento entre as boas e más paixões, entre o que é essencial e o que é supérfluo. No sofrimento e através dele, o homem revê, repensa seus valores, aperfeiçoa-se moralmente.
Até aqui, vim procurando descrever como o sofrimento, enquanto signo, se articula à lógica doutrinária cristã. Antes, entretanto, de avançar, preciso dizer algumas palavras sobre os conceitos de valor e virtude. Em primeiro lugar, situando-me no âmbito filosófico, noto que o valor se relaciona ao que é bom, ao que é útil e positivo. Num sentido prescritivo, o valor é algo que deve ser realizado. No domínio da ética, por valores entende-se os fundamentos da moral, das normas, das regras. Assim, são os valores que alicerçam nossos modos de conduta, de comportamento. Não ignoro haver uma perene discussão sobre o conceito de valor. Para alguns filósofos, o valor é tudo que visa à felicidade; para outros, o valor deve ser definido segundo os fins a que servem, de modo que há bons e maus valores.
Assumirei, desde já, que o sofrimento, no interior do sistema ideológico cristão (discutirei a questão da ideologia mais adiante), é um valor, no primeiro sentido exposto. Ou seja, o sofrimento é, no cristianismo, um valor porque é útil, porque serve a um bem, a um propósito benéfico.
No tangente à noção de virtude, atendo-me ao âmbito filosófico, originalmente, a virtude é a qualidade ou a potência que está na natureza de algo. Do ponto de vista ético, recobre a qualidade positiva de um indivíduo que o leva a praticar o bem a si mesmo e aos demais. Em Platão, a virtude era considerada uma qualidade inata; em Aristóteles, ao contrário, podia ser ensinada e resultava do hábito. Para o filósofo estagirita, a virtude é uma disposição que o homem adquire por vontade e que se define pela razão. Um homem virtuoso age refletidamente buscando um meio-termo, uma medida justa entre o excesso e a falta.
A teologia cristã, que se moldou, em parte, pela filosofia aristotélica, conceberá a virtude como “uma disposição habitual e firme para fazer o bem” (CIC, 2000, p. 485). A pessoa virtuosa se inclina ao bem, busca praticar atos bons. O cristianismo católico distingue entre quatro virtudes cardeais, quais sejam, a justiça, a prudência, a temperança e a fortaleza. Esta última nos interessa aqui. A fortaleza é a virtude cardeal que dá segurança ao homem nas dificuldades, que o mantêm firme nas tribulações. Ela o capacita a vencer os medos, inclusive o da morte, a perseverar em face das provações e também o ajuda na aceitação do sofrimento e na renúncia a algum meio de resistência a ele. O homem dotado dessa virtude crê que seu sofrimento é necessário para o alcance de um bem; ele sofre tendo em vista um bem, se sacrifica por uma causa justa.
Em vista do exposto, assumirei que, para o cristão, resignar-se ao sofrimento, é virtuoso. O cristão sofredor, que compreende ser seu sofrimento necessário para o atingimento de um bem, é um homem dotado de virtude.
O tema do sofrimento é constante na Bíblia, muito embora as respostas oferecidas pelos diversos autores bíblicos à questão de “por que existe sofrimento num mundo criado por um Deus bom? sejam insatisfatórias (veja-se a esse propósito Ehrman, Bart D. O problema com Deus). Os homens do Antigo Testamento experimentavam o sofrimento em face de Deus. Eles se queixavam de seu sofrimento a Deus. Imploravam a cura a ele.
Uma ideia basilar, inferida, sem muitas dificuldades, após examinar a problemática do sofrimento na doutrina teológica cristã, é que a enfermidade, a dor, o sofrimento tornam-se um caminho para a conversão.
O Problema do Mal é, sem dúvida, o problema mais espinhoso e dramático para a fé cristã. E o é porque essa fé supõe a existência de um Deus todo-poderoso e moralmente bom e perfeito. O grande desafio é responder à questão: Por que um Deus todo-poderoso e perfeitamente bom permite a existência do mal e do sofrimento no mundo? Essa questão global suscita outras, tais como “por que esse Deus permite que pessoas justas e inocentes, crianças, inclusive, sofram, padeçam de dores atrozes e morram?” A fé em tal Deus não se sustenta em face da evidência inegável do mal e do sofrimento no mundo. Embora seja absurdo atribuir a maldade à natureza (a natureza não pode ser avaliada segundo nosso senso de moralidade, ela é indiferente, é amoral), é inegável que ela é fonte de sofrimento para os seres humanos e para os animais de consciência superior.
Leio sobre um tornado que devastou o estado de Oklahoma, nos Estados Unidos, matando 51 pessoas, dentre as quais crianças. Das 60 pessoas que ficaram feridas, 12 são crianças. Em face de acontecimentos como este – por sinal tão comuns, tão frequentes, como é possível, ainda assim, manter a crença na existência de uma Providência, de um Deus criador, todo-poderoso e bom?
Vimos que o Catecismo reconhece ser o sofrimento uma realidade intrinsecamente ligada à condição humana. Mas é preciso dizer que também os animais de consciência superior e dotados de um sistema nervoso central (mamíferos, aves, incluindo polvos, etc.) sofrem. Reconhecer simplesmente o sofrimento um mal a que está fadado o ser humano é insuficiente para conferir à doutrina cristã alguma validade. Ao contrário, só o reconhecimento acarretaria graves problemas para as suas alegações. É bem verdade que os problemas persistem, embora tenham sido ardilosamente disfarçados pelos floreios da casuística cristã.
Se um Deus bom criou um mundo bom, como, então, foi possível o sofrimento penetrar o mundo? A resposta da teologia das religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo) é fornecida pela doutrina da Queda do Homem. O sofrimento e o mal no mundo decorrem do pecado original cometido por Eva, do qual tomou parte Adão, inocentemente. Por essa razão, todas as gerações posteriores carregam o estigma do pecado e cada bebê que nasce precisa ser batizado para depurar-se dessa mácula. Ignoremos o absurdo dessa esdrúxula doutrina, qual seja, a culpa estendida a toda uma geração de inocentes pelo erro cometido por seus antepassados.
O pecado é uma ofensa a Deus. Sinaliza o afastamento do homem em relação a Deus. O pecado original, cometido por Eva, caracterizou-se pela desobediência a Deus. Reza a doutrina da Queda que o homem pretendeu ser como deuses, tornando-se conhecedor do bem e do mal. O pecado recobre a vaidade humana, o seu brio. Peca o homem que tem orgulho de si, que exalta a si mesmo e despreza a Deus.
No cristianismo, o homem tem de ser rebaixado e humilhado para só, então, arrependendo-se dos seus pecados, alcançar a redenção. Em seu livro Um rosto para Deus (2005), Maria Clara Bingemer, também reconhece que a experiência do sofrimento era comum aos antigos israelitas:

“(...) a presença de Deus é percebida pelo povo [de Israel] no meio de acontecimentos, como guerra, a vitória e a derrota, a passagem do Mar vermelho e a liberação do Egito e o exílio. Ou melhor: onde outros viam a guerra, a vitória, a derrota, um acaso ou uma fatalidade, o povo de Israel via a presença de seu Deus à frente e por dentro de todos estes fatos”.
(p. 44)

Esse trecho é ilustrativo do fato de que a questão da ideologia, tal como a abordarei aqui, com base em Bakhtim e Althusser, se insinua. O trecho nos ensina que a experiência da dor, do sofrimento, dos fracassos, mas também do sucesso e da vitória era vivida e ancorada sobre a crença numa participação direta de Deus nos acontecimentos. É nesse cenário histórico que se forja a crença, entre os antigos hebreus, segundo a qual Deus se revela também na história. O que, para nós, céticos e ateus, soa como uma impostura que ganhou, entre os judeus e cristãos, status de verdade inquestionável.

De que Deus se trata?

Usei até aqui, sem escrúpulos filosóficos, a palavra Deus, supondo, evidentemente, que o leitor sabe a que Deus me refiro. No entanto, o Deus criador da Bíblia hebraica e o Deus de amor (embora disposto a lançar ao inferno os transgressores) do Novo Testamento não é o único deus produzido pelo espírito humano. Por conseguinte, quando uso a palavra Deus, quero referir-me a um Ser criador e pessoal, onipotente, onisciente, dotado de perfeição moral, demasiado interessado na vida humana e que funda uma relação para com o homem no mandamento do amor. Esse Deus foi forjado pela fé de homens que viveram no antigo Oriente Próximo há aproximadamente 2.000 a.C. Essa estimativa remonta à tradição judaica. O Deus a que me refiro tem suas raízes na tradição judaico-cristã. É, portanto, o Deus de Israel, de Abraão, de Moisés, de Isaías, de Jacó, mas também de Jesus Cristo e do apóstolo Paulo. É um Deus que, embora tenha desenvolvido uma personalidade que se inclina a um relacionamento mais próximo e exclusivista com o povo eleito (o povo de Israel), demonstrou um potencial para universalizar-se e estender sua soberania sobre os recantos mais longínquos do mundo. É o Deus a quem os antigos hebreus se socorriam para lutar contra o jugo, a dominação, a escravidão mantida pelos povos conquistadores. É o Deus que estabeleceu uma aliança com seu povo e que a reforça prometendo bem-aventurança em troca de obediência e fé.
Com o advento do cristianismo (I d.C.), esse Deus é rebaixado à condição humana, é instado a manter um relacionamento pessoal e paternal com o homem. Esse Deus se encarna em Cristo, se identifica com Cristo. Cristo passa, então, a reunir em si as naturezas humana e divina. Cristo é o próprio Deus. A esse respeito, não poderia deixar de notar que essa foi a visão vitoriosa, a visão dos grupos proto-ortodoxos. Outros grupos cristãos primitivos dos séculos II e III d.C tinham uma visão diferente. A bem da verdade, a visão proto-ortodoxa, de que Justino foi um representante e defensor ferrenho, afirma que Jesus era plenamente humano e plenamente divino, o que não deixa de ser um absurdo. Não só porque humano e divino pertencem a ordens incomensuráveis, mas porque a ideia de plenitude não pode ser atribuída separadamente a duas naturezas num mesmo ser: ou ele era plenamente humano e, portanto, não tinha nada de divino, ou, ao contrário, era plenamente divino, e não tinha nada de humano. Ou a qualidade divino totaliza seu ser ou a qualidade humano o totaliza. É, logicamente, impossível que seja, em si mesmo, inteiramente humano e inteiramente divino. Para mim, esse é um caso bastante emblemático do abuso da lógica, da inconsistência do sistema de pensamento religioso. A lógica cristã ignora os limites do bom-senso ou os subverte.

Como entender Deus em nossa análise?

Agora, peço ao leitor que me acompanhe nas considerações que farei sobre como se deverá entender Deus neste trabalho. A operação mental que se deve fazer, doravante, consiste na transposição da categoria de Ser para a de signo. Deus não será considerado um Ser transcendente cuja existência é inquestionável. Para efeito de análise, considero Deus um signo linguístico que expressa a autoridade máxima, atemporal e transcendente ao mundo e que cumula as entonações ideológicas de comunidades cristãs (sacerdotes, teólogos, filósofos, leigos). Considero-o um signo através do qual a hierarquia sacerdotal expressa sua autoridade na história. Deus é um signo ideológico. Veremos, com Bakhtin, que todo signo é signo ideológico.

Deus como signo ideológico

Todo signo verbal é dotado de uma dupla materialidade: é uma entidade linguística, ao mesmo tempo, físico-material e sócio-histórica. Chamo atenção para a influência marxista nessa concepção do signo verbal. Ela foi desenvolvida por Bakhtim. A influência a que me refiro diz respeito ao materialismo histórico (Karl Marx), o qual designa os processos de transformação social que se dão por meio do conflito entre os interesses das diferentes classes sociais.
Os signos têm a propriedade de perpassar todas as esferas sociais. A eles é associado um ponto de vista. Através deles, a realidade é representada a partir de um lugar valorativo (verdadeira, falsa, boa, má, positiva, negativa, etc.). O ponto de vista, o lugar valorativo, bem como a situação são sempre determinados sócio-historicamente. O discurso é o palco onde eles se constituem e se materializam.
Signo e palavra serão usados aqui indiscriminadamente. Portanto, é preciso entender o seguinte. Para Bakhtin, todo signo é signo ideológico. Como signo ideológico, a palavra reúne as entonações dos diálogos vivos aos valores sociais, incorporando em seu cerne as modificações ocorridas na infra-estrutura (base econômica, material de uma sociedade), mas também, ao mesmo tempo, pressionando uma mudança nas estruturas sociais.
Não se pode ignorar, segundo Bakhtin, a importância da comunicação na vida cotidiana e seu vínculo com os processos de produção material da sociedade. Para ele, é nos encontros casuais e corriqueiros do cotidiano que a ideologia encontrará seu cimento. Esses encontros vão povoando o universo de signos, e cada signo vai-se tornando parte da unidade da consciência, que é verbalmente constituída. A consciência, em Bakhtim, é um fenômeno socioideológico. A realidade da consciência é o signo. A consciência do sujeito, constituída de signos, pode, através da palavra, entrar em contato com o mundo exterior, também construído e povoado de palavras. Assim, o sujeito compreende o mundo no confronto entre as palavras da sua consciência e as palavras circulantes na realidade.
Bakhtim nos ensina que as menores mudanças sociais repercutem imediatamente na língua. Os sujeitos inscrevem nas palavras, nos acentos apreciativos, nas entonações, na escala de valores, nos comportamentos ético-sociais, as mudanças sociais. As palavras funcionam, assim, como agente e memória social, visto que uma mesma palavra figura em contextos diferentes e variados. Toda palavra é entretecida de inúmeros fios ideológicos, contraditórios entre si, uma vez que se construíram e freqüentaram todos os campos de relações e conflitos sociais. Vejam-se, por exemplo, palavras como Deus, Jesus, democracia, sem-terra, etc. Vimos um exemplo disso quando mencionei a disputa entre grupos cristãos chamados de heréticos e os proto-ortodoxos em torno da natureza de Jesus. As entonações do grupo vitorioso (dos proto-ortodoxos) prevaleceram. Os significados produzidos por eles e associados à palavra Jesus tornaram-se parte do cânone da Igreja cristã.
Um fato importante precisa ser enunciado: todo signo verbal ou toda palavra compõe-se de múltiplos sentidos. Todo signo possui muitos acentos ideológicos, uma vez que não consegue eliminar totalmente outros concorrentes ideológicos.
Uma propriedade fundamental da palavra consiste na sua capacidade de participar de todo ato consciente. A palavra opera tanto nos processos internos da consciência, mediante a compreensão e interpretação do mundo pelo sujeito, quanto nos processos externos de circulação das palavras nas esferas socioideológicas.

O que é ideologia para Bakhtin?

Um dos méritos de Bakhtim, no tocante à questão da ideologia, foi ter insistido que não há ideologia fora da linguagem. Ele mostrou que tudo que é ideológico é signo, que o discurso é o lugar próprio onde se constitui a ideologia. Para o filosofo e linguista russo, a linguagem é sempre uma realidade social. Nela, o sujeito se constitui na relação com o outro. Fora da linguagem, não há sujeitos.
Mas qual é a concepção de Bakhtin de ideologia? Em primeiro lugar, Bakhtim, embora assuma, como ponto de partida, a perspectiva marxista de ideologia como “falsa consciência”, ocultamento da realidade social, obscurecimento das contradições da existência, não o faz completamente. Na verdade, ele procurará reelaborá-la ou reconstruí-la, evocando a necessidade de considerar, ao lado da ideologia oficial, uma ideologia do cotidiano. Essa reelaboração redundará em que, para Bakhtin, não faz sentido definir a ideologia como falsa consciência. Para ele, a ideologia expressará uma tomada de posição determinada sócio-historicamente. O sentido pejorativo do termo, que constitui herança do marxismo, se esvaece ou, ao menos, não é imanente ao termo. O que se deve destacar é a função da ideologia. A ideologia pode funcionar para legitimar relações de dominação de uma classe sobre outra. Pode servir para justificar condições de opressão e desigualdades entre as classes sociais. A ideologia pode servir para manter e reproduzir o status quo. Mas – convém insistir - em Bakhtim, ela é um sistema de representação de mundo e da sociedade, que se constrói nas interações entre os indivíduos organizados em grupos sociais, por meio do discurso. É graças a esse sistema de representação e interpretação do mundo que se pode falar em um modo de pensar e de ser de um dado indivíduo ou grupo social. A ideologia expressa a orientação social ou a linha tomada socialmente por um indivíduo ou grupo.
Precisamos retomar aqui a natureza do signo ou palavra, com vistas a chamar atenção para um aspecto importante da relação entre o signo e a ideologia. Bakhtim ensina que a palavra apresenta a propriedade de neutralidade. Isso não quer dizer que ela seja neutra em relação à ideologia, mas que ela pode assumir qualquer função ideológica. Em outras palavras, o signo é sempre passível de receber uma carga significativa ou valorativa. Um mesmo signo, aliás, pode comportar acentos ideológicos contraditórios. Tendo isso em mente, Bakhtim mostrará que a superestrutura só existe na relação constante com a infra-estrutura, mediante os signos. Vimos que os signos podem fazer-se presentes em todas as relações sociais. Por isso, eles têm a capacidade de relacionar a superestrutura com a infra-estrutura. Segundo Bakhtim, a ideologia serve à expressão, organização e regulação das relações sociais entre os sujeitos.
Como a ideologia se estabiliza? Disse que Bakhtim reconheceu que, a par da ideologia oficial, deve-se considerar uma ideologia do cotidiano. Disso se segue que são as interações entre os sujeitos no cotidiano o nascedouro da ideologia; é nessas circunstâncias que a ideologia começa a tomar forma, a se constituir. No momento em que a ideologia do cotidiano, então constituída nas interações sociais, se organiza em um sistema superior, em interações já mais bem definidas e estáveis, dá-se a estabilização da ideologia. Nessas circunstâncias, padrões mínimos de sentidos postos em circulação vão se estabelecendo. É o caso em que a ideologia do cotidiano é reelaborada ou assume uma forma mais padronizada em grupos sociais organizados, tais como sindicalistas, profissionais liberais, estudantes, grupos religiosos, grupos não-governamentais, etc. A estabilização da ideologia se dá à medida que penetra instituições tais como imprensa, ciência, literatura, religião, leis, etc.
Uma operação básica na ideologia é o que se pode chamar de refração. Para Bakhtim, a ideologia refrata a realidade social, no sentido de que uma classe dominante confere ao signo ideológico um caráter intangível, imutável, atemporal, a-histórico, transcendente às próprias classes sociais. Disso se segue, então, o abafamento ou o ocultamento da luta dos índices sociais de valor, de modo a se propagar um discurso monovalente e monossêmico. A fim de ilustrar essa concepção e, assim, contribuir para o entendimento do leitor, retomo a questão em torno da qual grupos de cristãos primitivos disputaram o sentido verdadeiro ou correto. Essa luta por estabelecer a crença correta, a perspectiva certa foi uma luta, ao mesmo tempo, política, teológica e ideológica. Precisarei discorrer brevemente sobre os acontecimentos implicados aí. Nos séculos II e III da era cristã, havia muitas formas de cristianismos, muitos grupos cristãos que disputavam entre si para determinar quem estava de posse da fé correta. Entre esses grupos havia o dos cristãos docetas. O termo tem origem no grego DOKEO, que significa “dar a impressão de”. Os cristãos docetas defendiam que Jesus não era um ser humano, mas que era completamente divino. Jesus era Deus; apenas parecia ser homem. Marcião se destaca dentre os cristãos docetas dos primeiros séculos do cristianismo. A ele se opuseram dois padres proto-ortodoxos chamados Irineu e Tertuliano. Estes consideravam a crença de Marcião uma verdadeira ameaça à fé cristã. Só havia uma fé correta e esta era a defendida por Irineu e Tertuliano. Mas qual era a visão de Marcião? Para Marcião, Paulo era o verdadeiro seguidor de Jesus. Com base na observação de que, em algumas de suas cartas, Paulo distingue entre a lei (de Moisés) e o evangelho, concluiu Marcião que a salvação só viria com a fé em Jesus Cristo e não na obediência à Lei de Moisés. A oposição entre a lei judaica e o evangelho era tão clara e forte, que Marcião sustentou que o Deus do Antigo Testamento, que estabeleceu a lei e a delegou a Moisés não poderia ser o mesmo Deus de que nos falou Jesus. O Deus do Antigo Testamento era o Deus criador, o Deus do povo de Israel. Mas, segundo Marcião, Jesus originou-se de um Deus grandioso, distinto, que o enviou à Terra para salvar os homens do terrível Deus judaico. Disso concluiu Marcião que, não provindo Jesus do Deus criador do mundo, não poderia o Messias ser um homem de carne e osso. Jesus não pertencia a esse mundo. Marcião levou às ultimas consequências suas especulações: sustentou que Jesus, na verdade, não tinha sequer um corpo físico, que não tinha nascido, que não derramou sangue algum e que não morreu de verdade. Para Marcião, isso era apenas aparência.
Tertuliano não ficou satisfeito com essa interpretação e se dedicou ferrenhamente a bani-la da história cristã. Ele argumentou que, se Jesus não fosse humano, não poderia salvar a humanidade, que, se não tivesse derramado seu sangue, nunca teria trazido a salvação, que, se não tivesse de fato morrido, sua morte “aparente” não redundaria em benefício algum. Tertuliano e outros assumiram, portanto, a crença tenaz de que Jesus era divino e plenamente humano. Ele realmente derramou sangue, sofreu com as dores do martírio, foi crucificado e morreu; ressuscitou dos mortos e, fisicamente, ascendeu aos céus onde está sentado à direita de Deus Pai Todo-poderoso. Essa crença também incluía a expectativa de seu retorno iminente.
Como compreender esse acontecimento à luz do conceito de refração próprio da ideologia, segundo Bakhtim? O que se verifica nessa luta política, teológica e ideológica em torno da natureza de Jesus é que as entonações ideológicas dos docetas foram ocultadas. Prevaleceram os valores, as ‘vozes’ dos cristãos proto-ortodoxos. É a memória social desses grupos que a palavra Jesus, passou, ao longo da história, a conservar. Cada grupo de cristãos primitivos eram portadores de índices sociais de valor e eles se esforçaram por incorporar esses valores no signo Jesus. Mas, na luta desses índices, saíram vitoriosos os valores dos grupos proto-ortodoxos, de que Tertuliano e Irineu foram eminentes representantes.
A condição para que seja conservada a divisão social e que se perpetue a hegemonia da classe dominante é que os sinais contraditórios ocultos em todo signo ideológico sejam mantidos apagados. E foi justamente o que aconteceu ao longo do desenvolvimento da história do cristianismo. Havia sinais de contradição entre a visão dos docetas e a dos proto-ortodoxos. Como esses cristãos gozavam de maior poder sócio-político, teológico e ideológico, eles conseguiram apagar os valores dos cristãos docetas, permitindo assim que o signo ideológico Jesus passasse a significar aquilo que eles queriam que significasse. Instaurou-se por força dessa vitória proto-ortodoxa (o grupo dominante) a monovalência ou monossemia do signo “Jesus”.
Contrariamente à crença judaico-cristã, não é Deus que faz ou intervém na história; como se pode ver, são os homens os verdadeiros agentes dos processos históricos (que são sociais, políticos, econômicos, culturais e ideológicos).
Encerrando esta seção, gostaria de acrescentar que os signos comportam uma ambivalência, porquanto não só refletem a realidade, como também a refratam. Nesse sentido, podem permitir que a apreensão dela seja feita com fidelidade ou com distorção. Ponderemos sobre este passo de Leandro Konder, em A Questão da ideologia (2002), em que o autor nos lembra duas coisas importantes: a primeira é que os signos se constituem sempre numa organização social; a segunda é que a consciência dos indivíduos, bem como seus sentimentos, emoções, personalidade são formados em processos socioideológicos em uma dada organização social de que eles fazem parte.

“Por mais diferentes que sejam, entretanto, os signos têm em comum o fato de só poderem se constituir como sistema a partir de alguma forma de organização social. O social, portanto, precede o individual. A própria complexidade do mundo interior dos indivíduos depende da complexidade da organização social no interior da qual eles existem”.
(p. 115)


A ideologia em Louis Althusser


Diferentemente de Bakhtim, que se preocupou em varrer para fora do domínio semântico do termo ideologia qualquer sentido pejorativo, Althusser, de certo modo, o conserva. Para este filósofo, “a ideologia é uma representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (2007, p. 85). Para ele, a ideologia não corresponde à realidade.

“Nas ideologias, os homens representam-se, de forma imaginária, suas condições reais de existência”.
(p. 86)


Mais adiante, em seu trabalho, Althusser refinará essa definição, de sorte a fazer ver ao seu leitor que o que os homens representam, de forma imaginária, na ideologia não são suas reais condições de existência, mas as relações que eles estabelecem com essas condições. Consoante entende Althusser, é nessa relação com as condições reais de existência que se acha a causa da deformação imaginária na representação ideológica do mundo real.
Antes de atacar o modo como Althusser compreende, especificamente, a ideologia religiosa cristã, não posso deixar de referir sua contribuição para o entendimento da natureza do sujeito. Começo, então, notando que, para Althusser, só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito. O sujeito é uma categoria constitutiva de toda ideologia. A ideologia interpela os indivíduos em sujeito. Por exemplo, autor e leitor são sujeitos que se constituem no interior de formações ideológicas que se materializam nos discursos. Disso se segue também que Deus é um Sujeito, pois que construído na ideologia religiosa.
Atendo-se à ideologia religiosa, Althusser escreverá o que ela, segundo ele, nos diz:

“Ela diz: Dirijo-me a ti, indivíduo humano chamado Pedro (todo indivíduo é chamado por seu nome no sentido passivo, não é nunca ele que se dá um nome), para dizer que Deus existe e que tu deves lhe prestar contas. Ela acrescenta: É Deus quem se dirige a ti pela minha voz (tendo a Escritura recolhido a Palavra de Deus, a Tradição a transmitido, a Infalibilidade Pontifícia a fixado para sempre quanto às questões “delicadas”). Ela diz: Eis quem tu és: Tu és Pedro! Eis a tua origem, tu foste criado pelo Deus de toda eternidade, embora tenha nascido em 1920 depois de Cristo! Eis o teu lugar no mundo! Eis o que tu deves fazer! Se o fizeres, observando o “mandamento do amor”, tu serás salvo, tu Pedro, e farás, parte do Glorioso Corpo de Cristo, etc.”.
(pp. 99-100)


Eis aí um fragmento do pensamento de Althusser importante e que nos demanda uma análise cuidadosa. Pedro, que pode ser qualquer cristão, é interpelado em sujeito. Essa interpelação lhe veda qualquer autonomia. Não é ele quem se nomeia; ele é nomeado. É-lhe fixada uma identidade (um nome, uma origem, um Pai criador). É-lhe determinado um lugar na sociedade, no mundo, no universo. Também ele é posicionado em relação a Deus (ele precisa prestar-lhe contas, obedecer-lhe ao mandamento). É-lhe determinado um modo de conduta, calcado sobre o mandamento do amor. Particularmente interessante é ver aí que o amor cristão precisa ser balizado por um mandamento. Deus ordena amar acima de tudo a ele mesmo e depois ao próximo. Isso lança suspeitas sobre a genuinidade do amor cristão. Por ser um amor, cuja manifestação, é pré-determinada por Deus, na forma de mandamento, redunda daí sua opacidade, sua vocação para um dever, no entanto, interesseiro. Ora, tenho de amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo para ganhar prestígio aos olhos de Deus.
Mas é possível ver a questão sob outra perspectiva. Uma vez assumindo ser Deus um signo ideológico que não é outra coisa senão o reflexo de uma autoridade eclesiástica e terrena, embora apareça à consciência coletiva, como um Ser transcendente, uma autoridade sobre-humana, o mandamento do amor, ao qual devemos acrescentar o temor a Deus, configura uma típica situação de relação desigual entre subalternos e seu líder. Um líder que queira expandir sua soberania e conservá-la, sem que os dominados se revoltem contra essa condição, precisará combinar o amor e o temor. Em outras palavras, precisará infundi-lhes amor e temor. A figura de Deus é representada como um ser que deve ser amado e, ao mesmo tempo, temido. Como Deus não é senão um signo ideológico, ele é o meio verbal pelo qual a Igreja decreta o amor e infunde o temor ou o medo. É provável que esse medo tenha sido mais forte no passado, ou melhor, tenha assumido outra forma, tenha servido a outros propósitos. No entanto, o medo de que o abandono da fé, a prática da heresia, ou de que a vida não tenha sentido transcendente algum ainda persiste, mesmo que num nível subconsciente nas grandes massas religiosas. É preciso frisar: os religiosos – assim creio – não amarão e temerão as suas igrejas, embora até possam nutrir tais sentimentos em relação às figuras carismáticas como padres, bispos, pastores e o papa. O amor e o temor é, em primeiro lugar, a Deus, mas entendendo Deus como um mero mecanismo ideológico mediante o qual a Igreja conserva e alimenta esses sentimentos nos indivíduos.
Sem pretender me delongar sobre este tópico, vale atentar para o que nos ensina Freud, em O Mal-estar na cultura (2010), sobre a ineficiência do mandamento “amarás o teu próximo como a ti mesmo”:

“(...) O mandamento “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” é a defesa mais forte contra a agressão humana, e um exemplo excelente do procedimento nada psicológico do supereu cultural. O mandamento é impossível de ser cumprido; uma inflação tão grandiosa do amor apenas para diminuir o seu valor, sem resolver o problema. A cultura negligencia tudo isso; ela apenas admoesta que quanto mais difícil for obedecer ao preceito, tanto maior o mérito em obedecê-lo”.
(p. 180)


Basta entender que religião e Igreja são instituições culturais, que não será custoso concluir que “o amar a Deus sobre todas as coisas” e “o amar o próximo como a si mesmo” são exigências que extrapolam às inclinações humanas. O que nos martela a religião e a Igreja é que “quanto mais difícil for obedecer ao preceito, tanto maior o mérito em obedecê-lo”.
Voltando, contudo, ao sujeito Pedro, em Althusser, e lançando mão do conceito lacaniano de Outro, é interessante ver que o sujeito Pedro é submetido a toda uma comunidade de valores, crenças, dogmas, discursos materializada na forma de Escrituras Sagradas, de uma tradição teológico-doutrinária. Quem lhe fala é essa comunidade representada no signo Deus. Também lhe é determinada uma condição para a sua Salvação, bem como um destino. Obedecendo ao mandamento e vivendo segundo o que lhe foi determinado (entre outras coisas, que Deus é quem o criou; portanto, saiba-se uma criatura!; que Jesus é seu único salvador; portanto, reconheça-se como pecador!, etc.), ele participará da majestosa Família de Deus (o Corpo de Cristo, a comunidade cristã, composta pelos eleitos e acolhidos no amor de Deus).
De tudo que foi dito, devemos concluir o que se segue. Ao contrário de Bakhtim, Althusser entende a ideologia como um sistema de representação que deforma a realidade. Não é que essa visão esteja de todo excluída da abordagem do filósofo russo, mas, decerto, sua perspectiva é mais alargada. Para ele, todo signo é signo ideológico e a ideologia é um sistema de representação e interpretação da realidade social e do mundo. Todo discurso, em Bakhtim, é constituído do que poderíamos chamar de formação ideológica (embora esse termo não tenha sido cunhado por ele). Não há discurso sem ideologia, na visão de Bakhtim.
Para examinar como o sofrimento, enquanto signo ideológico, entra a fazer parte da constituição de uma trama ideológico-doutrinária sobre a qual se calcarão teologias cristãs, assumirei a visão de Althusser sobre ideologia, sem deixar de articular a ela a perspectiva de Bakhtim sobre a natureza ideológica de todo signo.

O sofrimento: uma escada que leva a Deus

Vimos que o sofrimento é consequência da Queda; mas também é o meio pelo qual o homem se redime perante Deus.
O sofrimento, sempre entendido como signo ideológico, se articulará à ideia de que a vida terrena é um vale de lágrimas. Nela, o ser humano deverá se esforçar por reparar seu erro que o maculou desde o nascimento.
No entanto, o sofrimento tem o potencial de alavancar uma verdadeira transformação. O fracasso que ele nos lega nos conduz à vitória. Ele instaura uma lógica, quase nunca percebida, segundo a qual, aviltando o pecador, amaldiçoando-o, Deus o concede a salvação. Pascal Bruckner, em seu livro A euforia perpétua – ensaio sobre o dever de felicidade (2010), oferece-nos uma preciosa constatação:

“Não basta, pois, experimentar o sofrimento, é preciso amá-lo”.
(p. 32)


A doutrina cristã prescreve: “É preciso sofrer!” “Resigne-se ao sofrimento e cairá nas graças de Deus!”. Mas o cristão não está sozinho em seu sacrifício, em seu culto ao sofrimento. Cristo lhe serve de modelo de sofrimento; o fiel cristão se "inspira" na Paixão de Cristo quando se vê à volta com a dor do sofrimento. No cristianismo, a morte do Cristo-Deus, em agonia, na cruz, é o cerne de seu ritual. Jesus se torna proprietário da morte. Ele afirma e nos lembra o trágico da condição humana, mas também confirma a promessa de sua superação, mediante a ascensão à condição sobre-humana na ordem da esperança (que assim seja!) e do amor (infinito e elevado!).
Para o cristão que padece, Jesus é um irmão de sofrimento. O cristão, mesmo aviltado, sobrepujado pelo sofrimento, pela culpa do pecado deve ver em Jesus um amigo e um guia em seu calvário pessoal. “Deus dá a cruz segundo nossa capacidade para carregá-la”, diz o senso-comum fundado na ideologia cristã.
O sofrimento sujeita o homem à condição de impotência, arranca-lhe as forças, condena-o à resignação. O homem não pode salvar-se por si mesmo. A salvação é uma graça de Deus. À salvação precede a humilhação, o aviltamento do homem.
É do fundo do seu sofrimento atroz que o homem ascende a Deus. O sofrimento é uma escada que o leva até ele. O signo do sofrimento instaura uma dependência do homem a Deus. Ela não seria possível sem o imperativo do sofrimento, o qual reaviva na consciência do homem sua condição de criatura mortal e inferior. Simone Weil escreveu: “só o sofrimento salva a existência”. Sofrimento e salvação são indissociáveis, de tal modo que se pressupõem reciprocamente. Não haveria sentido, no cristianismo, proclamar a salvação, sem a introdução na doutrina da crença em que o sofrimento faz sentido, já que constitui o caminho que conduz à salvação. Salvação da morte, salvação do mundo onde grassa o pecado. Salvação do próprio sofrimento. Novamente, Simone Weil dá-nos testemunho dessa lógica viciosa cristã: o sofrimento “é tão melhor quanto mais for injusto”. Eis aqui um dito moralmente inaceitável. Uma clara aceitação do sofrimento gratuito de inocentes. Para Simone Weil, só o sofrimento injusto pode nos conduzir à sabedoria e ao colo de Deus. Eis uma prova do abandono da atitude filosófica, e mesmo a rejeição a qualquer tentativa séria de refletir sobre o problema do sofrimento à luz de uma teodiceia, mesmo que ela seja pouco convicente.
Em relação ao cristianismo, escreverá Bruckner, “poucas religiões insistiram como esta no lixo humano ou manifestaram esse “sadismo de piedade” (p. 34). E, mais adiante, acrescenta: “o sofrimento é a norma... É preciso amar o homem, mas primeiro humilhá-lo, rebaixá-lo (ib.id.)”.
Que outros índices de valores se acumularam na palavra sofrimento? Vemos nele também a ideia de progresso espiritual. Na medida em que nos leva a aproximarmo-nos de Deus, o sofrimento é interpretado como um progresso. Esse deslize semântico, operado pelo sistema ideológico religioso, da “estagnação”, do “mal” para o “progresso”, para o “bem maior” leva a que o sofrimento não seja mais visto como uma condição contra a qual devemos mobilizar esforços para lutar. O cristianismo nos diz: “resta sofrer junto de Cristo aceitando-o como um amigo de sofrimento”. A miséria traz a paz interior; traz a alegria espiritual. O cristão que sofre, experimenta, paradoxalmente, a alegria quando crer-se unido a Cristo em sofrimento, quando, comparando seu sofrimento ao de Cristo, pune-se por qualquer pensamento queixoso que se lhe assome à consciência. Consciente de que seu sofrimento não se compara ao de Cristo em intensidade e profundidade, o Cristão sofre resignado, não sem evocar a Cristo para que o conforte e o vele em seu sofrimento. Novamente, Bruckner nos lembra “com a religião, o sofrimento torna-se um mistério que não deciframos, a não ser sofrendo” (p. 35). O cristão, no momento em que sofre, crê haver um sentido em seu sofrimento, mesmo que não lhe seja imediatamente transparente ou acessível. E não nos surpreendamos que, após cessada a tempestade de dor, ele se regozije com a descoberta do sentido, que tardou, mas se lhe revelou cristalino. Bruckner faz uma breve referência ao trabalho ardiloso de teólogos na produção de teodiceias:

“E os teólogos irão desenvolver tesouros de casuística e de sutileza para legitimar a existência do mal sem atentar à bondade de Deus”.
(p. 35)


E diga-se, de passagem, que a própria concepção de sofrimento como uma forma de progresso, como um meio de retorno a Deus é já fruto de uma teodiceia denominada na tradição de pedagógica.
Vimos, no limiar deste texto, que no Catecismo, o sofrimento nos aviva a consciência de que somos seres destinados à morte. Que relação pode-se estabelecer entre o sofrimento e a morte, no interior da doutrina cristã? Se o sofrimento é uma escada que nos conduz a Deus, a morte é um passaporte para a verdadeira vida. A morte nos liberta das tentações mundanas, dos pecados deste mundo. O mundo não é nada mais do que um lugar de exílio, onde grassam a dor e o sofrimento.
Não exageramos ao notar que, na história cristã, propôs-se aceitar voluntariamente sofrer e renunciar a toda e qualquer medida contra a dor. É preciso participar da Paixão de Cristo. Bruckner nos fala de “eloqüência da cruz”, com que se busca justificar a imobilidade de esforços de piedosos na tentativa de melhorar as condições de existência humana neste mundo. A felicidade não pertence a esse mundo, mas ao outro mundo que está por vir. A eloqüência da cruz desencoraja os mais interessados em amenizar a dor dos desgraçados.

Palavras finais

Ainda que a concepção mais bem intencionada sobre a natureza de Deus não se sustente à luz da evidência das formas como o sofrimento se manifesta neste mundo, continua ela a ser uma representação consoladora e acalentadora da crença em que a existência humana seja portadora de um sentido transcendente. O sofrimento é o cabresto que prende os fiéis a Deus (Igreja). É a chave para a compreensão do maquinário ideológico cristão, que constitui o sistema de representação, de forma imaginária, das relações dos homens com suas reais condições de existência. Nessas relações, os homens se vêem, ou melhor, se representam, na imaginação, como criaturas de Deus.
O cristianismo é uma religião que se aproveitou do sofrimento como fato irrecusável, transformando-o, pela ideologia (na representação imaginária) em gatilho de toda teia de ideias e dogmas de que se forma sua doutrina. O sofrimento, antes de constituir um obstáculo à fé em Deus, a reforça, a torna mais intensa, mais viva. O homem que sofre é aquele que espera em Deus, que espera obter uma recompensa por ter-se obstinado na condição de sofredor resignado.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

"O verdadeiro amor é aquele que supõe um trabalho contínuo para mantê-lo" (BAR)




O mal-estar no amor
Ou o excesso do amor

É do Amor que me ocuparei nesta nova oportunidade em que me sirvo das palavras para expressar e sustentar a tese segundo a qual vivemos um mal-estar erótico na modernidade atual. Em que consiste esse mal-estar e qual é a sua origem são as duas questões que procurarei, aqui, desenvolver e responder. Para a realização desse intento, convidarei o leitor a passear comigo pelos jardins de ideais cultivados pelo pensamento platônico sobre o amor. Vamos revisitar a concepção de Platão sobre o amor. Sabemos que as ideias de Platão ecoam pela voz de Sócrates, de modo que, ao falarmos do entendimento socrático, estamos falando da compreensão platônica.
Não me cingirei a abordar a visão platônica de amor, evidentemente. A ela reunirei outras perspectivas conflitantes e divergentes, uma das quais – e a primeira que mencionarei – é a do filósofo moderno Simon May, exposta e desenvolvida em seu livro Amor – uma história (2012).
Comecemos, portanto, pela contribuição de May. De início, é preciso frisar que, para ele, o amor é um enlevo. O amor é, portanto, um êxtase que sentimos; amar é sentir-se encantado, absorvido pela presença do outro que é objeto de nosso amor. Mas o amor, enquanto enlevo, causa em nós outro sentimento. Acompanhemos as palavras de May a seguir:

“O amor (...) é enlevo que sentimos por pessoas e coisas que inspiram em nós a esperança de uma fundação indestrutível para a nossa vida. É um enlevo que nos faz empreender – e sustenta – a longa busca de uma relação segura entre nosso ser e os delas.”
(p. 19)


Destaquei em negrito alguns trechos que cuidei fundamentais para que compreendamos a perspectiva do autor. É verdade, como podemos notar, relendo o trecho, que May não restringe a natureza do objeto de amor à pessoa; podemos amar coisas (por exemplo, o dinheiro, o poder, nossa casa, nosso carro, etc.). No entanto, eu vou ignorar essas outras formas de objeto de amor e me limitarei a pensar o amor destinado a pessoas.
Vimos que May considera o amor um enlevo, o que nos sugere tratar-se de um sentimento que nos provoca certo arrebatamento. O amor, enquanto êxtase (enlevo), liberta o eu do corpo; amando é como se pudéssemos nos libertar de nós mesmos. Experimentamos uma plenitude de ser. Poderíamos dizer que o amor, enquanto enlevo, é potência de existir. É íntima alegria de existir mais. Se, por um lado, poderíamos ficar tentados a ver na concepção de May alguma espécie de elevação espiritual consequente da experiência amorosa; por outro lado, devemos reconhecer que o enlevo inspirado pelo amor funda-nos, de modo indestrutível, a existência neste mundo. O amor estabelece uma fundação para a nossa vida. Graças ao amor, sentimo-nos em casa no mundo. O amor enraíza nossa vida neste mundo, que passa a ser considerado como um lar (lugar de aconchego, de acolhida).
Não menos importante é a ideia suscitada pelo verbo empreender, também destacado em negrito. Esse verbo sugere que o amor é um trabalho. Ou melhor, é o que nos impulsiona a buscar uma relação sólida, segura. Essa relação se estabelece entre dois seres. E, aqui, convém reavivar a ideia de que “amar é fazer do ser de um participante do ser do outro” (BAR).
Creio que é importante entender que, segundo May, o amor não nos distancia do mundo, não nos eleva sobre ele; não nos encarcera em alguma realidade espiritual transcendente. Ao contrário, o amor, enquanto enlevo, produz em nós um sentimento de pertencimento à realidade mundana, onde experienciamos profundos bem-estar e bem-viver. O trecho a seguir parece confirmar essa interpretação:


“Se todos nós temos necessidade de amor, é porque todos precisamos nos sentir em casa no mundo: enraizar nossa vida no aqui e agora; dar à nossa existência solidez e validade; aprofundar a sensação de ser; capacitar-nos para experimentar a realidade de nossa vida como indestrutível (ainda que aceitemos também que ela é temporária e terminará na morte)”.
(ib.id.)


A esse sentimento de estar em casa no mundo; à percepção de que nossa existência ganhou solidez no aqui e agora, de que nossa vida fincou raízes na realidade, May chama enraizamento ontológico. Ontológico nos remete à ideia de Ser. Enraizamento de nosso ser na realidade; fundação inabalável de nossa existência no aqui e agora – é o sentimento que nos provoca o amor. O amor ancora nossa existência e ser no mundo. O amado encarna a promessa, para nós, de sustentação de nossa vida no mundo, de modo que o sintamos como um lar. O amor torna o mundo um lugar acolhedor para nós.
Antes de trazer à baila a concepção platônica de amor, faz-se mister distinguir entre uma visão sobre o amor fundada no imaginário e um visão sobre o amor fundada na observação e na experiência empírica. Essa distinção nos ajuda a entender que muito do que se diz do amor pode estribar-se em representações imaginárias. A palavra imaginário designa o conjunto de representações, crenças, desejos e sentimentos na base dos quais um indivíduo ou grupo entende a realidade e a si mesmo. Parece-me que a visão de May sobre o amor está muito mais próxima de uma visão baseada no imaginário ocidental do que na observação das relações amorosas na contemporaneidade. Uma visão sobre o amor calcada na experiência empírica não poderia escusar a observação de que as relações amorosas têm se mostrado frágeis e descartáveis. Essa visão fundada empiricamente deve levar em conta, por exemplo, as formas de amor líquido, a que se refere Bauman. Também não pode ignorar que o amor, enquanto relação, implica tensões, conflitos e poder. Toda relação amorosa é uma relação de negociação do poder.
May externa sua convicção de que o amor é uma experiência que dá significado à nossa existência. Nesse tocante, ele faz repercutir o imaginário coletivo. São nossos desejos, nossas crenças, nossas representações que são mobilizados na compreensão do amor como “enlevo que produz um enraizamento ontológico”. Para mim, erra quem supõe que May esteja enganado ou iludido a respeito do amor ou do valor do amor; na verdade, ele faz ecoar o sentimento que a grande maioria de nós experimenta quando amamos e somos amados. Quem negaria que o amante e o amado, insuflados de amor, não encontram no mundo um lugar acolhedor e aprazível? Quem negaria que esse sentimento de enraizamento ontológico inunde seus espíritos e corações? Tem razão May ao sugerir que o valor que atribuímos ao amor é o de nos fazer existir mais, ser mais, sentir mais nossa vida em harmonia com o mundo. Amar é sentir-se em casa no mundo. Amar, diríamos com May, é quando um mora no outro. O amante e o amado estão conciliados com a vida e com o mundo quando imersos no amor recíproco.
É chegado o momento de revisitar o pensamento de Platão sobre o amor. Desde já, o amor platônico, tal como representado em O banquete, nada tem que ver com a ideia de amor irrealizável, impossível. Amor platônico não está dissociado da relação sexual, tampouco se confunde com o culto ao amado. Compreendamos melhor esse ponto.
Quando Alcibíades faz sua preleção no final de O banquete, demonstra não ter entendido Sócrates. Confessa não ter alcançado o grau mais alto na experiência do amor na pederastia, ou seja, não conseguiu atingir o Belo ou a essência (disso tratarei adiante). Além disso, Alcibíades demonstra-se frustrado pelo fato de Sócrates não tê-lo desejado sexualmente, ainda que lhe tenha dado sinais de disponibilidade sexual. Esse episódio, em que Alcibíades demonstra sua frustração dada a irrealização do desejo amoroso levou a alguns comentadores a ver o amor platônico como um amor idealizado, irrealizável ou distante. Essa interpretação prevaleceu no senso-comum. Popularmente, quando se diz que uma pessoa nutre um amor platônico por outra quer-se dizer que alimenta um sentimento que jamais será correspondido e que se conservará no plano da ideia, sem qualquer relação com a experiência sexual com o amado. É o caso, por exemplo, de uma jovem mulher que sinta amor pelo seu ídolo. Diz-se, vulgarmente, que ela nutre por ele um “amor platônico”, visto que se trata de uma amor que jamais será correspondido e vivenciado sexualmente.
Todavia, o amor platônico é impulsionado por Eros e não está dissociado da experiência sexual, muito embora o sexo seja um meio, não o fim desse amor. Vamos, então, compreender melhor a concepção platônica de amor.
Para uma adequada compreensão da visão de Platão sobre o amor, necessário se faz entender como Platão concebe o Belo e o Bem, visto que o amor, em Platão, está intimamente relacionado ao Belo e ao Bem.
Para Platão, o belo é o que faz com que as coisas sejam belas. O belo é uma essência e é independente da aparência do belo. Quando se diz “Fulana é bela”, está-se associando a ideia de belo a um sujeito (Fulana). Nesse caso, o belo é aquilo que está na aparência; é uma experiência estética, é um prazer desinteressado suscitado pela contemplação de um ser. Platão não entende o belo como relativo a um ser, como situado na aparência ou dado numa experiência estética. Em Platão, o belo é uma ideia análoga às ideias de ser, verdade e bem (ou bondade). O belo, para Platão, é uma realidade absoluta; é quase uma espécie de bem ou perfeição. As coisas de que dizemos serem belas participam, em Platão, do Belo, enquanto essência.
Intimamente associada ao belo está a ideia de bem ou bondade. O bem equivale ao belo de modo abstrato. Em Platão, o Bem é uma Ideia absoluta ou Ideia das Ideias; é uma ideia elevada e magnífica; está além do ser. As coisas boas somente são boas enquanto participantes do único Bem absoluto.
Contrariamente à visão de Platão, para Aristóteles, embora o Bem seja uma realidade metafísica, há que se distinguir entre o Bem em si mesmo e o Bem relativo a outra coisa. O primeiro corresponde ao Bem puro e simples; o segundo, ao Bem para algo ou alguém. Segundo Aristóteles, embora devamos preferir o primeiro ao segundo, o Bem puro não se identifica necessariamente com o Bem absoluto (Platão). Trata-se, decerto, de um Bem mais independente do que o Bem relativo. Todavia, Aristóteles rechaça a doutrina platônica. Ao contrário de seu mestre, o estagirita nega que o Bem seja exclusivamente uma realidade absoluta ou uma substância. Para Aristóteles, cada coisa pode ter seu próprio bem. Vimos que Platão pensava diferente: cada coisa só é boa por participar do Bem, enquanto essência.
Finalmente, vale mencionar a concepção de Agostinho, para quem o Bem em si mesmo pode equivaler-se ao Bem metafísico. Nesse caso, o Bem e o Ser são a mesma e única coisa. O Bem, em Agostinho, é Deus. Mas pode também, num sentido menos estrito, suceder que as coisas criadas, incluindo o homem, participem do Bem, especialmente quando aquele alcança um estado de fruição de Deus.
O amor platônico, embora não despreze a experiência sexual, supõe um trabalho de ascensão à beleza espiritual ou intelectual e à essência mesma do belo. O amor platônico busca o Belo. Mas não se limita à beleza física. É um amor que aspira à Beleza perene e, portanto, aspira à imortalidade.
O amor, em Platão, busca unir-se com a beleza, a bondade e a verdade em si. Unir-se ao Belo significa unir-se a uma realidade absoluta, imortal e imutável. O amor platônico precisa transcender ao amor físico. Atentemos para o trecho em May nos ensina sobre as pretensões do amor, em Platão:

“Dominados por essa visão de divina beleza, contamos com o amor para nos levar de um mundo imperfeito, transitório, para um reino de perfeição e eternidade. Esperamos que ele culmine numa experiência de absoluta beleza e bondade – e que nosso bem-amado inspire em nós tal experiência. Sua função, relata Sócrates, é “interpretar e transmitir mensagens dos homens para os deuses e dos deuses para os homens”. De fato, o amor permite a nós seres humanos encontrar uma completude divina; ter “o privilégio de ser amado por Deus, e tornar-se, se algum dia um homem o poder ser, ele próprio imortal”.
(p. 74)


Parece-me lícito dizer que o amor, em Platão, aspira à transcendência, à eternidade, à perfeição. Pelo amor, instaura-se uma intercomunicação entre o universo humano e o universo divino. É uma forma de amor que busca a beleza e a bondade absolutas. É uma forma de amor que eleva o homem a Deus, alimentando naquele o desejo de completude com este. O amor platônico é o caminho pelo qual o homem aspira ao puro e ao eterno. Novamente, vale ler o seguinte excerto de May, no qual nos ensina sobre a influência que a concepção platônica de amor exerceu na história do amor ocidental:

“ESSE QUADRO DA ASCENSÃO do amor do físico ao divino moldou a história do amor ocidental de maneiras tão imensas e variadas que não posso fazer mais que escolher algumas de suas influências, embora muitas outras irão se manifestar à medida que consideramos outras concepções de amor que, a despeito de toda sua aparente diferença, dependem decisivamente do pensamento de Platão (seja adotando-o ou opondo-se a ele).”
(p. 73)


A primeira influência a que se refere o autor diz respeito à transformação do amor em um valor supremo. Na verdade, Platão assentou o terreno para que o amor, com o advento do cristianismo, tornasse-se o valor supremo do mundo. Isso porque, com Platão, o amor é desejo pela beleza e pela bondade mais elevada; é também o caminho para a verdadeira virtude e para o eterno e o imutável. Na concepção platônica, amamos o que é belo e o que é bom. Não é possível, a seu ver, amar o que é feio e mau. Com o advento do cristianismo, que incorporou em sua teologia os mandamentos básicos das Escrituras hebraicas, quais sejam, amar a Deus sobre todas as coisas e amar o próximo como a si mesmo, o amor torna-se valor supremo do mundo ocidental e significado mais elevado da vida. A crença de que o sentido da vida é amar ou de que só o amor dá verdadeiro sentido à existência do homem é uma crença calcada sobre a concepção cristã do amor – uma herança deixada ao mundo ocidental.
A segunda influência consiste em inseminar na cultura ocidental a crença segundo a qual a relação sexual constitui apenas o limiar do caminho para o amor elevado. Ela é o meio, mas não o fim do amor. Observa, com propriedade, May que “surpreendentemente, nenhuma medida de liberação sexual afugentou esta visão (p. 74)”. Para May, a grande maioria dentre nós, ainda hoje, não pensa o amor como experiência sexual; ao contrário, tendemos a associar o amor a coisas mais elevadas, tais como ideais ou valores que compartilhamos com o parceiro. Acredita uma grande maioria que o amor deve concentrar-se na alma ou no ser do outro mais do que no seu corpo.
Não se pode tirar a razão de May; no entanto, creio necessário acrescentar que a nossa sociedade é muito mais sexualizada, ao mesmo tempo em que se caracteriza por uma profunda deserotização (Ghiraldelli, 2011). Segundo Ghiraldelli (p. 14), a razão para que se dê esse excesso de sexualização de nossa sociedade está em que as pessoas, sentindo-se embotadas mentalmente, entediadas e cansadas no processo de trabalho, buscam preencher seu vazio com “imagens sexuais”, a fim de estimular a sensibilidade, então arrefecida. Convém insistir que a experiência de amor na contemporaneidade é muito distante da visão platônica de amor. O amor de Platão é amor-Eros. É amor que aspira ao bem, ao belo; é alegre e vivo, sem deixar de ser sexuado; no entanto, é amor que transcende o domínio físico-sexual. No mundo contemporâneo, amor e sexo situam-se em esferas ideológicas diferentes e dissociáveis. A título de exemplificação, lembre-se a canção de Rita Lee Amor e sexo (“amor é divino; sexo é animal” – numa clara evocação da visão platônica). A canção congrega várias representações do amor que configuram o imaginário amoroso do homem ocidental. Na canção, por exemplo, se diz que “amor é um”, o que nos leva à visão, também presente em O banquete, no discurso de Aristófanes, do amor como desejo de fusão. Mas deixemos a canção de Rita Lee para nos concentrar nas seguintes palavras de Ghiraldelli, em Como a filosofia pode explicar o amor (2011), com as quais nos dá testemunho do modo como se dá a deserotização da sociedade moderna:

“Não raro, falamos do amor de maneira muito abstrata, e o temos no dia a dia desse modo, de forma a fazê-lo se perder em seu caminho, sem nenhum objeto, isto é, sem nenhum lugar de chegada. Em outras palavras, geramos o amor sem o amado! Esse equívoco também é resultado da deserotização”.
(p. 17)


Percebe-se, sem muita dificuldade, que, em nossa época, homens e mulheres falam de amor de modo muito abstrato e indefinível; não raro, se demonstram desacreditados do amor, porque incapazes de percebê-lo (interpretá-lo). O amor é amor interpretado, é uma interpretação que chamamos amor (Precht, 2012). No momento em que nós não sabemos bem o que é Eros, tendemos a pensar que ele orbita esferas muito distantes, ou representa um ideal irrealizável para a condição humana.
Volto rapidamente ao mito de Aristófanes, no qual nos conta de seres humanos divididos por Zeus em busca da metade perdida. Esse mito nos ensina algo importante: o amor não é capaz de restituir aos seres humanos divididos ao meio a sua integridade original. A possibilidade mesma de que nunca venhamos a encontrar a nossa metade é algo que a maturidade nos ensina (voltarei a esse ponto). É bem verdade que o amor pode até acalentar em nós o sentimento de restituição da metade perdida, mas ele não chega a no-la permitir completamente. Apenas os deuses podem fazê-lo. Somente um deus poderia unir o que outro deus um dia separou.
Convém ficar claro que, para Sócrates/Diotima, o amor se origina na falta; para Aristófanes, na perda. O homem não mais enfeitiçado pelo amor platônico reconhece que o amor é fonte de demandas, mas as necessidades pressupostas no amor nunca são plenamente satisfeitas. Sabemos disso por experiência própria.
A terceira influência da ideia de amor platônico no mundo ocidental deve ser compreendida considerando-se as seguintes ideias. Em primeiro lugar, o amor platônico se vincula à imortalidade. O amor mais elevado, aquele que transcende a mera relação sexual, deve permite-nos não só contemplar as coisas elevadas, como também nos tornar imortais. Destarte, o amor é um caminho que conduz à essência imutável da beleza e da bondade. Ele nos conduz a um mundo onde as propriedades que nos humanizam, tais como a transitoriedade, a perda, o sofrimento, o acaso, a dor, o mal já não nos definem como tais. Nesse mundo, estamos delas livres. Essa concepção do amor como um caminho de ascensão a um mundo de libertação de condições que nos tornam humanos exerceu grande influência sobre a imaginação do homem ocidental. Ele passou a alimentar a esperança de que o amor tem em si mesmo uma função salvífica e um valor supremo.
Não podemos ignorar as consequências que disso é possível extrair. Em primeiro lugar, pensar o amor de modo tão majestoso, pensá-lo como um caminho que nos conduzirá a contemplar a essência atemporal da beleza lança por terra de modo drástico o valor do amor entre as pessoas. Em segundo lugar, o amar as pessoas pela sua transitoriedade torna-se vicioso. As coisas transitórias, entre as quais incluímos as pessoas, tornam-se menos dignas de amor, simplesmente por serem impermanentes. Só a imortalidade, em cotejo com a transitoriedade, é um valor para o amor platônico. Em terceiro lugar, não é difícil depreender daí a possibilidade de podermos trocar a pessoa amada por outra, desde que esta encarne ao menos o mesmo grau de beleza. Nessa visão, o ser amado torna-se um meio para alcançar um bem maior, quais sejam, nossa imortalidade, a contemplação da beleza imutável e eterna. Não está em mira o aprofundamento da relação com o amado. Segundo May,

“(...) no interesse do florescimento do próprio amante, acaba arrastando o amor mais verdadeiro do pessoal para o impessoal, do individual para o geral e do humano para o, literalmente, desumano”.
(p. 74)


Poderia apenas a beleza ser necessária para nos despertar o amor? Será mesmo que só porque uma pessoa é bela devemos amá-la? Por outro lado, não é verdadeiro que muitas pessoas amam coisas que não são eticamente boas? Para nós, a ideia segundo a qual o amor à beleza implica necessariamente um compromisso com o agir de modo moralmente correto não se sustenta. Nós, modernos, não vemos uma relação necessária entre amor à beleza e compromisso com uma retidão moral, ou seja, com o bem.
Voltemos aos dois mitos do Banquete e consideremos a influência preponderante deles na sensibilidade do mundo ocidental.
Já comentei que Aristófanes propõe um “retorno” a um estado original de integridade e imutabilidade. Trata-se da busca pela metade perdida. O amor é, então, representado como desejo de fusão, desejo de completude. Em Sócrates (Diotima), o amor pressupõe um movimento de ascensão a uma essência divina. Ambas as visões contribuíram decisivamente para moldar a sensibilidade dos homens e mulheres do mundo ocidental: tanto Aristófanes quanto Sócrates deram ao amor o papel de assegurar o imutável e o eterno. Algumas consequências se nos impõem ao espírito.
Nesse momento, o terreno para Eros foi preparado. Eros é o maior dos impulsos de vida; no entanto, o caminho que trilhará, doravante, é o caminho onde o impulso de morte se enraizará. Eros deseja uma satisfação que, a rigor, envolve a superação da vida humana, enquanto indivíduos que existem em limites temporais e que são marcados pela transitoriedade, pela possibilidade de solidão, de perda, de incompletude, de sofrimento e de dor. São os próprios ideias elevados do amor platônico que o dota de uma força destrutiva, ruinosa e mortal. É, possivelmente, no Romantismo alemão do século XVIII ao século XIX que essa força destrutiva do amor se faz claramente marcante. Nesse período, as relações interpessoais passaram a sobrecarregar-se de expectativas irrealizáveis. Em tais condições, não é de surpreender que o suicídio viceje. A esse propósito, nos ensina May:

“A elas [às relações humanas] é atribuída a tarefa de permitir aos amantes entrar em contato com o divino e até tornarem-se divinos; esforçar-se, através de seu amor, para alcançar a imortalidade, e, por fim, aniquilar sua existência como indivíduos encarnados”.
(p. 77)



Claramente aí o excesso do amor implode o ser do homem. Esse excesso é sobrecarga de ideais cuja realização é impossível nos limites da natureza humana. O amor não sabe bem o que quer. Interessante ver que as ideias de contemplação da essência do belo, completude, bem eterno e imutável não passam de representações de uma experiência mística. Nenhuma definição pode compreendê-las.
Eis que, finalmente, uma ideia precisa enraizar-se no espírito do leitor arguto e não mais deslumbrado e inocente: o amor é condicional. E essa proposição vale tanto para as representações míticas do amor em O Banquete quanto para as experiências de amor na vida real. Também o amor, enquanto forma de relação, é relação com o poder. É possível que amor nos conduza a atenuar as tensões nessa relação com o poder, mas ele é incapaz de suprimi-las. Não raro, ele pode, ao contrário, servir de combustível para robustecê-las.
É chegada a idade da maturidade. E com ela aprendemos que o amor é um trabalho arriscado. Há riscos em todo amor. A dura verdade que se nos revela ao coração é que podemos nunca encontrar a nossa outra metade. E, ainda que, por ventura, a encontremos, nem sempre seremos capazes de harmonizar nossa vida com a dela. Os riscos envolvidos no amor é também a vulnerabilidade à perda, à dor, ao sofrimento, ao acaso. Mas não neguemos que a dura verdade é também sinal de maior lucidez.

“Em nossa juventude ainda não descobrimos tampouco que o amor é um empreendimento arriscado em que podemos nunca encontrar nossa outra metade verdadeira (...)”.
(p. 79)



Longe de desprezar o legado das reflexões platônicas sobre o amor, homens e mulheres modernos, certamente, caminharão com mais firmeza no desnivelado terreno amoroso, se souberem aproveitar as lições de autores como José Luiz Furtado e Richard David Precht. Este último, por exemplo, nos chama atenção para o espaço destinado à excitação na experiência amorosa. Para ele, nosso desejo de amor não se confunde, acima de tudo, com um desejo por companheirismo e compreensão, ou por vínculo e acolhimento. Desejamos na mesma medida excitação. Nossas expectativas em relação ao outro fazem apelo a que ele nos entenda e nos torne mais interessante a vida (Precht,  2012, p. 178). Ainda segundo Precht, a experiência da vida real nos ensina que não escolhemos as pessoas mais amorosas para amar. Já Furtado (2008, p. 28) nos faz ver, entre outras coisas, que o gozo não é a realização do amor. Com ele, aprendemos que o amor é uma dificuldade, uma tarefa; e eu acrescentaria – uma prática, um trabalho que envolve tensões, negociações, uma dinâmica que pode, facilmente, produzir as condições para o predomínio do ódio. Também observa Furtado que o amor é a crença de que de dois se possa fazer um. Mas é apenas uma crença; o real basta para pulverizá-la. Segundo Furtado,

“(...) o sexo desfaz essa crença através da certeza, sempre refeita em cada ato sexual, por melhor que ele seja, de que onde há dois, há sempre e reiteradamente, dois”.
(p. 32)