sábado, 20 de abril de 2013

Eu sou o outro


                             
                          

                              Eu e o Outro em mim

Ela não me telefona; tampouco eu lhe telefono. E este sábado, em que o coração, se acostumando à ausência e resignando-se ao destino ingrato de todo amante que se precipita ao amor, sem que sequer lhe vislumbre a profundidade, vai, aos poucos, devolvendo-me à alma as feições desgostosas da desilusão. Quiçá, a ordem dos acontecimentos subsequentes não seja a que tão infelizmente pressinto ou suponho. Talvez, esta noite me pareça mais amena e o sol de amanhã, mais tolerável. Não quero, contudo, dar a este texto uma fisionomia lírica, que traga à cena discursiva fantasmas românticos que expulsei da ópera de minha alma, porque insistiam em desafinar quando ousavam cantar o amor exagerando seus contornos, alargando seu território, expandindo seus limites, já há algum tempo reconhecidos por mim como frágeis e quebradiços. Silencio o lirismo do coração, conquanto eu reconheça, desde já, que silenciá-lo totalmente, durante o curso destas palavras, me é impossível – e até indesejável. O coração, essa metáfora para o ventre dos sentimentos, das emoções, dos calores da alma, dos cantos divinizados dos versos, ocupará um lugar de coadjuvante neste palco discursivo onde as palavras são os atores e atrizes. Mas não lhe nego a importância do papel que desempenha na representação discursiva: ele bombeia o ânimo para a alma e mantém o corpo ativamente envolvido nessa prática laboriosa de expressão verbal.
Certa feita, declarei a uma amiga que, malgrado nossa paixão pela leitura, nosso gosto irresistível pelos livros (eu diria nosso apego a eles), os livros não nos salvam. De que exatamente? De nós mesmos. Uma pessoa minimamente informada sobre psicologia e psicanálise não terá dificuldade de entender o que quero dizer com “salvar-nos de nós”. Nós, homens e mulheres, então adultos, trazemos em nós uma herança de conflitos, de traumas, de dores, decepções, medos. Acreditamos na soberania do nosso próprio ‘eu’, acreditamos na sua unidade, ao mesmo tempo em que vivemos a mentira sobre nossa própria condição humana. É verdade que não escapamos ao recalcamento (posteriormente definirei esse termo), e de sua adequada realização depende a normalidade de nossa vida psíquica. O viver humano depende, aliás, de que operemos uma repressão básica, qual seja, a do terror da morte. A percepção da verdade de nossa condição – animais conscientes do seu destino mortal – é fonte de angústia. A percepção da verdade de nossa condição é lucidamente descrita por Becker, em seu A Negação da Morte (2012), no que se segue:

“Este é o horror: ter surgido do nada, ter um nome, consciência de si mesmo, profundos sentimentos íntimos, uma torturante ânsia íntima pela vida e pela auto-expressão – e, apesar de tudo isso, morrer (p. 115-116)”.


Não quero me delongar sobre esse tema e se o retomei aqui foi para tentar elucidar a crença que acalento na ineficácia salvífica dos livros. Ainda que os cuidemos âncoras por meio das quais não vivemos à deriva, eles não nos livram de nos haver com nós mesmos e de nos confrontar com o ser-aí, ou seja, o mundo empírico, o ser absurdo. Nós, então bebês, quando arrancados do conforto e da segurança da condição da vida intra-uterina, fomos arremessados à existência, condição esta em que deixamos nua nossa fragilidade e nossa impotência para a sobrevivência por nossa própria conta. Sem o amparo e os cuidados dispensados por nossos pais (ou outros significativos responsáveis), morreríamos prematuramente. Se os livros não nos salvam de nossa conflituosa condição humana, ao menos eles nos ajudam a examiná-la, compreendê-la, fornecendo-nos as ferramentas necessárias para suportá-la.
São exatamente 16h 10 da tarde e não há sinal algum de que uma reconciliação entre nossos desejos de ventura amorosa será possível, pelo menos hoje.
Cuido-me uma pessoa ansiosa. Sofro tanto de ânsia quanto de ansiedade. Acho que devo discernir os dois conceitos. A ânsia pode ser definida tanto como desejo ardente quanto como um tormento espiritual causado por um sentimento de expectativa e incerteza. Muito embora confundida, quase sempre, no senso-comum, com a ânsia, a ansiedade, por sua vez, é, em psicanálise, definida como um estado de tensão emocional, que compreende sentimentos irrealistas de apreensão, angústia e medo. A ansiedade está na base da neurose. Convém acrescentar, sob pena de pecar na exatidão, que a ansiedade pode também incluir a percepção de um perigo real. Nesse caso, a ansiedade se chama ansiedade realista. Se, contudo, no estado de ansiedade, os perigos são desconhecidos pelo indivíduo, temos a ansiedade neurótica. Freud discrimina, tendo em conta cada fase da vida de uma pessoa, fatores que a determinam: a) o medo do nascimento; b) o medo de separação da mãe (que está na origem da histeria); c) o medo de castração (que dá origem a fobias); d) o medo do superego (que causa as neuroses obsessivas); e, finalmente, e) o medo da morte.
Antes de fazer incursão no terreno da neurose, circunstância em que eu me reconhecerei como uma pessoa neurótica (na verdade, todos somos, em alguma medida, neuróticos, mas desenvolverei essa discussão mais adiante), gostaria de referir e definir um tipo de ansiedade, que Freud chama ansiedade primordial, visto que me parece adequada para explicar a ansiedade inerente às minhas vivências enquanto adulto. A ansiedade primordial ocorre no bebê quando é separado de sua mãe ao nascer. Segundo Freud, esse evento primordial constitui a causa da repressão. Essa ansiedade, tal como definida por ele, parece acometer todos os bebês, mas, no meu caso, quiçá, ela possa ter sido mais dramática ou traumática. A essa altura, gostaria de que o leitor retivesse a ideia, que me parece bem estabelecida em psicanálise, de que viver é acumular traumas; ou, dito de outro modo, é impossível viver sem que nossa personalidade não seja afetada por traumas.  
Quando se deu a separação entre mim e minha mãe, por ocasião de meu nascimento, tive de ser conduzido urgentemente a uma mesa de cirurgia. Durante os primeiros seis anos de vida, várias separações se sucederam, dada a necessidade de realização de várias cirurgias e internações.
Um dos princípios previstos pela teoria psicanalítica de Freud consiste na ideia de que nosso passado exerce influência decisiva na formação de nosso psiquismo. Postula o pai da psicanálise que as experiências da primeira infância (que vai do 0 aos 3 anos de vida) vão ser determinantes da forma de nossas experiências psíquicas na fase adulta. Grosso modo, aquilo que nos tornamos, na fase adulta, será definido em nossas experiências primevas da primeira infância. Freud, aliás, resumiu bem essa condição, ao nos legar a frase: “A criança é pai do homem”.
Do exposto acima, se depreende que a criança sobrevive no indivíduo adulto. O adulto não deixa de “hospedar”, nas suas profundezas psíquicas, por assim dizer, a criança que um dia foi. De minha parte, as sessões de psicanálise que frequentei, em algumas ocasiões num passado não muito longínquo, contribuíram para amenizar os traumas da infância de minha alma. Reconheço, na verdade, que elas contribuíram fundamentalmente para me libertar de um estado aterrador de depressão, que eu arrastava na alma durante anos. A depressão é uma síndrome, já que reúne vários sintomas, entre os quais abatimento físico (tristeza, fadiga), ideias ou tentativas de suicídio, perda de interesse, de amor-próprio e desolação.
Observei, mais acima, que todos somos neuróticos em alguma medida. E Teles (2004) vem em socorro dessa ideia, ao nos ensinar:

“(...) todos nós temos nossos traços neuróticos, todos temos momentos ilógicos, por menores e mais invisíveis que sejam. Todos temos medos, inseguranças, conflitos, ansiedades, sentimentos de culpa. Todos usamos os recursos dos mecanismos de defesa para proteger o nosso ego, a nossa auto-estima (p. 21)”.


A autora, logo em seguida, nos chamará atenção sobre o confronto necessário de nossa condição com a realidade dura do mundo:

“A verdade é que temos que crescer e enfrentar a realidade e a hostilidade do mundo, mas, no fundo de nós, habitará sempre a criança impotente diante de um mundo, de uma natureza e de um infinito que não compreende. Habitará sempre em nós a consciência de que nada é permanente, de que tudo morre, deteriora-se e passa, até mesmo nós (ib.id.)”.


Ao enfocar, doravante, a neurose, terei sempre em conta a forma como me envolvo nas experiências afetivo-amorosas. São muitas as teorias sobre neurose (Teles, 2004, p. 22). Karen Horney, por exemplo, entende que os conflitos neuróticos seriam produtos da repressão da agressividade infantil, fato este que desencadearia a ansiedade básica, que persistiria e impregnaria a personalidade do indivíduo adulto. Por ansiedade básica, a psicóloga culturalista entende o sentimento de impotência e de solidão, que se origina na infância, em face de um mundo considerado hostil. A criança, impotente e solitária, confronta-se com o mundo que considera hostil.
Para Teles, há, na neurose, um desacordo, uma discrepância entre o “eu real” e o “eu ideal”. A autora refere várias características do comportamento neurótico, entre as quais estão: sentimentos de insatisfação difusa, insegurança, inadequação, inferioridade, inibições exageradas, tensão, conflitos sem solução, dependência constante da aprovação e do afeto de outrem e excessiva proteção contra todos e contra tudo (p. 28).
O comportamento neurótico é desencadeado sempre que, irrompendo um desacordo entre o eu e o mundo, o indivíduo não é bem sucedido na busca por recursos que restaurem a conciliação entre ambos. A neurose pressupõe um comportamento em descompasso com a dinâmica dos comportamentos aceitos ou bem avaliados com base nos padrões culturais de uma sociedade. A pessoa neurótica, observa Horney, buscará solucionar seus conflitos, mas ao fazê-lo, as medidas tomadas serão menos satisfatórias do que as dos demais indivíduos. Essa busca é feita à custa de muito dispêndio de energia e de grandes sacrifícios para a personalidade. Horney, em A personalidade neurótica de nosso tempo (p. 22), define a neurose como um distúrbio psíquico decorrente de medos e defesas empregadas contra esses medos, distúrbio que se caracteriza por tentativas de buscar soluções para os conflitos.
Uma constante nas neuroses são os conflitos. Eles se dão no interior do eu do indivíduo, em grande parte inconscientemente. Os conflitos incluem o medo e a agressividade, os sentimentos de culpa e a necessidade de amor (que pode tornar a pulsão sexual em obsessão). Desses conflitos resulta um estado constante de ansiedade, que se acompanha de perturbações físicas ou mesmo de entorpecimento emocional, caso da depressão. O doente neurótico ignora os desejos recalcados. Por recalcamento, entende-se um tipo de repressão completa, isto é, a proibição à representação de uma pulsão (em geral, sexual ou agressivo) na consciência. Os conteúdos recalcados, ou seja, afastados completamente da consciência (por serem causa potencial de desprazer ou punição) permanecem inconscientes.
É possível também pensar a neurose, como o faz Freud, como uma doença da libido. Nesse caso, ela surge como consequência da ruptura do equilíbrio entre a libido e o eu. A neurose é, assim, um fracasso do recalcamento. Ainda que eu pudesse me esforçar por desenvolver um pouco mais essa ideia, tal me levaria muito longe. Há vários tipos de neurose e eu não suponho padecer de vários tipos, evidentemente. Um tipo, entretanto, me despertou a atenção; trata-se da neurose objetiva. Nela o conflito psíquico se exprime por sintomas considerados compulsivos (ideias obsessivas, compulsão à realização de atos penosos, ritos, etc.), mas também por um pensamento submetido à ruminação mental, à dúvida e a inibições de toda sorte. Por vezes, me apercebo de que fico a ruminar ideais que provocam muita ansiedade, a alimentar dúvidas que engendram muita insegurança e medo. Essas ideias estão quase todas ligadas às experiências sexuais-afetivas ou amorosas.
Neste instante mesmo, em que o silêncio entre mim e ela permanece intocável, esforço-me, na elaboração deste texto, por domesticar minha ansiedade, por defender-me contra o medo que ela envolve. Há dúvidas que me fustigam a alma, nesse momento; e receio saber a verdade sobre a condição de nosso relacionamento de amor promitente.
A relação que a criança estabelece com seus pais, nos primeiros anos de vida, exercerá um papel importante também nas escolhas amorosas em sua fase adulta. O indivíduo, portanto, então adulto, buscará nas suas escolhas amorosas a forma da relação amorosa experienciada com seu pai e sua mãe. Essa relação amorosa acabará por ser um modelo para as suas experiências amorosas futuras com outrem.
Ainda implicada na questão da neurose, há que se destacar a importância da tendência neurótica. Ela diz respeito à organização de tendências que visam à segurança máxima do eu, quer no sentido de aproximar-se das pessoas, quer no sentido de afastar-se delas, quer ainda no sentido de opor-se a elas.
Decerto, os livros não nos salvam. Não nos livram de nossas tendências neuróticas. Eles não impedem a nossa infelicidade, as nossas decepções, não evitam nossos embaraços, tampouco nossos medos. Pelo menos, no entanto, eles nos munem do conhecimento indispensável para manter-nos conciliados com o mundo ou com nossa libido.
Eis um princípio básico da psicanálise, enunciado por Freud, e que o leitor não pode esquecer: o homem não é o senhor de si. Freud escreveu, na verdade, “O eu não é o senhor em sua própria casa”, visto que sua vida consciente é determinada por forças inconscientes que lhe são ignoradas e que lhe escapam ao controle. Ou seja, não somos senhores absolutos de nossos atos; uma grande parte das causas de nosso comportamento é desconhecida. Não estamos totalmente no controle de nossa vida psíquica. O eu não é o responsável por todos os seus pensamentos; há pensamentos que assomam à consciência que não são de responsabilidade do "eu".
Algumas palavras sobre o inconsciente se fazem necessárias, doravante. Para Freud, o inconsciente é a verdadeira realidade psíquica, é sua natureza mais íntima e mais estranha. Trata-se de uma realidade muito desconhecida de nós. Embora possamos pensar o inconsciente lançando mão da metáfora do iceberg, de modo que a parte maior, que fica submersa, corresponde ao inconsciente, ao passo que a parte menor, que fica à tona, é a consciência, importa entender o inconsciente como uma hipótese psicanalítica, pela qual se explica a estrutura da vida emocional do indivíduo. Por outro lado, o inconsciente é também um sistema lógico que opera na mente das pessoas. Ele é estruturado como uma linguagem (Lacan).
O inconsciente é o próprio psiquismo, é a base fundamental da vida psíquica; nele se encontra concentrada a totalidade da energia libidinal. Como é no inconsciente que se encontram as representações e desejos recalcados, ele é o próprio recalcado. Freud supunha que nossa vida psíquica consciente é inteiramente determinada pelo inconsciente. Duas ideias me parecem fundamentais para que compreendamos o inconsciente: a primeira é que ele é desconhecido de nós; o que foi recalcado não nos é acessível; as forças que atuam sobre o eu, forças inconscientes, nos são estranhas. A segunda ideia toca ao fato de que, no inconsciente, os conteúdos de nossas vivências pessoais jazem reprimidos e esquecidos. Como o inconsciente é responsável por determinar nossa vida psíquica consciente, o eu não pode ser senhor de sua casa, não pode estar no domínio pleno da estrutura psíquica. Toda a atividade do inconsciente tende para o prazer e busca evitar o desprazer. O inconsciente é regido pelo princípio do prazer.
E já são sete horas desta noite que segue arrastando minhas dúvidas e cozinhando-as na caldeira de meu coração. Receio não conseguir considerar a problemática do sujeito psicanalítico, questão cujo desenvolvimento seria indispensável à compreensão do sujeito como necessariamente cindido. Basta dizer que o sujeito não pode ser pensado e definido fora do âmbito da linguagem. Ele é um sujeito situado no domínio social e, como tal, se constitui na relação com o outro (pelo imaginário) e com o Outro no campo da linguagem. O “Outro” (com maiúscula) é uma categoria proposta por Lacan e compreende não só o adulto mais próximo, mas também a estrutura de significantes dessa ordem social e cultural que ele encarna – ordem estruturada por ideologias, valores, significações. Esse Outro pertence à ordem do simbólico. Esse Outro é a estrutura material e simbólica dessa ordem social e cultural (que, como disse, se constitui de valores, crenças, significações, ideologias, etc.). O outro (com minúscula), por sua vez, é o meu ego alterado, é um alter-ego, no qual projeto minha própria imagem. É nesse outro que o eu encontra uma imagem idealizada de si mesmo. O sujeito da psicanálise é sujeito do inconsciente. Ele se constitui numa relação simbólica com o Outro e imaginária com o outro. Esse Outro do inconsciente me determina como sujeito. Saliento que esse Outro que me determina como sujeito, que é o Outro do inconsciente e que encarna toda uma ordem social e/ou cultural, é desconhecido de mim como sujeito.
Agora, começarei a tatear uma questão que se me apresenta emaranhada. Eu não sou a pessoa suficientemente competente para avaliá-la, é claro. No entanto, em alguns lampejos de consciência, seus contornos me parecem nítidos. Trata-se da questão da sexualidade. Começo logo rechaçando o equívoco em reduzi-la ao coito. Também não pode compreender apenas zonas erógenas e órgãos sexuais. Não se reduz ao prazer do sexo. Em psicanálise, a sexualidade toca à totalidade dinâmica do ser humano, definindo-o tanto como organismo físico quanto como ser psíquico. A sexualidade penetra-lhe o ser mesmo.
A energia que está na base dos impulsos sexuais chama-se libido. Os sintomas neuróticos funcionam como formas de satisfação substitutivas dos desejos sexuais recalcados. Na sublimação, as pulsões sexuais são desviadas do objeto sexual e orientadas para atividades socialmente valorizadas (trabalho, arte, literatura...). Segundo Freud, toda sociedade exige de seus indivíduos sacrifício de seus instintos sexuais em favor do trabalho ou de outras atividades elevadas socialmente.
Sinto que recaiu um véu, neste instante, sobre o curso da história do desenvolvimento de minha sexualidade. Eu é que lanço este véu, quer porque esteja cansado, quer porque me custa me deter a pensar sobre ela. O leitor, quiçá, não esteja mais frustrado do que eu. 

sexta-feira, 19 de abril de 2013

"A religião é a essência infantil da humanidade." (Feuerbach)


                     

                     
                           Feuerbach e o mistério de Cristo
                                           Uma leitura

 
Ludwig Feuerbach (1804-1872) elaborou uma filosofia materialista cujo sistema afirma só existir o homem e a natureza. Sua filosofia mantém que deuses são meros reflexos dessa realidade. Só há a realidade sensível e a realidade fundamental é a natureza. O ser sensível é o ser verdadeiro, é o ser real.
Não parece haver dúvidas de que sua crítica mais radical à religião, especificamente à religião cristã, foi desenvolvida em sua obra A Essência do Cristianismo (1841). Nessa obra, Feuerbach expõe ou disseca os mecanismos ideológicos em que se alicerça a natureza antropomórfica do cristianismo. Na verdade, Feuerbach se esforçará por demonstrar a natureza antropomórfica do Deus cristão. Mas o antropomorfismo do cristianismo não é evidente, porque sob a bruma da ideologia. Somente o exame crítico poderá desnudá-lo. Feuerbach reduzirá a teologia à antropologia e mostrará que todas as qualidades atribuídas a Deus são qualidades referentes aos homens. Lembre-se, de passagem, que, durante este trabalho de desmascaramento de Deus, ele não hesitará em identificar Deus com o homem:

“Deus é homem, o homem é Deus; não sou eu, é a própria religião que renega o Deus que não é homem, mas somente um ens rationis” (p. 29).


Feuerbach advogará que a religião se estriba na diferença fundamental entre os seres humanos e os animais. A diferença a que ele se refere é a consciência. Observando que os animais não têm religião, o filósofo alemão argumentará que é somente o homem, enquanto ser dotado de consciência (superior), que torna, graças a sua consciência, a sua essência objeto do próprio pensamento. A consciência do homem é, portanto, responsável por transformar o próprio ser ou essência em outro objeto. Na religião, esse outro objeto produzido pela consciência humana e projetado para fora do ser mesmo do homem é Deus. Veremos como Feuerbach definirá Deus, no capítulo cuja leitura eu desenvolvo e apresento neste texto. É preciso deixar claro que Feuerbach não dá uma definição de Deus apenas; na verdade, ao longo de sua obra, Deus será definido ou pensado de modos variados, sem, contudo, deixar de reduzi-lo à realidade humana. A realidade de Deus é o homem. Em Feuerbach, não é Deus que cria o homem, mas o homem quem cria a Deus.
Neste texto, proponho, portanto, uma leitura do capítulo O mistério do Cristo cristão ou do Deus pessoal – décimo sexto capítulo de A Essência do Cristianismo (2009). Meu objetivo também é incitar no leitor que não conhece este trabalho de Feuerbach o interesse por lê-lo; com o leitor familiarizado com a obra, meu objetivo é instaurar um espaço de diálogo.
A afetividade é o termo-chave na base do qual o caminho interpretativo deverá ser construído. É ele, no texto de Feuerbach, um conceito basilar para a sua compreensão do mistério de Cristo como Deus pessoal. Esse termo reaparecerá, pois, em vários momentos, neste texto.
Vou começar, então, referindo dois trechos do texto de Feuerbach, me detendo em cada qual deles, a fim de analisar o percurso argumentativo iniciado pelo autor.

“Os dogmas fundamentais do cristianismo são os desejos realizados pelo coração – a essência do cristianismo é a essência da afetividade. É melhor sofrer do que agir, é mais agradável ser libertado e redimido por um outro do que libertar-se a si mesmo, é mais agradável fazer depender a própria salvação de uma outra pessoa do que da força da própria atividade, é mais agradável amar do que buscar; melhor saber-se amado por Deus do que amar-se a si mesmo com o amor próprio simples, natural e inato a todos os seres; é muito mais cômodo refletir-se nos olhos fulgurantes do amor do outro ser pessoal do que no espelho oco do próprio Eu ou do que contemplar a fria profundidade do oceano tranquilo da natureza; é mais cômodo deixar-se determinar pelo próprio sentimento como se fosse um outro ser, mas no fundo o mesmo, do que determinar a si mesmo pela razão” (p. 154, grifo meu).


Começo tomando para reflexão o termo afetividade. Nessa obra, alhures, Feuerbach define a afetividade como o Deus do homem; para ele, a essência da afetividade é Deus (p. 137). Deus é, então, deslocado de seu lugar de origem para outro lugar: no princípio não é mais Deus, mas a afetividade do homem. Deus deixa o seu lugar como Origem para ocupar outro lugar: o da afetividade. Na verdade, Deus e a afetividade é um só no homem.

A afetividade é o Deus do homem; sim, o Deus em si, o ente absoluto. Deus é a essência da afetividade enquanto objeto para si mesma, a afetividade ilimitada, pura” (p. 137).


A afetividade, que compreende os afetos, os sentimentos, as emoções, é o que afeta o homem e o coloca numa relação de dependência e submissão em face desse outro. Dependência, submissão e passividade são atitudes que constituem os pilares da fé religiosa; numa perspectiva discursiva, são conceitos que estruturam a consciência religiosa. Feuerbach escreve: “É melhor sofrer do que agir, é mais agradável ser libertado e redimido por um outro do que libertar-se a si mesmo, é mais agradável fazer depender a própria salvação de uma outra pessoa do que da força da própria atividade, é mais agradável amar do que buscar; melhor saber-se amado por Deus do que amar-se a si mesmo com o amor próprio simples”. Aqui me parece claro o predomínio da passividade sobre a atividade. A submissão ou a dependência toma o lugar da autonomia. O sentimento também predomina sobre a razão:  “é mais cômodo deixar-se determinar pelo próprio sentimento como se fosse um outro ser, mas no fundo o mesmo, do que determinar a si mesmo pela razão”. Para Feuerbach, parece que só a razão poderia levar os homens ao exercício da autonomia.
A afetividade do homem comanda, ela é criadora. É ela que cria um outro ser, pessoal, a fim de evitar o encontro do homem com seu próprio “Eu” que é oco. O homem teme defrontar-se com a sua insignificância num universo sem alma. Por isso, ele cria a Deus para nele se reconhecer (não é o homem imagem e semelhança de Deus?).
É o sentimento do homem que se torna, em sua consciência, um outro ser (Deus), muito embora seja este ser o próprio sentimento do homem. Assim, o homem se deixa determinar por esse sentimento, que foi alienado de si. A alienação, em Feuerbach, que é alienação religiosa, é justamente o fato de o homem projetar para fora de si a sua essência na forma de um Outro ser, que se define numa relação de negação com o homem. Deus encllipsa a essência do homem. O homem, na alienação religiosa, não se reconhece como o verdadeiro autor de Deus. Há uma inversão: diante de Deus, o homem religioso alienado se considera uma criatura, reservando a Deus o lugar de criador.
Penso que, para Feuerbach, Deus é o sentimento que o homem tem de si, mas um sentimento que, alienado, assume a forma de uma alteridade.
Na mesma página 154, Feurbach prosseguirá:

“A afetividade transforma a voz ativa do homem numa voz passiva e a passiva numa ativa”.


O homem cuja voz ativa se torna voz passiva é o homem que perde autonomia. A voz passiva é a voz da dependência. Por outro lado, o que antes era voz passiva (Deus é criado) torna-se voz ativa (Deus cria). Voz ativa de Deus é autonomia de Deus; voz passiva do homem é dependência do homem. É na afetividade que essa inversão se estabelece. E continuará Feuerbach:

“(...) o que pensa é para a afetividade o que é pensado e o que é pensado é o que pensa”.


O que pensa ou aquele que pensa é o homem; todavia, para a afetividade, como matriz ideológica, o homem se torna objeto (ele é a criatura); e Deus, que é pensado (porque produto da consciência humana), é aquele que pensa (agente, voz ativa). Deus é criador (pensa); o homem é criatura (pensado em relação a Deus). Quando o homem se pergunta “Quem sou eu?”, ele é pensado por Deus, que diz: ‘És uma criatura por mim criada!.’ Prossigamos com Feuerbach,

“A afetividade é de natureza onírica, por isso não conhece ela nada mais agradável, mais profundo do que o sonho. Mas o que é o sonho? É a inversão da consciência em estado de vigília”.


Aqui, Feuerbach diz ser a afetividade sonho. A consciência religiosa se funda numa inversão (mundo-homem-Deus aparece à consciência religiosa de modo invertido, de tal sorte que no princípio está Deus, depois o mundo e o homem). A consciência religiosa está submersa num sonho profundo. No mundo onírico em que vive a consciência religiosa, o homem ativo se torna passivo (submetido, dependente, criado); e Deus, que é passivo (é ele criado, pensado pelo homem), se torna ativo (ele cria, ele pensa, determina). No sonho (sonho religioso), os homens concebem as representações de si mesmos como representações exteriores a si. No sonho religioso, Deus não é mais a essência da afetividade do homem, mas um outro ser cuja existência independe do próprio homem.

“No sonho o ativo é o passivo e o passivo é o ativo; no sonho eu apreendo as minhas autodeterminações como se fossem determinações vindas de fora, as emoções como acontecimentos, as minhas ideias e sentimentos como entidades fora de mim, eu sou o passivo do meu próprio ativo”.


Esse ativo no homem é sua afetividade, que cria, que produz, que comanda. Feuerbach concluirá:

“O sonho refrata duplamente os raios de luz, daí a sua indescritível magia. É o mesmo Eu, o mesmo ser tanto no sonho quanto na vigília; a diferença é apenas que na vigília o Eu se determina a si mesmo e no sonho é determinado por uma outra coisa. Eu me penso como pensado por Deus – é afetivo, é religioso”.


O mesmo Eu que figura tanto no sonho quanto na vigília é o homem: porque Deus é o homem, e não há nada além do homem. Na vigília, o Eu goza de autonomia; no sonho, não; no sonho, ele é assujeitado. Quando Feuerbach escreve “eu me penso como pensado por Deus”, ele quer dizer “eu homem sou a criatura”. É Deus quem pensa no homem, pensando-o como criatura e o homem assim é definido em relação a Deus criador.

“A afetividade é o sonho de olhos abertos; a religião é o sonho da consciência desperta: o sonho é a chave para os mistérios da religião”.


A afetividade, agora, é o sonho na vigília. A religião é o sonho da consciência em estado de vigília. O sonho desfaz o mistério da fé religiosa. O mistério de Deus se esfacela quando compreendemos que nada mais é do que a consciência humana que sonha em estado de vigília. O paradoxo é bastante revelador, nesse caso, porque a consciência de Deus é a consciência do homem desperto imersa em sonho profundo.

Comecemos, doravante, a, com Feuerbach, pensar o mistério de Cristo ou do Deus pessoal. Para tanto, não perderemos de vista o papel fundamental da afetividade, anunciado no limiar destas reflexões.
Tenho insistido na ideia de que a afetividade comanda. Entendo que é ela que comanda a consciência religiosa. Esse caráter de comando parece ser confirmado na concepção que tem Feuerbach dela. A certa altura, o filósofo a entenderá numa perspectiva legislativa; a afetividade estabelece uma lei e a lei mais elevada da afetividade é, segundo ele, “a unidade imediata entre a vontade e a ação” (p. 155). Quem realiza essa lei é o Redentor, que é o Deus-feito-homem, ou seja, a consciência. Essa lei determinará, portanto:

“Basta que te comportes passivamente, basta que creias, que gozes. Pretendes atrair Deus para ti, para aplacar a sua cólera, ter paz com tua consciência. Mas esta paz já existe, esta paz é o Mediador, o Deus-homem – ele é a tua consciência tranqüilizada, o cumprimento da lei e, assim, o cumprimento do teu próprio desejo e anseio” (p. 155).


A lei cristã é lei visível, encarnada em Cristo. Cristo é o mediador, um homem que é ao mesmo tempo Deus e um Deus que é ao mesmo tempo homem. Para Feuerbach, Deus enquanto afetividade se objetiva em Cristo e somente em Cristo a afetividade se torna certa e segura de si mesma. É Cristo que liberta a alma da opressão e torna a afetividade feliz (p. 157). Em Cristo, a divindade se torna visível.

“Ver a Deus é o supremo desejo, o supremo triunfo do coração” (p. 157).

Um Deus apenas pensado é um Deus distante e abstrato; Cristo supera a abstração de Deus na consciência humana, de modo que Deus se torna carne, conhecido, pessoal em Cristo.

“A humanidade de Deus é a sua personalidade; Deus é um ser pessoal significa Deus é um ser humano, Deus é homem”. (p. 158)


Novamente, explicita está, no trecho acima, afirmação de que Deus é o homem. A realidade de Deus é o homem, seu fundamento é o homem.
Feuerbach seguirá argumentando que a afetividade anseia por um Deus pessoal. O anseio é, segundo ele, a necessidade da afetividade. Isso significa dizer que não está em questão, para a afetividade, a existência de Deus. Na afetividade ou para ela, é necessário que Deus exista. O anseio da afetividade por Deus se exprime na asserção: “Deus existe necessariamente”.  Atente-se para a significação antropológica de Cristo. Vamos procurar compreendê-la:

“Cristo é o Deus conhecido pessoalmente, Cristo é, portanto, a feliz certeza de que Deus existe e que existe da maneira que a afetividade quer e necessita que ele exista. Deus enquanto objeto da oração já é um ser humano por participar da miséria humana, por ouvir desejos humanos, mas ainda não é objeto para a consciência religiosa como um homem real. Portanto, somente em Cristo, realiza-se o último desejo da religião, somente nele é resolvido o mistério da afetividade religiosa (mas resolvido na linguagem simbólica própria à religião), pois tudo que Deus é em essência torna-se em Cristo uma manifestação (...)” (p. 158).


Consideremos o valor de Cristo e da afetividade, tal como entendido nesse excerto. Cristo é a forma de revelação pessoal de Deus. É também a garantia para a consciência religiosa de que Deus existe. A afetividade é que deseja a existência de Deus e carece dela. Deus, enquanto essência do homem, encarna-se em Cristo. Cristo torna Deus visível ao homem; em outras palavras, Cristo torna a essência do homem visível ao próprio homem.
É no sofrimento de Cristo, entenderá Feuerbach, que Deus participa da miséria humana, que Deus se torna humano e sentimental. É em Cristo que Deus se torna um Deus pessoal.

“A personalidade plástica é somente em Cristo. A personalidade exige forma; a forma é a realidade da personalidade. Somente Cristo é o Deus pessoal – ele é o Deus verdadeiro, real dos cristãos, o que não pode ser repetido frequentemente. Somente nele se encontra a religião cristã, a essência da religião em geral. Somente ele corresponde ao anseio por um Deus pessoal; somente ele é uma existência correspondente à essência da afetividade; somente nele se esgota a afetividade e a fantasia” (p. 160).


Compreende-se, pois, em que medida Cristo, segundo Feuerbach resolve o mistério da afetividade religiosa. Lembremos que a afetividade deseja que Deus exista e tem necessidade de sua existência; mas esse Deus desejado, do qual tem necessidade o coração humano, não pode ser um Deus distante, abstrato. Tem de ser um Deus pessoal, dotado, pois, de uma personalidade exclusiva; tem de ser um Deus que se rebaixe ao humano para participar de seu sofrimento e miséria. De que modo isso poderia acontecer? Para a afetividade, mantendo que Cristo é o Deus encarnado, portanto, pessoal, visível, humano. Escreverá Feuerbach nesse tocante o seguinte:

“A última prova, salientada pelo autor do quarto evangelho com especial ênfase, de que a pessoa visível de Deus não foi um fantasma, uma ilusão, mais sim um homem real, é que fluiu sangue do seu corpo na cruz. Sendo o Deus pessoal uma legítima necessidade do coração, deve ele próprio sofrer necessidade. Somente em seu sofrimento está a certeza da sua realidade; somente aí está a ênfase especial na encarnação” (p. 159).


O sangue de Cristo sacia a sede da afetividade por um Deus pessoal, humano e compassivo. Para Feuerbach, “Cristo é a unidade de afetividade e fantasia” (p. 160). No cristianismo, portanto, fantasia e coração são inseparáveis. A fantasia realiza os desejos da afetividade, satisfaz as necessidades do coração. Para Feuerbach, o poder da fantasia é o poder do coração; “a fantasia é apenas o coração vitorioso, triunfante” (p. 161).
Os milagres no cristianismo são produtos da fantasia, que é inseparável do coração. Eles exercem uma influência irresistível sobre o “homem afetivo”, ou seja, o homem que se deixa afetar, que se deixa guiar pela afetividade. O poder mais elevado da fantasia se expressa quando ela se une ao coração. Para Feuerbach, é Cristo a união entre a liberdade da fantasia e a necessidade do coração.

Todas as coisas são subordinadas a Cristo; ele é o Senhor do mundo que dele faz o que quiser; mas este poder que impera ilimitadamente sobre a natureza está por sua vez subjugado ao poder do coração. Cristo ordena que se silencie a natureza furiosa, mas somente para ouvir os suspiros do sofredor (p. 161).


Ao impor silêncio à natureza furiosa, Cristo pode compadecer-se do sofrimento humano. O coração do homem religioso deseja ardentemente que o mundo tenha sido criado para tornar-se o seu lar, tenha sido criado segundo as suas medidas. No homem religioso, é o coração que comanda, a ele está submetido o próprio poder de governo de Cristo sobre a natureza. O coração do homem é a morada onde a necessidade de Deus se casa perfeitamente com a certeza de sua existência.
A afetividade, a seu turno, só tem necessidade do anseio. Ela repudia a razão e a natureza, ao mesmo tempo em que proclama a necessária existência de Deus.




segunda-feira, 15 de abril de 2013

"O discurso religioso é um discurso autoritário"


     


                              O discurso religioso
                     À luz da Análise do Discurso


Neste texto, pretendo analisar um trecho colhido do Catecismo da Igreja Católica (2000), com base no tratamento dispensado por Orlandi (2006) ao discurso religioso. Para a realização dessa tarefa, apresentarei, num primeiro momento, os conceitos e postulados teóricos sobre os quais se assenta a reflexão desta autora sobre o discurso religioso, tipificado como discurso autoritário. Num segundo momento, analisarei o trecho do Catecismo à luz da abordagem teórica de Orlandi.
Em princípio, creio necessário dar a saber alguns pressupostos atinentes à linguagem, ao discurso e à ideologia. O desenvolvimento de minhas reflexões se estriba na concepção de linguagem como forma de ação social, historicamente situada. Como forma de ação social, a linguagem é constituída socialmente, mas também é responsável pela constituição de identidades sociais, relações sociais e sistemas de crença e conhecimento.
O discurso, a seu turno, longe de ser produção de informações, constitui uma etapa da prática social. Ele é responsável pela constituição, reprodução e mudança das estruturas sociais. Destarte, entendo o discurso como uma prática social que molda a estrutura social e, ao mesmo tempo, é moldada por ela. O discurso é, portanto, com Fairclough (2001), tanto forma de ação social através da qual as pessoas agem umas sobre as outras quanto forma de representação. A representação – deve-se frisar – se estabelece pela elaboração de conceitos e deve ser entendida como reconstrução do mundo, e não uma forma de “espelhá-lo”. O mundo do discurso não corresponde ao mundo tal como é, mas a um mundo reconstruído (textualizado). Não há uma realidade objetiva que o discurso deve simplesmente expressar ou espelhar; a realidade é construída na intersubjetividade discursiva. O discurso é um modo de ação sobre o mundo e a sociedade.
Ademais, assumo, com Orlandi, que o discurso é efeito de sentidos entre interlocutores (sujeitos) e que o social é constitutivo da linguagem. É porque o social é constitutivo da linguagem que ela produz a ilusão do sujeito e a imobilidade e unicidade do sentido; por outro lado, é porque a linguagem é fato social, que os sentidos podem ser muitos e diversos (polissemia).

“Então, os interlocutores, a situação, o contexto histórico-social, i.e., as condições de produção, constituem o sentido da sequência verbal produzida. Quando se diz algo, alguém o diz de algum lugar da sociedade para outro alguém também de algum lugar da sociedade e isso faz parte da significação (Orlandi, 2006, p. 26)”.


A relação entre o social e a linguagem também se expressa na ilusão do sujeito como fonte do que diz, ou mais precisamente, como fonte do sentido. No entanto, o sujeito que produz o discurso é também por esse discurso produzido; o sujeito acredita ser a única fonte do sentido, quando, na realidade, retoma sentidos preexistentes. Essa ilusão do sujeito deixa de existir quando reconhecemos que todo discurso, para produzir sentidos, deve pertencer a uma formação discursiva, que, por sua vez, é constituída de uma formação ideológica. A formação discursiva compreende os enunciados e as regras que tornam possível seu aparecimento, numa dada época e espaço social; compreende as condições de produção desses enunciados, que são definidas historicamente. Por meio desse conceito, busca-se explicar como cada enunciado tem seu lugar e sua condição de aparecimento e como as estratégias pelas quais cada um é produzido derivam do mesmo jogo de relações. Por formação ideológica entende-se “o conjunto complexo de atividades e representações que não são nem “individuais” nem “universais”, mas se relacionam mais ou menos às posições de classes em conflito umas com as outras (Pêuchex & Fuchs, 1990, p. 166)”.
Urge definir ainda dois outros conceitos, quais sejam, o de estrutura social e o de ideologia. A estrutura social é um termo que serve para explicar padrões de comportamento que são recorrentes e duradouros num sistema social. A estrutura social constitui um arranjo, uma organização, no interior da qual as representações coletivas de uma sociedade organizam as expectativas dos indivíduos num padrão de instituições sociais e de normas. Essas normas é que definem aquelas expectativas. As instituições, por sua vez, conformam as relações sociais. Estas, então, se estruturam de tal modo que os indivíduos assumem funções particulares na totalidade do social. Nesse sentido, a estrutura social supõe dois tipos de estruturas: estruturas institucionais e estruturas relacionais. Tal maneira de conceber a estrutura social é inspirada em Durkheim.
Como se sabe, a ideologia é um termo cuja significação varia consideravelmente segundo os teóricos que o empregam. Assumirei aqui a posição de Althusser, para quem a principal função da ideologia é a interpelação, ou seja, a constituição dos indivíduos em sujeitos, os quais ou se submetem ao sistema de dominação ou lutam contra ele. A ideologia, nessa perspectiva, visa à produção da hegemonia, fornecendo aos sujeitos sociais conceitos e imagens através dos quais eles compreendem a existência social. Com Althusser, a ideologia repousa sobre o princípio segundo o qual as ideias derivam da maneira como as coisas parecem ser; a ideologia leva os homens a aceitarem a obviedade das coisas e os desencoraja da atividade de construção do conhecimento e de reflexão.
Considero importante me deter um pouco mais na visão de Althusser sobre ideologia. Althusser define a ideologia como “uma representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (1985, p. 85). Portanto, o que os homens representam na ideologia não são as suas condições reais de existência, mas a sua relação imaginária com essas condições reais de existência. A ideologia é uma representação imaginária do mundo. Nas palavras de Althusser,

“É nesta relação que deve estar a “causa” que deve dar conta da deformação imaginária da representação ideológica do mundo real. (...) é a natureza imaginária dessa relação que sustenta toda a deformação imaginária observável em toda ideologia (p. 87)”.


Insisto neste ponto: o que os indivíduos representam na ideologia não são as suas condições reais de existência, mas sim a sua relação imaginária com essas condições. Voltarei a considerar a perspectiva de Althusser, mais adiante. Doravante, definirei os três tipos de discurso propostos por Orlandi, detendo-me, no entanto, a apontar as características do discurso autoritário, do qual o discurso religioso é um representante.
Orlandi, em Linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso (2006), no artigo intitulado de discurso religioso, distingue entre três tipos de discurso, a saber, o lúdico, o polêmico e o autoritário. Conquanto seja este último que me interessará, nessa exposição, definirei, com base no que ensina Orlandi, os dois primeiros. O tipo lúdico se caracteriza por uma expansão da polissemia e seu referente é mais transparente aos interlocutores. O tipo polêmico supõe um controle da polissemia, visto que os interlocutores procuram determinar a direção do referente. No discurso autoritário, a seu turno, a polissemia tende a ser contida, estancada, uma vez que o enunciador se pretende único responsável pelo sentido e procura ocultar o referente sob o que diz. Passarei a desenvolver mais pormenorizadamente a noção de discurso autoritário, doravante.
Começo notando que Orlandi propõe como um dos critérios para estabelecer a sua tipologia discursiva a reversibilidade. Ensinará a autora que a reversibilidade é condição do próprio discurso (p. 239). Disso se segue que não há discurso sem algum grau de reversibilidade. A reversibilidade nunca poderá atingir o grau zero, isto é, deixar de existir, sob pena de o discurso se romper. Mas o que é reversibilidade? Segundo Orlandi, por essa noção, evita-se fixar de modo categórico o locutor no lugar de locutor e o interlocutor no lugar do interlocutor. A noção supõe uma alternância entre locutor e interlocutor na produção/ compreensão do discurso. Os lugares de cada um dos participantes do discurso se definem na relação recíproca entre eles: o lugar do locutor se define pelo lugar do interlocutor e vice-versa. É nessa relação que o espaço da discursividade é definido.
Acima, disse que a reversibilidade não pode deixar de existir. No caso do discurso autoritário, a reversibilidade tende a ser diminuída. Em outras palavras, ela tende a se aproximar do grau zero, sem, contudo, atingi-lo. O discurso autoritário produzirá, então, uma ilusão de reversibilidade. Essa ilusão é necessária ao funcionamento desse tipo de discurso.
Outro critério com que Orlandi estabelece sua tipologia é o de polissemia. Antes, porém, de defini-lo e desenvolvê-lo, vou elencar as características do discurso autoritário:

a) trata-se de um discurso com forte marca de persuasão;
b) Nele mais evidentemente se expressa a dominação pelo uso da palavra;
c) A reversibilidade (eu-tu-eu) praticamente inexiste (na verdade, nele se produz a ilusão de reversibilidade);
d) O sujeito receptor (tu) se torna passivo, não podendo intervir no discurso de modo a modificar o que está sendo dito. Ele não tem autonomia para produzir outro sentido senão aquele já sedimentado na formação discursiva a que pertence o discurso;
e) Trata-se de um discurso que não aceita mediações e questionamentos;
f) Tende a monossemia e a voz da autoridade sobre o assunto dita as verdades;

O discurso autoritário é, portanto, o tipo de discurso que mais exibe suas formas de dominação. Podemos apontar também quatro traços que definem o discurso autoritário. O primeiro é a distância. A distância se expressa na atitude do enunciador em face do seu enunciado. Nesse caso, os referentes são apagados e a voz do enunciador é mais forte e se destaca. O segundo traço é o da modalização. Diz respeito ao grau de adesão do enunciador à validade ou valor de verdade de seu enunciado. A modalização se define pelo modo como o enunciador constrói seus enunciados. Nesse caso, o discurso autoritário se caracteriza pelo largo uso de formas de imperativo e por recursos parafrásticos. Claro é que há outras marcas, que apresentaremos mais adiante. O terceiro traço é o da tensão. Nesse caso, destaca-se a relação entre o enunciador e o enunciatário. O enunciador procura se impor ao enunciatário, deixando pouco espaço ou nenhum espaço para as respostas deste. A voz do enunciatário é calada; e a voz do enunciador é a de quem manda. O sujeito religioso (o receptor) não interpreta; tão-só repete a interpretação que lhe é imposta. O quarto traço é o da transparência. Aqui vale notar, de passagem, que, segundo Orlandi, a linguagem se caracteriza pela opacidade (os sentidos não estão “lá”, não “brotam” das palavras, não são auto-evidentes; mas resultam da relação do sujeito (que só existe pela ideologia) com a história (que não se confunde com datas, mas compreende os processos de produção e circulação dos sentidos). Não obstante a opacidade inerente à linguagem, os discursos autoritários tendem a ser mais transparentes, visto que seu produtor pretende que seu destinatário os compreenda mais rápido e facilmente. O grau de polissemia (a possibilidade de os sentidos serem múltiplos) é diminuído.
Consideremos, agora, o segundo critério a que me referi, qual seja, o da polissemia. Com Orlandi (p. 240), é lícito dizer que o discurso autoritário (e, portanto, o discurso religioso) tende a monossemia (produção de um único sentido). A polissemia, nesse caso, é contida, é mitigada. É preciso enfatizar, contudo, que devemos falar em “tendência à monossemia”, visto que todo discurso se relaciona com outros discursos; ademais, todo discurso é constituído por seu contexto imediato de enunciação e por seu contexto sócio-histórico; e é na relação entre formações discursivas e ideológicas que ele se estabelece. Daí que a polissemia não é completamente suprimida. Por definição, todo discurso é polissêmico, visto que os sentidos, que são múltiplos, escapam ao domínio do sujeito locutor. Mas, no discurso autoritário, há uma forte tendência para refrear a polissemia.

Althusser e o discurso religioso

Volto, portanto, à contribuição de Althusser, a fim de mostrar como este autor entende a estrutura formal da ideologia religiosa cristã. Para que compreendamos a visão de Althusser da ideologia cristã, devemos conhecer duas teses na base das quais suas reflexões se apóiam: 1) só existe prática através de uma ideologia; 2) só existe ideologia através do sujeito e para sujeitos. Assim, consoante Althusser,

“Deus define-se portanto a si mesmo como sujeito por excelência, aquele que é por si e para si (Sou Aquele que É) e aquele que interpela seu sujeito (...) eis quem tu és: és Pedro (Orlandi, 2006, p. 241)”.



Na visão de Althusser, apenas Deus nomeia e não é nomeado. O filósofo francês marxista distingue entre um Outro Sujeito único e uma multidão de sujeitos religiosos. Essa multidão é definida na relação com esse Outro que a transcende. Deus é o Sujeito e os homens são seus interlocutores, seus espelhos, seus reflexos. Como tais, eles são interpelados por Deus. Para Althusser, toda ideologia é especular, já que os sujeitos são submetidos ao Sujeito e nele se reconhecem. Desse modo, a ideologia garante: a) a interpelação dos indivíduos em sujeitos; b) a submissão desses sujeitos ao Sujeito; c) o reconhecimento mútuo entre sujeitos e o Sujeito, dos sujeitos entre si e do sujeito por si mesmo; d) a crença pelos sujeitos de que, uma vez reconhecendo quem são, tudo ficará bem.
Em Althusser, o sujeito tem, ao mesmo tempo, uma subjetividade livre e uma subjetividade submetida. Ele é autônomo, mas assujeitado, porque submetido a uma autoridade superior. A noção de livre-arbítrio revela aqui sua face contraditória: o sujeito precisa aceitar (livremente) sua sujeição. Os sujeitos se submetem ao Sujeito e por ele são reconhecidos. Orlandi vê na noção de livre-arbítrio uma coerção, que é do domínio simbólico.

“Em relação à coerção, não é nem necessário dizer que não se trata de força ou coerção física, pois a ideologia determina o espaço de sua racionalidade pela linguagem: o funcionamento da ideologia transforma a força em direito e a obediência em dever (p. 242)”.


Orlandi definirá, por conseguinte, o discurso religioso como aquele em que fala a voz de Deus. A voz de Deus fala na fala do padre, do papa ou do pastor. Por um processo de mistificação, a voz de Deus é subsumida na voz do padre (está no lugar de), “sem que se mostre o mecanismo pelo qual essa voz (a de Deus) se representa na outra. A mistificação é resultado do apagamento da forma como o representante se apropria da voz de Deus. Segundo Orlandi, a subsunção de uma voz pela outra é o “como se” desses discursos. O “como se” não se deve confundir com o “faz-de-conta”, visto que este se relaciona com o imaginário; aquele, com o simbólico.

“Assim, quando digo que a voz de Deus se fala no padre, é “como se” Deus falasse: a voz do padre é a voz de Deus. Essa é a forma da representação, ou seja, da relação simbólica (p. 244)”.


Urge notar que o representante da voz de Deus não pode modificá-la; ele também não goza de autonomia na forma como a conduzirá; o padre, ao apropriar-se da voz de Deus, ao enunciar o discurso do próprio Deus, se submete a essa voz. Segundo Orlandi, “há regras estritas no procedimento com que o representante se apropria da voz de Deus: a relação do representante com a voz é regulada pelo texto sagrado, pela igreja, pelas cerimônias” (p. 245). Na verdade, é o texto sagrado, é a igreja, são as cerimônias que falam na fala do padre. Sua fala é regulada por essas instâncias, as quais, por sua vez, não são senão a expressão da instância superior que é a voz de Deus. É a voz de Deus que ecoa dessas instâncias e nelas se revela, por meio da fala representativa do padre.
Como Orlandi considera que Deus fala na fala do padre, instaura-se, no discurso religioso, um desnivelamento fundamental na relação entre o locutor e o ouvinte: o locutor, que é o Sujeito, que é Deus, situa-se no plano espiritual; e o ouvinte é do plano temporal (os sujeitos religiosos, o homem). Segundo a autora,

“(...) locutor e ouvinte pertencem a duas ordens de mundo totalmente diferentes e afetadas por um valor hierárquico, por uma desigualdade em sua relação; o mundo espiritual domina o temporal. O locutor é Deus, logo, de acordo com a crença, imortal, eterno, infalível, infinito e todo-poderoso; os ouvintes são humanos, logo, mortais, efêmeros falíveis, finitos, dotados de poder relativo. Na desigualdade, Deus domina os homens (p. 243).”


Orlandi refere outras assimetrias, que se originam dessa assimetria básica entre essas duas ordens de mundo. Com base na oposição imortalidade/ mortalidade, os homens são instados (ou coagidos) a buscar a salvação pela fé. Dirá Orlandi que “o móvel para a salvação é a fé” (p. 243). Sabendo-se mortais, os homens deverão, pela fé, buscar a vida eterna. A assimetria instaura a não-reversibilidade: o homem não pode ocupar o lugar do Locutor, que é o lugar de Deus. A assimetria fixa a relação de interlocução no discurso religioso.
Vimos que há separação entre os planos espiritual e temporal. O padre que é a voz de Deus fala de um lugar determinado – do plano espiritual, o qual domina o plano temporal. Em virtude da separação fundamental entre os planos, instaura-se uma distância entre a voz de Deus e a voz do homem, ou entre a significação divina e a linguagem humana. A isso acrescenta Orlandi “e assim se mostra e se mantém a obscuridade dessa significação, inacessível e desejada (p. 245)”. A obscuridade abre caminho para diferentes leituras, mas, se elas ultrapassarem certos limites, são encaradas como transgressões, donde se seguem cismas, novas seitas, etc.
A interpretação da palavra de Deus tem de orientar-se por um conjunto de regras. Os sentidos não podem ser quaisquer uns. O discurso religioso, reitero, tende à monossemia. Por isso, a interpretação certa é a da Igreja, no caso do cristianismo. O texto é a Bíblia, considerada a palavra revelada de Deus; e as cerimônias é que determinam o lugar próprio dessa palavra.
A assimetria distingue dois grupos de interpretantes: na ordem temporal, figuram os representantes da Igreja (padres, Bispo e o Papa), os quais se relacionam com o sagrado; na ordem espiritual, encontram-se os mediadores (Nossa Senhora, os Santos). No tocante ao lugar de Jesus Cristo, ensina Orlandi:

“Nessa distinção, deve ocupar lugar à parte Jesus Cristo; sendo o Deus que habitou entre os homens, não é nem representante nem mediador. Sua natureza é particular, pois, embora seja a parte acessível de Deus, é o próprio Deus (p. 246)”.


Orlandi mantém que, mesmo quando o cristão pode falar diretamente com Deus, a não-reversibilidade se mantém. Segundo a autora, isso não modifica o seu poder de dizer (p. 247). A sua fala é ritualizada, é preestabelecida. Há fórmulas convencionais para se dirigir a Deus, ainda que a relação com este se assente na familiaridade. O eu-cristão lançará mão de orações ou expressões mais ou menos cristalizadas ao se dirigir a Deus.
A autora observa ainda que o estatuto jurídico dos interlocutores se mantém: a onipotência divina contrasta com a submissão humana. Dizer que o estatuto jurídico não se altera é dizer que o poder de dizer é o mesmo. Abaixo, lemos como a autora descreve a relação assimétrica entre o homem e Deus:

“Como a dissimetria se mantém, é preciso que os homens, para serem ouvidos por Deus, se submetam às regras: eles devem ser bons, puros, devem ter mérito, ter fé, etc. É preciso, pois, que eles assumam a relação da dualidade, a relação com o Sujeito diante do qual a alma religiosa se define: esses sujeitos, para serem ouvidos, assumem as qualidades do espírito, qualidades do homem que tem fé (p. 247)”.


Orlandi não distingue entre discurso teológico e discurso religioso, muito embora ela aponte a distinção tradicionalmente feita entre esses dois discursos: o primeiro sendo mais formal do que o segundo e destinado a sistematizar dogmaticamente as verdades religiosas; ao contrário, o segundo seria aquele caracterizado por uma relação espontânea e direta com o sagrado. Como a não-reversibilidade se conserva em ambos os tipos de discurso, a autora não vê por que distingui-los.
A título de registro – embora não seja esta uma questão que me ocupa aqui -, vale dizer, com Gramsci, que a homogeneidade ideológica na religião mascara a multiplicidade de religiões distintas e, não raro, contraditórias. Mesmo no domínio de uma mesma designação religiosa, como o catolicismo, é possível distinguir um catolicismo dos camponeses, um catolicismo das mulheres, um catolicismo de intelectuais, por vezes, velado e incoerente (Orlandi, p. 248).
Vimos que a religião se estrutura numa série de dualismos (mortalidade/ imortalidade; homem/Deus; mundo espiritual/ mundo temporal, etc.). Outro dualismo estabelecido pelo sistema ideológico da religião é o que se instaura entre o Homem e a Natureza. Nesse caso, o Homem, tomando na relação com Deus, é puro espírito. Devo notar que essa é a interpretação de Orlandi, da qual tenho de discordar. Não nego que há uma ênfase na dimensão espiritual humana que é posta em contraste com a materialidade da Natureza. Não nego que a Natureza constitua um outro mundo (um mundo exterior), objetivo, em contraste com o Homem, que encerra uma dimensão espiritual. No entanto, o homem também é atravessado por uma dualidade: é corpo e é espírito. A dimensão corpórea é desvalorizada em face da dimensão espiritual. Disso se segue que o corpo seja, simbolicamente, sobrepujado pelo espírito. Para Orlandi, no que a acompanho, o dualismo homem/natureza e matéria/espírito torna possível a ligação entre os planos temporal e espiritual.
Duas noções devem ser referidas e compreendidas aqui na sua relação com o homem e Deus. São elas a de espírito e a de . O espírito torna possível a relação entre o homem e Deus. A fé é uma das qualidades do espírito e é através dela que o homem pode alcançar a salvação. Como a condição humana é uma condição de pecado, a fé torna-se o caminho para que o homem se liberte dessa condição e alcance a salvação.
Mas é sempre bom insistir que, não obstante o valor da fé, ela não elimina a não-reversibilidade do discurso religioso. Segundo Orlandi, “a fé é uma graça recebida de Deus pelo homem” (p. 250). A fé não provém do próprio homem, mas de Deus. Se é somente pela fé que o homem pode alcançar a salvação, é a fé também responsável por instaurar divisões, quais sejam, entre os fiéis e os não-fiéis, entre os eleitos e os não-eleitos. A fé delimita a comunidade religiosa e define o escopo do discurso religioso, de tal sorte que “para os que creem, o discurso religioso é uma promessa, para os que não creem é uma ameaça” (ib.id.).
Do exposto acima, se conclui que a fé se assenta no princípio da exclusão. E a Igreja é o espaço onde se realiza a exclusão: “os que pertencem a ela (os que acreditam) e os que não pertencem (os que não acreditam). A Igreja é depositária da leitura correta dos textos sagrados, é ela que detém a palavra da salvação, e é ela que administra os sacramentos. Orlandi conclui que a fé comprova a não-reversibilidade do discurso religioso, uma vez que ela é um dom divino e está submetida à Igreja e ao conjunto de suas leis.
Não tenho a intenção de recobrir, nessa atividade de reescrita, todo o trabalho de Orlandi, de modo que algumas outras questões aventadas e discutidas pela autora ficarão de fora desse texto. Não tenciono esgotar o assunto, portanto. Antes de passar à análise do fragmento do Catecismo, terei de referir as formas como a ilusão de reversibilidade se apresenta. Observa Orlandi que a ilusão de reversibilidade se manifesta na visão, na profecia, na performatividade das fórmulas religiosas e na revelação.
A ilusão se expressa na passagem do plano temporal para o espiritual. Ela pode tomar duas direções: uma de cima para baixo, caso em que Deus compartilha com os homens suas propriedades; e uma de baixo para cima, caso em que o homem se eleva a Deus, assimilando suas qualidades (onipotência, onipresença, onisciência, eternidade, etc.). Nesse caso, estão a profecia, a visão e o misticismo. Ai se encontram o profeta, o vidente e o místico.
Por outro lado, no caso em que Deus se rebaixa até o homem e partilha com ele suas qualidades, se acham as fórmulas performativas: a infabilidade do Papa, a possibilidade de ministrar sacramentos, a consagração da missa, as bênçãos, os exorcismos, etc.
Para Orlandi, a noção de milagre também corrobora a ilusão de reversibilidade, dado que aí também se dá a passagem de um plano a outro. No milagre, se articulam a interferência de Deus e o cientificamente inexplicável.
Ainda, segundo a autora, na religião o poder da Palavra é evidente e a Palavra consolida a assimetria. Escreverá a autora “o poder da palavra está bem distribuído e regulado na relação entre o homem e Deus”, disso se segue que a Deus se associam atos linguísticos performativos tais como “institui”, “interpela”, “ordena”, “regula”, “salva”, “condena”, etc., ao passo que ao homem se ligam atos como “respondem”, “pedem”, “agradecem”, “desculpam-se”, “exortam”, etc.
No tocante à não-reversibilidade, nota a autora que ser representante, no discurso religioso, é estar no lugar de, e não estar no lugar próprio. Aqui se nota uma diferença fundamental entre o discurso religioso e os demais tipos de discurso: nestes, os lugares dos interlocutores são disputados e há uma “retórica de apropriação”. O sujeito é suficientemente competente para falar do lugar que lhe cabe. Por exemplo, quando o professor, antes aluno, passa a falar como professor, em virtude de ter obtido um diploma que o qualifica para tanto. Logo, ele, professor, falará do lugar que lhe é próprio. Orlandi observa que sucede diferente no caso do discurso religioso.

“O representante, ou seja, aquele que fala do lugar de Deus transmite Suas palavras. O representa legitimamente, mas não se confunde com Ele, não é Deus. Essa, do meu ponto de vista, é a expressão fundamental da não-reversibilidade. E daí deriva a “ilusão” como condição necessária desse tipo de discurso: o como se fosse sem nunca ser (p. 253)”.


Decerto, há outros fenômenos envolvidos no discurso religioso, que a autora considerou em seu artigo, tais como a interdiscursividade, a intertextualidade, a blasfêmia, a marca e a propriedade, as antíteses, a estrutura retórica (exortação- enlevo-salvação). Como este texto excedeu o número de linhas desejável para a sua divulgação num blog, não me ocuparei desses fenômenos aqui. Passarei, então, a analisar o excerto do Catecismo, para o que me baseio na proposta de Orlandi.

Uma amostra de análise


RESPOSTA DO HOMEM A DEUS

ARTIGO 1
       EU CREIO

“Obedecer (...) na fé significa submeter-se livremente à palavra ouvida, visto que sua verdade é garantida por Deus, a própria Verdade. Desta obediência, Abraão é o modelo que a Sagrada Escritura nos propõe, e a Virgem Maria, sua mais perfeita realização”.
(2000, p. 48)


De imediato, noto que o título Resposta do Homem a Deus é já expressão da assimetria entre Deus e o homem. Como vimos, enquanto Deus interpela, o homem precisa responder. E a resposta do homem supõe sua “submissão livre” à palavra de Deus, portadora da Verdade. A Verdade de Deus não pode ser questionada. Na verdade, submetido à palavra de Deus, o homem não está em condições de questionar; a ele cabe apenas obediência e submissão. É notável também a ocorrência do ato de linguagem Eu creio, confirmatório da fé cristã e da submissão livremente consentida.
Um dos aspectos marcantes do discurso religioso é o recurso à intertextualidade. Claro é que a intertextualidade não é uma propriedade exclusiva desse discurso, mas ela cumpre uma função persuasiva inegável. Ao recuperar a história de Abraão que oferece seu filho Isaac em sacrifício a Deus, o produtor do texto reforça a necessidade de obediência irrestrita do fiel a Deus. Lembro que a Bíblia é a expressão da autoridade, da verdade de Deus e a referência a ela serve para reforçar no eu-cristão o sentimento de obediência e submissão a essa autoridade. Abraão e Maria são figuras-modelo de obediência e submissão à Vontade de Deus nas quais os fiéis devem se espelhar.
É interessante notar também que a submissão exigida no ato de fé deve ser submissão “à palavra ouvida”, o que sugere que o lugar do eu-cristão é de mero receptor passivo da palavra. A ele basta tão só ouvir a palavra; não lhe é dado o direito de elaborar uma interpretação da palavra ouvida que não esteja inscrita no código hermenêutico da Igreja. A Palavra ouvida, que é a Palavra de Deus, é portadora de um único sentido. Na verdade, como o eu-cristão não interpreta, o lugar que lhe é fixado é o da mera reprodução do sentido sedimentado. Ele apenas se limita a reiterar o sentido previamente estabelecido pelas autoridades interpretantes (padres, bispos, teólogos).