domingo, 17 de março de 2013

As páginas amareladas de amor de minha alma


                    


                        Rasuras e rascunhos de amores
                    
                               A minha breve ingênua história


Aquele copo de cerveja. A embriaguez fingida. A encenação cativante. E lá estava Ana Paula desejosa de se apossar de mim. Ana Paula tinha um corpo voluptuoso, mas meu coração não se inclinava a ela. Curiosamente, ele se enfeitiçara por outra Ana Paula. Por quem chorou. Era a época de minha adolescência.
Depois, já no segundo grau, conheci Marcelle, que me roubara um mês de serenidade, quando se despediu de mim para tomar aquele avião rumo a Portugal. Mal havia requestado sua afeição, precisou partir. Nos correspondíamos por cartas. Tendo voltado Marcelle, o fantasma do Dinho, do grupo Mamonas Assassinas, resolveu importunar-me as promessas de amor eterno que eu fizera a ela. Nos encontramos alguns dias depois de seu retorno. Dois encontros, e ela decidiu pôr um ponto final em nossa breve história de um amor promitente. Voltei para casa em pranto. Era 1999, e eu contava 17 anos.
No ano seguinte, já decidido entregar toda minha alma ao amor, tentei requestar a afeição de uma jovem professora. Eu, com meus 18 anos, e ela, talvez com os seus 25. Lhe ofereci margaridas e me ficaram justificativas. No entanto, para a minha felicidade, naquele mesmo ano, conheci Monique. A ela dediquei os três anos e sete meses mais liricamente intensos e inflamados de paixão de minha vida. A ela compus a maioria de meus versos. Fora um período de entrega e perturbações do coração. Foi quando se me aflorou o ultra-romântico que determinaria até então minha peregrinação amorosa.
Embora tenha resistido à ideia de que Monique não seria a mulher ao lado de quem gozaria uma tórrida noite de núpcias, tendo permanecido ao seu lado reprimindo minha pulsão sexual por amor (um amor castrador),  decidi deixá-la. E doeu, como doeu! Era 2004. E naquele mesmo ano, conheci Carolina, a quem não pude corresponder os mesmos favores e frescores líricos que me destinava. E a quem dediquei este poema, passado algum tempo de nosso rompimento - um poema de cuja existência ela sequer sabe.

Carolina

Hospeda lancinante n’alma,
Sobeja saudade soterrada,
De ti, Carolina, borboleta
Reminiscência pousada!

Devorados livros, um mogno de projetos,
As letras na mente adejando, tristeza...
Lamúria familiar, Carol se esqueça
Deste remido inquisidor dos mistérios

Ah! Bênção renegada! os lêmures visitantes
Já se riem do engano nímio daquele tempo,
Versos fartos, forjados à meia-luz no aposento
Versos vácuos: sombrios olhares ludibriantes!

Os projetos, Andorinha Cordial! são o inverso
Dos sonhos, que a este insulado homem confiou
Plasmam a corja de olhares que não me assaltou
São todos deveras reais como lápides de cemitério

Apenas de ti, já envolta aos braços outros, de fato
Sei, porque vi, Feição Inolvidável! sorrias junto aos
                                                                        [braços
Entregando-lhe, Gratuidade!, cada estrela que no quarto
Lembro: adeus!, vejo, acenando, Astro-lábio de meus
                                                                        [rastros

(BAR)


Estava terminando o curso de Letras e Carolina também compunha seus versos. Também era estudante de Letras. Mas não pude amá-la. O fantasma de Monique ainda jazia em minha memória. Os anos que se sucederam trouxeram-me à alma a depressão, mas também a prosperidade acadêmica. E durante todo esse tempo, a poesia ultra-romântica não cessava de romper-me da alma. E os versos pululavam no papel. Uma enxurrada de poemas compostos na verve do romântico maldito em que me transformei. Foi possuído de um estro lírico que me assaltava o descanso das noites, que me tomava as horas da tarde, e que tornava mais densa, mais pungente, embora também mais lúcida para a consciência, a depressão. Na depressão da alma, erigia meus versos de amoroso talante. E as mulheres que eu desejava amar, que não pude amar eram sombras a visitar-me à noite. Eram espectros a ocupar-me o espírito, conturbado e impregnado de um lirismo endoidecido e fatal. Fatal, porque me fazia morrer cada vez mais para o mundo.
Em 2007, após a ruína da alma, conheci Valquíria, a quem ofereci alguns versos e um buquê de rosas. Não preciso dizer que a Monique também oferecia muitos buquês de rosas. Mas Valquíria não me compreendia, não me atendia os apelos do coração. A ela ofereci estas linhas:









Dileta moça, a quem dedico estes poemas, aceite-os com o coração terno, pois que resultou da expressão de um coração inflamado, que anseia por acolher-te no seu recanto. Estes poemas são teu, só teu. Somente a ti ofereço, porque me foste amável, acolhedora.
Estes poemas são só teu. Lê-los desobrigada de testemunhar tua impressão sobre eles. Lê-los quando estiveres sozinha, ou quando uma tristeza te pousar no espírito. Lê-los a fim de lembrar-te de mim. Lê-los quando não te restar algum passatempo melhor. Lê-los para afagar teu espírito. Lê-los para acalentar teus sonhos. Lê-los para que nunca se esqueça de que existe um poeta que teu sono divinal deseja velar.
Querida Val, graças a ti, tenho estampado no semblante uma alegria que me foi furtada da alma, quando sobre mim recaiu o vento negro da solidão. Gostaria de que estes singelos poemas e tantos outros que escrevi perdurassem em sua vida... Gostaria de que tu os lesses no refúgio de teu quarto, à meia-luz... E meditasse por longas horas sobre minhas palavras... E com o coração acalentado por elas, detivesses-te a pensar em mim... Pousada em tua cama, com o espírito pululando de sonhos, se te afigurasse que por ti nutro um carinho inefável... Ah! Pudera contigo nestas horas estar!... Não obstante minha ausência, saberás que, no silêncio de meu quarto, ouvirei tua voz ecoando-me no coração... E em ti pensarei detidamente... Inundarei minha alma de fantasias de amor! Ah!, dileta moça, devotarei a ti meu desmedido lirismo!
Há muito, à meia-luz, em meu quarto, venho dispensando incomensurável esforço intelectual à idealização de um amor, que me escapa ao abrigo do coração, ainda que subsista em minha mente como um navio naufragado no oceano. Há muito, querida Val, venho-me esforçando por contentar a alma feminina, à semelhança de um príncipe, porém renegado, dos contos de fada. Ah! Ver na vida tudo quanto não se conta nas histórias da princesa e do plebeu faz-me debruçar sobre a cama em pranto convulso. Dói-me sentir o desamparo... Porém, estou bem... Estou mais otimista... Mais desejoso de experimentar a afeição feminina... De uma mulher bela, carinhosa, em cuja alma habite um mar de fantasias amorosas... Ah! Ter em meus braços a mulher cujas feições compuseram meu imaginário por longo tempo! E crer em que essa mulher és tu revigora-me o espírito e acalenta minha esperança.


Á Valquíria, com muito carinho!



Em 2008, foi outra moça, chamada Renata, que fez minha alma embebedar-se no lirismo novamente. Ela foi a motivação para estes versos.


Aromas de um Anjo

Virgem este teu cheiro o céu me torna próximo
Morrer em rubros lábios que incendeiam este viver!
Cemitério de sons cadavéricos que brinda o anoitecer
       Neste sonhar largo recôndito inóspito!

Meu coração emurchecido é desditosa nau
Que se lança às vagas de amoroso pranto
Dos goles de um amor que encarnou um mal
Faça embalar teu venturoso Canto!

Teus angélicos olhos quando fitando
Senti n’alma irromper clarões
De coxos sentimentos de prisões!

Paixões que me tornam tão pequeno
Como um grão de escuro esquecimento
Que teu cheiro devora impregnando!

(BAR)


Mas o texto que mais alento e tempo me tomou foi este, tecido em prosa e delírio, e também a ela dedicado.

A estrada de amor, a gente já está mesmo nela, desde que não pergunte por direção nem destino. E a casa do amor – em cuja porta não se chama e não se espera – fica um pouco adiante.

(Guimarães Rosa)

Meu coração está umbilicadamente unido ao seu

De um lado, o mar de esperanças que deita as escumas como cassas bordadas por Érato, acarinhando-me as bordas dos dedos dos pés; acima, a abóbada celeste, banhada em azul-ferrete, estampando seus pequenos diamantes cintilantes, envolve-me qual o manto da Virgem Senhora, concedendo paz e alento a este pegureiro dos versos. Do outro lado, o descampado que se estende a perder de vista sobre o qual repousa a treva; ermo, sombrio, pela sua superfície cálida e infértil, vagam almas atormentadas que a terra expulsou do túmulo... Espectros vadios a que a vida deu vertigens de amores sublimes, inalienáveis e intangíveis.
Após muito errar, detenho-me, nestas horas em que invoco as Musas, como o faziam os antigos amantes da pena, na extensão limítrofe com aqueles dois espaços; de um lado, o ressonar do mar plácido com suas vagas afagando rochedos, para o qual declina o lume da lua alva. Berço recôndito e sacro da lassidão é, pois, esse cenário – uma dimensão psíquica que me enreda o coração a imensos sonhos, com seus largos braços em que descansa a ternura divina; do outro lado, o uivo do vento que estremece a terra, o escarcéu dos espectros em divagação, o ranger do céu anuviado, metido, agora, numa densa atmosfera escarlate, que em desespero e loucura banha toda vida errante que ousa lançar a terra suas virtudes.
Estas palavras que arremesso à vida prematuramente são filamentos algodoados por que teço o vestido de amor que há de revestir sua alma. Dorme sua alma num mistério que me enternece e me extasia. Uma emoção indistinta me inunda o seio, detenho-me novamente em seu olhar – sacrário da ternura -, hesitante entre sua permanência angélica e seu ir-se sempiterno... Olhar que me escapa aos anseios da pena, que pena a esperar por uma gota de amor que o recrie nos versos.
Seu olhar tem a permanência das vagas que se derramam grávidas de candura e alento e se retraem levando consigo os suspiros servis de minha alma de amor endoidecida. Quando a fito, imersos seus olhos em eflúvios de Afrodite Urânia, noto-lhe a presença ausente em que meus olhares furtivos de amor se perdem.
Não sei que haja um sorriso que acarinha o Céu tão docemente, por vezes, pego-me a namorá-lo com este meu olhar lânguido que embala o mundo todo na pequenez do delírio humano. E neste sorriso que me influi um alento imaculado, que fecunda cada verso lavrado nos campos floridos e férteis do âmago, vejo estilhaçados outros olhares que a assaltaram, por ventura, sem que você lhes divisasse a embriaguez poética, sem que lhes sentisse a viração em que navegam as almas sonhadoras, insanas, que Deus à vida lança para se tornarem escravas da Lira dos Byrons, dos Azevedos, de toda sorte de gente desgraçada que negaram o mundo, cantaram um amor que as Alturas faz render.
Ah! E os cabelos num azul que exala a vida, deitadas as madeixas nas espáduas, quando recolhidos, deixando-lhe nu o toutiço! É neste átimo que o tempo oculta aos que ignoram os lírios-do-vale que sinto invadir-me a alma a mansidão a que se abandonam os benditos. Benditos, sim, os que, por generosidade de sua alma ou por um pestanejar descuidado dos olhos de Deus, tiverem entrelaçados aos dedos os dedos de sua mão que me visita os sonhos de ternura amorosa para acarinhar-me o seio. Benditos aqueles que, encerrados no peito, tiverem os segredos e as margaridas de seu coração. Benditos, sim, aqueles que lhe inspirarem o amor que a fez carne num dia santo, em que o Céu abriu os salões divinais para cantar, celebrar e anunciar, ao som de cítaras, flautins e clarins, o nascimento de um pedacinho do céu na Terra. Benditos, sim, os que se deleitam em amor tão santo, pois que, em outros corpos plasmados nesse amor, haverá de residir, ao menos, uma feição sua, uma parte que recobre tudo e que forja dimensões infindas que outros Arqueiros de Eros, quiçá, ousem visitar para desvendar as delícias de sua progênie, nos caprichos divinos sobre os quais essas dimensões repousam. Benditos, enfim, aqueles que se consumirem em densas meditações, na solitude, para, laboriosamente, edificar versos e frases, que à vida vêm, para beijar-lhe as orlas dos pilares que sustêm toda a pureza de que seu corpo está impregnado.
Não, agora cessarei de escrever. Estanco em qualquer caminho... Esta carta que me nasce das mãos, outrora, estivera a suplicar a existência em meu coração; provavelmente não pouse em suas mãos; não é digna de você. Fora-me extraída das entranhas da alma; inçaram-na sonhos fátuos, delgados e límpidos; mas não posso pretender que ela lhe caia nas mãos, após ter alçado vôos tão altos. Adarvada de ameias altas está sua alma e seu olhar, e minha alma, esmorecida, esgueirando-se como uma sombra mete-se por corredores obscuros da existência, que a levarão a lugares inóspitos, onde uma dor arquejante será seu solar.
Mas isso que lhe importa, se não nutrir por mim amor? A menos que seja o amor que mantém viva toda criatura; uma compaixão pelos mendigos, pelos enfermos; esse amor, então, de que eu não desdenharia, porque todo mendigo agraciado divide com pombos as migalhas do pão da misericórdia (crendo, assim, reconciliar-se com os Céus), tão-só me tornaria ainda mais pulsantes as palavras; e sua permanência indistinta, que justifica as linhas, que incita o balé da pena, que faz brotar-me da alma estas prematuras flores verbais, me legará a tristura maciça que, como pedra, arrastarei na alma.
Como, contudo, em Clarice se acha consolo, “por enquanto é tempo de colher morangos”.
Se o leitor chegou ao final deste texto, se não se sentiu nauseado pela sua doçura lírico-romântica veemente, deve ter sido capaz de inferir daí por que a moça a quem o destinei silenciou e foi indiferente aos apelos de meu coração. Que me cuidem excêntrico, mas não me neguem ser este texto um testemunho de vida de um autêntico ultra-romântico. Isso, sim, é a mais fidedigna expressão do que é ser romântico. Todo romantismo de que se ouve falar nestes tempos de amor líquido é balela. Tolices que ludibriam os corações que só conheceram o romantismo pelos textos da literatura clássica.
Alguns anos de análise me ajudaram a compreender por que estas expressões líricas me condenavam ao infortúnio, ao invés de conduzir-me pelas longas e floridas estradas do amor.
Este poema a seguir também fora escrito para essa moça:



Olhar de despedida

Longo olhar cuja delicadeza encerra
O mar de deleite em que me navega o seio
Ouso com uma lágrima cingir-te ao peito
Mas teu olhar inclemente depõe reza

Enlaçar-te um beijo, então, de chofre pudera
Com a loucura de Werther e o denodo de Fausto
Sem que este olhar que é de minh’alma o claustro
Deite caminhos que me consumirão a Primavera

Como anjinhos traquinas à sacada do Templo
Olores de mirra ao Cristo tomados
Lança-me a convidar a ceia dos abençoados

Mas quando a alma da esperança entra na balsa destemida
Faze rugir de teu olhar a tempestade e um sonho imenso
- Presságio sempiterno de um olhar de despedida.

(BAR)

E não poderia esquecer-me de Dani (chamava-se Daniele), para quem meu coração se inclinou naquele mesmo ano. Por um breve momento. A ela também enderecei alguns escritos, um dos quais foi esta carta desqualificada.
                                            
                                        

                                                Mais uma carta apenas

É só mais uma carta. Uma carta tecida por sentimentos venosos que se interpenetram, plasmando as dores que na alma arrasto. É só mais uma carta. Uma carta cujas palavras me foram lapidadas laboriosamente no espírito e embebidas no sangue vivaz de meu coração. É só uma carta a mais. Uma carta à qual se podem reunir tantas outras eventuais, escritas, quiçá, por pretensos amantes, homens estúpidos, que ostentam uma catadura insinuante e aos quais, porém, rendem lágrimas alguns corações. É uma carta apenas, nada mais. Uma folha de papel estéril, suscetível ao abandono, a estar confinada numa cesta de lixo, junto a resíduos orgânicos intoleráveis a nossa fisiologia humana. É só mais uma carta. Uma carta que, reunida àqueles resquícios orgânicos apodrecidos, também se putrefará; as palavras de que se compunha se tornarão pútridas e se esfacelarão, na força inexorável do tempo.
O tempo cuidará de consumar a dorida transfusão a que estará submetido aquele pedaço de papel... Pois é apenas um pedaço de papel... Um tumor verbal excretado pelo meu coração; é apenas uma excrescência que faz ficar combalida a harmonia sacra da pureza dos sentimentos benévolos que habitam seu coração. É só mais uma carta. Dentre as muitas escritas a custo de lágrimas, numa inquietude sobremaneira incomum, mais uma carta retalhada na indiferença e no silêncio. É só mais uma carta. Uma carta que não poderá relutar contra o fim a que será destinada, quando, talvez, outro atrevido, conquanto estúpido, pousar os olhos sobre seu templo imaculado, estampando, perfilados, os quartzos translúcidos e assaz polidos, que lhe ornam o limiar do céu da boca.
É uma carta apenas. Uma carta que Deus destina, impiedoso, à vacuidade fossilizada no coração humano. É apenas mais uma carta, uma folha de papel. Uma carta de emoções rasgadas e lançadas como areia à imensidão do céu; cada qual delas, dispersa ao vento, que as arrasta para os confins da treva, onde haverão de dormitar, relutando em obedecer à vontade dos fados, tentará, debalde, enlaçar-se a uma gota de misericórdia divina, que resvalará no anseio, diluindo-se em milhares de gotículas de esperança, que caem suavemente no sertão de meus sonhos.
As palavras que naquele pedaço de papel dormiam rangerão como range a carne sob uma vestimenta de espinhos... Os sons plangentes prantearão sua alma... Irromperão no seu silêncio, enquanto ouve Sozinho...
É apenas uma carta.


Também a Dani, dediquei este outro texto e este poema que destaco dentre os dois que lhe escrevi, tendo toda a alma empregado para cortejá-la:



Desarmonias verbais – Do outro lado do texto

Ante o computador... Entre os dedos, uma caneta esferográfica azul... Debruçado sobre um caderno comum, ponho-me a escrever, rejeitando lugares-comuns, aquietando as idéias que me pululam na mente, acarinhando os sentimentos que me incitam a continuar a escrever essas linhas sem destino e desamparadas... É, estão desamparadas, porquanto não defini, ainda, meu plano de produção textual. Todo aquele que escreve, ou melhor, produz um texto, oral ou escrito, o faz valendo-se de estratégias e procedimentos, com vistas a auferir êxito. Primeiramente, o produtor precisa ter a intenção de comunicar, ou melhor, de praticar uma “ação verbal”... Que pretendo eu com esse “universo semântico” lapidado na minha alma? Não se trata de um produto de introspecção... Escrevo porque viso a algum objetivo... Qual será?... Pretendo escrever sobre o cosmo feérico que a expressão poética me permite construir nos vastos dias que se transcorrem... No entanto, “cosmo feérico” tem alta carga conotativa e nada esclarece sobre o que vou, deveras, escrever... Tudo bem!... Vou escrever sobre... Sobre a paixão que cultivo pela linguagem... Escrevo porque admiro a forma das palavras, sua sinuosidade, seu “mistério semântico ou simbólico”... É... Por exemplo, a palavra “inefável”, enquanto unidade sonora (/i/, /n/, /e/, /f/, /a`/, /e/, /l/), é opaca, surda e muda. É “opaca” porque não nos permite “penetrar” na sua natureza semântica, para desvendar-lhe o significado; é surda, porque não é sensível à natureza (re)criadora do poeta, que está sempre ávido por acrescentar-lhe mais um “sentido”; é muda, enfim, porque não me representa nada... não me diz nada do mundo, das coisas do mundo, dos seres que nele habitam, do estado-de-alma dos seres... em suma, não me fala ao espírito.... No entanto, conhecendo seu significado convencional, posso valer-me dela para “expressar o inexprimível”. “Inefável” significa “indizível”. A linguagem é fascinante mesmo!... Até o que não significa comunica, significa, representa alguma coisa, mesmo que essa “coisa” seja o “nada”. Concluo que esse texto se reveste de idéias “inefáveis”. Na verdade, o texto está aqui... em minha mente, como uma estrutura significativa subjacente que vai tomando forma à medida que eu escrevo... À construção de um texto subjazem várias capacidades, uma das quais é a cognitiva... O texto é uma estrutura semântica mergulhada na mente, que se materializa por meio dos sinais lingüísticos... Há um texto boiando-me na mente... Não posso, entretanto, regurgitá-lo à fina força... Devo esculpi-lo no estado bruto do pensamento... Descreio, contudo, da existência de um pensamento pré-lingüístico; só há pensamento nos quadros da linguagem; não há pensamento sem linguagem... Controvérsia teórica...
Vou procurar determinar o destinatário desse texto. A quem escrevo?... O texto só pode “existir” para um leitor, que lhe conferirá a devida coerência... Que leitor é esse? Quais os meus pressupostos em relação a ele? O leitor é, deveras, uma leitora... Isso... Escrevo a uma moça... É uma mulher da qual sei pouco... No entanto, deduzo ser ela muito afeiçoada, ou melhor, dedicada ao estudo, ao desenvolvimento de sua capacidade cognitiva... Suponho, logo, que ela tenha inclinação para a leitura... Suponho ser ela uma leitora assídua... Creio em que ela é, pelo menos, sensível à expressão lírica... Talvez, idéie ela um mundo “romântico” também, onde o homem exalta a natureza verdejante e o amor se manifeste na unidade de duas almas pré-destinadas a viver a comunhão de seus templos... Talvez, a leitora ria-se deste mundo nosso que, à força da modernidade caótica, esvazia conceitos, tornando-os vácuos. Talvez, lamente a vacuidade das relações humanas... Talvez se ria dos falsos românticos, que, sequer, como diria o poeta Cazuza, são “exagerados”... Uma rosa não é um sentimento, ou melhor, um estado-de-alma... É um símbolo, esvaziado, esmagado por todo aquele que se diz romântico, sem o ser... O romântico é, em última instância, um estado-de-alma, e não uma atitude. Perdoe-me a leitora, porque insisto em reafirmar o que é ser romântico. É que todo romântico é, decerto, uma voz sufocada num tropel; é um grito ofegante no mundo que lhe é tão estranho quanto medonho. As páginas preenchem as lacunas amorosas que se fincam no âmago do poeta romântico... As páginas são a companhia na soledade... E muitos românticos erram pelos caminhos líricos que o levarão ao infortúnio ou à incerteza da ventura amorosa... Os românticos estão por aí... calados, taciturnos, preferindo negar a si mesmos, preferindo ser o que não são... Os românticos não vão à televisão... Não estão numa pista de dança... Estão, sim, envolto às palavras, num quarto, à meia-luz, meditando, profundamente, sobre Deus, sobre a existência humana, sobre a realidade sócio-cultural e econômica em que está mergulhada a sua classe social; chorando pelas vezes em que foi abandonado por amores esmeradamente nutridos... Expressando verbalmente suas angústias e frustrações... Dedicando-se ao bem-estar de sua família, estudando ou trabalhando como qualquer cidadão... A leitora, entretanto, não deve estar interessada na definição da natureza do romântico típico...
Eis o abismo de minha expressão lírica: não há leitores. Meus textos, poemas ou prosas, estão pré-destinados a um lugar vazio, escuro e oco, onde não há vozes, corações cândidos, joviais; onde só se ouve o gemido das palavras, ávidas por sentir a voz veluda que as acaricie... Sim, a voz de um leitor arguto, enamorado do simbolismo lingüístico, desejoso de explorar a ductilidade da sua língua materna...  As palavras murmuram, lacrimejantes, à espera de uma leitora que as acolha em sua alma, que as embale no berço do coração... Não há, entretanto, voz doutro lado... Nossa relação com a linguagem verbal é tão íntima, intrínseca, que esses adjetivos não qualificam adequadamente essa relação; tal relação – entre homem e linguagem – é tão “una”, que não é comparável à relação entre mãe e filho, que é naturalmente sólida, quando se observa o longo período que se estende da gestação aos primeiros estágios da vida escolar da criança... Todavia, eventualmente, essa relação pode ser rompida... Só mesmo a morte pode separar o falante de sua língua. Ora, uma determinada língua perece, enquanto realidade oral, só se todos os falantes nativos morrerem...
Não, não quero uma leitora experimentada em Lingüística... Tampouco, escrevo a uma leitora versada em Literatura... Escrevo a uma moça que idéio, mas que não é perfeita... Pois a perfeição é uma qualidade de Deus apenas...
Há urros de sentimentos passionais naquele labirinto a que são destinadas as minhas composições escritas...
Com efeito, escrevo a uma leitora a quem talvez nunca tomará conhecimento desse texto... Não ousarei transpor os limites da aparência do leitor idealizado. Por ora, esse texto progride, porque idéio um leitor cujos olhos perpassarão por essas páginas e cujo coração se embeberá em emoção, quer seja alegria, quer seja júbilo, quer seja simpatia, quer seja repugnância, ou experimentará uma sensação de incômodo, semelhante à que sentimos, quando alguém que não nos é afim, fita-nos à porta de nosso quarto. 
Chegam-me ao espírito estas idéias. O leitor a quem destino este texto – e o faço com o peito embebido de satisfação – deve ser uma pessoa que tenha por hábito sentar à frente de um computador a esmo, ou que esteja habituada a elucubrações. São 21h35 min. É domingo. Relutei em compor este texto... Mas as idéias e os sentimentos se inflamavam... Rugiam como leões aprisionados... Os sentimentos, deitados nesta folha de papel, agora adormecem, embalados pela esperança de todo escritor, ou melhor, aspirante a escritor: divisar, do outro lado do muro, uma voz que o chame: “Pule, pule! Venha!”. No entanto, o escritor, já mortificado pela indiferença do mundo, vacila nos seus juízos... Terá a leitora predisposição para acolher sua composição em prosa e, enfadonhamente, subjetiva e especulativa? Que pensará a leitora, ao final da leitura? Quiçá suponha ter sido o “eu” deste texto acometido de uma “loucura verbal”, que o coage a escrever sofregamente. É... talvez tivesse razão a leitora...
Por que escrevo? Não sei... A quem escrevo? Não sei... O texto é uma atividade de interação... O leitor é sempre uma construção do produtor do texto... Os sentimentos e as idéias desvendados sob o véu sonoro das palavras sintetizam minha natureza lírica, que jamais será plenamente conhecida, pois o material lingüístico não nos permite expressar o inexprimível, embora forje certos signos opacos, mudos e surdos. Felizmente, pode-se sempre rogar a Deus um átimo de reciprocidade na consciência e no coração de um leitor “curioso”.



Nossos destinos


Tão logo da madre brotaras – Pequenina!
Aos braços de outro destino foste levada
Pelo Vento! Em seu soprar, ó embalada!
No teu berço de ouro, sob a Luz Divina!

Teu destino – Um pai querido que te nutre!
Meu destino – Padrasto amigo que me pune!
Tu trazes em teus olhos de Deus a morada
      Eu sou como a figueira amaldiçoada!

Oh! Tu vives livre como as pombas do Éden!
Eu, na gaiola de paixões que não me esquecem
Tu és a Helena de Deus. Te inveja Nêmesis!
Eu sou como Prometeu: Sou dor que geme!

Oh! a que jardins, a que terras dás lume?
A que almas inebrias com teu perfume?
Oh! Teu destino suave brisa que me roça a face!
Ó destino: um sopro frio de amor que me arde!

(BAR)



No longo tempo que transcorria entre uma frustração e outra, eu dormia com a solidão mortuária (não a solidão que me é amistosa hoje, que hospedo com o alto custo que lhe arranco; hoje, ela me paga o aluguel mensalmente), e a tristeza ficava a arranhar-me a alma. Talvez não seja o poema mais emblemático deste período, que se estendeu de 2006 a 2008; mas é, decerto, o poema que mais claramente expressa a minha intimidade com a tristeza.


Senhora Tristeza

O pingo da noite cai-me morosamente
No tempo do coração
Os segundos são vastos
De ausência
Que inebria as estrelas
Sob um véu de fina esperança

A esperança de que é vinda
De regiões longínquas e ignotas
O destino que carregas no olhar
É vagaroso, alvo e escuro...
Inunda-me a alma de sonhos repisados
Vou amando-te entre versos fraturados
Mas acordo, sempre acordo...

Vens vindo aproximas-te indistinta
Disforme, os lábios constritos
Como se quisesses beijar o infinito
Infinito que minha alma aprisiona
Os dias são acres e ásperos...
E sua ausência reflui como as vagas
De um mar sombrio...
Que ressona solitário

Vens avançando sobre as emoções fugazes
Devorando-me o último alento...
És a imagem sem forma
Que tomba no último verso
Que morre na última letra
Que se enterra na loucura
De apaixonar-se por ti, Senhora Tristeza.

(BAR)

E Dani passou, e mais recentemente veio-me Jéssica, e com ela a oportunidade de experimentar a ingenuidade adolescente outra vez. Novamente, deixei exposta minha alma. Mas silencio, para não alongar ainda mais este texto, muito do que vivi neste período de fins de 2010 e inicio de 2011.
Eis resumida aqui a breve e avassaladora história de minha alma itinerante das experiências de paixão e amor, por vezes não correspondido, e por isso mais declaradamente romântico. Insisto nisto: o amor romântico é amor da impossibilidade. E este último poema, escrito em algum momento nos anos em que meu coração diligente aspirava à ventura amorosa e se entulhava de decepções, faz eco à literatura trovadoresca que exprimia a vassalagem amorosa – uma fonte de inspiração em que os românticos de antanho não deixaram de beber:



O Vassalo

Se prostrado a teus pés de anjo me deixo estar
E minha alma em refolhos te exalta assim
Se sou por isso mendigo de amor. Tem pena de mim!
Que não conheço outro jeito de amar!

Se ris da devoção deste amor promitente
E se profanas a santidade destes pálidos versos
Não sabes quanto Amor há em meus amplexos
Nem quanta ternura guardo n’alma fremente

Não conheces um querer que é bendito
Nem pousaste os lábios em boca tão cálida
Onde a ternura desabrocha como a crisálida

Nas noites quando de paixão consumido
O pensamento vai-te ao encalço em ardor
Não conheces as feições santas do Amor!

(BAR)

segunda-feira, 11 de março de 2013

"Todo Eu supõe um Outro reciprocamente" (BAR)


                                    


                                    Reencontrando-me
“No cuidado de si, o conhecimento de si torna-se prática, arte de vida.”
(novas vitaminas filosóficas)

Não sei ainda o que farei com estes livros que empilhei sobre esta escrivaninha diante da qual me sento. Eu os apanhei em meu armário, os livrei da clausura e do esquecimento para reanimar suas palavras em minha alma, porque ela esteve por um longo período de tempo de minha vida concentrada em suas páginas. Deverei eu citá-los aqui? São muitos. Saiba o leitor que este texto não está sendo produzido segundo um plano espiritual claro e metódico. Os caminhos que percorrerei com minhas palavras se entrecruzarão e, neste momento, me parecem difusos. Há mais descaminhos com depressões do que estradas aplanadas e bem demarcadas no itinerário de meus pensamentos. Só uma garantia há: serei meticuloso nas escolhas verbais que farei; cuidarei para que a linguagem não me traia as disposições favoráveis do espírito. Ponho-me nua a alma. Vou revasculhar-me. Esse neologismo é provisório; mantenho-o por falta de uma expressão melhor; tão-logo, contudo, se me afigure ao espírito uma palavra mais adequada à expressão do meu intento dela me servirei. Eu deixei marcas gráficas nestes livros que dispus diante de mim. É a elas que me aterei. Vou citá-los então, para satisfazer a curiosidade do leitor. Sonetos de Florbela Espanca, As Flores na janela sem ninguém..., Ecce Homo, Esse ofício do verso, Melhores Poemas de Paulo Leminski, Poemas de Fagundes Varela, Eu e Outras Poesias de Augusto dos Anjos, Melhores Poemas de Fernando Pessoa, A rosa do povo, de Drummond, Poesias de Olavo Bilac, Poesia Erótica, Sonetos de Luís de Camões, As Flores do Mal, de Charles Baudelaire, Nova Antologia Poética, de Vinícius de Moraes, O silêncio dos amantes, de Lya Luft e Palomar, de Ítalo Calvino. A lista não está completa... Sinto que falta um que me foi e ainda me é caro...mas a memória costuma trair-me.
É difícil perscrutar-se. Tenho medo. Já me vi, num passado não tão longínquo para a alma, embaraçado em tramas verbais aterrorizantes e depressivas. A filosofia me salvou; e o ateu que jazia em mim sufocado libertou-me da escravidão de uma fé que não cessava de confrontar-se com os questionamentos. E fé não lida bem com questionamentos. Fé e questionamentos não se avizinham. Ou ela fica e eles saem, ou eles nos ocupam e a expulsam. Eles a expulsaram!
Nas páginas de Espanca, encontro esta estrofe, ao lado da qual escrevi “verdade!”.

Mas não te vejo, Amor, essa indiferença
Que viver neste mundo sem amor
É pior que ser cego de nascença.

Este terceto faz parte do poema intitulado de “Frieza”. Fui apaixonado por Espanca durante um bom tempo, um tempo tão afeiçoado às ilusões primaveris, que dele me recordo como quem se recorda de um sonho erótico, do qual acorda com ereção, não raro, extasiado com uma ejaculação!

Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa
A pedra do caminho, rude e forte!

Onde há desejo há falta. Aprendi com Freud, com Sócrates, com Platão... Só desejamos aquilo que nos falta. O desejo existe na falta, na carência, na ausência. E eu desejava e pensava demais. Pensar demais dói. Doía mais do que agora. Por isso o desejar ser como uma pedra, que nada pensa, que nada sente, que nada deseja. Ser um em-si e bastar-se.
Abro o livro de Lia Luft. Encontro estes versos precedendo a Apresentação.

Sem palavras

A vida inteira busquei
explicações e deciframentos:
encontrei silêncio e segredo,
às vezes conforto de um ombro
outras vezes
dor.

No último lapso
de um tempo sem limites
- embora a gente o queira compor
em fragmentos -,
abriram-se as águas
e entrei onde sempre estivera.
Tudo compreendido
e absolvido,
absorta eu me tornei
luz sem sombra:
assombro.

Quanto mais nos aproximamos do mundo para auscultá-lo com o pensamento mais silencioso ele fica. E naquele tempo buscava, como agora, compreender o mundo sem, contudo, viver amalgamado com ele. Confundir-me, jamais! Distinguir-me sempre!


Estes versos te dou e se a celebridade
O meu nome levar aos mais longínquos anos,
Pondo à noite a sonhar os cérebros humanos
Como nau favorecida pela tempestade.

Este quarteto é de Baudelaire. Ao lado do qual, escrevi “Sou esta nau, poeta”. Lembrei-me de outro livro de Lia Luft. Mas me custa encontrá-lo agora. Tempos fervilhantes de cismas de um ensimesmado desejoso de amar! E eis que se me deparam estes poemas-pílula de Leminski.

            I

vida e morte
amor e dúvida
dor e sorte

quem for louco
que volte

         II

esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem


III

vazio agudo
   ando meio
cheio de tudo

IV
escurece
cresce tudo
que carece

No livro Esse ofício dos versos, encontro sublinhados por mim os seguintes trechos. Se os refiro abaixo, é porque, evidentemente, eles me significam, me capturam de um modo tão fidedigno e sucinto que eu mesmo não conseguiria fazê-lo aqui. O meu sentimento em relação à linguagem está muito bem derramado nestas linhas verbais.

“Eu pensava que a linguagem fosse um modo de dizer as coisas, de exteriorizar queixas de dizer que se estava feliz ou triste, etc. Mas quando escutei aqueles versos (...) soube que a linguagem podia também ser música e paixão. E assim me foi revelado a poesia”.

“Divertiu-me uma ideia – a ideia de que, embora a vida de uma pessoa seja composta de milhares de momentos e dias, esses muitos instantes e esses muitos dias podem ser reduzidos a um único: o momento em que a pessoa sabe quem é, quando se vê diante de si”.

Então, vou-me permitir estar diante de mim. Mas, antes de me despedir, momentaneamente, dos livros, trago à cena estas palavras de Nietzsche. Poderemos nelas:

“(...) eu tenho necessidade de solidão, isto é, de curar-me, de tornar a ser o que eu fui, de ser o que eu fui, de respirar uma atmosfera livre, leve e forte...”
(Ecce Homo, p. 47)

Devo a Rubem Alves o aprender a conviver com a solidão. Este trecho de seu texto “A solidão amiga” foi determinante dessa aprendizagem, ou libertação da ideia de que a solidão é necessariamente nociva à vida.

“A sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena (fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos... Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira.”


Solidão é uma palavra tão mal reputada hoje em dia. Os solitários costumam ser mal vistos. Tornam-se pessoas indesejáveis, desinteressantes. Se você diz ser solitário, as pessoas, em geral, não o/a compreendem bem. Fica um silêncio a reivindicar explicações (ou não). Por vezes, o silêncio pode sinalizar um interesse em que se mude o assunto da conversa. Alguém me disse que desconfia das pessoas que têm poucos amigos, após eu ter lhe revelado não contar com muitos amigos a minha volta. Longe de negar a importância da amizade, das relações de afeto entre pessoas sem interesse sexual uma pela outra, mas a razão por que alguém não tenha tantos amigos não necessariamente tem a ver com a possibilidade de não ser uma pessoa confiável. Tem a ver, muita vez, com tipo de personalidade, com interesses ou inclinações. Por falar em solidão, amizades ou carência delas e relacionamentos, certa feita, escrevi o seguinte:

Existir é condição necessária para a solidão. E muitos se espantam com a ideia de que uma pessoa pode sentir-se sozinha no meio de muitas pessoas: é que a mente tem esconderijos, espaços impenetráveis, caminhos obscuros, salões imensos, onde ressoam os gritos de um “eu” encarcerado, que, em algum momento de sua vida, deu-se conta do absurdo da existência”.

Este é um trecho destacado de um texto, de cujo título me olvidei (poderia ter escrito “me esqueci”) e que fora escrito numa fase profundamente deprimente de minha vida. As pessoas, em geral, também tendem a rejeitar os depressivos. Mas eles têm muito a nos dizer e a nos ensinar. Geralmente, as pessoas bem-resolvidas, bem arranjadas sob sua própria pele são as que mais se armam contra os tipos depressivos. Não sou mais um depressivo. A terapia me curou; mas não deixei de ser um inconformado, um desencontrado, um deslocado, um desmedido, um desassossegado, um desterrado, um desiludido reincidente; não deixei de estar em desacordo com a existência e com o mundo. Houve, decerto, uma conciliação entre mim e a vida corpórea e mundana em detrimento da aspiração a uma vida etérea e espiritual (além-mundo), que antes conduzia meu espírito a trafegar pelos caminhos da metafísica espiritualista. Sou um materialista desconfiado dos dogmatismos, inclusive dos materialismo dogmático. Aceito as explicações sobre a vida, a matéria, o Universo, a natureza dadas pelos filósofos materialistas, pelos biólogos e pelos demais cientistas da ciência “dura”, mas ainda aceito de bom grado o Mistério, que nos abarca. Eu diria que o humano em mim se reconciliou com o meu Eu, que são muitos e ao mesmo tempo o mesmo. Este eu que sei imagético (porque assume muitas feições, muitas máscaras, sem deixar desaparecer um núcleo duro em que está assentado). Há um “eu” submerso de que não nos ocupamos no dia-a-dia; daí a importância de, pela interiorização, incomodá-lo, perquiri-lo, redescobri-lo, ainda que nos vejamos novamente envolto numa bruma imagética, à iminência de dissipar-se.
Tenho procurado, após um término de um namoro que se prolongou por um ano, ocupar-me nas reflexões sobre relacionamentos. Durante os anos em que a solidão era minha única companheira, os relacionamentos, contemplados a distância pelo espírito, eram avaliados criticamente. Da inquietude nasciam trechos como estes, que dou a saber ao leitor, abaixo:

“Por que me incomodam as relações descartáveis entre homens e mulheres em nossa sociedade “pós-moderna”? Claro está que, sabendo-se eu um ultra-romântico “anacronicamente lançado em época pós-moderna”, sabendo-se, pois, um homem que conta vinte e seis primaveras e que se vê às voltas com uma solidão anímica e escusa àqueles que estampam uma alegria gratuita, em meio a uma profusão de vozes, vivo recolhido numa sinfonia de silêncios que revelam dimensões incompreensíveis a quem acredita ser o corpo o limite da realidade humana. A solidão que me acompanha é uma solidão vital: a solidão decorrente da consciência de estar consciente de que existo. Existir é condição necessária para a solidão. (...)”

“Os embaraços de bocas, os duelos de ancas, brindados com alguns copos de cerveja, são sinais de que a satisfação e o prazer não parecem residir na inter-relação de complexos orgânicos e emocionais; ao contrário, habitam a materialidade de meros produtos de uma sociedade que aplaude a superficialidade, o utilitarismo e o consumismo. “Quem namora comportado está fora do mercado”, disse, certa vez, um Mc. E quem negará que se trata de um mercado? De um mercado das emoções, cujas mercadorias são as próprias pessoas que preferem provar das delícias do banquete, ainda que outros tantos já o tenham feito. E as emoções se diluem a cada nova bocada...”.

E ficam os restos... dos corpos consumidos num prazer imediato, urgente, extasiante e fugaz...

O silêncio é a voz mais significativa do Amor, sempre que, face a face, dois amantes leem emocionalmente um a alma do outro. Gosto de entabular longas conversas com pessoas intelectualmente mais elevadas, especialmente se entre mim e elas há um liame de emoções harmônicas, porque, durante a conversa, leio com a alma a alma delas. Essa leitura anímica é privilégio apenas dos que vivem pela alma e para a alma e não pelo corpo e para o corpo”.


“Nasci conhecendo a solidão. Ela foi a primeira presença que se achegou a mim. A vida é tão débil, que não sei que haja esforço que a justifique. Chegará o tempo em que nossa vitalidade se sustentará com remédios. Não escapamos disso. O fato é que nascemos projetados para o futuro inapreensível; pois hoje é futuro em relação a ontem. O futuro é um mistério que, desejado, nos escapa.
O futuro justifica nossa travessia. Somos transeuntes que se ignoram na azáfama do cotidiano. O centro da cidade está cheio deles – transeuntes sem rostos, sem identidade definível; uma massa homogênea num ir e vir condicionado, irrefletido. Cada um com seus pensamentos atados aos seus encargos, à urgência dos compromissos, ao tempo que se esvai cada vez mais rápido. Levamos conosco o imperativo de dever, mas ignoramos o sofrimento dos inúmeros mendigos que por lá vagam ou dormitam. Por que não nos sensibilizamos com tamanho infortúnio? Porque não há beleza naquele miserável sofrimento. Só nos comove o sofrimento em que há beleza, em que há encanto e que nos ensina. Compadecemo-nos do sofrimento alheio, quando dele podemos colher uma lição; se nada nos ensina, conservamos a indiferença; simplesmente passamos e, enquanto passamos, somos apenas transeuntes indiferentes lutando para sobreviver.
A condição de transeunte nos é estabelecida pela sociedade. Desde que nascemos, nossos pais nos educam para que nos tornemos transeuntes (os bebês costumam maravilhar os pais quando começam a dar seus primeiros passos); afinal, devemos participar da travessia da vida, que se estende da casa para o trabalho e na volta do trabalho para a casa, com algumas paradas para o lazer. Aprendemos ser a vida passageira e o tempo da modernidade líquida cada vez mais escasso; o Amor, um ideal inatingível, um delírio incurável de inveterados inconformados. E assim seguimos nas imensas avenidas dos sonhos, transitando por alguns becos de ilusões; atolando a alma em algumas calçadas de lágrimas. Não nos é possível deixar a vida ilesos.
Seguimos indiferentes uns aos outros, cumprindo encargos quase nunca questionados. E nesse mar de indiferenças recíprocas e insistentes, desejamos repousar nosso coração numa alma acolhedora; desejamos encontrar apenas uma que por instante deixou de nos ignorar, para nos admirar. O absurdo não nos incomoda, porque raramente dele suspeitamos. Existimos para sobreviver. Isso basta. Alguns de nós são transeuntes de calçadas/ outros, de sua própria alma. Alguns estão de passagem, sem tempo para conversas elevadas; outros gostam de dar passeios e admirar a insignificância de nossa pressa e travessia.”


Este último excerto, caro leitor(a), me causa, ainda hoje, espanto, dada a acuidade com que apreende este viver banal, urgente e despropositado em que muitos dentre nós estamos imersos. O cotidiano dos transeuntes é vazio de imersões de alma, é empobrecido de diálogos, de reflexões, de pensamentos, de amor.
Eu ainda não estou satisfeito com o que escrevi até aqui. Acho que não cheguei sequer à termosfera de minha alma. Mas sinto que ainda tenho algumas palavras mais a acrescentar a este discurso revisional-introspectivo. Abro um parêntese para referir um trecho do livro Passeio pela Antiguidade (2012). Este trecho ensina-nos uma lição a que meu espírito aderiu como um piche: pensar diferente modifica a vida. Com a descoberta da filosofia, meus pensamentos se robusteceram e se tornaram conflituosos com os que antes habitavam minha alma; não todos, é claro, mas o meu inverso tornou-se reverso deixando permanecer essa insistência em desapegar-me. Você não me compreendeu aqui, nem mesmo eu me compreendi, mas gostei deste trecho. Não se preocupe em aprofundar-se em mim, sob pena de afogar-se e não conseguir mais assomar à superfície da vida. Sempre necessitamos das superfícies... uns patinam sobre elas durante a vida toda... mas, mesmo os que se aventuram em imersões demoradas na existência, precisam voltar a caminhar sobre elas... Namorar o absurdo por muito tempo pode nos enlouquecer. Afinal, é preciso existir sendo um pouco transeunte:

“A chave da existência reside, pois, no pensamento. Portanto, convém regrar as próprias ideias a fim de regrar o próprio modo de vida. Com efeito, uma ação não cessa de remeter a outra. Modificar a própria vida é modificar o próprio pensamento. Pensar de modo diferente é viver de modo diferente. Resta saber como pensar (...)”.

(p. 68)


A filosofia operou uma cirurgia em meu espírito. Lendo Nietzsche, descubro o poder de sua crítica ao romantismo que impregnava o seu tempo de negação à vida. Nietzsche me ensinou a afirmá-la, em que pese as suas intempéries. E como não lembrar aqui Epicuro e sua escola que lhe ostenta o nome. São quatro os pilares que sustentam sua doutrina: 1) não temer os deuses; 2) não temer a morte; 3) buscar prazeres moderados; 4) evitar a dor. O Deus, eu o rejeitei, porquanto absurdo; a morte, já há muito acolhi em meus pensamentos e contra ela se debate a força de meu espírito, especialmente nas noites em que a lua não me visita antes do sono; os prazeres estiveram limitados ao ventre da alma (a poesia, a leitura, a escrita, o amor). Só muito tardiamente conheci o prazer do enlace dos corpos, ao qual veio presa uma cadeia de frustrações. Nada mais natural para um idealista. A par deste espírito estóico que me sabe à existência, trago comigo o pendor estóico para a indiferença ao sofrimento. A vida é uma luta. Disso soube desde que nasci. Nascer é resistir à morte prematura, à inclinação de toda vida, que é frágil, para o abandono à morte (descanso desejado pelos falidos).
Que nos ensina, por exemplo, um estoico como Epicteto? Que só temos domínio sobre nossa vontade, sobre nossas opiniões. E nos oferece um exercício básico: voltemos para nós mesmos e nos perguntemos se podemos exercer alguma influência sobre a ordem de um dado estado-de-coisas ou situação. Se não podemos, não nos perturbemos. A esse estado de ausência de perturbações, os antigos gregos chamavam “ataraxia”. A quietude absoluta e plena me é impossível. Por isso, nesse sentido, não me sinto um estóico. Fico, entretanto, com a coragem para o enfrentamento dos infortúnios do acaso. Negá-lo é mentir para si mesmo. E não deixei de ter medo. Epicuristas e estoicos unidos a um mesmo ideal: a permanência na serenidade. Ideal sempre me foi uma palavra entranhada na alma. Sua semântica costura o tecido de meu espírito desde que comecei a namorar os ultra-românticos. É verdade que minhas disposições ultra-românticas de outrora, sempre mal compreendidas,  estavam muito embaraçadas com meu temperamento de fé, de modo que, exorcizando este, eliminei daquelas o exagero sugerido no prefixo “ultra-“. Ainda me reconheço como um idealista, mas no sentido muito bem desenvolvido por Ingenieros, em seu O Homem medíocre. Os trechos se dispõem abaixo:


“Os idealistas românticos são exagerados porque são insaciáveis. Sonham o máximo para realizar o mínimo, compreendem que todos os ideias contêm uma partícula de utopia e perdem algo ao se realizar: em raças ou em indivíduos, nunca se integram como pensam. Em poucas coisas, o homem consegue chegar ao ideal que a imaginação assinala: sua glória consiste em avançar em sua direção, sempre inatingível.”

“[os idealistas românticos] são dionisíacos. Suas aspirações se traduzem por esforços ativos sobre o meio social ou por uma hostilidade contra tudo o que se opõe a seus palpites e sonhos. Constroem seus ideais sem conceder nada à realidade, recusando-se a ser tolhidos pela experiência, agredindo-a se ela os contrariar. São ingênuos e sensíveis, fáceis de se comoverem, acessíveis ao entusiasmo e à ternura; com essa ingenuidade sem falsidade que os homens práticos ignoram. Basta um minuto para se decidirem para toda a vida. Seu ideal cristaliza em firmeza inequívoca quando a realidade os fere duramente”.

(p. 26)

Uma característica intrigante do amor romântico é que, uma vez consumado sexualmente, ele perde o seu encanto ou arrefece seu desejo antes inflamado. O amor romântico é amor da impossibilidade de completar a sua falta. Não há páginas felizes na história do amor romântico, disso nos lembrou muito perspicazmente Hegel.  Daí que a morte, a loucura e o suicídio sejam males constitutivos desse gênero de amor. Não obstante, há uma característica do amor romântico que me atrai, a despeito de sua natureza irremediavelmente trágica: o amor romântico alimenta-se da alma e não do corpo. Insisto que a experiência sexual diminui o ardor do amor romântico.
Não me agrada referir trechos sem a partir deles produzir um sentido. Também não gosto de fraturá-los, para me concentrar em apenas um pedaço deles. Mas preciso fazê-lo. Toca-me a alma este enunciado, colhido do último exemplo citado: “Seu ideal cristaliza em firmeza inequívoca quando a realidade os fere duramente”. A realidade já me feriu, mas o ideal ainda permanece cristalizado em minha alma. Acho que os docentes precisam ser idealistas, em alguma medida. Sem ideais, não é possível fazer educação.
Epicuro é silenciado no cenário capitalista da modernidade líquida, em que os indivíduos são, em geral, ávidos de prazeres imediatos, extasiantes e constantemente renováveis. O que dura entedia; é bom que nada dure, ou dure o tempo suficiente para que se possa buscar novas formas de prazeres (o que significa dizer que dure muito pouco). Só há prazer em movimento; eles se entendiam com o prazer em repouso. Aliás, não há prazer no repouso, a menos quando estão dormindo ou se sentem demasiado cansados após um longo curso frenético de experiências de prazer, sempre fugazes.
A despeito dos bons momentos em que vivemos juntos, não seria feliz ao lado dela, porquanto ela se demonstrava incapaz de aprofundar-se nos oceanos de minha alma. Limitava-se a denunciar as flutuações superficiais de minha alma. Todavia, meu nascimento legou-me uma profundidade de espírito com a qual terei de me haver até o fim dos meus dias. E é provável que nunca chegue a compreendê-la cabalmente.
Sigo, então, a caminhar com o espírito vagaroso... E nesse reencontro comigo mesmo, sinto que muito de mim se perdeu... Não tenho saudade dos tempos em que vivia inteiramente absorvido em mim, mergulhado neste eu que vivia namorando a ideia de compreender a totalidade do Ser. E acreditava estar ela circunscrita no domínio da fé cristã. Eu, provavelmente, estive entre os melhores cristãos leigos contemporâneos, um cristão para quem a fé e Deus eram um problema para o pensamento. E o afirmo satisfeito e convencido de que a verdadeira salvação eu encontrei na/ pela filosofia. A salvação não pressupôs meu abandono, mas a restituição do meu lugar no devir inerente ao mundo. A escrita, as palavras que lancei sobre os papéis sempre me permitiram estar no controle sobre quem fui e quem sou.
Certamente, eu não escrevi tudo; não confessei tudo, nem poderia. Certos aposentos da alma devem permanecer trancados. Toda palavra que penetra nesses imensos esconderijos onde o ‘Eu’ se refugia comete uma violação, ou mesmo uma violência. Não é fácil lidar com as palavras; é preciso saber domá-las, manejá-las, arranjá-las, de modo que os significados não entrem em conflito, não se desmintam, não se contradigam. Palavras são artefatos belicosos, embora também, se bem empregados, possam produzir estados temporários de paz e harmonia.
E o silêncio convida-me ao retorno à leitura.

domingo, 10 de março de 2013

"Aprender sem pensar é tempo perdido." (Confúcio)


                                              

                                                  



              

                            Uma mentira crível: Noé e a Arca

                                                                        
                                               
                                 





                  
                                                                                        
Buscarei a concisão e me esforçarei por me fazer inteligível ao escrever este texto; e mesmo receando não conseguir cumprir com o que enuncio aqui desde logo, não posso deixar de considerar a importância do pensamento de Nietzsche para a própria atividade de escrita deste texto. É com Nietzsche que começarei a tratar do tema Noé: realidade ou mito? Em tempo, vou justificar o tratamento que dispenso a este tema que, a princípio, não o demandaria, já que não parece haver muita dúvida sobre o fato de que Noé, a sua arca e o Dilúvio são elementos de uma história mítica da Bíblia. No entanto, há quem pense justamente o contrário. Há quem acredite que Noé existiu e que o relato do Dilúvio na Bíblia é um fato histórico. Sinto decepcionar estas pessoas, que não são poucas - acredito eu. Mas voltemos a Nietzsche.
Por que começar fazendo alusão ao pensamento de Nietzsche num texto cujo tema é a crença na veracidade da história – de que veremos se tratar mítica - do Dilúvio na Bíblia hebraica? Uma resposta possível seria sugerir que Nietzsche engrossaria o coro de vozes que defendem a ideia de que se trata, de fato, de um mito bíblico. No entanto, há, além disso, uma razão mais geral para evocar aqui a figura de Nietzsche e essa razão diz respeito ao fato de ele ter desenvolvido o que chamou de “filosofia do martelo”, isto é, um modo de filosofar que consistia em destruir os ídolos erigidos pelas gerações que o precederam e que sobreviviam em seu tempo. Nietzsche se notabilizou, entre outras coisas, por declarar não só a morte de Deus, mas a morte do sujeito (cuja concepção remonta ao racionalismo cartesiano) e da objetividade. Ademais, coube a Nietzsche rejeitar qualquer pretensão à verdade. É com o espírito nietzschiano, que fomentou uma critica radical não só à filosofia de sua época, denunciada por ter-se afastado da vida, por ter-se envolvido numa atmosfera de abstrações e deduções lógicas, mas também às manifestações de vida e cultura da Grécia clássica, que remontam aos trabalhos de Homero e, no século V a.C., a Sócrates, a quem se imputa o papel de ter introduzido a racionalidade no pensamento grego, que me esforçarei por mostrar como devemos ver as histórias bíblicas. Filósofo dos instintos contra a soberania da razão, da qual somos herdeiros desde a modernidade (sec. XVII), decisivamente influente no  século das Luzes (sec. XVIII), filósofo que conclamava seus leitores (os de sua época e os posteriores) a educar-se contra o mundo, Nietzsche é um filósofo de peso, a quem não podemos deixar de recorrer, quando se trata de denunciar as imposturas da fé. Este foi Nietzsche, cuja contribuição para o trabalho crítico sobre toda forma de ideologia e falsificação da consciência, evoco. Nietzsche atacou as ilusões de seu tempo (que é o nosso tempo também), ilusões, não obstante, que perduram. Nietzsche foi um grande filósofo, não há dúvida, um filósofo para quem a essência da vida era a vontade de potência, conceito que, para ser bem compreendido, deve ser tratado relativamente à oposição que estabeleceu entre forças ativas e forças reativas. Não poderia, contudo, me ocupar dela aqui, sob pena de ir muito longe e não cumprir com aquilo a que me propus inicialmente. Fiquemos, contudo, com este Nietzsche para quem o mundo não é dotado de lógica em si; para quem, aliás, a lógica do mundo está em nós; para quem o mundo é um caos. Fiquemos com o Nietzsche para quem não há verdade, mas tão-só interpretações; para quem a relação de causalidade é uma questão de hábito, uma “impressão do espírito humano”. No prefácio de A Vontade de Potência (2011), aprendemos, a esse respeito, que:

“A relação causal, que para Descartes era uma das “verdades eternas” e que Leibniz colocaria como “princípio, não necessitado de demonstração, da razão suficiente”, simplesmente se baseia numa sucessão de fatos e implica, apenas, uma convicção íntima, o que prova a convicção e não a “verdade”.”
(p. 51)

Nietzsche desenvolveu uma filosofia da suspeita, que precedeu o aparecimento da psicanálise e que denunciou “as elucubrações dessa ínfima parte de nós mesmos, que é o pensamento consciente” (Ferry, 2010, p. 84).
Minha intenção era ocupar-me, nesta manhã, com a crítica ao romantismo desenvolvida por Nietzsche; no entanto, cuidei mais vantajoso adiar esse trabalho em proveito da exposição sobre por que não é razoável acreditar que a história do Dilúvio, narrada no Antigo Testamento da Bíblia cristã seja um fato histórico, ou seja, algo que realmente aconteceu. Uma razão forte para isso é, certamente, a falta de evidências de tão grandioso evento. Seria de esperar que ele deixasse marcas, registros geológicos, ou algum vestígio arqueológico. Mas não há sequer sombra dele no planeta. Mas há outras razões que precisam ser elucidadas e que, uma vez compreendidas, nos ajudarão a evitar considerar como verdadeiras outras histórias bíblicas, claramente lendárias ou míticas, como a de Jonas, que fora engolido por um peixe e permaneceu vivo, por um tempo, na sua barriga. Que o espírito nietzschiano inspire-nos na trajetória do esclarecimento que percorrerão estas palavras, doravante.
Não foi surpresa ter lido sobre a crença de uma pessoa, numa rede social de relacionamentos, em que Noé não era um personagem mítico. E acredito que a credulidade tão manifesta se explique, pelo menos em parte, nestas palavras tomadas a Freud, em O Futuro de uma Ilusão (2001):

“(...) as ideias religiosas são proposições, são enunciados acerca de fatos e circunstâncias da realidade externa (ou interna) que comunicam algo que o indivíduo não encontrou por conta própria, e que reivindicam que se creia nelas. Visto que nos informam sobre aquilo que mais nos importa e mais nos interessa na vida, elas gozam de alta consideração. Quem delas nada sabe é deveras ignorante; quem as incorporou aos seus conhecimentos pode ser considerado muito enriquecido.” (p. 73)


Vou-me deter um pouco neste trecho, a fim de trazer à luz algumas inferências, que iluminarão as razões que parecem explicar tão manifesto exemplo de credulidade. Se Freud estiver correto, as crenças religiosas são tipos de proposições nas quais passamos a acreditar como representativas de fatos, de realidades verdadeiras, por força de processos educacionais marcados pela autoridade (seja por membros de nossa família, de professores ou de nossa igreja). Para falar mais precisa e sucintamente, de acordo com Freud, as crenças religiosas nos foram herdadas por força da influência sobre nós de papéis autoritários representados por membros de nossa cultura. Nós a recebemos sem qualquer preocupação em examiná-las criticamente. Atribuímos a elas valor de verdade, sem fazer acordar em nós o espírito de suspeita nietzschiano. Não nos preocupamos em questionar se há evidências que as sustentem, se há boas razões para que a tratemos como crenças verdadeiras. Elas apenas, segundo Freud, atribuiriam ao seu portador certo prestígio em sua comunidade ou cultura. Ao contrário, quem delas nada sabe será tachado de ignorante. E eu acrescentaria que quem a elas se opõem será considerado um imoral, um herege ou um ímpio.
Com Freud, poderíamos dizer que, em nossa cultura, quem possui crenças religiosas e as declara é proprietário de um poderoso capital simbólico e, por isso mesmo, mobilizará a atenção, o apreço e o prestígio dos demais proprietários ou simpatizantes.  Os despossuídos, os não-proprietários, entre os quais se incluem os agnósticos, os mais céticos (sem religião) e os ateus, tenderão a ser depreciados, marginalizados e sua existência deplorada pelos que se acreditam possuidores de um bem valioso: a “verdade revelada”.
É, então, compreensível que alguém acredite que a narrativa do Dilúvio testemunhe um acontecimento histórico, se considerarmos o fato de que sua crença lhe foi inculcada na cabeça por força de agentes doutrinários, quer estejam oficialmente investidos desta função, quer não. Eu intento aqui proporcionar a essa pessoa (ou a essas pessoas) o contato com a verdade sobre essa história bíblica. Referirei o livro sobre o qual calcarei minhas considerações, qual seja, Como ler a Bíblia – História, profecia ou literatura (2007), de Steven L. McKenzie. Espero, assim, possibilitar aos interessados tomar consciência da importância desta obra para uma compreensão crítica da Bíblia e também despertar-lhes o interesse pela sua leitura.
O excerto que apresentarei, na íntegra, a seguir, foi colhido desta obra, muito embora nos informe Mckenzie que se trate de uma publicação universitária assaz conhecida nos EUA. Consoante escreve o autor, “ela mostra como os estudiosos bíblicos têm sido forçados pelas novas evidências a restringir ou revisar suas posições sobre a ideia de que a Bíblia relata eventos históricos reais” (p. 31). A fim de que se compreenda o texto que será citado, é preciso dizer que o título do capítulo é Não aconteceu exatamente assim – historiografia bíblica. É ao título que o autor do trecho fará referência quando emprega o pronome “disso”, que figura logo no início do texto e que destaco em negrito, para que o leitor não o perca de vista:

“Você não ficaria sabendo disso indo a uma igreja ou a uma sinagoga, ou lendo os artigos de final de ano nas revistas semanais, mas nos últimos ciquenta anos os estudiosos têm se debatido com a questão da credibilidade do Velho Testamento como documento histórico. A grande questão da arqueologia ocidental tem sido saber quantas narrativas bíblicas passaram da categoria de fatos aceitos para o reino misterioso da fábula. A primeira narrativa a seguir esse caminho foi a história da Criação do mundo no Gênesis. Que tipo de evidência poderia ser encontrada para apoiá-la? Ademais, o Dilúvio (e Noé) é um evento catastrófico que deveria ter deixado marcas geológicas claras, mas não existe nenhuma. Abraão, Isaac e Jacó protagonizaram histórias seculares 2000.a.C, mas não deixaram nenhuma evidência de sua presença. Se elas foram figuras históricas, temos de aceitar as palavras dos escribas bíblicos, que escreveram séculos após a morte dos patriarcas. A história da conquista de Canaã pelos israelitas soando trombetas e tudo o mais, tem dado lugar a outra versão, mais mundana, de infiltração pacífica e de revolta social entre os camponeses. Não existia nenhuma cidade murada em Jericó quando Josué supostamente a destruiu”.

(p. 31)


Convém, portanto, esclarecer o seguinte: a visão tradicional segundo a qual a Bíblia relata o que realmente aconteceu no passado está errada. Ela tem sido revisada, com base na ideia de que é preciso compreender de modo adequado o gênero bíblico a Escrita da História. Segundo Mackenzie,

“Um claro entendimento do gênero da historiografia na antiga Israel pode ajudar a resolver a tensão entre o respeito pela Bíblia e as investigações históricas dos estudiosos bíblicos e dos arqueólogos, permitindo que a fé não seja forçada a ser cega ou ignorando as análises eruditas modernas”.
(p. 32)


A concepção de História para os antigos israelitas é muito diferente da nossa. Eles não estavam preocupados tanto com o relato fidedigno de fatos quanto estavam em prestar contas com o passado. Pode-se, segundo Mackenzie, baseando-se na proposta de um estudioso chamado Van Seters, propor cinco critérios para definir e identificar a Escrita da História na antiga Israel. São eles:

1º) A Escrita da História se tratava de uma forma de tradição específica e não resultava de uma acumulação acidental de materiais históricos;
2º) A Escrita da História, porque visava a “prestar contas do passado”, buscava recordar o significado dos eventos passados, sem qualquer preocupação em relatar com acuro o que de fato aconteceu;
3º) A Escrita da História tinha como preocupação o exame das causas (basicamente morais) das condições do presente;
4º) A Escrita da História tinha caráter nacional e coletivo;
5º) A Escrita da História era literária e pertencia a uma parte importante da tradição coletiva.

Sem pretender a exaustão, Mackenzie nos ensina que a Escrita da História é uma espécie de etiologia e nos esclarece a respeito desse termo o seguinte:

“(...) Uma etiologia é uma história que explica a causa ou origem de um determinado fenômeno – uma peça cultural ou um costume social, uma circunstância biológica, até mesmo uma formação geológica. Uma etiologia não é, em sua natureza, uma explicação científica. Ela não é histórica, no sentido moderno de um evento que realmente aconteceu no passado. Ela é, preferencialmente, uma história que “presta contas”, oferecendo alguma explicação das condições e circunstâncias presentes, baseada em causas passadas. A antiga Escritura da História, que tenta “prestar contas” do passado era, na verdade, etiologia.

(p. 37, grifo meu)


Uma compreensão adequada, portanto, do gênero da historiografia bíblica implica, em parte entender o papel que desempenha a personagem Noé, após o evento (mítico) do Dilúvio. Lamec, pai de “Noé”, assim o chamou por acreditar que ele traria “o alívio” às pessoas, após o trabalho penoso. Noé foi a primeira pessoa a plantar uma videira e a fazer vinho, extraindo alívio do solo, consoante a previsão de seu pai. No entanto, Noé se excedeu e se tornou também o primeiro bêbado nu, que adormeceu em uma tenda. Seu filho Cam vê o pai naquele estado vergonhoso e conta a seus dois irmãos Sem e Jafé. Quando Noé desperta e descobre o que havia acontecido, amaldiçoa com a escravidão o filho de Cam, chamado Canaã. Segundo Mackenzie, a história acarreta muitas dificuldades de interpretação. Mas o que parece certo é que seu autor tinha a intenção de justificar a subjugação dos cananeus pelos israelitas. E a intenção se expressa por meio do recurso a eponímia. A eponímia é um recurso de linguagem pelo qual um nome de pessoa real ou imaginário passa a aplicar-se a um grupo, tribo ou nação. Esclarece-nos Mackenzie, nesse tocante, com as palavras seguintes:

“Um eponímico ancestral faz mais que gerar o nome de um grupo de pessoas, na verdade, ele o representa e o chega a encarná-lo. Canaã é a eponímia ancestral dos cananeus, o indivíduo que supostamente emprestou seu nome. Como existem vários grupos de cananeus, é improvável que eles tenham descendido de uma única pessoa. Mas isso é irrelevante porque Canaã representa o povo cananeu e o importante para a história é mostrar a conquista da terra de Canaã e justificar a subjugação de sues habitantes através da maldição que Noé impôs sobre o filho de Cam, Canaã”.
(p. 45)



Há muitos detalhes que não considerarei por razões de tempo e espaço. Mas espero tenha ficado clara a ideia de que a figura de Noé serviu ao autor da história do Dilúvio para explicar como o mundo foi repovoado depois do Dilúvio. Claro que esse repovoamento se deveu à participação dos três filhos de Noé, mas foi ele Noé quem inventa a própria Bíblia, entendida como um compêndio de relatos que buscam prestar contas do passado.
Muitas narrativas mitológicas incluem uma história de Dilúvio.  Por exemplo, Na Austrália, os aborígenes acreditam que a arca de Noé parou ao sul do rio Fitzroy. Alguns mitos de dilúvio indígenas fundiram-se com o mito bíblico, de modo a torná-los inseparáveis. Em um mito da Grécia Antiga, Zeus enviou um dilúvio para punir a arrogância dos primeiros seres humanos. Os huichols, grupo indígena do México central, narram um dilúvio ao qual apenas um homem e uma cadela sobreviveram.
Em 1872, George Smith, que aprendera a ler a escrita cuneiforme e a quem coube organizar tábuas antigas da antiga Mesopotâmia, fez uma descoberta surpreendente: encontrou um fragmento de uma história do Dilúvio, semelhante à história do mesmo acontecimento na Bíblia. Não há dúvida, hoje, de que a história do Dilúvio na Bíblia foi inspirada no mito da Arca dos mesopotâmicos. Mackenzie é bastante claro, ao nos ensinar sobre este fato:

“Restou pouca dúvida aos historiadores [após a descoberta de Geoge Smith] de que a história bíblica foi emprestada da civilização mesopotâmica. Elas são, na verdade, a mesma história: um homem recebe um aviso divino sobre um dilúvio iminente e também instruções precisas para construir um barco para salvar sua família e preservar a variedade de espécies animais. Sete dias mais tarde vem o Dilúvio, chove, e as águas inundam tudo. Toda a vida que não está a bordo do barco morre. Quando as águas abaixam, o barco vai dar em uma montanha. Eles enviam pássaros para saber se era seguro desembarcar. Os ocupantes do barco saem e oferecem sacrifícios. Os deuses/divindades ficam satisfeitas e prometem não destruir o mundo com outro dilúvio”.

(p. 59)

Ensina-nos Mackenzie ainda que, tal como sucede com trechos da “história primitiva” relatada dos capítulos 1 ao 11 do Gênesis, a história do Dilúvio surgiu da tentativa empreendida pelos escritores bíblicos de relatar as origens do mundo e das civilizações. E acrescenta: “assim como outras partes da história primitiva do Gênesis 1-11, como a história da Torre de Babel, a história bíblica do Dilúvio foi influenciada pela tradição mesopotâmia”. (p. 59)
Em várias oportunidades em que me ocupei com a discussão de questões relativas à religião, à Bíblia e à fé, fiz apelo a que os meus leitores buscassem nos livros esclarecimentos sobre as bases histórico-ideológicas de suas crenças religiosas. Malgrado o fato de eu supor se tratar de um apelo mudo, o faço por acreditar que a verdade vale mais do que qualquer promessa de conforto emocional. Mesmo que, por fraqueza, a busca pela verdade possa levar muitos ao desespero, ela sempre será profícua, na medida em que é ela mesma que nos incita a viver com relativa segurança num mundo absurdo. Estou ciente de que é possível que alguns leitores ignotos não se agradem do que leram aqui, mas isso não me surpreenderia, e Mackenzie descreve bem as dificuldades com que os estudiosos bíblicos precisam lidar:

”As pessoas que ouvem essas discussões no campo de estudo da Bíblia apresentam, tipicamente, uma de duas possíveis reações. A primeira pode ser caracterizada como “fé cega”. Essa postura é ilustrada por uma conversa que tive há alguns anos com um homem que estava realizando um trabalho em minha casa. Ele tinha estudo, era proprietário de um negócio, era honesto e um bom trabalhador. Ele também era um cristão devoto. Quando descobriu que eu ensinava sobre a Bíblia e tinha visitado o Oriente Médio, começou a me perguntar sobre as evidências arqueológicas de certos eventos narrados nela. Ele estava especialmente interessado no Êxodo do Egito, com Moisés e na conquista de Canaã, com Josué. Contei a ele que a ausência de evidências arqueológicas tinha levado muitos estudiosos bíblicos a questionar se aqueles eventos tinham realmente ocorrido, pelo menos da maneira descrita na Bíblia. Ele respondeu que para ele não interessavam as evidências arqueológicas. “Não interessa o que encontrem, sempre acreditarei que aconteceu exatamente do jeito que a Bíblia disse que aconteceu”.
(pp.31-32)


É difícil não ficar tentado a ver nesse caso tão emblemático da fé cega um traço de personalidade neurótica. Um dos mecanismos utilizados por uma pessoa neurótica é o da negação, mediante o qual, a despeito das evidências, ela se nega a aceitar a verdade de uma situação, mantendo-se agarrada à crença contrária. Ela não consegue suportar a ideia de que a realidade possa provar serem falsas suas crenças, especialmente as mais arraigadas. O homem do exemplo referido por Mackenzie se nega a aceitar as evidências contrárias à sua crença na veracidade dos relatos bíblicos e admite permanecer fiel ao que a Bíblia diz ser verdadeiro. No fundo, o que explica essa negação é o medo de encarar o absurdo da existência. Se a Bíblia, que tradicionalmente é vista como um livro inspirado por Deus, portador da promessa da vida eterna, apresenta inverdades, então, segundo a lógica desse cristão devoto, a vida não faz sentido e o desespero é inevitável. A fé, estrangulando a razão, abandona o indivíduo ao colo da dependência emocional que, embora se revele, à luz da crítica racional, bastante frágil e insuficiente para o usufruto de uma vida boa, precisa ser conservada para manter silenciado o medo do absurdo. É melhor a mentira da fé do que o enfrentamento filosófico do absurdo de nossa existência – pensando assim dorme o devoto seu sono cristão.