terça-feira, 10 de março de 2015

"O fato de viver deve ser colocado como uma espécie de conhecimento" (Aristóteles)


                                 


                   A Substância para Aristóteles e Spinoza
                         Um roteiro para estudos


Intróito

A filosofia, por si mesma e considerada em sua estrutura, é o ser na sua verdade, o ser que se eleva à manifestação da verdade, o ser que é verdade e expressão. A verdade pertence ao ser por identidade; e por identidade também o discurso sobre a verdade do ser pertence ao ser. A filosofia é o ser que se expressa em sua verdade. Fica, assim, assentada a inseparabilidade e identidade entre a filosofia e o ser. A palavra metafísica expressa essa inseparabilidade ou identidade entre a filosofia e o ser. Em decorrência disso, a filosofia é original e fundamentalmente metafísica.

Em princípio, previno o leitor de que este estudo não contempla o cotejo da metafísica aristotélica com a metafísica spinozista no que elas têm de contribuição para pensar a questão da substância. Meu intento é mais modesto. Busco oferecer um itinerário que, elucidando o modo como esses dois pensadores se ocuparam da questão da substância, motive e oriente estudos que visem a oferecer análises comparativas, que tornem patentes os pontos de aproximação e distanciamento entre os dois pensamentos no enquadramento da questão da substância.
Apresso-me, então, em iniciar o trabalho.

1. A ciência metafísica

De Aristóteles ( 384- 322 a.C) herdamos a distinção das ciências em três grandes domínios: a) ciências teoréticas, que visam ao saber por si mesmo; b) ciências práticas, que buscam o saber por meio do qual se possa alcançar a perfeição moral; e c) ciências poiéticas, que têm em vista o saber cuja finalidade é produzir determinados objetos.
Aristóteles atribuiu mais dignidade e valor às primeiras, chamadas teoréticas. Essas ciências se constituem da metafísica, da física (em cujo âmbito se insere a psicologia) e da matemática. É consabido, todavia, que o termo metafísica não é criação aristotélica. Reza a tradição que o termo surge por ocasião da edição das obras de Aristóteles feita por Andônico de Rodes, no século I. a.C.
Aristóteles usava, normalmente, a expressão filosofia primeira ou mesmo teologia em contraste com a filosofia segunda ou física. A posteridade veio a consagrar o termo metafísica, por ser considerado mais significativo.
Consoante sugere a estrutura mórfica do vocábulo meta-física (‘para além da física’), a metafísica aristotélica se ocupa das realidades que estão acima das físicas, das realidades suprafísicas, ou transfísicas.


1.2. O domínio da metafísica

Pertencem ao âmbito da metafísica aristotélica quatro tipos de preocupações: a) a metafísica se ocupa das causas e dos princípios primeiros ou supremos; b) investiga o ser enquanto ser; c) indaga a substância; d) investiga a questão de Deus e a substância supra-sensível.
A investigação metafísica teve seus precursores. Antes de Aristóteles, toda a tradição que se estende de Tales de Mileto a Platão desenvolveu um pensamento filosófico com preocupações, em última instância, metafísicas. Todos os filósofos monistas da natureza – os pré-socráticos – estavam preocupados em determinar uma causa ou princípio primeiro (a arché); e para alguns deles, essa causa ou princípio era de ordem metafísica;  claramente, nada tinha de “físico” ou “material”.  Entre aqueles, Parmênides, por exemplo, identificou esse princípio com o ser, o puro ser, que é condição de possibilidade da existência dos entes e de suas determinações. Platão, por seu turno, desenvolveu uma ontologia das Ideias muito elaborada, chamando ao mundo das Ideias ou das Formas Perfeitas a verdadeira realidade.
Podemos, desde já, numa primeira aproximação relativamente à problemática sobre a qual estas reflexões pretendem lançar alguma luz, definir a ousía ou a  substância como o ser fundamental ou o ser verdadeiro. Todavia, essa definição de substância, que figura aqui para situar o leitor na problemática que constitui o escopo deste texto, pressupõe a superação do monismo eleático e o compromisso com a demonstração de que existem muitos seres, diversas formas e diversos gêneros de realidade. Uma breve digressão se faz aqui necessária. Por gênero entende-se o conceito que engloba outros conceitos, relativamente aos quais possui maior extensão; por espécie, ao contrário, entende-se o termo que relativamente ao gênero possui menor extensão e, consequentemente, maior compreensão.
Urge enfatizar que a investigação sobre as causas e princípios primeiros conduz, necessariamente, à determinação de Deus. Deus é, pois, a causa e o princípio primeiro, por excelência. Por isso, a pesquisa aitiológica, isto é, a das primeiras causas e princípios desemboca estruturalmente na teologia.
Para Aristóteles, a questão “o que é a substância?” implica a questão “que tipos de substâncias existem?”. Aristóteles estava preocupado em determinar se existem somente as substâncias sensíveis ou se também existem as supra-sensíveis ou divinas. É daí que se segue o problema teológico.
É necessário compreender por que Aristóteles usou o termo teologia como equivalente de metafísica. Ora, quando se consideram as três primeiras preocupações recobertas pelo âmbito da metafísica, não parece difícil inferir que elas encaminham, necessariamente, a investigação para a dimensão teológica. A pesquisa sobre Deus não constitui apenas um momento da pesquisa metafísica, mas é o momento essencial e definitivo. Se não houvesse uma substância supra-sensível, afirma Aristóteles, não existiria a metafísica.
Em suma, a metafísica é a ciência livre por excelência, porquanto encontra em si mesma o seu fim.


2. As quatro causas

Nesta seção, cumpre examinar quais são as causas primeiras de que se ocupa a metafísica.
Aristóteles afirmou que essas causas devem ser, necessariamente, finitas em número. Quanto ao mundo do devir, elas se reduzem a quatro causas: a) causa formal; b) causa material; c) causa eficiente; d) causa final. Vale notar que “causa” ou “princípio”, para Aristóteles, significa o que funda, o que condiciona, o que estrutura.
A causa formal se identifica com a essência (forma, em Aristóteles, é sinônimo de essência); a causa material é a matéria. Essas duas causas constituem todas as coisas. Ou seja, todas as coisas são constituídas de forma e matéria. As causas formal e material explicam as coisas sob o ponto de vista de sua estaticidade, mas não as explicam quando as consideramos dinamicamente. Essas causas não dão conta das questões “como nasceu?”, “quem a gerou?”, “por que se desenvolve e cresce?”. Por isso, a resposta a essas questões suscita a necessidade de recorrer à causa eficiente ou motora e à causa final, o telos.
Abaixo, apresenta-se, para cada uma das quatro causas, a sua respectiva definição:

1) causa formal: constitui a forma ou essência das coisas. Por exemplo, é a alma nos animais, a estrutura para os diferentes objetos de arte. Em linguagem, quando se fala na forma de uma sentença está-se referindo à sua estrutura interna, que resulta da articulação de suas unidades constitutivas.

2) causa material: é aquilo de que uma coisa é feita. Por exemplo, a matéria dos animais é a carne e os ossos; a matéria da esfera de vidro é o vidro, e assim por diante.

3) causa eficiente ou motora: é aquilo de que provêm a mudança e o movimento das coisas. Os pais são a causa eficiente dos filhos. A vontade é a causa eficiente de várias ações humanas.

De passagem, noto que, por movimento, Aristóteles não entendia apenas a transladação, mas também as transformações sofridas pelas coisas. O movimento era compreendido, portanto, também em termos de alteração, aumento e diminuição, geração e corrupção das coisas. Reale (2007) entende que a geração e a corrupção são recobertas pela categoria da mudança relativamente à substância. Mudança seria o termo genérico, e o movimento seria o termo para designar a alteração, o aumento/ diminuição e a translação. Sem pretender nos deter em controvérsia, com base no que nos ensina Chauí (2006, p.9), pode-se dizer que, para os gregos, entre os quais se situa, naturalmente, Aristóteles, movimento significa toda e qualquer alteração de uma realidade. Movimento envolve mudança, que pode ser qualitativa (uma semente que se torna árvore);  quantitativa (um corpo que aumenta de volume ou diminui); de lugar (a trajetória de uma flecha); ou em termos de geração ou corrupção (nascimento e perecimento das coisas e dos homens).

4) causa final: constitui o fim ou o escopo das coisas e das ações; é aquilo em função do qual uma coisa é ou advém. É o bem de cada coisa.

O ser e o devir das coisas exigem, em geral, essas quatro causas. Essas causas são imediatas; mas, além delas, são necessárias as causas ulteriores que se encontram no movimento dos céus, e a causa suprema do Primeiro Motor Imóvel.


3. Os múltiplos sentidos do ser

“O ser se diz em múltiplos sentidos”, escreveu Aristóteles. Sabemos, com base no que foi exposto, que a metafísica se define, para Aristóteles, como a ciência do ser ou ainda do “ser enquanto ser”. Faz-se necessário compreender, doravante, o que é o ser e o que é “o ser enquanto ser” no contexto do pensamento aristotélico.

O que é, pois, o ser?

Essa questão nos conduz de volta a Parmênides, especificamente, e ao eleatismo, de modo geral. Parmênides via o ser como absolutamente idêntico a si mesmo. Do ser só se pode dizer que ele é. Por isso, o ser se definia de modo unívoco, ou seja, o ser se entendia num único sentido. A univocidade do ser implica também a sua unidade.
O eleatismo, pelo trabalho de Zenão, Melisso e a Escola de Mégara, consagrou-se como uma doutrina do Ser-Uno que compreendia a totalidade do real. A compreensão no Ser-Uno da totalidade da realidade acarretou a imobilização do Todo. Todo movimento estava, portanto, excluído do Ser.
Aristóteles, por sua vez, identificou o erro que se acha na raiz da doutrina eleática. A partir daí, ele formulou seu princípio que consiste na originária multiplicidade de sentidos do ser. Eis a base de toda a sua ontologia. O ser não tem um sentido unívoco, mas polívoco. Veja-se, então, como Aristóteles, caracteriza o ser:

a) o ser não pode ser entendido univocamente, à maneira dos eleatas. Também não pode ser entendido como gênero transcendente ou universal substancial, tal como o compreenderam os platônicos;

b) o ser expressa originariamente uma multiplicidade de significados;

c) o ser não é um gênero ou uma espécie. É um conceito transgenérico, além de trans-específico, vale dizer, é mais amplo e mais específico do que o gênero e a espécie;

d) o ser não deixa de ter uma unidade. Todavia, essa unidade não é nem de espécie nem de gênero. O ser exprime diversos significados – já o dissemos -, mas todos os significados estão em uma relação precisa com um princípio idêntico ou uma realidade idêntica. Assim, as diversas coisas das quais dizemos “são” exprimem sentidos diferentes de ser, mas ao mesmo tempo todas implicam uma referência a algo que é uno;

e) Finalmente, esse algo que é uno é a substância.

Daí se conclui que aquilo que unifica o ser é a substância. A unidade dos vários significados de ser decorre do fato de serem expressos em relação à substância.
A ontologia aristotélica, conquanto se ocupe do estabelecimento e distinção dos vários significados do ser, não se reduz à fenomenologia, visto que todos os diferentes significados do ser implicam a referência fundamental à substância.
Vamos, agora, esclarecer o significado da fórmula “ser enquanto ser”. Ela não significa, na interpretação de Reale (2007, p. 36), que se toma o ser puro abstrato, unívoco, o ser em geral. Ora, uma vez que Aristóteles não pensava o ser como uma espécie, tampouco como gênero, “ser enquanto ser” só pode expressar a própria multiplicidade de significados de ser e a relação que há entre eles e que faz com que cada um deles seja ser. “O ser enquanto ser” é a substância e tudo mais que, de modos múltiplos, se refere à substância.
Antes de atacarmos a questão da substância, que até o momento foi apenas esboçada, convém passar em revista a tábua aristotélica dos significados do ser e sua estrutura.


3.1. A tábua aristotélica dos significados do ser

O que me cumpre apresentar, doravante, é quantos e quais são os significados do ser, estruturados por Aristóteles em uma “tábua”. Atente-se, portanto, para o elenco dos significados do ser, que se elucidam abaixo:

1) o ser se diz no sentido acidental, isto é, como ser acidental ou casual. Por exemplo, quando dizemos “o homem é poeta”, o “ser poeta” exprime um puro acidente, um puro acontecer.

2) Opondo-se ao ser acidental, há o ser por si. Nesse caso, indica-se o que é por si, isto é, essencialmente.
A substância é um exemplo de ens per se, segundo Aristóteles. Mas, além desta, todas as categorias - a substância, a qualidade, a quantidade, a relação, o agir, a paixão ou o padecer, o onde e o quando – são consideradas ser por si.

3) o ser é o verdadeiro e se contrapõe ao não-ser, que é falso. Trata-se de um ser que podemos chamar de “lógico”. O ser verdadeiro indica o ser do juízo verdadeiro, ao passo que o não-ser como falso sinaliza o ser do juízo falso. Esse ser é puramente mental; portanto, só subsiste na razão.

4) Por fim, há também o significado de ser enquanto potência e ato.

Segundo Japiassú & Danilo (2008, p. 222), potência se define em oposição recíproca a ato. A potência é o estado virtual de ser. O ato, por seu turno, é o fato de ser plenamente realizado. Assim, um ser em ato é plenamente realizado; por outro lado, um ser em potência encontra-se em estado de devir, de possibilidade de realizar-se, em estado de potencialidade. Por exemplo, a planta é o ato da semente (a semente que se realizou); por seu turno, a semente indica que a planta está em potência, porque, enquanto semente, ela, a planta, ainda não se realizou.
Vejamos mais um exemplo. Quem vê é tanto quem pode ver, quem tem a potência para ver, ou seja, a capacidade de ver, embora possa estar momentaneamente com os olhos fechados, quanto quem vê em ato,  quem realiza a capacidade da visão. É preciso assinalar que, segundo Aristóteles, o ser segundo a potência e o ser segundo o ato é extensivo a todos os significados de ser, já contemplados. Pode-se, assim, haver um ser acidental em potência ou em ato; um ser de um juízo verdadeiro ou falso em potência ou em ato, e assim por diante.
Resumidamente, são os seguintes os significados de ser, ordenados do mais forte ao mais fraco:

1) ser segundo as diferentes figuras de categoria;

2) ser segundo o ato e a potência;

3) ser como verdadeiro e falso;

4) ser como acidente ou ser fortuito.

Há que distinguir também os significados do não-ser, que são três:

1) não-ser segundo as diferentes figuras de categorias;

2) não-ser como potência;

3) não-ser como falso.

O ser acidental não apresenta um correlato não-ser, dado que, segundo Aristóteles, é por si “algo próximo ao não-ser” (Metafísica, E2, 1026 b21).
Totalizam dez as figuras de categorias propostas por Aristóteles. Elas não apresentam significados idênticos de ser, mas veiculam significados diferentes de ser.


3.2. As figuras de categorias

Segundo Aristóteles, as figuras de categorias (ou simplesmente categorias) se dizem ser não em sentido unívoco. No entanto, seus múltiplos significados supõem a referência a uma única e mesma coisa. Essa única e mesma coisa, a última realidade, é a substância.
Todavia, a questão sobre o que são as figuras de categorias continua em aberto. É necessário, portanto, esclarecê-la. Para tanto, retome-se a ideia de que o ser se diz em múltiplos sentidos. São múltiplos os significados de ser. A diversidade do significados de ser, no entanto, funda-se numa unidade.
As categorias também precisam apoiar-se sobre uma unidade, a despeito de serem diversos os seus significados, pois, senão, como poderiam reunir-se num único grupo? O que torna possível inseri-las num único grupo é o fato de elas apresentarem os significados primeiros e fundamentais do ser. Elas representam os significados nos quais se divide originalmente o ser; são elas as supremas divisões do ser. Aristóteles dirá que são os supremos gêneros do ser.
A verdade, no entanto, é que permanece insolúvel o problema que consiste em saber como Aristóteles chegou até as categorias e a sua tábua. É provável que o processo de dedução através do qual ele pôde propô-las tenha se servido das pesquisas lógicas, linguísticas e, sobretudo, da análise fenomenológica e ontológica. Mas esta é uma questão que não nos ocupará aqui.
Segue-se, pois, a tábua das categorias:

1.     Substância ou essência
2.     Qualidade
3.     Quantidade
4.     Relação
5.     Ação ou agir
6.     Paixão ou padecer
7.     Lugar ou onde
8.     Quando ou tempo
9.     Ter
10.     jazer

Excederia os limites desta exposição o pretender esclarecê-las uma a uma. Será bastante pontuar que todos os significados do ser pressupõem o ser das categorias. Assim, por exemplo, o ato e a potência assumem tantos significados diferentes quantos forem as categorias. Disso resulta que há uma forma de ser em ato e uma forma de ser em potência segundo a substância; uma forma de ser em ato e uma forma de ser em potência, segundo a qualidade, e assim sucessivamente.
Não menos importante é observar que as várias categorias não se equiparam em nível. Há uma diferença radical entre a substância e as demais categorias. Todos os significados de ser pressupõem o ser das categorias; e o ser das categorias depende completamente da primeira categoria, a saber, a da substância.
Está pavimentado, pois, o terreno em que podemos situar e explorar o problema, complexo, da substância. Passarei a tratar dele na próxima seção.


4. O problema da substância

Com vistas a lograr um entendimento o mais satisfatório possível da questão dos significados da substância na metafísica aristotélica, convém começar recuperando o que os seus predecessores disseram a respeito dela. Alguns viram a matéria sensível como a única substância. Platão, a seu turno, viu nos entes supra-sensíveis a verdadeira substância. O senso comum, em contrapartida, identificou a substância com as coisas concretas.
Aristóteles se debruçou sobre a questão com um propósito bem claro. Para ele, tratava-se de determinar que substâncias existem. Existiriam somente as sensíveis, como pretendia a solução dos naturalistas? Ou também existiriam as supra-sensíveis, como pretendiam os platônicos? É esta a questão última da metafísica aristotélica. É esta a questão por excelência que ocupou o Estagirita. Ele precisou empreender um retorno a Platão com vistas a decidir da validade ou não da doutrina dos Princípios e da teoria das Ideias.
Entanto, de imediato, o problema que ocupou Aristóteles era o da substância em geral. Que é a substância em geral? – esta é a questão que está na raiz de sua usiologia. Seria a matéria? Seria a forma? Seria o sínolo? (o sínolo é o composto de matéria e de forma).
Fique claro que só é possível determinar se só existe o sensível, ou se, além deste, existe o supra-sensível, depois que se resolver a questão sobre o que é a ousía em geral. E a razão disso é a seguinte. Se o exame encaminhasse a conclusão de que a ousía só é a matéria ou o sínolo de matéria e forma, seguir-se-ia daí que a questão da substância supra-sensível se esvaeceria. Mas, se a conclusão a que se chegasse fosse a de que a ousía é uma coisa diversa da matéria, então a questão do supra-sensível se imporia necessariamente.
Para tratar da substância em geral, Aristóteles partiu do que é incontestável: a existência das substâncias sensíveis. Estas são as únicas substâncias que conhecemos. Portanto, antes de decidir se existe uma substância supra-sensível e de tratar da substância em geral, era preciso tomar como ponto de partida a existência inegável das substâncias sensíveis.


4.1. A substância em geral

Tendo em vista tudo que se expôs acerca do sistema aristotélico, pode-se inferir que o Estagirita entendia a ousía segundo três significados diversos: 1) a forma; 2) a matéria e 3) o sínolo.
Cumpre-me dilucidar esses três significados à luz dos quais se compreende a substância em geral.

1) A substância é, num sentido, a forma.

A forma, para Aristóteles, não é extrínseca às coisas, não é a figura exterior das coisas. É a natureza íntima das coisas, é a essência íntima delas. Quando definimos as coisas, referimo-nos à sua forma ou essência, de modo que as coisas são cognoscíveis na sua essência.

2) A substância é, dentro de certos limites, a matéria de que se constituem as coisas.

É evidente que a matéria sem a forma seria indeterminada, mas, se a alma racional (a forma) não enformasse (dar forma a) um corpo (matéria), não haveria um homem. É nesse sentido que a matéria é também fundamental para a constituição das coisas e, portanto, é, num sentido restrito, a substância. Aristóteles dirá que a matéria só é substância num sentido impróprio.

3) O sínolo, que é o composto de forma e de matéria, é também substância

Ora, todas as coisas sensíveis podem ser consideradas na sua forma, na sua matéria, no seu todo. Mas é tão somente a título diverso que Aristóteles considera a forma, a matéria e o sínolo substância.

A substância em geral, para ele, deve apresentar as cinco características definidoras reunidas a seguir:

1ª) A substância não é inerente a outra coisa e não se predica de outra coisa, mas é substrato de inerência e de predicação de todos os outros modos de ser;

2ª) A substância só pode ser um ente que subsiste por si ou separadamente do resto e que é dotado de uma forma de subsistência autônoma;

3ª) Só é substância o que é algo determinado. Não é substância um atributo geral, nem algo universal ou abstrato;

4ª) A substância deve ser algo intrinsecamente unitário. Não deve ser constituída de partes, nem deve ser uma multiplicidade não-ordenada.

5ª) Finalmente, só é substância o que é em ato.

Um exame que pretendesse determinar qual dos três significados, anteriormente definidos, receberia a qualificação de substância, levar-nos-ia à conclusão de que a forma, e somente ela, é a substância por excelência.
Ora, a forma não deve tomar seu ser de outro e não se predica de outro (1). A forma pode separar-se, a princípio, da matéria, ou porque é ela que fornece seu ser à matéria, ou porque existem substâncias que apresentam apenas forma e não têm matéria (2). A forma é algo determinado e determinante (3). A forma é unidade por excelência; é princípio que confere unidade à matéria da qual é forma (4). Por fim, a forma é ato por excelência; é princípio que confere ato (5).
Para concluir, é importante ter em conta o fato de que a forma aristotélica não é o universal; não se confunde com as Formas platônicas que existiriam num mundo à parte do mundo das coisas sensíveis. A forma ou eidos é um princípio metafísico que estrutura a matéria. A substância é a forma pela qual a matéria recebe uma determinação, vale dizer, se torna uma determinada coisa.
É forçoso adiar para outra oportunidade a questão da substância supra-sensível. Aqui, limito-me a dizer que ela é a forma pura, privada absolutamente da matéria. A demonstração da existência da substância supra-sensível nos conduziria à postulação do Primeiro Motor Imóvel, ou seja, Deus – questão última para a qual encaminha a empresa metafísica, conforme dissemos no limiar deste texto. O Primeiro Motor Imóvel, ou Deus, é a substância imóvel, eterna e indivisível. É puro ato.

                 


O monismo substancialista de Spinoza

5. Só existe uma substância: Deus


Seu prenome, em português, é Bento, traduzido para o latim como Benedictus e para o hebraico como Baruch. Baruch Despinoza nasceu em Amsterdã, em 1632. Descendente de uma família judia, deixou Portugal, para fugir da Inquisição, chegando à Holanda, onde estudou filosofia judaica e teologia da Idade Média. Também se debruçou sobre os escritos da cabala e aprendeu grego e latim.
Spinoza se dedicou também a estudar a filosofia escolástica e se vinculou ao iluminismo então nascente na Holanda, razão por que se distanciou da ortodoxia judaica, tendo sido expulso da sinagoga em 1656.
Seu pensamento foi influenciado, de modo especial, pela filosofia de Descartes, passando por Malebranche.


5.1. O método geométrico

Não há dúvida de que não houve, na história da filosofia, nenhum outro pensador que elaborasse e desenvolvesse um método geométrico tão rigoroso quanto Spinoza. Nesse sentido, avulta a influência de Descartes. Spinoza adotou o princípio que Descartes postulou em um capítulo das Meditações. Descartes pretendia desenvolver seus pensamentos ordenando-os rigorosamente segundo o método geométrico. Em Descartes, no entanto, isso foi apenas esboçado; sucedeu diferente no caso de Spinoza. O método geométrico dirigiu a integralidade de seu sistema. Spinoza foi herdeiro do ideal científico da geometria euclidiana.
Esposando o método euclidiano, Spinoza procedeu  à sua investigação, estabelecendo primeiro as definições dos conceitos fundamentais, dos quais fez derivar axiomas; com base nestes, os demais conhecimentos foram deduzidos rigorosamente, tomando a forma de proposições. Esse rigor spinozista na condução de seu pensamento é patente em seu principal trabalho –Ética.
O rigor de seu método não deve, contudo, nos escusar de observar criticamente que Spinoza pressupôs decisões fundamentais objetivas. Ele não se apoiou na experiência, mas partiu unicamente do pensamento racional puro, cujo desenvolvimento se deu de intelecções básicas evidentes para outros conhecimentos. Seu sistema é sustentado pelo pressuposto de um paralelismo entre pensamento e ser. O ontologicamente primeiro é necessariamente o primeiro conhecido. O que tem origem no ser deve ser dedutível de princípios que se encontram em nosso pensamento. Segue-se disso que toda a realidade se submete à necessidade lógico-matemática. Assim também, tudo que é aparentemente contingente se determina pela necessidade a priori; por isso, é logicamente dedutível. O conhecimento lógico-necessário constitui o quadro no interior do qual o acontecimento real, determinado por uma pluralidade de relações causais, se interpreta como um domínio de relação necessariamente lógica entre fundamnto e consequência. A relação real de causa e efeito se converte, no domínio do pensamento, em relação lógica entre fundamento e consequência.
Em tal quadro de referências, não há lugar para o acontecimento contingente e muito menos para a ação livre. A tudo subjaz uma determinação necessária. Isso levará Spinoza a deduzir, necessariamente, da essência de Deus o mundo e tudo que nele acontece. Essa operação dedutiva é análoga à que se verifica quando da essência do triângulo segue-se a soma dos seus ângulos.


5.2. O monismo substancial

É conhecida a quem quer que esteja familiarizado com o pensamento de Spinoza a asserção dele segundo a qual só existe uma única substância. Essa única substância, ele chama de Deus ou a Natureza. Seu argumento destinado a sustentar esse monismo substancial, embora não tenha convencido alguns de seus comentadores, foi formalizado do seguinte modo:

(a)   Há uma substância que tem todos os atributos.
(b)  Não pode haver duas substâncias que tenham um atributo em comum.
(c)   Não pode haver uma substância desprovida de atributos.

Logo
(d) Não pode haver duas substâncias.

Embora válido, porque a premissa (c) parece verdadeira, esse argumento apresenta problemas. O principal deles é que a premissa (a) depende de uma versão especial do “argumento ontológico” em favor da existência de Deus. Essa versão especial do argumento é tão frágil quanto qualquer uma das outras versões do paralogismo.
Spinoza inferiu a existência de Deus – que não é o Deus pessoal, onipotente e infinitamente bom da tradição judaico-cristã – do fato de que Deus é uma substância. Spinoza acolheu, sem reservas, a ideia, consagrada pela tradição, de que a substância é algo cuja existência não depende de outra coisa. Ela existe por si mesma. Isso se assemelha à ideia de causa sui,  causa de si, que Spinoza interpretou a seu modo, a fim de lhe garantir um sentido. Ele não encarou a causa sui como autocausação da substância, mas a interpretou num sentido mais lógico do que propriamente causal. Segundo ele, a existência da substância deve ser explicada pela natureza da própria substância. Por conseguinte, Spinoza endossou a conclusão de que a essência da substância implica a sua existência. Logo, Deus, que é a única substância, “(...) consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente” (Ética, 2011, pp. 11, p. 19).
A conveniência exigida pela natureza do suporte de publicação deste texto impõe-me que eu limite a discussão sobre o tratamento dispensado por Spinoza à questão da substância aos conceitos fundamentais que se topam na obra Ética. Uma investigação mais detida da filosofia spinozista deverá aguardar estudos ulteriores que a tornem possível.
No limiar de sua Ética, Spinoza define a causa sui como “aquilo cuja essência inclui em si a existência, ou aquilo cuja natureza somente pode ser pensada enquanto existente” (I, Def. 1, p. 13). Causa sui significa, para Spinoza, o princípio divino supremo. Esse conceito tem uma longa e diversificada história. No entanto, ele foi usado, na maioria das vezes, em relação não a Deus, mas à liberdade humana. A causa de si não é autocausação, para Spinoza, mas designa a existência necessária e autofundante do existente absoluto (Deus).
Partindo de Descartes, Spinoza apresentou outras definições de substância, dos seus atributos e dos modos; porém o fez de uma forma nova. Por substância, ele entendeu “o que é em si e concebido por si, aquilo cujo conceito não necessita do conceito de outra coisa do qual deva ser formado”. Lembremos, neste momento, que Descartes definiu a substância como “algo que não necessita de outra coisa para existir”. Spinoza, a seu turno, dá a essa definição cartesiana de substância uma forma lógica, em cuja base está pressuposto o paralelismo entre ser e pensamento. Se é “em si” deve necessariamente ser concebido a priori a partir de si. No curso de seu pensamento, Spinoza esclarecerá que compreende o “ser em si” apenas no sentido de uma substância absoluta e divina.
Por atributo, Spinoza entende aquilo que o entendimento apreende de uma substância enquanto é constituinte da essência dessa substância. O atributo é, pois, uma característica da essência da substância. Destarte, Deus, a única substância necessariamente existente, possui atributos infinitos, dos quais, porém, só conhecemos o pensamento (cogitatio) e a extensão (extensio).
Ao dizer de Deus que tem atributos infinitos, Spinoza não deixa de ser pouco claro. Se estava querendo dizer que Deus ter infinitos atributos implica que tem todos os atributos, tal implicação não se sustenta, quando se considera o significado que nós atribuímos, normalmente, ao vocábulo “infinito”. Essa é uma questão que não nos interessará na presente discussão. Fica apenas aqui sugerida como um ponto de controvérsia entre os pesquisadores.
Quando Spinoza diz que dos atributos infinitos da substância divina só conhecemos o pensamento e a extensão, ele torna patente a influência que sobre seu pensamento exerceu Descartes, particularmente no momento em que este propôs a dicotomia da res cogitans (coisa pensante) e res extensa (coisa extensa). Mas essas duas substâncias foram interpretadas, na metafísica de Spinoza, como atributos da única substância existente, que é Deus. Spinoza pensou como atributos de uma única substância o que, na doutrina cartesiana, eram duas substâncias distintas.
modo, por sua vez, é a afecção da substância; é aquilo que existe em um outro. É um acidente enquanto inerente à substância. O modo deve ser concebido a partir da substância, que é o ontologicamente primeiro. Só há uma substância, e todas as coisas finitas são meros modos, afecções acidentais da substância. Destarte, o ens in se (ser em si) é concebido como ens a se (ser por si), assim como o ens in alio (ser em outro) é concebido como ens ab alio (ser de outro).
Todo contingente não existe substancialmente, mas apenas como modo da substância divina. Todas as coisas, incluindo nós, seres humanos, são modos de expressão e de desdobramento (ou emanação) de Deus (da Natureza ou Substância) no domínio da extensão (coisas corpóreas) ou do pensamento (seres espirituais), mas todos encerrados na única substância, que é Deus.
A unidade e a singularidade da substância de Deus que tudo sustenta e de onde tudo emana é o pensamento básico de Spinoza. Monismo substancialista, portanto: só há uma substância infinita. Esta substância é Deus enquanto causa de si.
Levo a cabo este texto, sugerindo que a Ética de Spinoza é, em última instância, um trabalho de inspiração religiosa. Parece bastante para prová-lo seu apelo a que os esforços humanos devam ser orientados para a união com Deus – união que se expressa na fórmula amor Dei intellectualis (o amor intelectual a Deus). Esse amor intelectual a Deus é um contentamento com a ideia de Deus como causa (não se confunde com o amor cristão a Deus). O amor intelectual a Deus é eterno, assim como o é o próprio Deus.

Summum mentis bonum est cognitio Dei – “o bem supremo da alma é o conhecimento de Deus”. É também a virtude suprema. É preciso, no entanto, enfatizar a ideia de que Spinoza só conserva a transcendência de Deus na medida em que afirma a infinidade de seus atributos, a qual nos é incognoscível. Mas esse Deus, quando considerado nos termos dos dois atributos que nos são cognoscíveis – o pensamento e a extensão -, é um Deus imanente ao mundo; é, decerto, o fundamento substancial do mundo, e não um Criador livre, nem um Deus vivo e pessoal, como o da tradição judaico-cristã. O Deus spinozista, a substância infinita e única é tão-só o princípio de consequências matemáticas necessárias. 

segunda-feira, 9 de março de 2015

Morfologia lexical - processos de formação de palavras

                     
                        


                              No reino das palavra
        A diversidade funcional dos processos de formação lexical


Convido o leitor a acompanhar-me na expedição para as fascinantes regiões delimitadas pelo estudo da morfologia lexical, onde se põe a descoberto a criatividade e a dinâmica envolvidas nos processos de formação das palavras. Ao longo de nosso estudo, gostaria de provocar no leitor o mesmo fascínio ou interesse que sinto ao investigar os mecanismos gramaticais que se põem a serviço da produção de sentidos, fenômeno este ligado a radice à existência da linguagem. Não há linguagem sem produção de sentidos; a linguagem só existe na medida mesma em que serve à produção de sentidos. E a própria possibilidade de produção de sentidos depende da utilização de alguma forma de linguagem.
As experiências escolares do leitor fornecerão insumos a sua compreensão do tema a cujo tratamento é destinado este texto. No entanto, é possível que alguns outros tantos conhecimentos não estejam previamente disponíveis ao leitor e que, por conseguinte, sejam adquiridos por ocasião da leitura deste texto. Se isso acontecer, este texto terá cumprido o objetivo último a que visa.
Será necessário iniciar nossa expedição com a apresentação de um conjunto de conceitos preliminares que terão não só um inegável valor operacional, ao longo do trâmite analítico, como também contribuirão para facilitar o entendimento do texto pelo leitor. Considerem-se, portanto, os seguintes conceitos que são indispensáveis ao desenvolvimento de nossa investigação e que convém sejam conhecidos previamente pelo leitor:

1) morfologia

A Gramática Tradicional nos habitou a definir a morfologia como “estudo da forma das palavras”. A morfologia é o domínio da gramática que se ocupa da descrição da estrutura interna da palavra. Do ponto de vista morfológico, a palavra, ainda que seja um ponto problemático em termos de sua definição/identificação, é vista como uma construção resultante da combinação de elementos formativos numa ordem fixa segundo padrões previstos no sistema gramatical da língua. No capítulo da morfologia, está, portanto, o interesse pelos tipos de morfemas, pelas formas como eles se combinam para permitir a formação das palavras e pelos processos de formação de palavras. A unidade mínima da análise morfológica é o morfema.

2) morfema

O morfema é a mínima unidade sonora dotada de significado de que se constitui a palavra. Essa é a definição clássica de morfema. Ela nos diz três coisas a respeito do morfema: 1) é uma unidade mínima de sons; 2) essa unidade é dotada de significado; 3) essa unidade entra na construção da palavra. Vejamos se essa definição satisfaz o caso da palavra amoroso. Vamos reunir a esta outras palavras análogas, morfologicamente: gostoso, saboroso, vaidoso, horroroso. Elas apresentam um elemento em comum: a terminação “-oso”. Vamos organizá-las numa linha vertical, destacando, em negrito, esta terminação:

Amoroso
Gostoso
Saboroso
Vaidoso
Horroroso

O destaque em negrito da partícula “-oso” revela que também se destacam as partes: amor, gost-, sabor, vaid-, horror. Três dessas partes constituem formas livres na língua, isto é, podem ser usadas em enunciados da língua como palavras. Duas delas, no entanto, são chamadas formas presas porque só podem ocorrer combinada com outras formas. Todas as pequenas partes são unidades sonoras mínimas, e todas elas são dotadas de algum significado. Ignorando o fato evidente de que “amor”, “sabor” e “horror” são formas dotadas de significado, cumpre notar que mesmo as formas “gost-” e  “vaid-“ comportam, na relação sistemática com o que se lhe segue, ou seja, com o elemento “-oso”, uma base de significado. É importante destacar que elas significam nessa relação sistemática, já que “gost-” em si é desprovido de significado, não é uma palavra; mas é parte de uma palavra e é nessa pertença a uma palavra que ela conserva a base do significado da palavra como um todo. A partícula “-oso” também tem um significado na mesma relação sistêmica com o que a precede. Enquanto falantes nativos de português, sabemos que “-oso” indica a noção de ‘grande quantidade de’. Desse exame breve da estrutura das palavras “amoroso”, “gostoso”,”saboroso”, “vaidoso”, “horroroso”, segue-se que as partes que delas destacamos são seus morfemas.
Cumpre notar um aspecto importante dos morfemas: eles são unidades recorrentes. Por exemplo, o morfema “-oso” se encontra em muitas palavras da língua portuguesa. A frequência ou regularidade de uso é também um aspecto importante para distinguir o morfema do seu alomorfe (literalmente, “outra forma”). O alomorfe é uma variante de um morfema; sua frequência em termos de uso é menor, porque é condicionada fonologicamente. Por exemplo, o morfema “in-” que entra na composição de formas como infeliz, ingrato, infiel apresenta o alomorfe “i-”, cuja ocorrência é condicionada pela presença dos fonemas /r/ e /l/ em sílaba inicial de palavra, como em irreal e ilegal. É o contexto fonológico que constitui um condicionante para a ocorrência do alomorfe “i-”. Isso explica sua baixa frequência de uso, quando comparada à alta frequência de ocorrência do morfema “in-”
Uma distinção que se costuma fazer e que se demonstra útil para explicar os fenômenos de alomorfia e de cumulação é a distinção entre morfema e morfe. O morfema é uma abstração teórica, é uma unidade abstrata, na qual estão implicadas possibilidades combinatórias e significados. O morfe é cada uma das formas de realização do morfema. O morfe é, portanto, uma unidade concreta, atestável no uso. Novamente, o critério da regularidade de uso, a que se associa presença ou ausência de algum condicionamento, se faz necessário no momento em que precisamos decidir pelo estatuto mórfico de uma unidade mínima de sons dotada de significado. Por exemplo, para decidir chamar de morfema o “in-”, de “infeliz” e de morfe o “i-” de “ilegal”, é necessário levar em conta a frequência de uso (o fato de ser a forma altamente recorrente) e a possibilidade ou não de haver condicionamento.  Na verdade, frequência de uso e condicionamento são situações correlacionadas: maior frequência de uso significa inexistência de algum condicionamento para esse uso; inversamente, quanto menor a frequência significa haver algum condicionamento para o uso. A ocorrência do morfe “i-” é condicionada pelo contexto fonológico, como vimos. Ele só ocorrerá em palavras cuja primeira sílaba apresenta ou o fonema /r/ ou o fonema /l/. Diremos, portanto, que o morfema [in], uma unidade teórica, abstrata, se realiza, no uso concreto, com o morfe “in-” ou com o morfe “i-”. Cada um desses morfes é um alomorfe do morfema [in]. Linguistas há que, atribuindo ao morfema um valor ainda mais abstrato, entenderão que o morfema correspondente ao conteúdo [NEGAÇÃO] e/ou [PRIVAÇÃO] pode realizar-se com os seguintes morfes: “in-”, “i-”, “des-”, “dis-” (discordar), “a-” (amoral, anormal). Segundo essa interpretação, o morfema deixa de ter um registro fonêmico e passa a ser visto como um potencial de significado que se realiza por mínimas unidades sonoras dotadas de significado em que se dividem as palavras. Essas unidades mínimas de sons dotadas de significado que realizam o morfema, no uso da língua, são os morfes.
Cabe, agora, perguntar, afinal, como conseguimos identificar os morfemas constitutivos de uma palavra? Há dois expedientes básicos: o da comutação e o da segmentação. O procedimento da comutação tem precedência sobre o primeiro, pois ele nos permite determinar quais partes das palavras são morfemas. Vou-me ater a esclarecer apenas este expediente. A comutação é uma operação em cuja base está a interseção entre dois domínios através dos quais funciona qualquer língua natural. Na terminologia saussureana, esses domínios são: o das relações paradigmáticas e o das relações sintagmáticas. O primeiro corresponde ao eixo das oposições contrastivas (do tipo ‘x está em relação com y’, pressupondo-se a linearidade do signo). Nesse eixo, se acham as relações de combinação entre as unidades que não se excluem mutuamente. O segundo corresponde ao eixo das oposições distintivas (do tipo ‘ou x ou y’, que envolve possibilidades de atualização no nível sintagmático). Nesse eixo, ocorrem as relações de seleção de unidades passíveis de ocupar um mesmo lugar na cadeia sintagmática, razão por que essas unidades se excluem reciprocamente. As relações sintagmáticas são sempre in praesentia; as relações paradigmáticas são, por sua vez, sempre in absentia. As relações sintagmáticas se situam no domínio da horizontalidade, ao passo que as relações paradigmáticas apresentam-se no domínio da verticalidade. Ilustremos esses dois níveis com a palavra “amoroso”:

                                          


                                          Amor oso    --------------  Nível sintagmático

                                                   -zinho
                                                   -zão
                                                  -eco       
                                         Nível paradigmático


Esse gráfico serve, em primeiro lugar, para ilustrar o fato de que o funcionamento do sistema gramatical da língua depende da articulação entre esses dois níveis. O nível paradigmático compreende as formas que estão estocadas na memória do falante e que estão disponíveis para uso. Mas o uso delas depende de escolhas operadas pelo falante. Portanto, o domínio das relações paradigmáticas é o domínio das escolhas operadas pelo falante com base num repertório de recursos de expressão de que ele dispõe como parte de sua competência linguística. Cada escolha feita é, então, atualizada no nível sintagmático, o que significa dizer que cada escolha produz um significado determinado em consonância com as necessidades sociocomunicativas do falante. O que é realizado no domínio sintagmático é a manifestação de uma das muitas escolhas que ele poderia ter feito, sempre tendo em conta certas restrições previstas pelo sistema. Por exemplo, o falante pode escolher entre os morfemas “-eco”, “-zão” e “-zinho” para combinar uma delas com a base “amor”, mas não pode escolher qualquer um dos morfemas “-ante”, “-idade” e “-ente”. O sistema da língua desautoriza, por assim dizer, a escolha de qualquer uma dessas formas pelo fato de nenhuma delas poder prender-se a um substantivo. O morfema “-ante” serve à formação de substantivos ou adjetivos a partir de verbos (estudar/estudante, amar/amante, semelhar-se/semelhante, tolerar/tolerante). O morfema “-idade” deriva substantivos a partir de adjetivos (feliz/felicidade; infeliz/ infelicidade). O morfema “-ente”, à semelhança do que ocorre com “-ante”, deriva substantivos ou adjetivos de verbos (combater/ combatente; resistir/resistente). O falante sempre pode escolher e, de fato, ele usa a língua operando, a todo momento, escolhas significativas, mas o faz segundo os padrões estruturais previstos pela gramática da sua língua.
O gráfico também serve para ilustrar o que é a comutação. Por comutação, entende-se o procedimento de substituição de um elemento por outro no eixo paradigmático, com vistas a verificar, sobretudo, o valor distintivo (funcional, significativo) dos elementos envolvidos. A comutação é um expediente de análise bastante útil nos estudos gramaticais. No que nos importa, ele é útil porque permite determinar que pedaços da palavra são morfemas. A comutação seve à identificação dos morfemas. Ora, se podemos comutar “-re” com “-ante”, “-com”  com “-pos” em relação à base “por”,verificando que, a cada comuta, produz-se um novo significado para o todo, então essas partículas são morfemas, ou seja, são mínimas unidades sonoras dotadas de significado que compõem a palavra.

                             re-por
                             ante-por
                             com-por
                             pos-por


Reitere-se, pois, que os morfemas são os elementos formativos em que se dividem as palavras e que se depreendem por ocasião da análise morfológica, cujo objetivo não se limita à segmentação das palavras e à identificação dos morfemas, mas também à descrição das regras ou padrões de estruturação dos morfemas. Um exemplo é suficiente para ilustrar esse último objetivo da análise morfológica. O morfema “-ção” que está na origem das nominalizações (das quais falarei mais adiante) é bastante produtivo com as formas verbais em “-izar”. Para cada forma verbal em “-izar” é possível prever uma forma nominalizada terminada em “-ção”. Por exemplo, atualização, sistematização, integralização, confraternização, etc. O morfema “-mento” também atua nas nominalizações. Temos “casamento”, “armamento”, “sofrimento”, etc. Mas esse morfema não se combina com formas verbais terminadas em “-izar”. Não temos algo como “confraternizamento”. Há, portanto, uma restrição formal operando aqui, e a descrição morfológica precisa dar conta disso, estipulando a existência de uma regra que diz algo como: verbos em “-izar” admitem a nominalização com “-ção” mas nunca com “-mento”.  Segundo Basílio (2004), as formas nominalizadas em “-ção” respondem a 60% dos casos. As formas nominalizadas em “-mento”, quando comparadas às anteriores, atingem apenas 20% dos casos das formações regulares. Mas esses dois morfemas são mais produtivos do que outros que integram o mesmo grupo, especialmente porque eles são semanticamente não marcados. Um morfema como “-da”, de “arrancada”, limita suas possibilidades de combinação com diferentes bases, porque comporta especificações semânticas. No entanto, de passagem, noto que as formas X-da são produtivas quando integram expressões com os chamados verbos-suporte, na variedade coloquial da língua falada. Vejam-se as perífrases abaixo:

(1) dar uma saída/ uma lavada/ uma olhada/ uma passada.

A baixa produtividade das formas X-da se deve ao fato de elas serem, via de regra, nominalizações de verbos de movimento, conforme vemos em (2):

(2) entrada, saída, chegada, partida, vinda, ida, etc.

É essa especificação que explica sua baixa produtividade. É preciso esclarecer que uso o termo produtividade relativamente aos morfemas aqui contemplados para designar a possibilidade ilimitada de haver novas formações lexicais governadas por regras de formação. Regras produtivas definem as formações lexicais possíveis. Essa definição de produtividade é um ponto bastante problemático em termos teóricos, mas suficiente para iluminar o significado que ela assume na explicação dos fenômenos anteriores.

3) derivação

Por derivação entende-se o processo de formação de palavras que se realiza por meio da afixação de morfemas à base de uma palavra. O que estou entendendo por “base” será definido mais adiante. Basta-nos ver a derivação como um fenômeno linguístico que envolve o acréscimo de morfemas dotados de significado lexical à base de uma palavra para a criação de novas palavras. Há dois tipos de derivação, segundo o tipo de afixo que se junta à base:

a) derivação prefixal:  é o processo de formação de novas palavras pelo acréscimo de um prefixo a uma base lexical.
Prefixos, por sua vez, são morfemas derivacionais que se ajuntam à esquerda da base, como o “des-” de “desleal”.

b) derivação sufixal: é o processo de formação de novas palavras pelo acréscimo de um sufixo a uma base lexical.
Sufixos, por sua vez, são morfemas derivacionais que se ajuntam à direita da base, como o “-ção” de “exoneração”.

A base designa a raiz ou o radical. Todavia, na gramática normativa, o radical é o morfema que resta depois que se separam, pela análise, os demais morfemas, incluindo a vogal temática, cuja definição não nos interessará. Por exemplo, em “criar”, o radical é “cri”, que resta depois que identificamos a vogal temática “-a” e a desinência de infinitivo “-r”. Todavia, quando consideramos a forma nominalizada “criação”, e dizemos que ela foi produzida a partir de uma base verbal, queremos dizer que a base é “criar”, e não “cria”, forma que sobra depois que dela destacamos o sufixo “-ção”. Portanto, a base nem sempre se identificará com o radical. O conceito de base é mais abrangente, porque recobre o de palavra e coincide, morficamente, com a palavra a partir da qual se produziu uma nova forma. Assim, a base de “contextualizar” é “contextual”; a base de “contextual” é “contexto”. A análise pode parar por aqui, mas, se quisermos ainda identificar a vogal temática, que é “-o”, em “contexto”, então diremos que o radical é “context-”. Há casos em que base e radical coincidem, nas formas atemáticas, como “lealdade”. Uma vez retirado o sufixo “-dade”, resta “leal”, que é a base ou o radical. Tanto a base quanto o radical –e a primeira de modo evidente – comporta o significado básico da palavra. Assim, a forma “desleal” significa ‘que não tem lealdade’. A noção da negação da lealdade fica a cargo do prefixo “des-”; o significado ‘probidade’, ‘retidão’ está, por assim dizer, localizado na base “leal”.
Afixos são, portanto, morfemas que se anexam à base, quer para modificar o sentido da palavra derivada, quer para acrescentar-lhe um significado que a base não comportava, quer ainda para alterar sua classe gramatical. São afixos, portanto, os prefixos e os sufixos. Os afixos se dizem formas presas, já que só podem ocorrer articulados com uma forma da qual dependem. São prefixos os morfemas destacados em: desigual, infeliz. São sufixos os morfemas destacados em: igualdade, dentuço.

4) Léxico

Léxico é nosso último conceito da série de conceitos preliminares indispensáveis tanto ao exame dos processos de formação de palavras quanto à compreensão pelo leitor por ocasião do desenvolvimento desse exame.
Tradicionalmente, o léxico é visto como uma espécie de depósito de elementos, de recursos de designação, o qual disponibiliza as unidades básicas que entram a fazer parte da construção das frases. O léxico serve à categorização das coisas que se tornam objetos de referência de nossos discursos.
No entanto, o léxico é dotado de uma dinamicidade que a visão que se tem dele como uma espécie de depósito de palavras mascara. Ora, ignora-se, assim, que estamos sempre reproduzindo, reconstruindo novas entidades, novos objetos, novas relações, de modo que é indispensável dispor de um sistema dinâmico que permita a expansão do repertório de unidades de designação à medida que surgem novas necessidades comunicativas. Portanto, o léxico não é apenas um conjunto de palavras; é, fundamentalmente, um sistema dinâmico que encerra processos que estão a serviço de nossas necessidades de comunicação. O léxico disponibiliza processos de formação de palavras, que permitem não só a produção de novas unidades lexicais, como também a aquisição de palavras novas por cada usuário da língua.
Cada usuário da língua possui um léxico mental, que é seu léxico interno, que se constitui não só de palavras que ele, falante, conhece, mas também do saber operar com os padrões gerais de estruturação, em virtude dos quais ele interpreta e produz novas formas. Portanto, o léxico mental inclui uma lista de formas já feitas e um conjunto de padrões, de processos de formação de palavras, que determinam estruturas e funções tanto das formas já existentes, disponíveis, pois, no léxico mental, quanto das formas atualizáveis para efeito de uso (formas possíveis).





2. Afinal, por que formamos palavras?

A pergunta por que formamos palavras? demandará minha atenção, doravante. Ela norteará todo o desenvolvimento do exame da diversidade funcional dos processos de formação de palavras que terá seu início com a apresentação das razões pelas quais formamos palavras. Subjacente a um conjunto de razões, de motivações que se prendem às necessidades pragmáticas, isto é, atinentes ao uso da língua, há uma razão básica para que formemos palavras; essa razão, que caracterizo de cognitivo-pragmática, será apresentada ao termo desta seção.
A primeira razão por que formamos palavras liga-se à necessidade que temos de aproveitar o significado de uma palavra já existente num ambiente sintático que exige uma forma que pertence a uma classe gramatical diferente da classe da palavra primitiva. Assim, temos uma palavra da classe substantivo, seja fábrica, e precisamos usá-la como verbo num ambiente sintático como (3):


(3) Eles ____ sapatos.
       Suj.                    compl.

A mudança de classe é, sem dúvida, uma forma muito comum que explica a razão por que formamos palavras. Sucede, contudo, que há muitos processos de formação de palavras que não mudam a classe das palavras. Veja-se, por exemplo, o caso dos diminutivos. De “sapato” derivamos “sapatinho”, pelo acréscimo do sufixo “-inho” à base “sapato”, sem que desse procedimento resulte mudança de classe gramatical. Também as formações em “-eiro”, tais como “livreiro”, “chaveiro”, “sapateiro”, “pedreiro”, que derivam, respectivamente, de “livro”, “chave”, “sapato” e “pedra”, continuam sendo substantivos. Nesses casos, formamos palavras pela necessidade de acrescentar um conteúdo semântico à forma primitiva.
Há, portanto, até o momento, dois motivos pelos quais formamos palavras: 1) a necessidade de utilizar o significado de uma palavra em uma outra que passará a pertencer a outra classe gramatical; e 2) a necessidade de acrescentar um conteúdo semântico à significação básica da forma primitiva (sem modificação de classe gramatical). Essas duas razões não dão conta, no entanto, de outras duas questões importantes que se desdobram da questão inicial com que começamos esta seção:

1) Por que não dispomos de uma palavra para uso em cada classe gramatical?

2) Por que não temos já disponível uma palavra que comporte o conteúdo semântico já acrescido?

É importante compreender o alcance dessas duas questões. O que queremos saber é por que a língua não disponibiliza palavras inteiramente diferentes para cada uma das situações mencionadas. É verdade que dispomos de pares como querer/ vontade; belo/bonito; escrever/ apagar; sujar/ limpar, etc. Mas esses exemplos não recobrem toda a imensidade de casos em que simplesmente não temos palavras já prontas para uso em cada classe gramatical, nem palavras que já comportem o conteúdo semântico que pretendemos atualizar. Em contrapartida, a língua dispõe de pares como gosto/gostoso; sabor/saboroso; fazer/desfazer, etc, em que verificamos o aproveitamento de material lexical já disponível com mudança de classe ou não do produto do processo. Assim, formamos “desfazer” a partir da base “fazer”, pelo acréscimo do prefixo “des-”. Não houve mudança de classe gramatical. Por outro lado, formamos “saboroso” a partir de “sabor”, pelo acréscimo do sufixo “-oso” à base “sabor”. Houve mudança de classe gramatical. Notemos que os sufixos, ao contrário dos prefixos, via de regra, são responsáveis por conferir à palavra derivada outra classe gramatical. A anexação do sufixo “-oso” ao substantivo “sabor” acarreta a produção de “saboroso”, que é um adjetivo. O sufixo “-oso” é, portanto, utilizado na formação de adjetivos a partir de substantivos.
É preciso ponderar que, se para cada necessidade de uso, tivéssemos uma palavra inteiramente diferente, multiplicar-se-ia demasiadamente o número de palavras em nosso léxico mental, o que tornaria a língua, enquanto sistema de comunicação, muito menos eficiente.
A razão básica, portanto, por que formamos palavras consiste em evitar a sobrecarga de nossa memória, já que seria muito custoso para nós o processamento e a estocagem de palavras diferentes que atendessem às nossas praticamente infinitas necessidades comunicativas, em diferentes contextos de uso da língua. Há, portanto, um ganho cognitivo significativo quando podemos ampliar o repertório de recursos de comunicação (palavras) com base no material já disponível no léxico. Esse ganho é ainda mais evidente quando consideramos que o número de afixos de que dispomos para formar novas palavras é limitado, a ponto de eles poderem ser listados, ao contrário do número de palavras que podemos produzir, cuja quantidade é demasiadamente superior para ser registrada em listas.
Não se pode perder de vista, então, o fato de que a razão fundamental por que formamos palavras é a mesma por que produzimos frases: o mecanismo gramatical da língua busca atingir o máximo de eficiência, que se expressa no máximo de flexibilidade e dinamicidade com o custo mínimo na estocagem de elementos de expressão na memória. Imaginemos como seria difícil para a nossa memória processar e estocar formas diferentes para cada necessidade que temos de uso das palavras nas mais diversas situações de interação.
É a flexibilidade da língua que se preserva mediante o mecanismo de formação de palavras, em virtude do qual podemos dispor, para efeito de uso, de um número imenso de formas de comunicação, sem que precisemos sobrecarregar nossa memória.  Embora eu não tenha a intenção de adentrar nos detalhes sobre o ganho cognitivo que se segue daí, chamo a atenção para o fato de que o que chamamos de cognição recobre todas as atividades mentais associadas com o pensamento, o conhecimento, a memória e a linguagem. A memória está, portanto, envolvida na cognição e ela não permite apenas o armazenamento de informações/conhecimentos, mas também a recuperação desses conhecimentos para serem utilizados em novas formas de aprendizagem. A memória é aprendizagem que persiste através do tempo; ela é dinâmica, demanda sempre trabalho, que envolve codificação de informações, retenção (armazenamento) e recuperação dessas informações. Em suma, uma memória que estivesse sobrecarregada de informações novas, que só operasse com input, num cenário hipotético, inviabilizaria o próprio processo de construção do conhecimento.


2.1. As funções dos processos de formação de palavras

Segundo Basílio (2003), a formação de palavras cumpre três funções fundamentais, a saber: a função de denominação, ligada a necessidades semânticas; a função de adequação discursiva; e a função de adequação sintática.
Vamo-nos deter no exame de casos que correspondem a cada uma dessas funções, às quais atende a formação de palavras.

2.2. Casos de função semântica

Constitui exemplos de formação de palavras em que se verifica uma função puramente semântica a maioria das ocorrências de prefixação e de composição.
A prefixação não acarreta, conforme dissemos, mudança de classe da palavra derivada. Processos de adição do prefixo “re-”, que expressa ‘repetição’, como em “reler”, “refazer”, “reescrever”; do prefixo “des-”, como em “desfazer”, “desleal”, ilustram o acréscimo de um conteúdo semântico sem que a forma derivada tenha mudado de classe gramatical.
A composição, por sua vez, pode envolver ou não mudança de classe. Assim, ou o composto conserva a mesma classe gramatical da sua base, ou o composto, como um todo, torna-se um membro de outra classe gramatical. Formas como navio-escola, peixe-espada e azul-celeste ilustram casos de composição que mantêm a classe gramatical e comportam apenas função semântica de especificação.
Por outro lado, há mudança de classe gramatical nos compostos guarda-chuva, guarda-costas, porta-luvas e porta-estandarte. A mudança de classe decorre da própria função de denominação envolvida no processo. O que se verifica aí é que a base da composição é um verbo (guardar/ portar) e o produto é um substantivo que designa objetos ou pessoas (porta-luvas/ guarda-costas) a partir da sua função. A motivação para a mudança de classe é, portanto, de ordem semântica.

2.3. Casos de função semântica exclusiva

2.3.1. Formação de verbos a partir de adjetivos

As formas nacionalizar, simplificar e amolecer, por exemplo, são formadas com base nos adjetivos nacional, simples e mole, respectivamente. Nesse processo, há uma base adjetiva da qual se deriva um verbo cujo significado corresponde a uma mudança de situação, isto é, algo ou alguém passa a ter a propriedade expressa pelo adjetivo.
Tomem-se os seguintes exemplos abaixo:

(3) O presidente nacionalizou as empresas.
(4) O diretor simplificou o processo de admissão.
(5) O meu dente amoleceu


Embora haja, como se vê, mudança de classe gramatical neste processo de formação, não parece correto dizer que a função do processo é a mudança de classe. Senão, vejamos.
Um exame do caso torna claro um fato: a forma derivada apresenta um significado preciso. É a necessidade de expressar a noção de ‘mudança de estado tal que algo passa a ter uma determinada propriedade” que o processo satisfaz. Naturalmente, a mudança de classe decorre do fato de que essa noção é tipicamente expressa por um verbo. A mudança de classe decorre da função semântica para cuja satisfação serve o processo.


2.3.2. Nomes de agente

Também nos processos de formação de nomes de agente e instrumento, dos quais entra a fazer parte o sufixo “-dor” (ou seu alomorfe “-tor”), como em varredor, computador, administrador, consultor (no caso, temos o alomorfe “-(t)or”), há basicamente uma função semântica envolvida.
Tal processo serve à necessidade de caracterizar um indivíduo (agente) ou um objeto (instrumento) pela atividade ou função expressa pela base verbal. Na medida em que na formação de agente/instrumento a função básica é fazer referência a indivíduos e objetos, qualquer regra de formação de agentes/instrumentos produzirá substantivos, visto que entidades só podem ser designadas por substantivos.
Novamente, nesse caso, a mudança de classe é apenas uma consequência, ainda que necessária, da função semântica a que serve o processo.

3. Casos de função sintática com mudança de classe

Serão contemplados, nesta seção, casos de formação de palavras que comportam a função de adequação ao enunciado. Os primeiros casos a serem analisados são aqueles que satisfazem uma função sintática.
A função sintática quase nunca é a função exclusiva de um processo de formação de palavras. Por um lado, porque as classes de palavras costumam ser definidas também, ou principalmente, em termos semânticos. Por outro lado, quando se leva em conta o enunciado na totalidade discursiva, as possíveis funções sintáticas acabam por ser tornar marginais em face de uma função discursiva determinante que se impõe sob a luz da análise.
No entanto, há, pelo menos, um caso em que uma função exclusivamente sintática parece entrar no horizonte da formação de palavras. Trata-se do caso de formação de advérbios em “-mente”. Seguem-se estes dois exemplos:

(6)  a. Eu vou ser honesto com você.
       b. Eu vou falar honestamente com você.

(7) a. É possível que chova hoje.
      b. Possivelmente, vai chover hoje.

Os exemplos acima ilustram a situação em que a inserção na frase da forma adverbial acarreta a necessidade de ocupar a posição de predicador com um verbo, levando o adverbial a preencher a posição de modificador do verbo, no caso (6); ou de toda a oração, no caso (7).
Ora, no momento em que formamos um adverbial em “-mente”, fazemo-lo por uma motivação puramente sintática: o uso de um verbo na posição de predicador. Esse predicador será acompanhado de uma forma adverbial na posição de modificador. Notemos que o uso do verbo “ser” não é compatível com o uso de adverbiais em “-mente”, já que o verbo “ser” não tem função predicativa, e adverbiais em “-mente” modificam termos predicadores como verbos plenos e adjetivos (cf. Maria é irresistivelmente bonita / Ele agiu rapidamente). Essa parece ser uma condição sintática imposta por esse tipo de advérbio.


3.1. A função sintática da nominalização

A nominalização recobre o conjunto de processos através dos quais se formam substantivos a partir, sobretudo, de verbos, mas também de adjetivos.
Os processos de nominalização devem sua complexidade, em parte, ao fato de que servem a funções múltiplas e simultâneas.
Mas é possível verificar uma função sintática isoladamente na nominalização de verbos. Vejamos os casos abaixo:


(8) a. A professora finalmente corrigiu as provas.
      b. A correção das provas finalmente foi feita pela professora.

(9) a. O governo esperava que a economia crescesse neste trimestre.
      b. O governo esperava o crescimento da economia neste trimestre.

Claro está a correspondência morfossemântica entre a forma verbal (a) e a forma nominal (b) nos dois exemplos. A forma nominalizada que ocorre nos exemplos (b) atende à função de adequação sintática às estruturas nominais. Vamos esclarecer este ponto. Se quisermos usar o conteúdo semântico da forma verbal “corrigir”, em (8), numa forma que ocupe a posição de sujeito, deveremos formar a partir de “corrigir” uma correlato nominal, ou seja, deveremos formar um substantivo correspondente a partir da forma verbal “corrigir”. Poderíamos também aproveitar o substantivo formado em outra função sintática, como a de complemente verbal, caso em que teríamos de usar um verbo como “fazer”. Assim, poderíamos ter: “A professora fez a correção das provas finalmente”. Não menos importante é notar que a formação de “correção” implica conferir à frase outra configuração sintática, de modo tal que o que era objeto direto do verbo “corrigir” torna-se complemento nominal da forma “correção”. Tal complemento é regido da preposição “de”. O mecanismo pode ser ilustrado da seguinte forma:

CORRIGIR   Y    <__________>   CORREÇÃO DE Y.
ATUALIZAR  Y   < __________>   ATUALIZAÇÃO DE Y.


4. Funções discursivas

As funções discursivas compreendem muitos aspectos que tocam aos enunciados quando os consideramos como partes de uma atividade discursiva. Vou destacar dois tipos de função, nesse tocante: a função de atitude subjetiva e a função textual.

4.1. Função de atitude subjetiva

A função de atitude subjetiva é comum a um vasto número de processos de formação de palavras em português, se bem que, na maioria das vezes, ela se faça acompanhar de outras funções, sobretudo de natureza semântica.
No entanto, há um caso típico de processo de derivação que serve exclusivamente à função de indicar a atitude subjetiva. Trata-se do caso dos diminutivos que comportam um conteúdo pejorativo.
A pejoratividade é um componente semântico que serve à expressão, por excelência, da atitude subjetiva do falante relativamente ao conteúdo do seu enunciado. O português apresenta uma gama variada de afixos destinados à formação de pejorativos. No entanto, esses afixos, em geral, carreiam a pejoratividade junto de outra função ou significado qualquer.
Há um caso em que temos o uso do diminutivo com a função exclusivamente pejorativa, todavia. Desse caso são exemplos as ocorrências em “-inho”. Vejamos os exemplos abaixo:

(10) Que mulherzinha, esta Joana!
(11) Ele é um jogadorzinho de segunda divisão.
(12) Não estudo com esse professorzinho.

Em nenhum dos exemplos acima, o sufixo “-inho” expressa diminuição de tamanho, conforme se pode ver. Em todos os casos, a forma diminutiva comporta conteúdo pejorativo e serve para desqualificar a pessoa a que o substantivo se refere. Nos três casos, a pejoratividade produz um efeito de desmoralização da entidade a que se refere a forma nominal.
Outro caso interessante em que se faz presente a função de atitude subjetiva é o uso do diminutivo para expressar afetividade, especialmente na linguagem coloquial falada. Um exemplo é suficiente para atestá-lo:

(13) Filinho, a sopinha está pronta!

As formas “filinho” e “sopinha” marcam afetividade no discurso do locutor. Essas formas diminutivas, carreadas de afetividade, também sinalizam outros fatos que não podem passar ao largo de uma descrição que pretenda abarcar aspectos discursivos da formação de palavras. Um dos aspectos diz respeito ao contexto de familiaridade que essas formações sugerem. Ou seja, são tipicamente usadas em contextos em que os interlocutores mantêm entre si uma relação de alta proximidade ou familiaridade. Elas também estão associadas às estratégias de preservação da face. O uso do diminutivo afetivo neutraliza atos de fala potencialmente ameaçadores da face, como os de convite ou interpelação. Finalmente, outro aspecto interessante, que deve ser considerado, de um ponto de vista sociolínguístico, é que as formas de diminutivo afetivo caracterizam a fala das mulheres. Diminutivos com carga afetiva são frequentes no discurso feminino, conforme atestam ocorrências como “Menina, comprei um vestidinho que vai arrasar!”, “Esse garotinho é muito fofinho”, etc.


4.2. Função textual

Também a função textual liga-se a processos de formação de palavras que apresentam outras funções. A nominalização é, novamente, o candidato, por excelência, para exemplificar a manifestação da função textual.
A função textual da nominalização é a função primária. Vimos que esse processo cumpre uma função sintática; mas esta função está a serviço de uma função mais ampla e fundamental: tornar possível a progressão textual por meio de encaixamentos múltiplos que se fazem sintaticamente.
Antes, porém, de considerar esta função textual básica da nominalização, notemos que esse processo atende às necessidades de estruturação do enunciado. Seu uso serve para satisfazer certas condições estruturais que se impõem por ocasião das próprias escolhas operadas pelo falante para a construção dos seus enunciados. Vejamos dois exemplos:


(14) Agradecemos a sua participação neste evento.

(15) O não-pagamento da fatura na data prevista implicará juros.

Em (14), a forma nominalizada “participação” preenche a condição exigida pela valência do verbo “agradecer”. Esse verbo rejeita para a posição de complemento orações subordinadas. Uma construção como (14a) é gramaticalmente inaceitável:


(14a) * Agradecemos que você participou...

Em (15), o uso da forma nominalizada, além de marcar um estilo estereotipado de advertência ao cliente, serve para evitar a atualização de variáveis previstas na valência verbal. No caso específico de (15), essa variável seria o sujeito cuja presença carrearia um efeito que se aproximaria ao de intimidação. A forma nominalizada neutraliza esse efeito, evitando a atualização da variável correspondente ao sujeito, além de servir à produção de um efeito de sentido outro: o de marcar a impessoalidade na tentativa de lembrar ao consumidor a necessidade de cumprimento das exigências previstas pelo contrato, sob pena de encargos legitimados pelo próprio contrato. Por exemplo, se (15) fosse construído com o verbo “pagar”, poderíamos ter como resultado algo como (15a):

(15a) Se o senhor não pagar esta fatura na data prevista, serão cobrados juros.

Ocorre que o uso da forma verbal “pagar” produz uma condição sintática pragmaticamente indesejável: a possibilidade de ocorrência do sujeito (cf. o senhor). Mesmo que o sujeito não fosse lexicalizado, continuaríamos tendo como resultado um enunciado diretivo, impositivo, que produz um efeito de intimidação. Ademais, supõe uma relação pessoal com o cliente. É oportuno evocar o princípio básico do funcionalismo, segundo o qual a forma dos nossos enunciados é determinada pelas funções a que eles servem, ou seja, pelas necessidades sociocomunicativas dos usuários da língua. Os enunciados assumem uma determinada forma/estrutura em virtude das funções para cujo cumprimento eles são produzidos. A função determina a forma dos enunciados linguísticos.
As formas de nominalização também cumprem a função de progressão textual. Elas ocorrem, muitas vezes, em contextos de remissão anafórica. Nesses casos, usamos a forma nominalizada para retomar todo um enunciado anteriormente expresso, como no exemplo abaixo (16):

(16) A professora já corrigiu as provas. A correção até que foi rápida.
(17) Todos os prédios da região foram demolidos. A demolição foi considerada um sucesso.

As formas nominalizadas “correção” e “demolição” retomam o que foi enunciado anteriormente.


4.3. Função de estruturação textual


O uso da forma nominalizada com função anfórica pode muito bem ser recoberto pelos casos de função de estruturação textual. Mas preferi ilustrar essa função com outro tipo de atividade de construção textual.
A nominalização também cumpre uma função propriamente textual quando, através de seu uso, o falante torna seu texto legível e, por conseguinte, inteligível, para o que ele lança mão de encaixamentos múltiplos. Dificilmente, seu texto seria compreensível sem o recurso da nominalização. Senão, vejamos:


(18) A constatação do descumprimento do acordo acarretará a cobrança de juros e a subsequente anulação do contrato pela empresa prestadora de serviços.

Tentemos dar outro torneio a essa frase, substituindo cada forma nominalizada, em destaque,  por seu correlato derivante:

(18a) * Constatar-se que se descumpriu o acordo acarretará cobrar juros e subsequentemente se anulará o contrato pela empresa prestadora de serviços.

Outras possibilidades de construção poderiam ter sido propostas, respeitando a condição de substituir as formas nominalizadas por seus correspondentes derivantes. É certo que todas as possibilidades levariam a um resultado gramaticalmente pouco aceitável ou inaceitável para os falantes nativos de português. A boa formação do enunciado depende do uso adequado das formas nominalizadas. Isso mostra a importância dessas formas para a estruturação textual. É interessante ver que, ao usar a forma verbal “cobrar”, o adjetivo “subsequente” teve de dar lugar ao advérbio “subsequentemente”. Mas o uso desse advérbio acarretou a perda de material sintático em seu entorno, pois o artigo que integrava o SN (a subsequente anulação) teve de ser suprimido, em virtude da própria eliminação do SN.

De tudo que foi exposto até aqui, segue-se que a tendência geral dos processos de formação de palavras é a de cumprirem uma função semântica ou uma função mista. A nominalização é um caso claro de processo que serve a mais de uma função.


5. Um caso de processo com mudança de classe: a formação de verbos a partir de substantivos

Para por termo a este texto, proponho, nesta seção, examinar um caso de processo de formação de palavras em que está implicado mudança de classe.
O verbo é uma classe gramatical que se define semanticamente por expressar ações, estados ou processos no tempo. Ademais, ele é a forma, por excelência, que cumpre a função de predicação no interior da oração. A estrutura predicativa da oração tem no verbo seu centro irradiador. Ele é o predicador.
Do ponto de vista morfossintático, o verbo não só ocupa a posição de predicador, como também apresenta as flexões de tempo, modo, número, pessoa e aspecto. Pela flexão em número e em pessoa, se realiza o fenômeno da concordância do verbo com o seu sujeito.
Os processos de formação de verbos atendem, portanto, à necessidade de construir predicadores que expressem ações e processos (os processos de formação produtivos limitam-se aos de ação e processo). Esses predicadores formados pelo processo comportarão as características gramaticais próprias do verbo.
A função a que serve a formação de verbos a partir de substantivos consiste em aproveitar o conteúdo semântico expresso pelo substantivo-base para designar a ação ou o processo expresso pelo verbo. Vejam-se os exemplos a seguir:

(19) João carimbou o documento.
(20) Pedro encaixotou as frutas.
(21) Elisa escovou os cabelos.

Cumpre ver que as formas verbais sublinhadas tomam seu conteúdo do significado dos substantivos correspondentes “carimbo”, “caixote” e “escova”. Em (14), carimbo define a ação de carimbar. O significado de carimbar pressupõe o de carimbo.
Duas observações finais se impõem aqui. Em primeiro lugar, a ação designada pelas formas verbais derivadas se define em função do instrumento envolvido na ação. Cada um dos substantivos-base designa um instrumento ou objeto com base no qual representamos uma ação categorizada na forma verbal correspondente. Os verbos formados a partir de substantivos correspondem a processos verbais fundamentalmente relacionados aos substantivos de que derivam.
Em segundo lugar, é necessário ver também que, se o verbo “carimbar” não existisse, o ato de carimbar teria de ser expresso, necessariamente, por outro verbo acompanhado do complemento “carimbo”, como em (19a):

(19a) João pôs o carimbo no documento.