segunda-feira, 11 de março de 2013

"Todo Eu supõe um Outro reciprocamente" (BAR)


                                    


                                    Reencontrando-me
“No cuidado de si, o conhecimento de si torna-se prática, arte de vida.”
(novas vitaminas filosóficas)

Não sei ainda o que farei com estes livros que empilhei sobre esta escrivaninha diante da qual me sento. Eu os apanhei em meu armário, os livrei da clausura e do esquecimento para reanimar suas palavras em minha alma, porque ela esteve por um longo período de tempo de minha vida concentrada em suas páginas. Deverei eu citá-los aqui? São muitos. Saiba o leitor que este texto não está sendo produzido segundo um plano espiritual claro e metódico. Os caminhos que percorrerei com minhas palavras se entrecruzarão e, neste momento, me parecem difusos. Há mais descaminhos com depressões do que estradas aplanadas e bem demarcadas no itinerário de meus pensamentos. Só uma garantia há: serei meticuloso nas escolhas verbais que farei; cuidarei para que a linguagem não me traia as disposições favoráveis do espírito. Ponho-me nua a alma. Vou revasculhar-me. Esse neologismo é provisório; mantenho-o por falta de uma expressão melhor; tão-logo, contudo, se me afigure ao espírito uma palavra mais adequada à expressão do meu intento dela me servirei. Eu deixei marcas gráficas nestes livros que dispus diante de mim. É a elas que me aterei. Vou citá-los então, para satisfazer a curiosidade do leitor. Sonetos de Florbela Espanca, As Flores na janela sem ninguém..., Ecce Homo, Esse ofício do verso, Melhores Poemas de Paulo Leminski, Poemas de Fagundes Varela, Eu e Outras Poesias de Augusto dos Anjos, Melhores Poemas de Fernando Pessoa, A rosa do povo, de Drummond, Poesias de Olavo Bilac, Poesia Erótica, Sonetos de Luís de Camões, As Flores do Mal, de Charles Baudelaire, Nova Antologia Poética, de Vinícius de Moraes, O silêncio dos amantes, de Lya Luft e Palomar, de Ítalo Calvino. A lista não está completa... Sinto que falta um que me foi e ainda me é caro...mas a memória costuma trair-me.
É difícil perscrutar-se. Tenho medo. Já me vi, num passado não tão longínquo para a alma, embaraçado em tramas verbais aterrorizantes e depressivas. A filosofia me salvou; e o ateu que jazia em mim sufocado libertou-me da escravidão de uma fé que não cessava de confrontar-se com os questionamentos. E fé não lida bem com questionamentos. Fé e questionamentos não se avizinham. Ou ela fica e eles saem, ou eles nos ocupam e a expulsam. Eles a expulsaram!
Nas páginas de Espanca, encontro esta estrofe, ao lado da qual escrevi “verdade!”.

Mas não te vejo, Amor, essa indiferença
Que viver neste mundo sem amor
É pior que ser cego de nascença.

Este terceto faz parte do poema intitulado de “Frieza”. Fui apaixonado por Espanca durante um bom tempo, um tempo tão afeiçoado às ilusões primaveris, que dele me recordo como quem se recorda de um sonho erótico, do qual acorda com ereção, não raro, extasiado com uma ejaculação!

Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa
A pedra do caminho, rude e forte!

Onde há desejo há falta. Aprendi com Freud, com Sócrates, com Platão... Só desejamos aquilo que nos falta. O desejo existe na falta, na carência, na ausência. E eu desejava e pensava demais. Pensar demais dói. Doía mais do que agora. Por isso o desejar ser como uma pedra, que nada pensa, que nada sente, que nada deseja. Ser um em-si e bastar-se.
Abro o livro de Lia Luft. Encontro estes versos precedendo a Apresentação.

Sem palavras

A vida inteira busquei
explicações e deciframentos:
encontrei silêncio e segredo,
às vezes conforto de um ombro
outras vezes
dor.

No último lapso
de um tempo sem limites
- embora a gente o queira compor
em fragmentos -,
abriram-se as águas
e entrei onde sempre estivera.
Tudo compreendido
e absolvido,
absorta eu me tornei
luz sem sombra:
assombro.

Quanto mais nos aproximamos do mundo para auscultá-lo com o pensamento mais silencioso ele fica. E naquele tempo buscava, como agora, compreender o mundo sem, contudo, viver amalgamado com ele. Confundir-me, jamais! Distinguir-me sempre!


Estes versos te dou e se a celebridade
O meu nome levar aos mais longínquos anos,
Pondo à noite a sonhar os cérebros humanos
Como nau favorecida pela tempestade.

Este quarteto é de Baudelaire. Ao lado do qual, escrevi “Sou esta nau, poeta”. Lembrei-me de outro livro de Lia Luft. Mas me custa encontrá-lo agora. Tempos fervilhantes de cismas de um ensimesmado desejoso de amar! E eis que se me deparam estes poemas-pílula de Leminski.

            I

vida e morte
amor e dúvida
dor e sorte

quem for louco
que volte

         II

esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem


III

vazio agudo
   ando meio
cheio de tudo

IV
escurece
cresce tudo
que carece

No livro Esse ofício dos versos, encontro sublinhados por mim os seguintes trechos. Se os refiro abaixo, é porque, evidentemente, eles me significam, me capturam de um modo tão fidedigno e sucinto que eu mesmo não conseguiria fazê-lo aqui. O meu sentimento em relação à linguagem está muito bem derramado nestas linhas verbais.

“Eu pensava que a linguagem fosse um modo de dizer as coisas, de exteriorizar queixas de dizer que se estava feliz ou triste, etc. Mas quando escutei aqueles versos (...) soube que a linguagem podia também ser música e paixão. E assim me foi revelado a poesia”.

“Divertiu-me uma ideia – a ideia de que, embora a vida de uma pessoa seja composta de milhares de momentos e dias, esses muitos instantes e esses muitos dias podem ser reduzidos a um único: o momento em que a pessoa sabe quem é, quando se vê diante de si”.

Então, vou-me permitir estar diante de mim. Mas, antes de me despedir, momentaneamente, dos livros, trago à cena estas palavras de Nietzsche. Poderemos nelas:

“(...) eu tenho necessidade de solidão, isto é, de curar-me, de tornar a ser o que eu fui, de ser o que eu fui, de respirar uma atmosfera livre, leve e forte...”
(Ecce Homo, p. 47)

Devo a Rubem Alves o aprender a conviver com a solidão. Este trecho de seu texto “A solidão amiga” foi determinante dessa aprendizagem, ou libertação da ideia de que a solidão é necessariamente nociva à vida.

“A sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena (fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos... Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira.”


Solidão é uma palavra tão mal reputada hoje em dia. Os solitários costumam ser mal vistos. Tornam-se pessoas indesejáveis, desinteressantes. Se você diz ser solitário, as pessoas, em geral, não o/a compreendem bem. Fica um silêncio a reivindicar explicações (ou não). Por vezes, o silêncio pode sinalizar um interesse em que se mude o assunto da conversa. Alguém me disse que desconfia das pessoas que têm poucos amigos, após eu ter lhe revelado não contar com muitos amigos a minha volta. Longe de negar a importância da amizade, das relações de afeto entre pessoas sem interesse sexual uma pela outra, mas a razão por que alguém não tenha tantos amigos não necessariamente tem a ver com a possibilidade de não ser uma pessoa confiável. Tem a ver, muita vez, com tipo de personalidade, com interesses ou inclinações. Por falar em solidão, amizades ou carência delas e relacionamentos, certa feita, escrevi o seguinte:

Existir é condição necessária para a solidão. E muitos se espantam com a ideia de que uma pessoa pode sentir-se sozinha no meio de muitas pessoas: é que a mente tem esconderijos, espaços impenetráveis, caminhos obscuros, salões imensos, onde ressoam os gritos de um “eu” encarcerado, que, em algum momento de sua vida, deu-se conta do absurdo da existência”.

Este é um trecho destacado de um texto, de cujo título me olvidei (poderia ter escrito “me esqueci”) e que fora escrito numa fase profundamente deprimente de minha vida. As pessoas, em geral, também tendem a rejeitar os depressivos. Mas eles têm muito a nos dizer e a nos ensinar. Geralmente, as pessoas bem-resolvidas, bem arranjadas sob sua própria pele são as que mais se armam contra os tipos depressivos. Não sou mais um depressivo. A terapia me curou; mas não deixei de ser um inconformado, um desencontrado, um deslocado, um desmedido, um desassossegado, um desterrado, um desiludido reincidente; não deixei de estar em desacordo com a existência e com o mundo. Houve, decerto, uma conciliação entre mim e a vida corpórea e mundana em detrimento da aspiração a uma vida etérea e espiritual (além-mundo), que antes conduzia meu espírito a trafegar pelos caminhos da metafísica espiritualista. Sou um materialista desconfiado dos dogmatismos, inclusive dos materialismo dogmático. Aceito as explicações sobre a vida, a matéria, o Universo, a natureza dadas pelos filósofos materialistas, pelos biólogos e pelos demais cientistas da ciência “dura”, mas ainda aceito de bom grado o Mistério, que nos abarca. Eu diria que o humano em mim se reconciliou com o meu Eu, que são muitos e ao mesmo tempo o mesmo. Este eu que sei imagético (porque assume muitas feições, muitas máscaras, sem deixar desaparecer um núcleo duro em que está assentado). Há um “eu” submerso de que não nos ocupamos no dia-a-dia; daí a importância de, pela interiorização, incomodá-lo, perquiri-lo, redescobri-lo, ainda que nos vejamos novamente envolto numa bruma imagética, à iminência de dissipar-se.
Tenho procurado, após um término de um namoro que se prolongou por um ano, ocupar-me nas reflexões sobre relacionamentos. Durante os anos em que a solidão era minha única companheira, os relacionamentos, contemplados a distância pelo espírito, eram avaliados criticamente. Da inquietude nasciam trechos como estes, que dou a saber ao leitor, abaixo:

“Por que me incomodam as relações descartáveis entre homens e mulheres em nossa sociedade “pós-moderna”? Claro está que, sabendo-se eu um ultra-romântico “anacronicamente lançado em época pós-moderna”, sabendo-se, pois, um homem que conta vinte e seis primaveras e que se vê às voltas com uma solidão anímica e escusa àqueles que estampam uma alegria gratuita, em meio a uma profusão de vozes, vivo recolhido numa sinfonia de silêncios que revelam dimensões incompreensíveis a quem acredita ser o corpo o limite da realidade humana. A solidão que me acompanha é uma solidão vital: a solidão decorrente da consciência de estar consciente de que existo. Existir é condição necessária para a solidão. (...)”

“Os embaraços de bocas, os duelos de ancas, brindados com alguns copos de cerveja, são sinais de que a satisfação e o prazer não parecem residir na inter-relação de complexos orgânicos e emocionais; ao contrário, habitam a materialidade de meros produtos de uma sociedade que aplaude a superficialidade, o utilitarismo e o consumismo. “Quem namora comportado está fora do mercado”, disse, certa vez, um Mc. E quem negará que se trata de um mercado? De um mercado das emoções, cujas mercadorias são as próprias pessoas que preferem provar das delícias do banquete, ainda que outros tantos já o tenham feito. E as emoções se diluem a cada nova bocada...”.

E ficam os restos... dos corpos consumidos num prazer imediato, urgente, extasiante e fugaz...

O silêncio é a voz mais significativa do Amor, sempre que, face a face, dois amantes leem emocionalmente um a alma do outro. Gosto de entabular longas conversas com pessoas intelectualmente mais elevadas, especialmente se entre mim e elas há um liame de emoções harmônicas, porque, durante a conversa, leio com a alma a alma delas. Essa leitura anímica é privilégio apenas dos que vivem pela alma e para a alma e não pelo corpo e para o corpo”.


“Nasci conhecendo a solidão. Ela foi a primeira presença que se achegou a mim. A vida é tão débil, que não sei que haja esforço que a justifique. Chegará o tempo em que nossa vitalidade se sustentará com remédios. Não escapamos disso. O fato é que nascemos projetados para o futuro inapreensível; pois hoje é futuro em relação a ontem. O futuro é um mistério que, desejado, nos escapa.
O futuro justifica nossa travessia. Somos transeuntes que se ignoram na azáfama do cotidiano. O centro da cidade está cheio deles – transeuntes sem rostos, sem identidade definível; uma massa homogênea num ir e vir condicionado, irrefletido. Cada um com seus pensamentos atados aos seus encargos, à urgência dos compromissos, ao tempo que se esvai cada vez mais rápido. Levamos conosco o imperativo de dever, mas ignoramos o sofrimento dos inúmeros mendigos que por lá vagam ou dormitam. Por que não nos sensibilizamos com tamanho infortúnio? Porque não há beleza naquele miserável sofrimento. Só nos comove o sofrimento em que há beleza, em que há encanto e que nos ensina. Compadecemo-nos do sofrimento alheio, quando dele podemos colher uma lição; se nada nos ensina, conservamos a indiferença; simplesmente passamos e, enquanto passamos, somos apenas transeuntes indiferentes lutando para sobreviver.
A condição de transeunte nos é estabelecida pela sociedade. Desde que nascemos, nossos pais nos educam para que nos tornemos transeuntes (os bebês costumam maravilhar os pais quando começam a dar seus primeiros passos); afinal, devemos participar da travessia da vida, que se estende da casa para o trabalho e na volta do trabalho para a casa, com algumas paradas para o lazer. Aprendemos ser a vida passageira e o tempo da modernidade líquida cada vez mais escasso; o Amor, um ideal inatingível, um delírio incurável de inveterados inconformados. E assim seguimos nas imensas avenidas dos sonhos, transitando por alguns becos de ilusões; atolando a alma em algumas calçadas de lágrimas. Não nos é possível deixar a vida ilesos.
Seguimos indiferentes uns aos outros, cumprindo encargos quase nunca questionados. E nesse mar de indiferenças recíprocas e insistentes, desejamos repousar nosso coração numa alma acolhedora; desejamos encontrar apenas uma que por instante deixou de nos ignorar, para nos admirar. O absurdo não nos incomoda, porque raramente dele suspeitamos. Existimos para sobreviver. Isso basta. Alguns de nós são transeuntes de calçadas/ outros, de sua própria alma. Alguns estão de passagem, sem tempo para conversas elevadas; outros gostam de dar passeios e admirar a insignificância de nossa pressa e travessia.”


Este último excerto, caro leitor(a), me causa, ainda hoje, espanto, dada a acuidade com que apreende este viver banal, urgente e despropositado em que muitos dentre nós estamos imersos. O cotidiano dos transeuntes é vazio de imersões de alma, é empobrecido de diálogos, de reflexões, de pensamentos, de amor.
Eu ainda não estou satisfeito com o que escrevi até aqui. Acho que não cheguei sequer à termosfera de minha alma. Mas sinto que ainda tenho algumas palavras mais a acrescentar a este discurso revisional-introspectivo. Abro um parêntese para referir um trecho do livro Passeio pela Antiguidade (2012). Este trecho ensina-nos uma lição a que meu espírito aderiu como um piche: pensar diferente modifica a vida. Com a descoberta da filosofia, meus pensamentos se robusteceram e se tornaram conflituosos com os que antes habitavam minha alma; não todos, é claro, mas o meu inverso tornou-se reverso deixando permanecer essa insistência em desapegar-me. Você não me compreendeu aqui, nem mesmo eu me compreendi, mas gostei deste trecho. Não se preocupe em aprofundar-se em mim, sob pena de afogar-se e não conseguir mais assomar à superfície da vida. Sempre necessitamos das superfícies... uns patinam sobre elas durante a vida toda... mas, mesmo os que se aventuram em imersões demoradas na existência, precisam voltar a caminhar sobre elas... Namorar o absurdo por muito tempo pode nos enlouquecer. Afinal, é preciso existir sendo um pouco transeunte:

“A chave da existência reside, pois, no pensamento. Portanto, convém regrar as próprias ideias a fim de regrar o próprio modo de vida. Com efeito, uma ação não cessa de remeter a outra. Modificar a própria vida é modificar o próprio pensamento. Pensar de modo diferente é viver de modo diferente. Resta saber como pensar (...)”.

(p. 68)


A filosofia operou uma cirurgia em meu espírito. Lendo Nietzsche, descubro o poder de sua crítica ao romantismo que impregnava o seu tempo de negação à vida. Nietzsche me ensinou a afirmá-la, em que pese as suas intempéries. E como não lembrar aqui Epicuro e sua escola que lhe ostenta o nome. São quatro os pilares que sustentam sua doutrina: 1) não temer os deuses; 2) não temer a morte; 3) buscar prazeres moderados; 4) evitar a dor. O Deus, eu o rejeitei, porquanto absurdo; a morte, já há muito acolhi em meus pensamentos e contra ela se debate a força de meu espírito, especialmente nas noites em que a lua não me visita antes do sono; os prazeres estiveram limitados ao ventre da alma (a poesia, a leitura, a escrita, o amor). Só muito tardiamente conheci o prazer do enlace dos corpos, ao qual veio presa uma cadeia de frustrações. Nada mais natural para um idealista. A par deste espírito estóico que me sabe à existência, trago comigo o pendor estóico para a indiferença ao sofrimento. A vida é uma luta. Disso soube desde que nasci. Nascer é resistir à morte prematura, à inclinação de toda vida, que é frágil, para o abandono à morte (descanso desejado pelos falidos).
Que nos ensina, por exemplo, um estoico como Epicteto? Que só temos domínio sobre nossa vontade, sobre nossas opiniões. E nos oferece um exercício básico: voltemos para nós mesmos e nos perguntemos se podemos exercer alguma influência sobre a ordem de um dado estado-de-coisas ou situação. Se não podemos, não nos perturbemos. A esse estado de ausência de perturbações, os antigos gregos chamavam “ataraxia”. A quietude absoluta e plena me é impossível. Por isso, nesse sentido, não me sinto um estóico. Fico, entretanto, com a coragem para o enfrentamento dos infortúnios do acaso. Negá-lo é mentir para si mesmo. E não deixei de ter medo. Epicuristas e estoicos unidos a um mesmo ideal: a permanência na serenidade. Ideal sempre me foi uma palavra entranhada na alma. Sua semântica costura o tecido de meu espírito desde que comecei a namorar os ultra-românticos. É verdade que minhas disposições ultra-românticas de outrora, sempre mal compreendidas,  estavam muito embaraçadas com meu temperamento de fé, de modo que, exorcizando este, eliminei daquelas o exagero sugerido no prefixo “ultra-“. Ainda me reconheço como um idealista, mas no sentido muito bem desenvolvido por Ingenieros, em seu O Homem medíocre. Os trechos se dispõem abaixo:


“Os idealistas românticos são exagerados porque são insaciáveis. Sonham o máximo para realizar o mínimo, compreendem que todos os ideias contêm uma partícula de utopia e perdem algo ao se realizar: em raças ou em indivíduos, nunca se integram como pensam. Em poucas coisas, o homem consegue chegar ao ideal que a imaginação assinala: sua glória consiste em avançar em sua direção, sempre inatingível.”

“[os idealistas românticos] são dionisíacos. Suas aspirações se traduzem por esforços ativos sobre o meio social ou por uma hostilidade contra tudo o que se opõe a seus palpites e sonhos. Constroem seus ideais sem conceder nada à realidade, recusando-se a ser tolhidos pela experiência, agredindo-a se ela os contrariar. São ingênuos e sensíveis, fáceis de se comoverem, acessíveis ao entusiasmo e à ternura; com essa ingenuidade sem falsidade que os homens práticos ignoram. Basta um minuto para se decidirem para toda a vida. Seu ideal cristaliza em firmeza inequívoca quando a realidade os fere duramente”.

(p. 26)

Uma característica intrigante do amor romântico é que, uma vez consumado sexualmente, ele perde o seu encanto ou arrefece seu desejo antes inflamado. O amor romântico é amor da impossibilidade de completar a sua falta. Não há páginas felizes na história do amor romântico, disso nos lembrou muito perspicazmente Hegel.  Daí que a morte, a loucura e o suicídio sejam males constitutivos desse gênero de amor. Não obstante, há uma característica do amor romântico que me atrai, a despeito de sua natureza irremediavelmente trágica: o amor romântico alimenta-se da alma e não do corpo. Insisto que a experiência sexual diminui o ardor do amor romântico.
Não me agrada referir trechos sem a partir deles produzir um sentido. Também não gosto de fraturá-los, para me concentrar em apenas um pedaço deles. Mas preciso fazê-lo. Toca-me a alma este enunciado, colhido do último exemplo citado: “Seu ideal cristaliza em firmeza inequívoca quando a realidade os fere duramente”. A realidade já me feriu, mas o ideal ainda permanece cristalizado em minha alma. Acho que os docentes precisam ser idealistas, em alguma medida. Sem ideais, não é possível fazer educação.
Epicuro é silenciado no cenário capitalista da modernidade líquida, em que os indivíduos são, em geral, ávidos de prazeres imediatos, extasiantes e constantemente renováveis. O que dura entedia; é bom que nada dure, ou dure o tempo suficiente para que se possa buscar novas formas de prazeres (o que significa dizer que dure muito pouco). Só há prazer em movimento; eles se entendiam com o prazer em repouso. Aliás, não há prazer no repouso, a menos quando estão dormindo ou se sentem demasiado cansados após um longo curso frenético de experiências de prazer, sempre fugazes.
A despeito dos bons momentos em que vivemos juntos, não seria feliz ao lado dela, porquanto ela se demonstrava incapaz de aprofundar-se nos oceanos de minha alma. Limitava-se a denunciar as flutuações superficiais de minha alma. Todavia, meu nascimento legou-me uma profundidade de espírito com a qual terei de me haver até o fim dos meus dias. E é provável que nunca chegue a compreendê-la cabalmente.
Sigo, então, a caminhar com o espírito vagaroso... E nesse reencontro comigo mesmo, sinto que muito de mim se perdeu... Não tenho saudade dos tempos em que vivia inteiramente absorvido em mim, mergulhado neste eu que vivia namorando a ideia de compreender a totalidade do Ser. E acreditava estar ela circunscrita no domínio da fé cristã. Eu, provavelmente, estive entre os melhores cristãos leigos contemporâneos, um cristão para quem a fé e Deus eram um problema para o pensamento. E o afirmo satisfeito e convencido de que a verdadeira salvação eu encontrei na/ pela filosofia. A salvação não pressupôs meu abandono, mas a restituição do meu lugar no devir inerente ao mundo. A escrita, as palavras que lancei sobre os papéis sempre me permitiram estar no controle sobre quem fui e quem sou.
Certamente, eu não escrevi tudo; não confessei tudo, nem poderia. Certos aposentos da alma devem permanecer trancados. Toda palavra que penetra nesses imensos esconderijos onde o ‘Eu’ se refugia comete uma violação, ou mesmo uma violência. Não é fácil lidar com as palavras; é preciso saber domá-las, manejá-las, arranjá-las, de modo que os significados não entrem em conflito, não se desmintam, não se contradigam. Palavras são artefatos belicosos, embora também, se bem empregados, possam produzir estados temporários de paz e harmonia.
E o silêncio convida-me ao retorno à leitura.

domingo, 10 de março de 2013

"Aprender sem pensar é tempo perdido." (Confúcio)


                                              

                                                  



              

                            Uma mentira crível: Noé e a Arca

                                                                        
                                               
                                 





                  
                                                                                        
Buscarei a concisão e me esforçarei por me fazer inteligível ao escrever este texto; e mesmo receando não conseguir cumprir com o que enuncio aqui desde logo, não posso deixar de considerar a importância do pensamento de Nietzsche para a própria atividade de escrita deste texto. É com Nietzsche que começarei a tratar do tema Noé: realidade ou mito? Em tempo, vou justificar o tratamento que dispenso a este tema que, a princípio, não o demandaria, já que não parece haver muita dúvida sobre o fato de que Noé, a sua arca e o Dilúvio são elementos de uma história mítica da Bíblia. No entanto, há quem pense justamente o contrário. Há quem acredite que Noé existiu e que o relato do Dilúvio na Bíblia é um fato histórico. Sinto decepcionar estas pessoas, que não são poucas - acredito eu. Mas voltemos a Nietzsche.
Por que começar fazendo alusão ao pensamento de Nietzsche num texto cujo tema é a crença na veracidade da história – de que veremos se tratar mítica - do Dilúvio na Bíblia hebraica? Uma resposta possível seria sugerir que Nietzsche engrossaria o coro de vozes que defendem a ideia de que se trata, de fato, de um mito bíblico. No entanto, há, além disso, uma razão mais geral para evocar aqui a figura de Nietzsche e essa razão diz respeito ao fato de ele ter desenvolvido o que chamou de “filosofia do martelo”, isto é, um modo de filosofar que consistia em destruir os ídolos erigidos pelas gerações que o precederam e que sobreviviam em seu tempo. Nietzsche se notabilizou, entre outras coisas, por declarar não só a morte de Deus, mas a morte do sujeito (cuja concepção remonta ao racionalismo cartesiano) e da objetividade. Ademais, coube a Nietzsche rejeitar qualquer pretensão à verdade. É com o espírito nietzschiano, que fomentou uma critica radical não só à filosofia de sua época, denunciada por ter-se afastado da vida, por ter-se envolvido numa atmosfera de abstrações e deduções lógicas, mas também às manifestações de vida e cultura da Grécia clássica, que remontam aos trabalhos de Homero e, no século V a.C., a Sócrates, a quem se imputa o papel de ter introduzido a racionalidade no pensamento grego, que me esforçarei por mostrar como devemos ver as histórias bíblicas. Filósofo dos instintos contra a soberania da razão, da qual somos herdeiros desde a modernidade (sec. XVII), decisivamente influente no  século das Luzes (sec. XVIII), filósofo que conclamava seus leitores (os de sua época e os posteriores) a educar-se contra o mundo, Nietzsche é um filósofo de peso, a quem não podemos deixar de recorrer, quando se trata de denunciar as imposturas da fé. Este foi Nietzsche, cuja contribuição para o trabalho crítico sobre toda forma de ideologia e falsificação da consciência, evoco. Nietzsche atacou as ilusões de seu tempo (que é o nosso tempo também), ilusões, não obstante, que perduram. Nietzsche foi um grande filósofo, não há dúvida, um filósofo para quem a essência da vida era a vontade de potência, conceito que, para ser bem compreendido, deve ser tratado relativamente à oposição que estabeleceu entre forças ativas e forças reativas. Não poderia, contudo, me ocupar dela aqui, sob pena de ir muito longe e não cumprir com aquilo a que me propus inicialmente. Fiquemos, contudo, com este Nietzsche para quem o mundo não é dotado de lógica em si; para quem, aliás, a lógica do mundo está em nós; para quem o mundo é um caos. Fiquemos com o Nietzsche para quem não há verdade, mas tão-só interpretações; para quem a relação de causalidade é uma questão de hábito, uma “impressão do espírito humano”. No prefácio de A Vontade de Potência (2011), aprendemos, a esse respeito, que:

“A relação causal, que para Descartes era uma das “verdades eternas” e que Leibniz colocaria como “princípio, não necessitado de demonstração, da razão suficiente”, simplesmente se baseia numa sucessão de fatos e implica, apenas, uma convicção íntima, o que prova a convicção e não a “verdade”.”
(p. 51)

Nietzsche desenvolveu uma filosofia da suspeita, que precedeu o aparecimento da psicanálise e que denunciou “as elucubrações dessa ínfima parte de nós mesmos, que é o pensamento consciente” (Ferry, 2010, p. 84).
Minha intenção era ocupar-me, nesta manhã, com a crítica ao romantismo desenvolvida por Nietzsche; no entanto, cuidei mais vantajoso adiar esse trabalho em proveito da exposição sobre por que não é razoável acreditar que a história do Dilúvio, narrada no Antigo Testamento da Bíblia cristã seja um fato histórico, ou seja, algo que realmente aconteceu. Uma razão forte para isso é, certamente, a falta de evidências de tão grandioso evento. Seria de esperar que ele deixasse marcas, registros geológicos, ou algum vestígio arqueológico. Mas não há sequer sombra dele no planeta. Mas há outras razões que precisam ser elucidadas e que, uma vez compreendidas, nos ajudarão a evitar considerar como verdadeiras outras histórias bíblicas, claramente lendárias ou míticas, como a de Jonas, que fora engolido por um peixe e permaneceu vivo, por um tempo, na sua barriga. Que o espírito nietzschiano inspire-nos na trajetória do esclarecimento que percorrerão estas palavras, doravante.
Não foi surpresa ter lido sobre a crença de uma pessoa, numa rede social de relacionamentos, em que Noé não era um personagem mítico. E acredito que a credulidade tão manifesta se explique, pelo menos em parte, nestas palavras tomadas a Freud, em O Futuro de uma Ilusão (2001):

“(...) as ideias religiosas são proposições, são enunciados acerca de fatos e circunstâncias da realidade externa (ou interna) que comunicam algo que o indivíduo não encontrou por conta própria, e que reivindicam que se creia nelas. Visto que nos informam sobre aquilo que mais nos importa e mais nos interessa na vida, elas gozam de alta consideração. Quem delas nada sabe é deveras ignorante; quem as incorporou aos seus conhecimentos pode ser considerado muito enriquecido.” (p. 73)


Vou-me deter um pouco neste trecho, a fim de trazer à luz algumas inferências, que iluminarão as razões que parecem explicar tão manifesto exemplo de credulidade. Se Freud estiver correto, as crenças religiosas são tipos de proposições nas quais passamos a acreditar como representativas de fatos, de realidades verdadeiras, por força de processos educacionais marcados pela autoridade (seja por membros de nossa família, de professores ou de nossa igreja). Para falar mais precisa e sucintamente, de acordo com Freud, as crenças religiosas nos foram herdadas por força da influência sobre nós de papéis autoritários representados por membros de nossa cultura. Nós a recebemos sem qualquer preocupação em examiná-las criticamente. Atribuímos a elas valor de verdade, sem fazer acordar em nós o espírito de suspeita nietzschiano. Não nos preocupamos em questionar se há evidências que as sustentem, se há boas razões para que a tratemos como crenças verdadeiras. Elas apenas, segundo Freud, atribuiriam ao seu portador certo prestígio em sua comunidade ou cultura. Ao contrário, quem delas nada sabe será tachado de ignorante. E eu acrescentaria que quem a elas se opõem será considerado um imoral, um herege ou um ímpio.
Com Freud, poderíamos dizer que, em nossa cultura, quem possui crenças religiosas e as declara é proprietário de um poderoso capital simbólico e, por isso mesmo, mobilizará a atenção, o apreço e o prestígio dos demais proprietários ou simpatizantes.  Os despossuídos, os não-proprietários, entre os quais se incluem os agnósticos, os mais céticos (sem religião) e os ateus, tenderão a ser depreciados, marginalizados e sua existência deplorada pelos que se acreditam possuidores de um bem valioso: a “verdade revelada”.
É, então, compreensível que alguém acredite que a narrativa do Dilúvio testemunhe um acontecimento histórico, se considerarmos o fato de que sua crença lhe foi inculcada na cabeça por força de agentes doutrinários, quer estejam oficialmente investidos desta função, quer não. Eu intento aqui proporcionar a essa pessoa (ou a essas pessoas) o contato com a verdade sobre essa história bíblica. Referirei o livro sobre o qual calcarei minhas considerações, qual seja, Como ler a Bíblia – História, profecia ou literatura (2007), de Steven L. McKenzie. Espero, assim, possibilitar aos interessados tomar consciência da importância desta obra para uma compreensão crítica da Bíblia e também despertar-lhes o interesse pela sua leitura.
O excerto que apresentarei, na íntegra, a seguir, foi colhido desta obra, muito embora nos informe Mckenzie que se trate de uma publicação universitária assaz conhecida nos EUA. Consoante escreve o autor, “ela mostra como os estudiosos bíblicos têm sido forçados pelas novas evidências a restringir ou revisar suas posições sobre a ideia de que a Bíblia relata eventos históricos reais” (p. 31). A fim de que se compreenda o texto que será citado, é preciso dizer que o título do capítulo é Não aconteceu exatamente assim – historiografia bíblica. É ao título que o autor do trecho fará referência quando emprega o pronome “disso”, que figura logo no início do texto e que destaco em negrito, para que o leitor não o perca de vista:

“Você não ficaria sabendo disso indo a uma igreja ou a uma sinagoga, ou lendo os artigos de final de ano nas revistas semanais, mas nos últimos ciquenta anos os estudiosos têm se debatido com a questão da credibilidade do Velho Testamento como documento histórico. A grande questão da arqueologia ocidental tem sido saber quantas narrativas bíblicas passaram da categoria de fatos aceitos para o reino misterioso da fábula. A primeira narrativa a seguir esse caminho foi a história da Criação do mundo no Gênesis. Que tipo de evidência poderia ser encontrada para apoiá-la? Ademais, o Dilúvio (e Noé) é um evento catastrófico que deveria ter deixado marcas geológicas claras, mas não existe nenhuma. Abraão, Isaac e Jacó protagonizaram histórias seculares 2000.a.C, mas não deixaram nenhuma evidência de sua presença. Se elas foram figuras históricas, temos de aceitar as palavras dos escribas bíblicos, que escreveram séculos após a morte dos patriarcas. A história da conquista de Canaã pelos israelitas soando trombetas e tudo o mais, tem dado lugar a outra versão, mais mundana, de infiltração pacífica e de revolta social entre os camponeses. Não existia nenhuma cidade murada em Jericó quando Josué supostamente a destruiu”.

(p. 31)


Convém, portanto, esclarecer o seguinte: a visão tradicional segundo a qual a Bíblia relata o que realmente aconteceu no passado está errada. Ela tem sido revisada, com base na ideia de que é preciso compreender de modo adequado o gênero bíblico a Escrita da História. Segundo Mackenzie,

“Um claro entendimento do gênero da historiografia na antiga Israel pode ajudar a resolver a tensão entre o respeito pela Bíblia e as investigações históricas dos estudiosos bíblicos e dos arqueólogos, permitindo que a fé não seja forçada a ser cega ou ignorando as análises eruditas modernas”.
(p. 32)


A concepção de História para os antigos israelitas é muito diferente da nossa. Eles não estavam preocupados tanto com o relato fidedigno de fatos quanto estavam em prestar contas com o passado. Pode-se, segundo Mackenzie, baseando-se na proposta de um estudioso chamado Van Seters, propor cinco critérios para definir e identificar a Escrita da História na antiga Israel. São eles:

1º) A Escrita da História se tratava de uma forma de tradição específica e não resultava de uma acumulação acidental de materiais históricos;
2º) A Escrita da História, porque visava a “prestar contas do passado”, buscava recordar o significado dos eventos passados, sem qualquer preocupação em relatar com acuro o que de fato aconteceu;
3º) A Escrita da História tinha como preocupação o exame das causas (basicamente morais) das condições do presente;
4º) A Escrita da História tinha caráter nacional e coletivo;
5º) A Escrita da História era literária e pertencia a uma parte importante da tradição coletiva.

Sem pretender a exaustão, Mackenzie nos ensina que a Escrita da História é uma espécie de etiologia e nos esclarece a respeito desse termo o seguinte:

“(...) Uma etiologia é uma história que explica a causa ou origem de um determinado fenômeno – uma peça cultural ou um costume social, uma circunstância biológica, até mesmo uma formação geológica. Uma etiologia não é, em sua natureza, uma explicação científica. Ela não é histórica, no sentido moderno de um evento que realmente aconteceu no passado. Ela é, preferencialmente, uma história que “presta contas”, oferecendo alguma explicação das condições e circunstâncias presentes, baseada em causas passadas. A antiga Escritura da História, que tenta “prestar contas” do passado era, na verdade, etiologia.

(p. 37, grifo meu)


Uma compreensão adequada, portanto, do gênero da historiografia bíblica implica, em parte entender o papel que desempenha a personagem Noé, após o evento (mítico) do Dilúvio. Lamec, pai de “Noé”, assim o chamou por acreditar que ele traria “o alívio” às pessoas, após o trabalho penoso. Noé foi a primeira pessoa a plantar uma videira e a fazer vinho, extraindo alívio do solo, consoante a previsão de seu pai. No entanto, Noé se excedeu e se tornou também o primeiro bêbado nu, que adormeceu em uma tenda. Seu filho Cam vê o pai naquele estado vergonhoso e conta a seus dois irmãos Sem e Jafé. Quando Noé desperta e descobre o que havia acontecido, amaldiçoa com a escravidão o filho de Cam, chamado Canaã. Segundo Mackenzie, a história acarreta muitas dificuldades de interpretação. Mas o que parece certo é que seu autor tinha a intenção de justificar a subjugação dos cananeus pelos israelitas. E a intenção se expressa por meio do recurso a eponímia. A eponímia é um recurso de linguagem pelo qual um nome de pessoa real ou imaginário passa a aplicar-se a um grupo, tribo ou nação. Esclarece-nos Mackenzie, nesse tocante, com as palavras seguintes:

“Um eponímico ancestral faz mais que gerar o nome de um grupo de pessoas, na verdade, ele o representa e o chega a encarná-lo. Canaã é a eponímia ancestral dos cananeus, o indivíduo que supostamente emprestou seu nome. Como existem vários grupos de cananeus, é improvável que eles tenham descendido de uma única pessoa. Mas isso é irrelevante porque Canaã representa o povo cananeu e o importante para a história é mostrar a conquista da terra de Canaã e justificar a subjugação de sues habitantes através da maldição que Noé impôs sobre o filho de Cam, Canaã”.
(p. 45)



Há muitos detalhes que não considerarei por razões de tempo e espaço. Mas espero tenha ficado clara a ideia de que a figura de Noé serviu ao autor da história do Dilúvio para explicar como o mundo foi repovoado depois do Dilúvio. Claro que esse repovoamento se deveu à participação dos três filhos de Noé, mas foi ele Noé quem inventa a própria Bíblia, entendida como um compêndio de relatos que buscam prestar contas do passado.
Muitas narrativas mitológicas incluem uma história de Dilúvio.  Por exemplo, Na Austrália, os aborígenes acreditam que a arca de Noé parou ao sul do rio Fitzroy. Alguns mitos de dilúvio indígenas fundiram-se com o mito bíblico, de modo a torná-los inseparáveis. Em um mito da Grécia Antiga, Zeus enviou um dilúvio para punir a arrogância dos primeiros seres humanos. Os huichols, grupo indígena do México central, narram um dilúvio ao qual apenas um homem e uma cadela sobreviveram.
Em 1872, George Smith, que aprendera a ler a escrita cuneiforme e a quem coube organizar tábuas antigas da antiga Mesopotâmia, fez uma descoberta surpreendente: encontrou um fragmento de uma história do Dilúvio, semelhante à história do mesmo acontecimento na Bíblia. Não há dúvida, hoje, de que a história do Dilúvio na Bíblia foi inspirada no mito da Arca dos mesopotâmicos. Mackenzie é bastante claro, ao nos ensinar sobre este fato:

“Restou pouca dúvida aos historiadores [após a descoberta de Geoge Smith] de que a história bíblica foi emprestada da civilização mesopotâmica. Elas são, na verdade, a mesma história: um homem recebe um aviso divino sobre um dilúvio iminente e também instruções precisas para construir um barco para salvar sua família e preservar a variedade de espécies animais. Sete dias mais tarde vem o Dilúvio, chove, e as águas inundam tudo. Toda a vida que não está a bordo do barco morre. Quando as águas abaixam, o barco vai dar em uma montanha. Eles enviam pássaros para saber se era seguro desembarcar. Os ocupantes do barco saem e oferecem sacrifícios. Os deuses/divindades ficam satisfeitas e prometem não destruir o mundo com outro dilúvio”.

(p. 59)

Ensina-nos Mackenzie ainda que, tal como sucede com trechos da “história primitiva” relatada dos capítulos 1 ao 11 do Gênesis, a história do Dilúvio surgiu da tentativa empreendida pelos escritores bíblicos de relatar as origens do mundo e das civilizações. E acrescenta: “assim como outras partes da história primitiva do Gênesis 1-11, como a história da Torre de Babel, a história bíblica do Dilúvio foi influenciada pela tradição mesopotâmia”. (p. 59)
Em várias oportunidades em que me ocupei com a discussão de questões relativas à religião, à Bíblia e à fé, fiz apelo a que os meus leitores buscassem nos livros esclarecimentos sobre as bases histórico-ideológicas de suas crenças religiosas. Malgrado o fato de eu supor se tratar de um apelo mudo, o faço por acreditar que a verdade vale mais do que qualquer promessa de conforto emocional. Mesmo que, por fraqueza, a busca pela verdade possa levar muitos ao desespero, ela sempre será profícua, na medida em que é ela mesma que nos incita a viver com relativa segurança num mundo absurdo. Estou ciente de que é possível que alguns leitores ignotos não se agradem do que leram aqui, mas isso não me surpreenderia, e Mackenzie descreve bem as dificuldades com que os estudiosos bíblicos precisam lidar:

”As pessoas que ouvem essas discussões no campo de estudo da Bíblia apresentam, tipicamente, uma de duas possíveis reações. A primeira pode ser caracterizada como “fé cega”. Essa postura é ilustrada por uma conversa que tive há alguns anos com um homem que estava realizando um trabalho em minha casa. Ele tinha estudo, era proprietário de um negócio, era honesto e um bom trabalhador. Ele também era um cristão devoto. Quando descobriu que eu ensinava sobre a Bíblia e tinha visitado o Oriente Médio, começou a me perguntar sobre as evidências arqueológicas de certos eventos narrados nela. Ele estava especialmente interessado no Êxodo do Egito, com Moisés e na conquista de Canaã, com Josué. Contei a ele que a ausência de evidências arqueológicas tinha levado muitos estudiosos bíblicos a questionar se aqueles eventos tinham realmente ocorrido, pelo menos da maneira descrita na Bíblia. Ele respondeu que para ele não interessavam as evidências arqueológicas. “Não interessa o que encontrem, sempre acreditarei que aconteceu exatamente do jeito que a Bíblia disse que aconteceu”.
(pp.31-32)


É difícil não ficar tentado a ver nesse caso tão emblemático da fé cega um traço de personalidade neurótica. Um dos mecanismos utilizados por uma pessoa neurótica é o da negação, mediante o qual, a despeito das evidências, ela se nega a aceitar a verdade de uma situação, mantendo-se agarrada à crença contrária. Ela não consegue suportar a ideia de que a realidade possa provar serem falsas suas crenças, especialmente as mais arraigadas. O homem do exemplo referido por Mackenzie se nega a aceitar as evidências contrárias à sua crença na veracidade dos relatos bíblicos e admite permanecer fiel ao que a Bíblia diz ser verdadeiro. No fundo, o que explica essa negação é o medo de encarar o absurdo da existência. Se a Bíblia, que tradicionalmente é vista como um livro inspirado por Deus, portador da promessa da vida eterna, apresenta inverdades, então, segundo a lógica desse cristão devoto, a vida não faz sentido e o desespero é inevitável. A fé, estrangulando a razão, abandona o indivíduo ao colo da dependência emocional que, embora se revele, à luz da crítica racional, bastante frágil e insuficiente para o usufruto de uma vida boa, precisa ser conservada para manter silenciado o medo do absurdo. É melhor a mentira da fé do que o enfrentamento filosófico do absurdo de nossa existência – pensando assim dorme o devoto seu sono cristão.

sexta-feira, 8 de março de 2013

"Ensinar língua, falar sobre a linguagem é muito mais do que denunciar desvios de norma, martelar usos ultrapassados e policiar neuroticamente o comportamento linguístico dos falantes nativos" (BAR)


                     

      Em presença dos outros – a construção da face


Introdução

A onipresença das palavras

Para onde quer que olhemos, lá estão elas. Não conseguimos escapar à sua onipresença. Estamos imersos nelas e elas estão em nós. Elas nos constituem. Elas nos moldam, nos ensinam, nos modificam. É porque são tão presentes e penetrantes em nosso cotidiano, que, muitas vezes, (ou quase sempre) não nos damos conta de sua importância, de sua função em nossas vidas. Eu me refiro a essas sequências de letras que grafo neste papel ou as sequências sonoras emitidas em sua voz. Essas sequências dotadas de significado. Sim, me refiro às palavras, abundantes! Elas são materiais simbólicos que pertencem à lingua. E novamente é da língua que se trata, de sua relevância, de sua presença constante em nosso cotidiano. Estar em face do outro, e não haver outro modo de definir-se e defini-lo senão no interior do espaço dialógico aberto pela linguagem. Nada mais comum, nada mais fascinante! O Eu que é puro símbolo, pura imagem, que se instaura e se constrói na relação com um Eu-outro, igualmente simbólico e reconstruído nos jogos de interação pela linguagem. Só há Eu e Outro pela/ na linguagem. Não há como ser de outro modo. Seres humanos, homo loquens.
A razão, deusa dos filósofos? De que vale sem a linguagem? A razão é razão discursiva, é razão estruturada em signos. O pensamento pré-verbal, se um dia existiu, foi tão-só para nos indicar o caminho.... Como pensar fora dos quadros da linguagem verbal? Como elaborar raciocínios sem um lingua, sem as palavras e as regras que governam suas construções? Não há pensamento conceitual sem linguagem. Não é possível ao homem ser e viver fora do espaço simbólico. A essência do homem é ser um ser linguístico. Nada mais justo. Nada mais trágico. Trágico porque aprisionado no sentido. E os homens, ah essas criaturas frágeis e até bem estúpidas!, não vivem sem forjar sentidos e vivem a persegui-los, a recriá-los. São eles caçadores de sentidos. Por isso, as ideologias, as religiões, a educação, a cultura, as artes, as literaturas, a política... Tudo que toca ao humano é revestido do simbólico, do sentido produzido no ventre do simbólico.
Deveríamos homenagear a linguagem. Homenageá-la compreendendo-a mais e mais. Deveríamos colocá-la para objeto de pensamento e não submetê-la e aos seus usuários a meros julgamentos de valor. Saber português? O que é saber português? Esta é a pergunta que deveríamos fazer. Todo falante nativo de português sabe falar português e, quando alfabetizado, sabe escrever em português. O que é saber uma língua? É esta a pergunta. Como a língua se relaciona com a cultura, com a percepção-cognição e com a realidade? Outra instigante pergunta. Falar uma língua estrangeira é deter outra visão de mundo? É, de certo modo, ver a realidade de modo diferente? É a mesma a realidade para um falante de inglês e um falante de chinês?
Já se deram conta de que, ao interagir com alguém, buscamos elaborar uma imagem positiva de nós mesmos? E, ao fazê-lo, desejamos que ela seja reconhecida e valorizada? E já se deram conta de que nos esforçamos por proteger esta nossa imagem socialmente construída e que pretendemos seja valorizada, admirada, prestigiada...? A essa imagem que construímos de nós mesmos em face dos outros, dá-se o nome de face. O leitor já se deu conta do impacto emocional negativo que tem uma ofensa ou uma troça? Nessas circunstâncias, sofremos o risco de perdermos a nossa face. No caso da ofensa, ela realmente se perde. E quando chegamos próximos a um estranho para lhe solicitar uma informação? Em geral, buscamos ser polidos, formulando algo como “Por favor, poderia me dizer onde fica a rua tal?”. Essa estratégia de polidez sinaliza que nós reconhecemos a face negativa do interlocutor, ou seja, o seu território pessoal, a sua intimidade, a qual ele, supomos, deseja seja preservada. Ele não quer ser importunado, “invadido” em seu território pessoal.
 Quem nunca viu pessoas em estádios de futebol, ou em seus bairros, diante de uma câmera de televisão (por exemplo, nas reportagens da Rede Globo, no RJ TV) ostentar cartazes com frases do tipo “Filma eu!”? Um professor tradicionalista poderá ter noites e noites de insônia perturbado com o uso inadequado do pronome “eu”, que figura na posição de complemento do verbo. E sua insatisfação não o permitirá reconhecer uma função interessante aí: se o falante escolhe por usar o pronome “eu”, ao invés de “me” nessa função, é porque quer colocar em evidência justamente o eu-cidadão que reivindica melhores condições sociais de existência (no caso de o cartaz aparecer numa reportagem que enfoque problemas enfrentados por moradores de um bairro, por exemplo). Por outro lado, esse  “eu” pode servir para, em outro contexto, pôr em evidência a pessoa mesma que ostenta o cartaz. A posição de complemento preenchida pelo “eu” serve bem ao propósito de alcançar visibilidade numa era em que existir é ser visto. O eu é índice de uma ideologia, de uma visão de mundo, e não meramente uma marca colocada inadequadamente, segundo um cânone gramatical, numa posição sintática.
 É uma pena que ainda haja professores por aí que insistem em reduzir as questões de língua/ linguagem a meras questões do tipo "certo" e "errado".


1. A linguagem em cena

É inegável que os estudos em Linguística, especialmente os desenvolvidos no âmbito da pragmática e da sociolinguística interacional são devedores da contribuição do sociólogo Erving Goffman, que se notabilizou estudando a interação social no cotidiano. Sua perspectiva teatral da atividade linguística consiste na ideia de que cada um de nós, ao interagir por meio da língua, se apresenta e se representa assumindo determinados papeis definidos pela situação em que nos encontramos a fim de alcançar os objetivos perseguidos. Ao participar dos eventos de interação social, cada indivíduo elabora uma representação de si, ou uma imagem de si, com vistas a obter a aprovação dos outros e a encaminhar a interação de tal modo que venha lograr sucesso. Em seu clássico artigo A Elaboração da face (1967), Goffman apresenta e define um conceito que se tornou fulcral nas discussões posteriores sobre as estratégias comunicativas de que lançam mão os interactantes de modo a alcançarem, com sucesso, seus objetivos, qual seja, o conceito de face (que, em inglês, além da acepção de ‘rosto’, também abriga as ideias de ‘dignidade’, ‘auto-respeito’ e ‘prestígio’).
O conceito de face desempenha papel fundamental na teoria de polidez e, posteriormente, foi desenvolvida por dois outros estudiosos da vertente pragmática – Brown e Levinson. Nos estudos desses autores, a noção de face foi expandida, desdobrando-se em dois tipos: face positiva e face negativa. Antes, contudo, de  considerar o conceito de polidez (não faremos incursão na teoria propriamente) e de definir esses dois tipos de face, bem como de compreender como esses conceitos são importantes para a compreensão das formas como as pessoas buscam alcançar sucesso em suas práticas discursivas, devemos nos deter um pouco mais na contribuição de Goffman, que, afinal, foi o precursor nesse terreno. Devemos também entender a concepção de linguagem no interior da pragmática, bem como as leis que governam toda prática discursiva. Voltemos, em primeiro lugar, a Goffman.
Em seu livro A Representação do Eu na vida cotidiana (2011), Goffman nos descreve a situação em que se acha um indivíduo em face dos outros, quando se investe da função de interactante. Um aspecto importante nesta situação é o fato de ele assumir um papel (um papel social, que está, necessariamente, ligado à situação em que se encontra e que envolve direitos e deveres). Todo papel social compreende tarefas que, decorrendo de um status, devem ser desempenhadas por uma pessoa ligada a um grupo nelas interessado. Leiamos com atenção a seguinte passagem:

“Quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita de seus observadores que levem a sério a impressão sustentada perante eles. Pede-lhes para acreditarem que o personagem que veem no momento possui os atributos que apresenta possuir, que o papel que representa terá consequências implicitamente pretendidas por ele e que, de um modo geral, as coisas são o que parecem ser. Concordando com isso, há o ponto de vista popular de que o indivíduo faz sua representação e dá seu espetáculo “para benefício de outros”.

(p. 25)


Prossigamos um pouco mais com Goffman, que nos ensina adiante:

“Num dos extremos, encontramos o ator que pode estar inteiramente compenetrado de seu próprio número. Pode estar sinceramente convencido de que a impressão de realidade que encena é a verdadeira realidade. Quando seu público está também convencido deste modo a respeito do espetáculo que o autor encena – e esta parece ser a regra geral – então, pelo menos no momento, somente o sociólogo ou uma pessoa socialmente descontente terão dúvidas sobre a “realidade” do que é apresentado”.
(ib.id.)


Chamo atenção, desde já, para o vocabulário empregado pelo autor, tomado ao domínio discursivo do teatro (ator, encenar, espetáculo, representar, etc.). Para Goffman, usar a linguagem é encenar; participar dos “jogos de linguagem” (para usar uma expressão bastante feliz de Wittgenstein) é interagir assumindo o papel de uma personagem. Essa personagem que se constrói interacionalmente busca causar uma boa impressão nos outros com quem interage. Para tanto, lançará mão de várias estratégias sociocomunicativas, entre as quais a elaboração da própria face.
Note-se que o interactante buscará construir uma realidade de cuja veracidade se convencerá e de cuja veracidade pretende também que os outros se convençam. Lembramos que ele quer causar boa impressão, quer que a imagem de si construída e a própria versão da realidade elaborada em seu discurso seja aceita ou se identifique com a realidade mesma (ou melhor, com aquilo que todos pensam ser a realidade mesma).
Creio suficientes essas considerações da perspectiva de Goffman, para os meus propósitos neste texto. Avancemos um pouco mais. De que trata a pragmática? A pragmática é um domínio dos estudos da linguística que se ocupa da língua em uso. Entram em seu escopo não só as regras linguisticas propriamente ditas, mas principalmente as regras ou convenções sociais que governam as relações entre indivíduos e que influenciam os usos da língua. A pragmática concebe a língua como um lugar de interação social ou como forma de ação intersubjetiva. Pelo uso da língua, os falantes agem uns sobre os outros, de modo a se influenciarem reciprocamente. Um dos capítulos mais ilustrativos da pragmática é o dos atos de fala. Assim, cada enunciado produzido é um ato de fala, é uma expressão verbal de uma ação, necessariamente, social.
O que é uma convenção social? Ela, necessariamente, pressupõe um acordo quanto ao modo de se comportar em uma dada situação social. Convenção social consiste num conjunto de normas, acordos ou padrões aceitos por uma dada comunidade para regular os modos de conduta de seus membros. Por exemplo, num enterro, em nossa cultura, espera-se que demonstremos nosso pesar, que manifestemos nossas condolências e não que contemos piadas. Espera-se que façamos escolhas linguísticas apropriadas à situação, produzindo algo como “Lamento a perda de seu marido”; mas, de modo algum, “já foi tarde este velho ranzinza” (ainda que dele tenha sido esta a imagem que ficou em nossa memória).
A pragmática, portanto, abrigará, em seu escopo, as convenções sociais, também as regras, os valores, os conhecimentos e crenças pressupostos como partilhados pelos interactantes, ao se ocupar dos usos da linguagem. Há também as leis do discurso, ou seja, certo conjunto de normas que devem ser seguidas pelos participantes da interação, tais como o “princípio de cooperação” (Grice, 1960), que Charaudeau denominará de “contrato de comunicação”.
Reza o princípio de cooperação ou contrato de comunicação que os interactantes se esforçarão por conduzir a interação de modo que os objetivos sejam alcançados. Quando me disponho a interagir, viso ao sucesso da interação, ou seja, esforço-me, juntamente com os demais participantes (eles também se esforçam, ou assim é esperado) para que a interação chegue a bom termo. O princípio de cooperação é o alicerce de outras leis do discurso, a saber: a lei da pertinência (a adequação ao contexto sociocomunicativo); a lei da sinceridade (o engajamento do interactante no ato comunicativo); a lei da informatividade (permitindo ao seu interlocutor a produção de inferências); a da exaustividade (o interactante deve fornecer as informações relevantes, de acordo com a situação, evitando lacunas que não podem ser satisfatoriamente preenchidas com base em inferências); a da modalidade (o interactante deve procurar a clareza e a brevidade tanto quanto possível); e a da preservação das faces (o interactante evitará atos de ameaça à face dos outros, ao mesmo tempo em que procurará defender sua própria face e proteger a dos outros). É dessa última lei que me ocuparei nesse artigo.


2. O conceito de face e seu desenvolvimento

Em primeiro lugar, devemos ter em conta que o conceito de face se prende ao de self (eu). Os valores pessoais ligados ao self entram em jogo na interação verbal e serão determinantes das escolhas linguísticas que fará o interactante. Para Goffman entende-se por face “o valor social positivo que uma pessoa reclama para si” e a isso acresce que “toda pessoa tende a experimentar uma resposta emocional imediata à face que lhe é proporcionada num contato com os outros”.
A face não é apresentada de modo permanente  e estável; ela é um bem passível de ser alterado ao longo da interação. Por isso, ela pode ser ameaçada e deve ser protegida, recuperada, caso seja momentaneamente perdida, ou salva. A face é um constructo teórico de base sócio-interacional. Ela define o território do self que, necessariamente, se constrói nas relações sociais pelo uso da linguagem e que, portanto, está sujeita a toda sorte de ameaças em potencial. A ela estão associados sentimentos e regras sociais que variam de um grupo para outro. São essas regras que definirão quantos sentimentos ou valores a ela se associarão. A face envolve, portanto, emoções pessoais, donde se segue experimentarmos sentimentos de culpa, humilhação, inferioridade, quando nossa própria face é ameaçada ou perdida.
Pode-se compreender a face como uma auto-imagem que o interactante constrói na relação com os demais interactantes numa dada situação interacional. O interactante pretende que essa imagem de si seja aceita e aprovada pelos seus parceiros de comunicação. No referido artigo, Goffman, assim se expressa a esse respeito:

“Uma vez tendo assumida uma auto-imagem, que se expressa através de uma face, há expectativas e modos que a pessoa deve preencher. De diferentes modos, em diferentes sociedades, exigir-se-á que as pessoas mostrem auto-respeito, recusem certas ações por estarem estas acima ou abaixo de si mesmas, ao mesmo tempo em que se esforçam para desempenhar outras mesmo que isto lhes custe muito caro. Ao entrar em uma situação na qual lhe é dada uma face a manter, a pessoa toma a si a responsabilidade de patrulhar o fluxo de eventos que passa diante de si.”

(p. 81)

Urge salientar que, numa interação social, espera-se que um indivíduo não se preocupe em apenas proteger a sua própria face, mas também a dos outros, segundo reza o princípio geral da cooperação. Espera-se que ele tenha consideração pelos outros, sem a qual se verá em sérios problemas. Por exemplo, um indivíduo que não se demonstre desconfortável com a perda da face alheia (como a humilhação de outrem), será tachado de insensível. Goffman ensina que a manutenção da face é condição para que haja interação.
Goffman nos dá a saber dois grandes grupos de ações relacionadas à face: as práticas de defesa da face e as práticas de proteção da face. As primeiras servem como meio de o indivíduo defender a própria face; ao passo que as segundas servem para que ele proteja a face de um ou mais parceiros de comunicação. No primeiro caso, alguém pode ser motivado pelo orgulho próprio, pelo apego à sua auto-imagem, à honra ou ao poder e status em face dos outros; no segundo caso, pode estar emocionalmente ligado ao parceiro cuja face foi ameaçada, ou pode julgar que esse outro é merecedor de proteção moral, ou pode temer hostilidades, caso não tome partido em sua defesa, etc.
Vamos ver, doravante, como os teóricos Brown e Levinson desenvolveram a teoria de faces de Goffman, de modo a aperfeiçoá-la, lançando luzes sobre a compreensão das formas como os interactantes buscam lograr sucesso nos eventos de interação de que participam. Antes de considerar a distinção feita pelos autores entre face positiva e face negativa, é importante que se tenha em conta a importância da polidez para a vida social.
Muitas vezes, podemos pensar a polidez como uma espécie de “verniz social” que torna o indivíduo que dela se vale alvo de prestígio e admiração, muito embora ela não deva ser aplicada a todas as situações, sob pena de conferir ao trato artificialidade. Mas ela tem sua importância e por isso devemos ponderar nas seguintes palavras, colhidas do Dicionário de Análise do Discurso (2006):

“Ainda que nem tudo se reduza a questões de face, ainda que a polidez não se aplique em todas as situações, ainda que ela seja apenas a “virtude das aparências”, a polidez não se reduz a uma simples coleção de regras formais mais ou menos arbitrárias: ela desempenha um papel fundamental na regulação da vida em sociedade, permitindo conciliar os interesses geralmente desencontrados do Ego e do Alter, e manter um estado de equilíbrio relativo e sempre precário entre a proteção de si e a consideração de outrem. Ora, é sobre esse equilíbrio que repousa sobre o bom funcionamento da interação.”

(p. 384, grifo no original)


Tome-se a palavra chave “equilíbrio”, em negrito no texto citado. É desse equilíbrio relativo entre os interesses conflitantes do eu e do outro que depende o sucesso da interação. E uma das formas de alcançar esse equilíbrio é o recurso a estratégias de polidez. Na mesma página, mais abaixo, podemos ler ainda o que se segue:

“A polidez não é nada mais do que uma máquina para manter ou restaurar o equilíbrio ritual entre os interactantes, logo, para fabricar contentamento mútuo (ao passo que sua falta desencadeia reações de brutal descontentamento)”.

(ênfase no original)


Sabemos que a polidez expressa moderação no trato, expressa fineza educacional, ou seja, ela revela quanto nós somos educados e conhecemos os bons modos de comportamento aceitos pela sociedade ou pela comunidade a que pertencemos, e a língua põe à nossa disposição recursos habilitados para a sua expressão, tais como “por favor”, “por gentileza”, “poderia”, etc. Um enunciado como “A senhora, poderia me informar onde fica a rua São Bernardino?” encerra duas expressões que denotam polidez: uma delas é “a senhora”, que além de marcar polidez, marca distanciamento social e respeito; a segunda é a forma do futuro do pretérito do verbo “pedir”, cuja formalidade linguística mostra que damos ao interlocutor um status de importância (nós supomos que ele é merecedor de um tratamento linguístico mais formal). Podemos entrever aqui a relação da polidez com a preservação das faces. Não nos apressemos, contudo. Quero fazer ver que, se nossas escolhas linguísticas tivessem sido outras, ou seja, se outro fosse o enunciado, provavelmente, nosso interlocutor (supondo se tratasse de um estranho que encontramos na rua), não estaria disposto a nos dar a informação desejada. Imagine se disséssemos algo como “Diz aí, coroa, onde fica a rua....?” É muito provável que essa senhora nos passasse uma reprimenda e se negasse a nos ajudar. Trata-se de uma escolha infeliz e até extrema, mas o resultado não seria menos infeliz, se tivéssemos escolhido “tia” ou se nos limitássemos a tocar-lhe no ombro e lhe perguntássemos, sem qualquer forma de tratamento, simplesmente “onde fica a rua...?”.
Em Brown e Levinson, o conceito de face está intimamente ligado ao de polidez. Além disso, face incorpora, nos estudos desses autores, a noção de território. O território do eu seria a região ou a zona que compreende o corpo, o espaço de situação, de tempo, os bens materiais e simbólicos de que dispõe. Esse território é a sua face negativa.
A face positiva compreende o conjunto de imagens de si mesmos que os interactantes constroem e valorizam e que esperam sejam reconhecidas e valorizadas por outrem. Portanto, a auto-imagem construída socialmente é composta de duas faces: uma negativa, que diz respeito ao desejo de não imposição ou à preservação do território pessoal (à nossa intimidade); e uma positiva, que diz respeito a imagem de si valorizada pelo interactante e que ele espera seja também valorizada e aprovada pelos parceiros de comunicação.
Como vimos, a face, por ser uma realidade simbólica construída interacionalmente, está sujeita a ameaças, de tal modo que os interactantes mobilizarão estratégias que visam a preservar à própria face e a proteger a face dos parceiros. É nesse momento que surgirão os procedimentos de facework (figuração), mediante os quais buscarão neutralizar os atos de ameaça à face, influenciando as decisões dos interactantes.
Segundo Brown & Levinson, há, portanto, quatro faces em cena: as faces positiva e negativa do locutor; e as faces positiva e negativa do interlocutor. São atos de ameaça à face negativa do locutor: fazer promessas, já que elas comprometem o locutor em realizar o que foi prometido, avaliar competências alheias, fazer julgamentos, agradecer, aceitar favores, etc. São atos de ameaça à face positiva do locutor: atos de auto-humilhação, por exemplo, quando o locutor reconhece sua própria fraqueza, de incompetência, de limitações pessoais (que lhe exige pedido de desculpas e admissão de um erro), etc.
São atos de ameaça à face negativa do interlocutor: atos que restringem a liberdade de ação do interlocutor, perguntas diretas sem demonstrar polidez (cortesia), perguntas indiscretas, conselhos que não foram solicitados, ordens, cobrança de um favor que lhe fizemos, etc. São atos de ameaça à face positiva do interlocutor: receber crítica, insulto, desaprovação, ser escarnecido, ser refutado.
Se voltarmos ao nosso exemplo, claro está que, em se tratando de uma pessoa estranha, é desejável, caso queiramos obter sucesso na interação estabelecida com ela e, portanto, caso queiramos ser informados sobre a localização da rua, que evitemos atos de ameaça à sua face negativa (o seu território, à sua intimidade). Ao nos dirigirmos a essa pessoa, estamos, de certo modo, “invadindo” essa zona pessoal que lhe cabe, colocando-a na condição de “alguém que precisa dar uma informação solicitada”. Pedir uma informação é um ato de ameaça potencial à face negativa do outro, por isso, para evitar que se realize a ameaça procuramos lançar mão de recursos linguísticos apropriados a esse fim. Ao fazê-lo, também protegemos nossa face positiva, já que transmitimos uma boa impressão (Goffman nos ensinou sobre a importância das impressões que nossas imagens pessoais causam), ou seja, a impressão de pessoas bem educadas que reconhecem qual deve ser o comportamento linguístico apropriado àquela situação. Por exemplo, sabemos, tacitamente, que aquela pessoa a quem nos dirigimos é uma estranha, que, por isso, não nos dá a liberdade de falar de qualquer jeito, que não deseja ser importunada, que não tem a obrigação de dar a informação que desejamos (afinal, deveríamos saber localizar a rua por conta própria), etc. Esses conhecimentos tácitos estão, pois, inscritos tacitamente no ato de linguagem no momento mesmo em que produzimo-lo adequadamente àquela situação. Em outras palavras, quando me dirijo a essa senhora proferindo “Por favor, a senhora poderia me informar onde fica a rua São Bernardino?”, os saberes tais como: a) eu não a conheço; b) ela não quer ser importunada; c) ela não é obrigada a me informar o que eu quero que me informe; d) ela não concordaria em me transmitir a informação se eu formulasse meu enunciado de qualquer jeito; e) ela pode não saber onde fica a rua, etc. estão nele pressupostos.
Com vistas a levar a bom termo esta exposição, consideremos este pequeno diálogo do seriado A Grande Família, em cuja cena encontram-se Tuco (filho de Nenê e Lineu), Paulão (mecânico e amigo) e Floriano (filho de Bebel e Agostinho), e observemos como se estruturam os atos de ameaça às faces dos interlocutores.
Contexto: os três personagens assistem a um programa do Tuco na televisão.

Paulão – Sabia que essas letra do seu Fofolho mexe comigo assim por dentro?
Floriano – Não sei quem é mais bobo, tio farofa ou o Serginho.
Tuco – Ó moleque, mais respeito comigo, que eu sou seu tio, hein!


http://www.youtube.com/watch?v=l52Z-XrWZzU


Bastam esses três enunciados para que deles colhamos questões interessantíssimas sobre os usos da linguagem. Para os meus propósitos aqui, interessa fazer ver que o Paulão, ao produzir seu enunciado, busca construir uma imagem de si, caracterizada pela sensibilidade. Em outras palavras, ele quer causar a impressão de ser um homem sensível. Ele expõe sua face positiva, que pretende seja reconhecida e valorizada pelos interactantes (Tuco e Floriano). No entanto, ignorando a tentativa de Paulão, Floriano avalia negativamente as duas personagens representadas pelo tio Tuco (o tio farofa e o Serginho), considerando-as “bobas”. A depreciação das personagens é um ato de ameaça à face positiva de Tuco em face do sobrinho. A fim de restaurar sua face, ele produz um ato de fala de comando, ordem, advertência, de modo a exigir dele mais respeito. Ele está autorizado a exercer este ato na condição de seu tio (vê-se aqui a importância do status social como fonte legitimadora da produção do ato de ordenar). Tuco exige do sobrinho respeito e, ao fazê-lo, demarca o grau de hierarquia que fora, momentaneamente, ignorado, defende sua face e, ao mesmo tempo, põe a perder as faces positiva e negativa de Floriano, já que, por um lado, lembra ao menino que ele deveria reivindicar para si uma imagem de alguém que respeita os mais velhos, especialmente quando eles são membros de sua família (face positiva – alguém respeitador, educado); por outro lado, limita seu espaço de ação, já que o adverte de que não pode se comportar daquela maneira, criticando seu próprio tio (face negativa).
Posteriormente, Agostinho, entrando em cena, adverte a todos, lembrando-os de que têm de se ocupar com outras atividades, em vez de ficarem assistindo televisão; no caso de Tuco e Paulão, para Agostinho, eles deveriam estar trabalhando. Nesse momento, Agostinho põe a perder as faces de todos eles, já que os avalia negativamente como ociosos e preguiçosos. Tuco tentará restaurar, recuperar sua face positiva (enquanto artista e trabalhador), justificando o tempo livre.
De tudo que foi exposto, cumpre notar que, ao entrarmos nos jogos de interação, ao aceitarmos jogar segundo as regras desses jogos, estamos constantemente negociando significados, não só os associados aos nossos enunciados, mas também os associados às imagens que fazemos deles, da situação em que nos encontramos e de nós mesmos.
Longe de serem permanentemente harmoniosos, os eventos comunicativos não deixam de exibir tensões, conflitos, que devem, é claro, ser atenuados e, tanto melhor resolvidos, a fim de que a interação seja proveitosa para todos os participantes. É claro que os interactantes buscam sustentar a harmonia durante a interação, mas a arena da qual os discursos são uma representação deixa entrever que a harmonia desejada deve ser sempre negociada e nunca é algo garantido de antemão. 

domingo, 3 de março de 2013

"O absurdo é a razão lúcida que constata os seus limites." (Albert Camus)




                     
                           Humano, demasiado humano

Interroguemo-nos sobre quem é o homem.
Começarei trazendo à cena estes trechos do filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé, colhidos de seu livro Contra um mundo melhor. (2010) Consideremos o primeiro deles:

"A maior impostura moderna não é sua utopia racionalista, mas sim sua denegação sistemática da infelicidade. 

(p. 51)

Não se trata – fique bem claro – de negar valor à felicidade, mas de reconhecer que a infelicidade é uma experiência constitutiva da condição humana. Somente os homens têm consciência da infelicidade e somente eles podem disfarçá-la ou mesmo denegá-la, conforme observa Pondé.
Prossigamos com Pondé, que nos lembra muito apropriadamente sobre a importância de se levar em conta o fato da infelicidade, quando pensamos sobre a condição humana:

"A ideia de que nossa natureza humana seja um tormento me parece a mais verdadeira de todas as descrições de nossa vida. Sei que muita gente julga essa visão ultrapassada, mas sinto um prazer todo especial em ser ultrapassado num mundo superficial como o nosso. Por que superficial? Porque parasitado por engenharias para a felicidade. SOMOS ESCRAVOS DA FELICIDADE, MAS É A INFELICIDADE QUE NOS TORNA HUMANOS. Não sou dado a acessos de culpa, mas experimento cotidianamente o tormento de minha humanidade. Sou fraco, submetido ao desejo desorientado, leio e escrevo como forma de combater o mal que me habita. Minha letra me ajuda a saber o que sou: um escravo do gosto".
(p. 65)
(ênfase minha)


O trecho em destaque encapsula a posição de Pondé. A infelicidade nos humaniza. Não se deve daí concluir que na vida humana só haja dor, sofrimento e infelicidade, mas não se pode negar que a dor, o sofrimento e a infelicidade tecem as malhas da existência humana. No tocante à condição humana, as palavras de Ernest Becker, em A Negação da Morte (2012), iluminam-nos a consciência:


“O que significa ser um animal consciente de si mesmo? A ideia é absurda, se não for monstruosa. Significa saber que se é alimento para vermes. Este é o horror: ter surgido do nada, ter um nome, consciência de si mesmo, profundos sentimentos íntimos, uma torturante ânsia pela vida e pela auto-expressão – e, apesar de tudo isso, morrer”.
(pp. 115-116)


Este trecho de Becker afina-se com este outro excerto, de Schiffter, em Filosofia Sentimental – ensaios de lucidez (2012). Também aqui o absurdo da existência é estética e singularmente expresso:


“A vida é uma infecção. Uma contaminação do Nada pelo tempo. Uma vez contraída, salvo se acabar pelo suicídio ou por um acidente, ela persiste até esgotar o corpo e a alma”.

(p. 88)

Combinemos as ideias do primeiro trecho com as do segundo e construamos o seguinte raciocínio. Somos seres autoconscientes, portanto, não só sabemos quem somos, mas também sabemos que estamos destinados ao envelhecimento e à morte. Até que a nossa morte chegue, teremos de lidar com a angústia que decorre do saber que as pessoas que amamos também morrerão. Embora conscientes da morte, que atinge a todos nós, indiscriminadamente, vivemos imersos em construções de significados. Viver para o homem é construir significados. No entanto, todos esses significados que vamos construindo ao longo da vida se extirparão com a nossa morte, ou serão abalados com a morte dos que amamos. E não há como escapar a essa ruína. Daí o amor como uma experiência de alegria que torna suportável a vida. Mas mesmo o amor, tal como a vida, é frágil. Todavia, para muitos dentre nós, vale agarrar-se a essa fragilidade do que abandonar-se à angústia do absurdo.
Se, por um lado, somos cônscios da morte; por outro lado, ignoramos completamente donde proveio o “eu-mesmo” que nos distingue como indivíduos, como subjetividades encarnadas. Na ignorância sobre a origem da existência desse ‘eu singular’ (ficcional, imagético, simbólico, como ensinam os psicanalistas), resta-nos a afirmação de que fomos lançados à existência, ou de que viemos do Nada. Resta-nos, pelo menos para os que entre nós são céticos, apenas o reconhecimento do absurdo de ser um entre outros num planeta entre outros, numa galáxia entre bilhões de outras, num universo cuja origem também ignoramos. Vivemos neste círculo achatado nos polos cujas condições naturais favoreceram a vida, muito embora não deixem de ser elas mesmas ameaçadoras à sobrevivência dos viventes.
A ideia de que contraímos a vida como contraímos uma doença ou uma infecção ilustra duas situações: a primeira diz respeito ao fato de que, como sucede com as infecções, não a contraímos voluntariamente (podemos nos expor ao risco de contraí-las, mas não as contraímos por força da nossa vontade de contraí-las); a segunda diz respeito ao fato de que, uma vez contraída, uma infecção nos causa sérios danos à saúde. Também a vida nos causa dores e sofrimentos.
Se a vida nos infeccionou ou nos contagiou, ela nos permitiu participar do Ser (existência), sem que nos tenha consultado. E nem poderia, evidentemente, porque a vontade só é possível pelo contágio da vida. Antes de a vida nos infectar, nós não éramos. Antes da vida, o não-ser. A negação do não-ser é a vida, é o ser, é a existência. Tomamos parte da existência quando fomos infectados pela vida.
Está aí representado o drama humano: somos seres conscientes de que nos tornaremos “alimento para os vermes”, como nos lembra Becker; seres conscientes de nossa finitude, de nossa transitoriedade, seres imersos no mistério e conscientes dessa situação que, uma vez colocada para o pensamento, torna-se fonte de angústia e desespero para o homem comum. Por isso, este homem comum, o filisteu de Kierkegaard, vive mantendo a verdade de sua condição recalcada; segue ele se ocupando com seus afazeres cotidianos, imerso em suas obrigações rotineiras, para não ter de enfrentar a verdade de sua condição. Sem a filosofia, que lhe oferece meios para suportá-la, este homem sentiria seu eu interior rachar até estilhaçar-se, porque absorvido no sentimento do absurdo de sua própria condição tanto como ser da espécie humana (herdeiro consciente de um destino trágico comum a todos os viventes) quanto como ser individual dotado de seus próprios significados, que o tornam desejoso de transcender o mundo.