sexta-feira, 8 de março de 2013

"Ensinar língua, falar sobre a linguagem é muito mais do que denunciar desvios de norma, martelar usos ultrapassados e policiar neuroticamente o comportamento linguístico dos falantes nativos" (BAR)


                     

      Em presença dos outros – a construção da face


Introdução

A onipresença das palavras

Para onde quer que olhemos, lá estão elas. Não conseguimos escapar à sua onipresença. Estamos imersos nelas e elas estão em nós. Elas nos constituem. Elas nos moldam, nos ensinam, nos modificam. É porque são tão presentes e penetrantes em nosso cotidiano, que, muitas vezes, (ou quase sempre) não nos damos conta de sua importância, de sua função em nossas vidas. Eu me refiro a essas sequências de letras que grafo neste papel ou as sequências sonoras emitidas em sua voz. Essas sequências dotadas de significado. Sim, me refiro às palavras, abundantes! Elas são materiais simbólicos que pertencem à lingua. E novamente é da língua que se trata, de sua relevância, de sua presença constante em nosso cotidiano. Estar em face do outro, e não haver outro modo de definir-se e defini-lo senão no interior do espaço dialógico aberto pela linguagem. Nada mais comum, nada mais fascinante! O Eu que é puro símbolo, pura imagem, que se instaura e se constrói na relação com um Eu-outro, igualmente simbólico e reconstruído nos jogos de interação pela linguagem. Só há Eu e Outro pela/ na linguagem. Não há como ser de outro modo. Seres humanos, homo loquens.
A razão, deusa dos filósofos? De que vale sem a linguagem? A razão é razão discursiva, é razão estruturada em signos. O pensamento pré-verbal, se um dia existiu, foi tão-só para nos indicar o caminho.... Como pensar fora dos quadros da linguagem verbal? Como elaborar raciocínios sem um lingua, sem as palavras e as regras que governam suas construções? Não há pensamento conceitual sem linguagem. Não é possível ao homem ser e viver fora do espaço simbólico. A essência do homem é ser um ser linguístico. Nada mais justo. Nada mais trágico. Trágico porque aprisionado no sentido. E os homens, ah essas criaturas frágeis e até bem estúpidas!, não vivem sem forjar sentidos e vivem a persegui-los, a recriá-los. São eles caçadores de sentidos. Por isso, as ideologias, as religiões, a educação, a cultura, as artes, as literaturas, a política... Tudo que toca ao humano é revestido do simbólico, do sentido produzido no ventre do simbólico.
Deveríamos homenagear a linguagem. Homenageá-la compreendendo-a mais e mais. Deveríamos colocá-la para objeto de pensamento e não submetê-la e aos seus usuários a meros julgamentos de valor. Saber português? O que é saber português? Esta é a pergunta que deveríamos fazer. Todo falante nativo de português sabe falar português e, quando alfabetizado, sabe escrever em português. O que é saber uma língua? É esta a pergunta. Como a língua se relaciona com a cultura, com a percepção-cognição e com a realidade? Outra instigante pergunta. Falar uma língua estrangeira é deter outra visão de mundo? É, de certo modo, ver a realidade de modo diferente? É a mesma a realidade para um falante de inglês e um falante de chinês?
Já se deram conta de que, ao interagir com alguém, buscamos elaborar uma imagem positiva de nós mesmos? E, ao fazê-lo, desejamos que ela seja reconhecida e valorizada? E já se deram conta de que nos esforçamos por proteger esta nossa imagem socialmente construída e que pretendemos seja valorizada, admirada, prestigiada...? A essa imagem que construímos de nós mesmos em face dos outros, dá-se o nome de face. O leitor já se deu conta do impacto emocional negativo que tem uma ofensa ou uma troça? Nessas circunstâncias, sofremos o risco de perdermos a nossa face. No caso da ofensa, ela realmente se perde. E quando chegamos próximos a um estranho para lhe solicitar uma informação? Em geral, buscamos ser polidos, formulando algo como “Por favor, poderia me dizer onde fica a rua tal?”. Essa estratégia de polidez sinaliza que nós reconhecemos a face negativa do interlocutor, ou seja, o seu território pessoal, a sua intimidade, a qual ele, supomos, deseja seja preservada. Ele não quer ser importunado, “invadido” em seu território pessoal.
 Quem nunca viu pessoas em estádios de futebol, ou em seus bairros, diante de uma câmera de televisão (por exemplo, nas reportagens da Rede Globo, no RJ TV) ostentar cartazes com frases do tipo “Filma eu!”? Um professor tradicionalista poderá ter noites e noites de insônia perturbado com o uso inadequado do pronome “eu”, que figura na posição de complemento do verbo. E sua insatisfação não o permitirá reconhecer uma função interessante aí: se o falante escolhe por usar o pronome “eu”, ao invés de “me” nessa função, é porque quer colocar em evidência justamente o eu-cidadão que reivindica melhores condições sociais de existência (no caso de o cartaz aparecer numa reportagem que enfoque problemas enfrentados por moradores de um bairro, por exemplo). Por outro lado, esse  “eu” pode servir para, em outro contexto, pôr em evidência a pessoa mesma que ostenta o cartaz. A posição de complemento preenchida pelo “eu” serve bem ao propósito de alcançar visibilidade numa era em que existir é ser visto. O eu é índice de uma ideologia, de uma visão de mundo, e não meramente uma marca colocada inadequadamente, segundo um cânone gramatical, numa posição sintática.
 É uma pena que ainda haja professores por aí que insistem em reduzir as questões de língua/ linguagem a meras questões do tipo "certo" e "errado".


1. A linguagem em cena

É inegável que os estudos em Linguística, especialmente os desenvolvidos no âmbito da pragmática e da sociolinguística interacional são devedores da contribuição do sociólogo Erving Goffman, que se notabilizou estudando a interação social no cotidiano. Sua perspectiva teatral da atividade linguística consiste na ideia de que cada um de nós, ao interagir por meio da língua, se apresenta e se representa assumindo determinados papeis definidos pela situação em que nos encontramos a fim de alcançar os objetivos perseguidos. Ao participar dos eventos de interação social, cada indivíduo elabora uma representação de si, ou uma imagem de si, com vistas a obter a aprovação dos outros e a encaminhar a interação de tal modo que venha lograr sucesso. Em seu clássico artigo A Elaboração da face (1967), Goffman apresenta e define um conceito que se tornou fulcral nas discussões posteriores sobre as estratégias comunicativas de que lançam mão os interactantes de modo a alcançarem, com sucesso, seus objetivos, qual seja, o conceito de face (que, em inglês, além da acepção de ‘rosto’, também abriga as ideias de ‘dignidade’, ‘auto-respeito’ e ‘prestígio’).
O conceito de face desempenha papel fundamental na teoria de polidez e, posteriormente, foi desenvolvida por dois outros estudiosos da vertente pragmática – Brown e Levinson. Nos estudos desses autores, a noção de face foi expandida, desdobrando-se em dois tipos: face positiva e face negativa. Antes, contudo, de  considerar o conceito de polidez (não faremos incursão na teoria propriamente) e de definir esses dois tipos de face, bem como de compreender como esses conceitos são importantes para a compreensão das formas como as pessoas buscam alcançar sucesso em suas práticas discursivas, devemos nos deter um pouco mais na contribuição de Goffman, que, afinal, foi o precursor nesse terreno. Devemos também entender a concepção de linguagem no interior da pragmática, bem como as leis que governam toda prática discursiva. Voltemos, em primeiro lugar, a Goffman.
Em seu livro A Representação do Eu na vida cotidiana (2011), Goffman nos descreve a situação em que se acha um indivíduo em face dos outros, quando se investe da função de interactante. Um aspecto importante nesta situação é o fato de ele assumir um papel (um papel social, que está, necessariamente, ligado à situação em que se encontra e que envolve direitos e deveres). Todo papel social compreende tarefas que, decorrendo de um status, devem ser desempenhadas por uma pessoa ligada a um grupo nelas interessado. Leiamos com atenção a seguinte passagem:

“Quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita de seus observadores que levem a sério a impressão sustentada perante eles. Pede-lhes para acreditarem que o personagem que veem no momento possui os atributos que apresenta possuir, que o papel que representa terá consequências implicitamente pretendidas por ele e que, de um modo geral, as coisas são o que parecem ser. Concordando com isso, há o ponto de vista popular de que o indivíduo faz sua representação e dá seu espetáculo “para benefício de outros”.

(p. 25)


Prossigamos um pouco mais com Goffman, que nos ensina adiante:

“Num dos extremos, encontramos o ator que pode estar inteiramente compenetrado de seu próprio número. Pode estar sinceramente convencido de que a impressão de realidade que encena é a verdadeira realidade. Quando seu público está também convencido deste modo a respeito do espetáculo que o autor encena – e esta parece ser a regra geral – então, pelo menos no momento, somente o sociólogo ou uma pessoa socialmente descontente terão dúvidas sobre a “realidade” do que é apresentado”.
(ib.id.)


Chamo atenção, desde já, para o vocabulário empregado pelo autor, tomado ao domínio discursivo do teatro (ator, encenar, espetáculo, representar, etc.). Para Goffman, usar a linguagem é encenar; participar dos “jogos de linguagem” (para usar uma expressão bastante feliz de Wittgenstein) é interagir assumindo o papel de uma personagem. Essa personagem que se constrói interacionalmente busca causar uma boa impressão nos outros com quem interage. Para tanto, lançará mão de várias estratégias sociocomunicativas, entre as quais a elaboração da própria face.
Note-se que o interactante buscará construir uma realidade de cuja veracidade se convencerá e de cuja veracidade pretende também que os outros se convençam. Lembramos que ele quer causar boa impressão, quer que a imagem de si construída e a própria versão da realidade elaborada em seu discurso seja aceita ou se identifique com a realidade mesma (ou melhor, com aquilo que todos pensam ser a realidade mesma).
Creio suficientes essas considerações da perspectiva de Goffman, para os meus propósitos neste texto. Avancemos um pouco mais. De que trata a pragmática? A pragmática é um domínio dos estudos da linguística que se ocupa da língua em uso. Entram em seu escopo não só as regras linguisticas propriamente ditas, mas principalmente as regras ou convenções sociais que governam as relações entre indivíduos e que influenciam os usos da língua. A pragmática concebe a língua como um lugar de interação social ou como forma de ação intersubjetiva. Pelo uso da língua, os falantes agem uns sobre os outros, de modo a se influenciarem reciprocamente. Um dos capítulos mais ilustrativos da pragmática é o dos atos de fala. Assim, cada enunciado produzido é um ato de fala, é uma expressão verbal de uma ação, necessariamente, social.
O que é uma convenção social? Ela, necessariamente, pressupõe um acordo quanto ao modo de se comportar em uma dada situação social. Convenção social consiste num conjunto de normas, acordos ou padrões aceitos por uma dada comunidade para regular os modos de conduta de seus membros. Por exemplo, num enterro, em nossa cultura, espera-se que demonstremos nosso pesar, que manifestemos nossas condolências e não que contemos piadas. Espera-se que façamos escolhas linguísticas apropriadas à situação, produzindo algo como “Lamento a perda de seu marido”; mas, de modo algum, “já foi tarde este velho ranzinza” (ainda que dele tenha sido esta a imagem que ficou em nossa memória).
A pragmática, portanto, abrigará, em seu escopo, as convenções sociais, também as regras, os valores, os conhecimentos e crenças pressupostos como partilhados pelos interactantes, ao se ocupar dos usos da linguagem. Há também as leis do discurso, ou seja, certo conjunto de normas que devem ser seguidas pelos participantes da interação, tais como o “princípio de cooperação” (Grice, 1960), que Charaudeau denominará de “contrato de comunicação”.
Reza o princípio de cooperação ou contrato de comunicação que os interactantes se esforçarão por conduzir a interação de modo que os objetivos sejam alcançados. Quando me disponho a interagir, viso ao sucesso da interação, ou seja, esforço-me, juntamente com os demais participantes (eles também se esforçam, ou assim é esperado) para que a interação chegue a bom termo. O princípio de cooperação é o alicerce de outras leis do discurso, a saber: a lei da pertinência (a adequação ao contexto sociocomunicativo); a lei da sinceridade (o engajamento do interactante no ato comunicativo); a lei da informatividade (permitindo ao seu interlocutor a produção de inferências); a da exaustividade (o interactante deve fornecer as informações relevantes, de acordo com a situação, evitando lacunas que não podem ser satisfatoriamente preenchidas com base em inferências); a da modalidade (o interactante deve procurar a clareza e a brevidade tanto quanto possível); e a da preservação das faces (o interactante evitará atos de ameaça à face dos outros, ao mesmo tempo em que procurará defender sua própria face e proteger a dos outros). É dessa última lei que me ocuparei nesse artigo.


2. O conceito de face e seu desenvolvimento

Em primeiro lugar, devemos ter em conta que o conceito de face se prende ao de self (eu). Os valores pessoais ligados ao self entram em jogo na interação verbal e serão determinantes das escolhas linguísticas que fará o interactante. Para Goffman entende-se por face “o valor social positivo que uma pessoa reclama para si” e a isso acresce que “toda pessoa tende a experimentar uma resposta emocional imediata à face que lhe é proporcionada num contato com os outros”.
A face não é apresentada de modo permanente  e estável; ela é um bem passível de ser alterado ao longo da interação. Por isso, ela pode ser ameaçada e deve ser protegida, recuperada, caso seja momentaneamente perdida, ou salva. A face é um constructo teórico de base sócio-interacional. Ela define o território do self que, necessariamente, se constrói nas relações sociais pelo uso da linguagem e que, portanto, está sujeita a toda sorte de ameaças em potencial. A ela estão associados sentimentos e regras sociais que variam de um grupo para outro. São essas regras que definirão quantos sentimentos ou valores a ela se associarão. A face envolve, portanto, emoções pessoais, donde se segue experimentarmos sentimentos de culpa, humilhação, inferioridade, quando nossa própria face é ameaçada ou perdida.
Pode-se compreender a face como uma auto-imagem que o interactante constrói na relação com os demais interactantes numa dada situação interacional. O interactante pretende que essa imagem de si seja aceita e aprovada pelos seus parceiros de comunicação. No referido artigo, Goffman, assim se expressa a esse respeito:

“Uma vez tendo assumida uma auto-imagem, que se expressa através de uma face, há expectativas e modos que a pessoa deve preencher. De diferentes modos, em diferentes sociedades, exigir-se-á que as pessoas mostrem auto-respeito, recusem certas ações por estarem estas acima ou abaixo de si mesmas, ao mesmo tempo em que se esforçam para desempenhar outras mesmo que isto lhes custe muito caro. Ao entrar em uma situação na qual lhe é dada uma face a manter, a pessoa toma a si a responsabilidade de patrulhar o fluxo de eventos que passa diante de si.”

(p. 81)

Urge salientar que, numa interação social, espera-se que um indivíduo não se preocupe em apenas proteger a sua própria face, mas também a dos outros, segundo reza o princípio geral da cooperação. Espera-se que ele tenha consideração pelos outros, sem a qual se verá em sérios problemas. Por exemplo, um indivíduo que não se demonstre desconfortável com a perda da face alheia (como a humilhação de outrem), será tachado de insensível. Goffman ensina que a manutenção da face é condição para que haja interação.
Goffman nos dá a saber dois grandes grupos de ações relacionadas à face: as práticas de defesa da face e as práticas de proteção da face. As primeiras servem como meio de o indivíduo defender a própria face; ao passo que as segundas servem para que ele proteja a face de um ou mais parceiros de comunicação. No primeiro caso, alguém pode ser motivado pelo orgulho próprio, pelo apego à sua auto-imagem, à honra ou ao poder e status em face dos outros; no segundo caso, pode estar emocionalmente ligado ao parceiro cuja face foi ameaçada, ou pode julgar que esse outro é merecedor de proteção moral, ou pode temer hostilidades, caso não tome partido em sua defesa, etc.
Vamos ver, doravante, como os teóricos Brown e Levinson desenvolveram a teoria de faces de Goffman, de modo a aperfeiçoá-la, lançando luzes sobre a compreensão das formas como os interactantes buscam lograr sucesso nos eventos de interação de que participam. Antes de considerar a distinção feita pelos autores entre face positiva e face negativa, é importante que se tenha em conta a importância da polidez para a vida social.
Muitas vezes, podemos pensar a polidez como uma espécie de “verniz social” que torna o indivíduo que dela se vale alvo de prestígio e admiração, muito embora ela não deva ser aplicada a todas as situações, sob pena de conferir ao trato artificialidade. Mas ela tem sua importância e por isso devemos ponderar nas seguintes palavras, colhidas do Dicionário de Análise do Discurso (2006):

“Ainda que nem tudo se reduza a questões de face, ainda que a polidez não se aplique em todas as situações, ainda que ela seja apenas a “virtude das aparências”, a polidez não se reduz a uma simples coleção de regras formais mais ou menos arbitrárias: ela desempenha um papel fundamental na regulação da vida em sociedade, permitindo conciliar os interesses geralmente desencontrados do Ego e do Alter, e manter um estado de equilíbrio relativo e sempre precário entre a proteção de si e a consideração de outrem. Ora, é sobre esse equilíbrio que repousa sobre o bom funcionamento da interação.”

(p. 384, grifo no original)


Tome-se a palavra chave “equilíbrio”, em negrito no texto citado. É desse equilíbrio relativo entre os interesses conflitantes do eu e do outro que depende o sucesso da interação. E uma das formas de alcançar esse equilíbrio é o recurso a estratégias de polidez. Na mesma página, mais abaixo, podemos ler ainda o que se segue:

“A polidez não é nada mais do que uma máquina para manter ou restaurar o equilíbrio ritual entre os interactantes, logo, para fabricar contentamento mútuo (ao passo que sua falta desencadeia reações de brutal descontentamento)”.

(ênfase no original)


Sabemos que a polidez expressa moderação no trato, expressa fineza educacional, ou seja, ela revela quanto nós somos educados e conhecemos os bons modos de comportamento aceitos pela sociedade ou pela comunidade a que pertencemos, e a língua põe à nossa disposição recursos habilitados para a sua expressão, tais como “por favor”, “por gentileza”, “poderia”, etc. Um enunciado como “A senhora, poderia me informar onde fica a rua São Bernardino?” encerra duas expressões que denotam polidez: uma delas é “a senhora”, que além de marcar polidez, marca distanciamento social e respeito; a segunda é a forma do futuro do pretérito do verbo “pedir”, cuja formalidade linguística mostra que damos ao interlocutor um status de importância (nós supomos que ele é merecedor de um tratamento linguístico mais formal). Podemos entrever aqui a relação da polidez com a preservação das faces. Não nos apressemos, contudo. Quero fazer ver que, se nossas escolhas linguísticas tivessem sido outras, ou seja, se outro fosse o enunciado, provavelmente, nosso interlocutor (supondo se tratasse de um estranho que encontramos na rua), não estaria disposto a nos dar a informação desejada. Imagine se disséssemos algo como “Diz aí, coroa, onde fica a rua....?” É muito provável que essa senhora nos passasse uma reprimenda e se negasse a nos ajudar. Trata-se de uma escolha infeliz e até extrema, mas o resultado não seria menos infeliz, se tivéssemos escolhido “tia” ou se nos limitássemos a tocar-lhe no ombro e lhe perguntássemos, sem qualquer forma de tratamento, simplesmente “onde fica a rua...?”.
Em Brown e Levinson, o conceito de face está intimamente ligado ao de polidez. Além disso, face incorpora, nos estudos desses autores, a noção de território. O território do eu seria a região ou a zona que compreende o corpo, o espaço de situação, de tempo, os bens materiais e simbólicos de que dispõe. Esse território é a sua face negativa.
A face positiva compreende o conjunto de imagens de si mesmos que os interactantes constroem e valorizam e que esperam sejam reconhecidas e valorizadas por outrem. Portanto, a auto-imagem construída socialmente é composta de duas faces: uma negativa, que diz respeito ao desejo de não imposição ou à preservação do território pessoal (à nossa intimidade); e uma positiva, que diz respeito a imagem de si valorizada pelo interactante e que ele espera seja também valorizada e aprovada pelos parceiros de comunicação.
Como vimos, a face, por ser uma realidade simbólica construída interacionalmente, está sujeita a ameaças, de tal modo que os interactantes mobilizarão estratégias que visam a preservar à própria face e a proteger a face dos parceiros. É nesse momento que surgirão os procedimentos de facework (figuração), mediante os quais buscarão neutralizar os atos de ameaça à face, influenciando as decisões dos interactantes.
Segundo Brown & Levinson, há, portanto, quatro faces em cena: as faces positiva e negativa do locutor; e as faces positiva e negativa do interlocutor. São atos de ameaça à face negativa do locutor: fazer promessas, já que elas comprometem o locutor em realizar o que foi prometido, avaliar competências alheias, fazer julgamentos, agradecer, aceitar favores, etc. São atos de ameaça à face positiva do locutor: atos de auto-humilhação, por exemplo, quando o locutor reconhece sua própria fraqueza, de incompetência, de limitações pessoais (que lhe exige pedido de desculpas e admissão de um erro), etc.
São atos de ameaça à face negativa do interlocutor: atos que restringem a liberdade de ação do interlocutor, perguntas diretas sem demonstrar polidez (cortesia), perguntas indiscretas, conselhos que não foram solicitados, ordens, cobrança de um favor que lhe fizemos, etc. São atos de ameaça à face positiva do interlocutor: receber crítica, insulto, desaprovação, ser escarnecido, ser refutado.
Se voltarmos ao nosso exemplo, claro está que, em se tratando de uma pessoa estranha, é desejável, caso queiramos obter sucesso na interação estabelecida com ela e, portanto, caso queiramos ser informados sobre a localização da rua, que evitemos atos de ameaça à sua face negativa (o seu território, à sua intimidade). Ao nos dirigirmos a essa pessoa, estamos, de certo modo, “invadindo” essa zona pessoal que lhe cabe, colocando-a na condição de “alguém que precisa dar uma informação solicitada”. Pedir uma informação é um ato de ameaça potencial à face negativa do outro, por isso, para evitar que se realize a ameaça procuramos lançar mão de recursos linguísticos apropriados a esse fim. Ao fazê-lo, também protegemos nossa face positiva, já que transmitimos uma boa impressão (Goffman nos ensinou sobre a importância das impressões que nossas imagens pessoais causam), ou seja, a impressão de pessoas bem educadas que reconhecem qual deve ser o comportamento linguístico apropriado àquela situação. Por exemplo, sabemos, tacitamente, que aquela pessoa a quem nos dirigimos é uma estranha, que, por isso, não nos dá a liberdade de falar de qualquer jeito, que não deseja ser importunada, que não tem a obrigação de dar a informação que desejamos (afinal, deveríamos saber localizar a rua por conta própria), etc. Esses conhecimentos tácitos estão, pois, inscritos tacitamente no ato de linguagem no momento mesmo em que produzimo-lo adequadamente àquela situação. Em outras palavras, quando me dirijo a essa senhora proferindo “Por favor, a senhora poderia me informar onde fica a rua São Bernardino?”, os saberes tais como: a) eu não a conheço; b) ela não quer ser importunada; c) ela não é obrigada a me informar o que eu quero que me informe; d) ela não concordaria em me transmitir a informação se eu formulasse meu enunciado de qualquer jeito; e) ela pode não saber onde fica a rua, etc. estão nele pressupostos.
Com vistas a levar a bom termo esta exposição, consideremos este pequeno diálogo do seriado A Grande Família, em cuja cena encontram-se Tuco (filho de Nenê e Lineu), Paulão (mecânico e amigo) e Floriano (filho de Bebel e Agostinho), e observemos como se estruturam os atos de ameaça às faces dos interlocutores.
Contexto: os três personagens assistem a um programa do Tuco na televisão.

Paulão – Sabia que essas letra do seu Fofolho mexe comigo assim por dentro?
Floriano – Não sei quem é mais bobo, tio farofa ou o Serginho.
Tuco – Ó moleque, mais respeito comigo, que eu sou seu tio, hein!


http://www.youtube.com/watch?v=l52Z-XrWZzU


Bastam esses três enunciados para que deles colhamos questões interessantíssimas sobre os usos da linguagem. Para os meus propósitos aqui, interessa fazer ver que o Paulão, ao produzir seu enunciado, busca construir uma imagem de si, caracterizada pela sensibilidade. Em outras palavras, ele quer causar a impressão de ser um homem sensível. Ele expõe sua face positiva, que pretende seja reconhecida e valorizada pelos interactantes (Tuco e Floriano). No entanto, ignorando a tentativa de Paulão, Floriano avalia negativamente as duas personagens representadas pelo tio Tuco (o tio farofa e o Serginho), considerando-as “bobas”. A depreciação das personagens é um ato de ameaça à face positiva de Tuco em face do sobrinho. A fim de restaurar sua face, ele produz um ato de fala de comando, ordem, advertência, de modo a exigir dele mais respeito. Ele está autorizado a exercer este ato na condição de seu tio (vê-se aqui a importância do status social como fonte legitimadora da produção do ato de ordenar). Tuco exige do sobrinho respeito e, ao fazê-lo, demarca o grau de hierarquia que fora, momentaneamente, ignorado, defende sua face e, ao mesmo tempo, põe a perder as faces positiva e negativa de Floriano, já que, por um lado, lembra ao menino que ele deveria reivindicar para si uma imagem de alguém que respeita os mais velhos, especialmente quando eles são membros de sua família (face positiva – alguém respeitador, educado); por outro lado, limita seu espaço de ação, já que o adverte de que não pode se comportar daquela maneira, criticando seu próprio tio (face negativa).
Posteriormente, Agostinho, entrando em cena, adverte a todos, lembrando-os de que têm de se ocupar com outras atividades, em vez de ficarem assistindo televisão; no caso de Tuco e Paulão, para Agostinho, eles deveriam estar trabalhando. Nesse momento, Agostinho põe a perder as faces de todos eles, já que os avalia negativamente como ociosos e preguiçosos. Tuco tentará restaurar, recuperar sua face positiva (enquanto artista e trabalhador), justificando o tempo livre.
De tudo que foi exposto, cumpre notar que, ao entrarmos nos jogos de interação, ao aceitarmos jogar segundo as regras desses jogos, estamos constantemente negociando significados, não só os associados aos nossos enunciados, mas também os associados às imagens que fazemos deles, da situação em que nos encontramos e de nós mesmos.
Longe de serem permanentemente harmoniosos, os eventos comunicativos não deixam de exibir tensões, conflitos, que devem, é claro, ser atenuados e, tanto melhor resolvidos, a fim de que a interação seja proveitosa para todos os participantes. É claro que os interactantes buscam sustentar a harmonia durante a interação, mas a arena da qual os discursos são uma representação deixa entrever que a harmonia desejada deve ser sempre negociada e nunca é algo garantido de antemão. 

domingo, 3 de março de 2013

"O absurdo é a razão lúcida que constata os seus limites." (Albert Camus)




                     
                           Humano, demasiado humano

Interroguemo-nos sobre quem é o homem.
Começarei trazendo à cena estes trechos do filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé, colhidos de seu livro Contra um mundo melhor. (2010) Consideremos o primeiro deles:

"A maior impostura moderna não é sua utopia racionalista, mas sim sua denegação sistemática da infelicidade. 

(p. 51)

Não se trata – fique bem claro – de negar valor à felicidade, mas de reconhecer que a infelicidade é uma experiência constitutiva da condição humana. Somente os homens têm consciência da infelicidade e somente eles podem disfarçá-la ou mesmo denegá-la, conforme observa Pondé.
Prossigamos com Pondé, que nos lembra muito apropriadamente sobre a importância de se levar em conta o fato da infelicidade, quando pensamos sobre a condição humana:

"A ideia de que nossa natureza humana seja um tormento me parece a mais verdadeira de todas as descrições de nossa vida. Sei que muita gente julga essa visão ultrapassada, mas sinto um prazer todo especial em ser ultrapassado num mundo superficial como o nosso. Por que superficial? Porque parasitado por engenharias para a felicidade. SOMOS ESCRAVOS DA FELICIDADE, MAS É A INFELICIDADE QUE NOS TORNA HUMANOS. Não sou dado a acessos de culpa, mas experimento cotidianamente o tormento de minha humanidade. Sou fraco, submetido ao desejo desorientado, leio e escrevo como forma de combater o mal que me habita. Minha letra me ajuda a saber o que sou: um escravo do gosto".
(p. 65)
(ênfase minha)


O trecho em destaque encapsula a posição de Pondé. A infelicidade nos humaniza. Não se deve daí concluir que na vida humana só haja dor, sofrimento e infelicidade, mas não se pode negar que a dor, o sofrimento e a infelicidade tecem as malhas da existência humana. No tocante à condição humana, as palavras de Ernest Becker, em A Negação da Morte (2012), iluminam-nos a consciência:


“O que significa ser um animal consciente de si mesmo? A ideia é absurda, se não for monstruosa. Significa saber que se é alimento para vermes. Este é o horror: ter surgido do nada, ter um nome, consciência de si mesmo, profundos sentimentos íntimos, uma torturante ânsia pela vida e pela auto-expressão – e, apesar de tudo isso, morrer”.
(pp. 115-116)


Este trecho de Becker afina-se com este outro excerto, de Schiffter, em Filosofia Sentimental – ensaios de lucidez (2012). Também aqui o absurdo da existência é estética e singularmente expresso:


“A vida é uma infecção. Uma contaminação do Nada pelo tempo. Uma vez contraída, salvo se acabar pelo suicídio ou por um acidente, ela persiste até esgotar o corpo e a alma”.

(p. 88)

Combinemos as ideias do primeiro trecho com as do segundo e construamos o seguinte raciocínio. Somos seres autoconscientes, portanto, não só sabemos quem somos, mas também sabemos que estamos destinados ao envelhecimento e à morte. Até que a nossa morte chegue, teremos de lidar com a angústia que decorre do saber que as pessoas que amamos também morrerão. Embora conscientes da morte, que atinge a todos nós, indiscriminadamente, vivemos imersos em construções de significados. Viver para o homem é construir significados. No entanto, todos esses significados que vamos construindo ao longo da vida se extirparão com a nossa morte, ou serão abalados com a morte dos que amamos. E não há como escapar a essa ruína. Daí o amor como uma experiência de alegria que torna suportável a vida. Mas mesmo o amor, tal como a vida, é frágil. Todavia, para muitos dentre nós, vale agarrar-se a essa fragilidade do que abandonar-se à angústia do absurdo.
Se, por um lado, somos cônscios da morte; por outro lado, ignoramos completamente donde proveio o “eu-mesmo” que nos distingue como indivíduos, como subjetividades encarnadas. Na ignorância sobre a origem da existência desse ‘eu singular’ (ficcional, imagético, simbólico, como ensinam os psicanalistas), resta-nos a afirmação de que fomos lançados à existência, ou de que viemos do Nada. Resta-nos, pelo menos para os que entre nós são céticos, apenas o reconhecimento do absurdo de ser um entre outros num planeta entre outros, numa galáxia entre bilhões de outras, num universo cuja origem também ignoramos. Vivemos neste círculo achatado nos polos cujas condições naturais favoreceram a vida, muito embora não deixem de ser elas mesmas ameaçadoras à sobrevivência dos viventes.
A ideia de que contraímos a vida como contraímos uma doença ou uma infecção ilustra duas situações: a primeira diz respeito ao fato de que, como sucede com as infecções, não a contraímos voluntariamente (podemos nos expor ao risco de contraí-las, mas não as contraímos por força da nossa vontade de contraí-las); a segunda diz respeito ao fato de que, uma vez contraída, uma infecção nos causa sérios danos à saúde. Também a vida nos causa dores e sofrimentos.
Se a vida nos infeccionou ou nos contagiou, ela nos permitiu participar do Ser (existência), sem que nos tenha consultado. E nem poderia, evidentemente, porque a vontade só é possível pelo contágio da vida. Antes de a vida nos infectar, nós não éramos. Antes da vida, o não-ser. A negação do não-ser é a vida, é o ser, é a existência. Tomamos parte da existência quando fomos infectados pela vida.
Está aí representado o drama humano: somos seres conscientes de que nos tornaremos “alimento para os vermes”, como nos lembra Becker; seres conscientes de nossa finitude, de nossa transitoriedade, seres imersos no mistério e conscientes dessa situação que, uma vez colocada para o pensamento, torna-se fonte de angústia e desespero para o homem comum. Por isso, este homem comum, o filisteu de Kierkegaard, vive mantendo a verdade de sua condição recalcada; segue ele se ocupando com seus afazeres cotidianos, imerso em suas obrigações rotineiras, para não ter de enfrentar a verdade de sua condição. Sem a filosofia, que lhe oferece meios para suportá-la, este homem sentiria seu eu interior rachar até estilhaçar-se, porque absorvido no sentimento do absurdo de sua própria condição tanto como ser da espécie humana (herdeiro consciente de um destino trágico comum a todos os viventes) quanto como ser individual dotado de seus próprios significados, que o tornam desejoso de transcender o mundo.







quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Por um ensino de língua em favor dos oprimidos!




                       
                                  Nós não aguenta mais essa bazófia! 



Eu detesto admitir, mas tenho de fazê-lo: foge ao meu poder pôr em derrocada uma longa tradição de ensino de língua portuguesa de cunho prescritivista-normativo calcada sobre a noção equivocada de “erro linguístico”. Mesmo eu, que estudei durante quase 10 anos, que desenvolvi estudos de pós-graduação (mestrado, especialização e doutorado) em Letras, que aprendi a desenvolver um pensamento científico sobre a linguagem, mesmo eu, junto aos demais especialistas, mais experientes e capacitados do que eu, tenho de reconhecer a força insuperável dessa tradição que reforça a baixa auto-estima linguística do brasileiro, ensinando a “evitar os deslizes da gramática”.
O que essa tradição, que se funda numa concepção ideológica da complexa relação entre língua e sociedade, não revela são os mecanismos de poder envolvidos na prática de prescrição e censura dos usos linguísticos. O que ela não revela é o preconceito linguístico, é o sentimento de estratificação social que subjaz às práticas linguísticas. O que ela não revela, mas esconde, é que a rejeição da fala do outro, com base no uso de alguma forma ou estrutura que não é agasalhada pela norma culta, estabelecida esta, por sua vez, com base no poder dominante, quer sócio-político, quer cultural, quer econômico, contribui para excluir ainda mais as camadas populares a que esse outro pertence. Ela não mostra que essa rejeição demarca com mais nitidez as exclusões que já existem nos domínios sócio-político e econômico. Ao contrário, esta tradição e seus continuadores insistem em tratar de modo superficial os usos da língua, insistem em asfixiá-los numa roupa doutrinária, dogmática, em cujo alicerce se acham critérios que sequer reconhecem. Essa tradição e seus continuadores supõem que os erros são imanentes à língua, continuam a ensinar, por exemplo, que uma frase como “Vi ele no banheiro” está “errada” simplesmente porque NÃO DEVEMOS usar pronome reto na função de complemento verbal (objeto direto). Mas qual é a voz que diz NÃO DEVEMOS? Quem é que proibiu esse uso? E qual seria a outra razão senão o da proibição por quem quer que seja pela qual essa frase está “errada”? Gramaticalmente, não há nada de anormal com a frase. Sua estrutura se formou na base dos padrões previstos na gramática (sistema de regras e unidades) da língua portuguesa. Nela encontramos articulados: um sujeito implícito ou zero (marcado na desinência do verbo “ver” (vi)), um objeto direto ou complemento do verbo “ver” (ele) e depois um adverbial locativo, constituído da preposição “em” combinada com substantivo que denota ‘lugar’. Não há nada de “errado” nessa estruturação. Onde está o “erro” então? Onde devemos buscar o “erro” então?
Ora, claro está que o “erro” se desloca do plano linguístico ou gramatical, para o plano social, ou sociocultural. Definitivamente, o “erro” é uma valoração que as pessoas fazem das coisas, situações, condutas, práticas, etc. A cultura é um sistema de valores e nossas relações com o mundo e com os outros se organizam na base de valores.  A língua é uma prática social e suas expressões estão sujeitas à valoração baseada em conceitos do tipo “certo” e “errado”. É no social que devemos buscar compreender de que modo e por que os usos linguísticos são submetidos a avaliações como “é certo”, “é errado”, “é bom”, “é ruim”, etc.
Considerado o cenário dessa maneira, não se pretende defender o “vale tudo” em matéria de uso da língua. NENHUM LINGUISTA PREGA ISSO. Nenhuma autoridade séria que estuda a linguagem ou a língua portuguesa defende isso, simplesmente porque reconhece que há uma norma culta e que seu domínio é sinal de prestígio social e importante para a emancipação socio-política dos sujeitos sociais. Além disso, é pelo domínio dessa norma que os sujeitos terão mais possibilidades de acesso aos bens culturais e mais participação nas esferas do poder.
A tradição a que venho me referindo quer fazer crer à grande maioria leiga que o uso da variedade de prestígio da língua deve predominar sobre as demais variedades e que essa variedade de prestígio deve ser extensiva a todas as situações de interação. Agora, experimente falar difícil com o seu amigo enquanto tomam uma cervejinha no bar. Muito provavelmente ele o tomará por pedante e antipático. Simplesmente, porque, naquele contexto, espera-se uma forma de linguagem informal, coloquial, um comportamento linguístico não-monitorado, livre dos padrões da norma culta.
Um falante de português suficientemente competente em sua língua materna é aquele que domina o maior número de variedades possível e que lança mão delas de modo adequado às mais variadas situações de interação. Em suma, é aquele que, dominando as variedades de prestígio, sabe também usar as demais variedades sempre que as condições contextuais (socioculturais) as demandam. O falante nativo competente não é aquele chato que segue religiosamente as regras da norma culta em todas as situações de interação. Esse chato provavelmente vai ser mal visto e excluído dos círculos de amizade.

Acordem, professores de português! Ainda é tempo de construir uma consciência crítico-emancipatória dessa tradição que engessa a língua e continua a reproduzir a exclusão daS maioria.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Eros e o sentido




O silêncio erótico do sentido

A linguagem é enamorada do silêncio
O silêncio é grávido de sentido
O sentido é sinal de que há símbolo
A morte devora sentidos

Morre-se todos os dias
E na vida empobrecida de sentido
A morte já se prenuncia
Simbolicamente tecida na alma

Mas Eros, que não rejeita Tanatos
Mantém a harmonia
Frágil, impulsivo
Vai devolvendo à vida de alegria um sentido

Um sentido que mora no silêncio
Dos apaixonados que se entreolham
E juram, por um instante, encher-se a alma
De infinito

Só a linguagem do silêncio
Só a abundância do sentido
Só lábios que se roçam
E corpos enlaçados celebrando Eros.

(BAR)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Este texto estava entre os que compus há uns quatro anos. Na minha solidão, contemplava o mundo criticamente.


                                    

                                         Inconstância
                          A Liquidez de nosso tempo


Numa perspectiva fenomenológica, todo fato humano é significativo. Uma vez eliminada sua significação, esvaece-se sua natureza de fato humano. A emoção compreende a totalidade do Dasein (“o ser-aí”, “o ser-no-mundo”). Emoção é o todo da consciência. A emoção é a realidade humana assumindo-se a si mesma e projetando-se para o mundo. Ela não existe enquanto fenômeno corporal, pois o corpo é incapaz de conferir sentido. A emoção é significação da consciência.
 A realidade humana é o eu, que assume seu próprio ser, ao compreender a si mesmo. Essa compreensão não se dá, evidentemente, in absentia, mas na relação com o outro. O Dasein é o ser-no-mundo, ou seja, o modo como cada um de nós existe no mundo. O Dasein constrói sua própria significação existindo no mundo. Como realidade humana, o Dasein é “ser com”. Os homens são seres de “relação com”.
É inegável que a emoção desempenha um papel fundamental nas formas de relacionamento humano. Nossas relações com o Outro se estabelecem na base da emoção.  Do latim emovere (‘movimento’ ‘fora’), emoção é o movimento de nossa alma para o exterior. É o que nos move para o mundo, motivando-nos a nos relacionar uns com os outros. Como ensina Cury, a emoção é caracterizada por um conflito inerente: se, por um lado, ela é a grande responsável por nossa força vital, pela vontade de viver, tornando nossas experiências fonte de prazer e satisfação; por outro lado, também traz muitas complicações, acentua nossa suscetibilidade a decepções, a frustrações, etc. A vida humana não seria possível, no entanto, sem emoção.
Doravante, encaminharei meu discurso na direção adequada à satisfação dos objetivos a que viso. Paciente, leitor, pois iniciarei um novo tópico. Não lhe será custoso, entretanto, estabelecer a relação de sentido entre ele e a porção precedente. Como não tardará em notar, as considerações precedentes sobre o conceito de Dasein do existencialismo de Heidegger, bem como sobre a emoção, tal como pensada numa perspectiva fenomenológica, que remonta a Husserl, serão responsáveis por orientar a construção de representações que se assentam no pressuposto de que manter relação é o que define a essência do homem.  Há duas implicações nesse pressuposto:

1º) como ensinou Sartre, no homem “a existência precede a essência”. Primeiramente, o homem existe, para, então, ser;

2º) Como não haja uma essência pré-definida ou dada a priori, existir, que é ‘manter relação com’ (ao existir, levamos em conta o outro, essa é a condição do Dasein), passa a constituir uma propriedade fundamental da definição do humano.

Não tenho medo de morrer. A certeza da morte não me impede de viver com relativa serenidade (já que estamos constantemente vulneráveis a conturbações de espírito, a inconstâncias de humor).  Muita vez, a ideia da morte sorri-me; aguardo-a como quem espera para fazer uma viagem, sem, contudo, ansiar por ela.
Vivo, não apesar da inevitabilidade da morte, mas justamente por causa de seu caráter factual inevitável. Afinal, seria tedioso e inquietante viver eternamente. A ideia de eternidade só é atraente em dois sentidos: se acreditamos na indestrutibilidade da vida (ou seja, na sua perpetuidade na condição espiritual ou incorpórea); ou se nutrimos na alma a esperança de experienciar o Amor pleno, que se deseja sentir, quando duas almas muito afins se encontram. Em suma, a ideia de eternidade só me é atraente e compensadora, caso se confirme a crença na possibilidade da vida além-túmulo ou na perenidade do Amor que transcende, ou seja, que resiste ao desencarne.
Minha angústia – se é que posso chamar, assim, o sentimento que me inunda toda a alma, sempre que tomo consciência de minha impotência em face da fatalidade à qual está destinado meu coração – não decorre da consciência de minha finitude, mas do fato de ter de adiar, mais uma vez, a minha felicidade (a felicidade de amar). É curioso como a felicidade é um sentimento projetado para o futuro. A felicidade é um desejo de prazer inalcançável no presente. E se concordamos com a posição de Freud, deveremos reconhecer que nossa própria constituição psíquica impede-nos de experienciar o prazer permanentemente. A felicidade é o que buscamos, embora se nos escape.
Talvez, se esteja perguntando, leitor, se sou feliz, e eu lhe diria, sem hesitar, que sou feliz, muito feliz. Mas minha felicidade não impede minha tristeza; convive bem com ela. Minha tristeza, tão familiar e, não raro, tão inapreensível, nasceu comigo. Não estou na vida de passagem. Sinto-me convocado a me pronunciar, a me posicionar em face da minha realidade, que é o Dasein – a realidade humana. Sou um indivíduo que vive apreendendo-se a si mesmo; vivo na consciência de mim mesmo.
Definitivamente, sinto-me deslocado; viver em nosso tempo (controversamente, chamado de “pós-moderno”) me é desconfortante, pois que me movo contrariamente a tudo quanto é condicionante: ao imperativo dos padrões, dos modismos, do conformismo generalizado, dos lugares-comuns, das opiniões cristalizadas e inquestionáveis, do anestesiamento da consciência, do consumismo que afasta as pessoas de valores mais humanamente significativos e elevados, etc.; sou permanência numa vida líquida, consoante ensina Bauman: “uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante”. Viver numa sociedade líquido-moderna é viver numa sociedade

“em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, de formas de agir”.
(p. 7)

As pessoas buscam ludibriar a morte, em vão, é claro. Buscam obsessivamente conservar a juventude. Certas mulheres, especialmente, produtos da publicidade, escravas da vaidade fútil, por força da ditadura da beleza (de que nos fala Cury), querem retardar a deterioração do corpo, inevitável, submetendo-se a sessões de lipoaspiração, a cirurgias para colocação de próteses de silicone, tentando, assim, preencher seu vazio existencial pela supressão do que julga ser uma falha da natureza (por exemplo, a carência de seios volumosos ou de glúteos firmes e vistosos).
O culto ao corpo, a supervalorização das aparências, associados ao fenômeno de saturação das imagens, as quais esgotam a totalidade do real, sustentam a crença, entre alguns estudiosos, em que a vida na sociedade pós-moderna, também chamada “sociedade do espetáculo”, é semelhante à vida na Caverna de Platão, ou seja, uma vida imersa em simulacros numa grande caverna pós-moderna.
A supervalorização da beleza, da exterioridade físico-corpórea consubstancia a valorização do efêmero, do descartável. Nessas condições, tudo que dura é cansativo; a permanência não passa de delírio de uma idade primaveril e romântica da existência humana, delírio que deve ser substituído por possibilidades, aparentemente, mais substanciais de integração. Há uma necessidade insaciável e incessante de busca por experimentar prazeres cada vez mais intensos, tão intensos quanto fugazes. Fugacidade parece definir bem o nosso tempo: tempo prometedor de felicidade imediata, de caminhos sempre abertos a novas experiências sem substância, mas sempre passíveis de renovação. Tempo em que a memória é suprimida, em que o esquecimento leva ao conformismo. Tempo em que a violência e a injustiça não entram na conta da revolta; são aceitas e justificadas. Tempo em que a História, como diz Bueno (2002:27), “[é] uma coleção de imagens sem espessura e densidade”.
Atento à liquidez dos relacionamentos na pós-modernidade, Bauman nota a tendência a transformarem-se “relações”, “parcerias”, formas de existir que pressupõem certo engajamento, compromisso, em mera “rede” na qual as pessoas estão conectadas umas com as outras, como nos ciberespaços da internet. Ao contrário das relações reais, certamente mais pesadas e conflituosas, as relações virtuais ou conexões podem ser rompidas antes mesmo que se tornem fonte de insatisfação. Tais formas de relações surgem como resultantes das condições líquidas de existência no cenário da sociedade pós-moderna e atendem às necessidades de uma época caracterizada pela velocidade e pela identificação do presente a tudo que existe.
Diferentemente do que sucede com os relacionamentos convencionais ou “reais”, a facilidade com que entramos e saímos de “relacionamentos virtuais” é surpreendente. Os relacionamentos virtuais podem ser, sem muito custo, cindidos antes que suas raízes mergulhem no terreno denso das emoções.  Bauman (2004) cita uma declaração de um jovem de 28 anos da Universidade de Bath (Reino Unido), que nos dá uma idéia clara da fragilidade dos laços humanos na modernidade líquida. Transcrevo-a conforme se segue:

“Sempre se pode apertar a tecla de deletar.”
(p. 13)

 A opção pelas redes dá-se no momento em que as relações convencionais, as quais requerem dedicação, atenção, confiança e fidelidade, entre outras qualidades que garantam a sua sobrevivência,  tornam-se insustentáveis, por flutuarem na carência de sua solidez.
O que se assiste é a uma extensão do padrão das relações virtuais ou “conexões” às formas convencionais de relacionamentos, consoante nos patenteia Bauman:

“(...) as relações virtuais (rebatizadas de “conexões”) estabelecem o padrão que orienta os outros relacionamentos. Isso não traz felicidade aos homens e mulheres que se rendem a essa pressão; dificilmente se poderia imaginá-los mais felizes agora do que quando se envolviam nas relações pré-virtuais. Ganha-se de um lado, perde-se de outro”.
(p. 13)


Cabe perguntar se há, realmente, ganho na escolha por experienciar relacionamentos descartáveis, esvaziados de envolvimento emocional, meramente casuais. O suposto ganho decorre do equívoco de entender ser mais vantajoso manter-se protegido contra as inevitáveis complicações, porquanto, afinal, relacionamentos assemelham-se a investimentos, cujo sucesso depende da consideração das probabilidades e das flutuações do mercado. Assim,


““Estar num relacionamento” significa muita dor de cabeça, mas sobretudo uma incerteza permanente. Você nunca poderá estar plena e verdadeiramente seguro daquilo que faz – ou de ter feito a coisa certa ou no momento preciso”.
(p. 29)

As relações interpessoais, com o advento da internet e de seus ciberespaços de relacionamentos, ganharam nova dimensão - consequência dos processos de globalização-, caracterizada, especialmente, pela compressão do tempo-espaço.  É pertinente reiterar um pensamento meu que já permeou outros textos que escrevi e que caracteriza bem o efeito da internet sobre o mundo: a internet empacota o mundo. É inegável que se encurtou a grande distância que, antes, mantinham isolados povos, culturas, por um lado; e dificultava o relacionamento entre indivíduos, por outro. Há quem defenda vivermos numa grande “aldeia global” na qual se teria reduzido o planeta. A interpretação é controversa, especialmente se consideramos que o conceito de “aldeia”, que pressupõe um conjunto em que todos os indivíduos se conhecem, atuam cooperativamente e participam das decisões da vida de sua comunidade, não parece recobrir a ideia de sociedade moderna.
É com a mesma velocidade com que  surgem que deixam de existir tais formas de relacionamentos líquidos. A debilidade e a liquidez lhes são características intrínsecas. A impossibilidade de sua permanência inscreve-se na forma como são iniciados, ou seja, surgem tão repentinamente como podem vir a desfazer-se. Não há certeza em sua constância. Mantêm-se na esfera da fluidez, não abrangendo a esfera da solidez. 
A sensação de integração, de maior proximidade, em que os espaços virtuais de relacionamentos nos fazem crer não é senão uma ilusão. É sempre bom lembrar que estes espaços instauram oportunidades de relacionamentos cujos agentes não são indivíduos de carne e osso, mas imagens (fotos) digitais. Acrescente-se ainda que o encurtamento da distância, propiciado pelas novas condições de existência instauradas pela globalização, de que a internet é sua melhor expressão, não se alcança sem o aumento de uma sensação maior de insegurança, quer em termos morais e cívicos, quer em termos subjetivo-afetivos. Diante da possibilidade de mascarar a verdadeira identidade, cria-se uma atmosfera impregnada de medo, de receio, de desconfiança, que torna ainda mais inviável a possibilidade de experienciar relacionamentos mais autênticos, estáveis e seguros. 
Os relacionamentos virtuais têm a (des)vantagem de não enredar o indivíduo no universo de emoções típico dos relacionamentos convencionais, (des)vantagem esta garantida pela manutenção da distância real entre os interlocutores. Ademais, - e nisso me parece residir, certamente, uma desvantagem -, fica a sensação de se viver numa vacuidade experiencial, onde não há constância, estabilidade, segurança e confiança.
A fim de que tenhamos uma clara noção de quão ilusória é a crença numa maior integridade, em termos qualitativos e experienciais, basta ter em conta casos de interlocutores que mantêm em sua página de Orkut cerca de 300 a 900 fotos, ou imagens de “amigos”, dos quais, muita vez, dez ou pouco mais de vinte podem participar efetivamente de suas experiências “reais” de vida.
Chats como “msn” e sites de relacionamentos como “Orkut” patenteiam uma mudança radical das formas de ser das relações humanas e de experienciá-las. Imediatismo e superficialidade parecem ser os princípios que as governam. Há, pelo menos, 20 anos, o rompimento de relacionamentos exigia, no mínimo, uma meia dúzia de palavras, ainda que fossem ofensivas. A ruptura dos relacionamentos virtuais dispensa o esforço despendido na produção de palavras, realizando-se com um simples clique num botão de mouse, caso em que uma foto componente do álbum de imagens de seus amigos é excluída. No entanto, a exclusão da imagem é apenas o fenômeno, ou seja, o que é percebido imediatamente por nossa consciência; a essa exclusão subjaz a castração da fertilidade que poderia ser proporcionada pela experiência com o outro. Castra-se a vitalidade de experiências que poderiam ser frutíferas, mas que foram “deletadas” muito antes de aparecerem os primeiros ramos. Acontece que as experiências de vida do para-si, ou os relacionamentos do eu com o outro, não podem ser, simplesmente, “deletadas”, por mais singelos que tenham sido. “Deletar”, na situação de relacionamentos virtuais, passa a ser uma forma tão artificial de esquecer, de ignorar, que não deixa de representar o atestado de óbito da emoção, cada vez mais ameaçada por qualquer forma de perturbação. Ao deletar, reduzimos a complexidade do outro ao ‘nada’ de dados e informações de computador.
A contradição salta às vistas: por um lado, propomo-nos a negociar as esferas da vida privada e da vida pública, assumimos a responsabilidade pelas conseqüências da exposição maior de nossas vidas que, outrora, pertenciam apenas ao domínio familiar ou social mais restrito; por outro lado, conscientes dos riscos de quase irrestrita exposição, valemo-nos de recursos limitadores (haja vistas à possibilidade, propiciada no Orkut, de manter fotos ou recados de seus membros restritos ao acesso do conjunto de “amigos”).  A contradição a que me refiro decorre da incompatibilidade entre o desejo de liberdade, a cuja satisfação, cada vez mais premente, somos condicionados, e o reconhecimento de insegurança crescente. Na modernidade líquida, o desejo de liberdade, legitimado pela ideologia moderna, caminha junto com o medo decorrente do sentimento de insegurança.
Estou consciente de que, talvez, minhas reflexões sejam motivadas por um ideal incompatível com as condições em que se dão as interações virtuais.  Não pretendo argumentar em favor da necessidade que se instaurem relacionamentos que ganhem em qualidade e se pautem por uma busca por solidez emocional, necessária para nos manter mais confiantes nas relações com o Outro, tão fundamentais ao Dasein.
Não tenho intenção de propor qualquer alternativa; mas tão só de compartilhar com o leitor a compreensão de um aspecto inegável da chamada crise do homem pós-moderno (minha crise também) que, navegante num mundo cada vez mais interconectado, sente-se perdido pela falta de referenciais, de “âncoras”, que o mantenham num estado de segurança constante numa vida que se escorre num vácuo completo.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

impressões de leituras


                                                                            

                                            Dispersos




Sempre que leio um livro, tenho o hábito de grifar trechos de parágrafos ou mesmo parágrafos inteiros que me despertam atenção. Muitas vezes, além de sublinhá-los, deixo junto a eles algum comentário ou questionamento. Tal hábito me ajuda a localizar o que li, caso eu pretenda escrever sobre algum tema que já tenha visitado em minhas leituras, ou mesmo me ajuda a reter o que li, quando releio o mesmo livro ou capítulo.
Neste texto, cujos limites já estão pré-fixados em meu espírito, pretendo trazer à cena alguns trechos curiosos ou interessantes de uns poucos livros que já li ou que ainda estou lendo. O primeiro trecho que compartilho com o leitor vem de Bart D. Ehrman, em seu Quem Jesus foi, Quem Jesus não foi? (2010). Escusa dizer que os cristãos menos suscetíveis ao adestramento intelectual deveriam dar-se o trabalho de lê-lo. Leiamos com atenção o trecho abaixo:

A verdade é que todos os Evangelhos foram escritos anonimamente, e nenhum dos autores alega ser uma testemunha. Há nomes ligados aos títulos dos Evangelhos (“o Evangelho segundo Mateus”), mas esses títulos são acréscimos posteriores aos próprios livros, conferidos por editores e escribas para informar aos leitores que os editores achavam que eram as autoridades por trás das diferentes versões. Que os títulos não são originalmente dos Evangelhos é algo que fica claro com uma simples reflexão. Quem escreveu Mateus não o chamou de “Evangelho segundo Mateus”. As pessoas que deram esse título a ele estão dizendo a você quem, na opinião delas, o escreveu. Autores nunca dão a seus livros o título de “segundo fulano”.

(pp. 119-120)
(grifo meu)


Este trecho permite-nos inferir que nenhum dos evangelistas conheceu Jesus. Nenhum deles conviveu com Jesus. Em outro trecho, que não refiro por me faltar disposição de ânimo para procurá-lo, Ehrman é mais explícito, ao nos ensinar que os nomes Marcos, Mateus, João e Lucas não correspondem aos nomes dos verdadeiros autores dos evangelhos. Apesar de a maioria esmagadora dos cristãos acreditar que Mateus foi realmente o autor do “Evangelho segundo Mateus” e que esse Mateus foi um dos doze apóstolos de Jesus, há um consenso entre os estudiosos bíblicos, cujo trabalho de interpretação se assenta no método crítico-histórico, de que os Evangelhos são produto de falsificações, resultado de cópias sucessivas, feitas por copistas, não necessariamente aptos para tanto. O trecho a seguir nos ensina a respeito disso. O trecho consta do livro, também de Bart D. Ehrman, intitulado de O que Jesus disse? O que Jesus não disse?Quem mudou a Bíblia e por quê (2006):

“(...) De fato, muitas mudanças encontradas nos primeiros manuscritos cristãos nada tinham a ver com teologia ou ideologia. A maioria das mudanças é, de longe, resultado puro e simples de erros – escorregões de pena, omissões acidentais, acréscimos despercebidos, palavras mal grafadas, bobagens desse tipo. Os copistas podiam ser incompetentes: é importante lembrar que a maioria dos copistas nos primeiros séculos não eram treinados para esse tipo de trabalho, porque eram simplesmente os membros letrados das assembleias que eram (mais ou menos) capazes e se dispunham a fazê-lo. Mesmo mais tarde, a começar dos séculos IV e V, quando os copistas cristãos emergiram como classe profissional dentro da Igreja, e mais propriamente ainda, quando a maioria dos manuscritos era copiada por monges dedicados a esse tipo de trabalho em mosteiros – mesmo nessa época, havia copistas menos experimentados que outros. (...) Por vezes, os copistas simplesmente se distraíam; outras vezes, tinham sono e fome;outras ainda, compreensivelmente, não podiam dar o melhor de si. (...) Até mesmo copistas competentes, treinados e alertas,  de vez em quando podiam cometer erros. Não obstante, em certas ocasiões, como vimos, eles mudavam o texto porque achavam que ele tinha de ser mudado. E isso, note-se, não apenas por razões teológicas. Havia outras razões pelas quais os copistas introduziam uma mudança proposital – por exemplo, quando chegavam a uma passagem que parecia incorporar um erro que precisava ser corrigido, provavelmente uma contradição encontrada no texto, ou uma referência geográfica errada, ou uma menção escriturística deslocada. Desse modo, quando os copistas faziam mudanças intencionais, por vezes, os seus motivos eram tão cristalinos quanto a água de fonte pura. Mas, seja como for, tratava-se de mudanças que faziam com que as palavras originais do autor fossem alteradas e, em última instância, perdidas”.

(p.65-66)
(ênfase no original)

Os dois trechos, quando reunidos a outro que ainda citarei, servem para refutar a crença, bastante generalizada e empedernida no mundo judaico-cristão, segundo a qual a Bíblia foi inspirada por Deus. Grosso modo, isso significa dizer que os escritores bíblicos foram influenciados pelo “sopro do Espírito Santo de Deus” a compor seus escritos. Estava eu, há pouco, ocupado na leitura do Tratado de Teologia – Adventista do Sétimo Dia (2011), particularmente, concentrado na seção destinada ao estudo da crença na Bíblia como uma obra de Deus. O autor, que é teólogo, irá se esforçar por justificar por que podemos, com certeza, afirmar que a Bíblia tem origem em Deus. Na verdade, inicialmente, a minha intenção era compor um texto por meio do qual eu avaliaria criticamente os argumentos do autor, para defender justamente a posição contrária, qual seja, a de que a Bíblia é uma obra humana e somente humana. Curiosamente, as “evidências” apresentadas pelo autor em favor da crença de que a Bíblia resultou de um trabalho também divino (ele não nega que tenha sido produto do trabalho humano, evidentemente) são todas colhidas da própria Bíblia (e não de fontes externas a ela). Ademais, as “evidências” são, sem exceção, os registros dos autores bíblicos, que simplesmente alegavam que as Escrituras foram inspiradas por Deus. Pergunto-me que valor têm essas alegações como provas?
Ao tratar do “locus” da Inspiração, ou seja, quem ou o que foi alvo de inspiração, o teólogo observa o seguinte:

“A terceira opção para locus da inspiração – a comunidade da fé na qual a Escritura teve sua origem – dificilmente merece ser mencionada como alternativa viável. O conceito se baseia, em grande medida, em um método específico de estudo da Bíblia. Por meio de um estudo crítico-histórico-literário da Bíblia, os eruditos  chegaram à conclusão de que muitos livros bíblicos são produto final de um longo processo, no qual estiveram envolvidos escritores, editores e redatores desconhecidos. Com base nesse fenômeno, nega-se a concepção de que os livros da Bíblia tiveram autores terem sido inspirados, a comunidade na qual os escritores atingiram sua forma final é que foi inspirada a reconhecer a validade e autoridade da mensagem bíblica”.

(p. 45)
(grifo meu)

Nesse excerto, o autor reconhece as contribuições de estudiosos como Ehrman, que desenvolvem sérios estudos sobre a Bíblia, a fim de buscar uma compreensão histórica sobre esta que é a obra mais vendida e lida do mundo. No entanto, ele tão-só as rejeita como verdadeiras explicações sobre a autoria da Bíblia. Veja-se o trecho em negrito. Saliente-se que ele as rejeita sem desenvolver qualquer argumentação. Ele simplesmente quer manter a crença de que os escritores bíblicos foram inspirados e que as alterações e cópias das quais nos falam os historiadores bíblicos podem ter sido elas mesmas também inspiradas. Não lhe ocorre que um trabalho que fosse inspirado por Deus não poderia carecer de correção; é razoável supor que, se é Deus quem inspira as palavras do livro, esse livro deveria primar pela exatidão e pela correção; ademais, deveria incluir somente ensinamentos e palavras que dariam testemunho de uma inteligência infinitamente superior à humana (o advérbio “infinitamente” aí tem sentido obscuro, mas serve para assinalar como Deus é pensado pelos cristãos); mas a Bíblia está longe de ser um livro repleto de ensinamentos e palavras capazes de nos maravilhar.
Em outro livro, intitulado Desvendando a Bíblia (2010), Kristin Swenson, nos ensina o seguinte (também esse trecho serve para negar a validade da crença na Bíblia como obra inspirada):

“Olhe de perto a história do Dilúvio, em Gênesis 6:5 – 8:19. Quantos animais entraram na Arca de Noé – dois de cada espécie (6:19, 7:15), ou sete pares de cada animal puro e um par de cada animal impuro (7:2-3)? Como veio o Dilúvio – de cima, pela chuva (7:4)?, ou por um aumento das águas das profundezas, ou ambos (7:11)? E quanto tempo ele durou – quarenta dias (7:17, 8:6), ou 150 dias (7:24)? (...) considerando-se as histórias em sua forma final, tal como aparecem hoje na Bíblia, os leitores podem concluir que uma fonte acrescenta algo a outra, ou elabora sobre detalhes de outra, produzindo uma história ainda mais rica. Os textos convidam a uma leitura assim, em camadas.
Provavelmente nenhuma das quatro fontes literárias hipotéticas foi composta por uma só pessoa; antes, as quatro representam as tradições orais e escritas de várias partes, provavelmente não juntas em uma sessão, mas ao longo do tempo. Ou seja, cada uma das fontes foi construída sobre outras fontes, e reflete um processo de transmissão que permite edição e alteração o tempo todo. E a forma final reflete uma combinação intencional de textos recebidos”.

(p. 67)

O fato de lermos, por exemplo, em Timóteo 2 (3:16) “Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir, para instruir em justiça” não constitui prova suficiente para validar a crença de que Deus é o verdadeiro autor da Bíblia. De passagem, cumpre notar que, ao contrário do que sugere o teólogo, em Tratado de Teologia, não foi Paulo autor de Timóteo 1 e 2 (Ehrman, 2010, 147). O que nos impede de desconfiar do autor de Timóteo? Por que não deveríamos supor que o autor, ao escrever o que escreveu, tinha intenção de que seu escrito alcançasse prestígio na comunidade à qual ele se destinava? Supõe-se que Timóteo era um pastor de Éfeso. Ora, se a intenção do autor de Timóteo era fazer recomendações sobre como se deveria desenvolver o trabalho pastoral nas igrejas, nada mais justo que reafirmasse a crença de que as Escrituras foram divinamente inspiradas; afinal, se o texto fora atribuído a uma autoridade como Paulo de Tarso, àquela altura convertido para o cristianismo, e se nesse texto evoca-se a autoridade de Deus na confecção das Escrituras, que pastor ousaria ignorar as recomendações que nele havia? Entenda-se: o apelo à autoridade de Deus, da qual Paulo era um porta-voz, garantia a credibilidade das recomendações que constam do texto Timóteo.
Por fim, um outro trecho, agora colhido do livro Lunáticos por Deus – lendas, mitos e fatos (2011), de Michael Largo. A história é dramaticamente bizarra, sem deixar de revelar quanto a fé pode ser perniciosa:

“No Concílio de Nicéia, em 325 d.C., instituiu-se o dogma da Santíssima Trindade: só existe um Deus, mas n’Ele há três pessoas divinas: Pai, Filho e Espírito Santo. Ário, bispo de Alexandria, Egito, causou grande comoção ao afirmar que essa ideia estava errada. Argumentou que Deus existia antes de Jesus e, portanto, Jesus, o Filho, não era igual ao Pai. Numa determinada época, Ário tinha um número considerável de seguidores e os conservou mesmo depois de ser condenado devido à sua recusa em retratar-se, convertendo-se assim no primeiro herege da Igreja Católica e sentenciado à excomunhão. Além disso, a extensa coletânea de seus textos filosóficos e teológicos foi queimada e ele assistiu às chamas transformarem o trabalho de sua vida em cinzas. Cópias de seus escritos descobertas posteriormente, depois de aspergidas com água benta, também acabaram devoradas pelo fogo. Para assegurar que sua mão não mais produziria blasfêmias, induziram Ário a voltar do exílio para Constantinopla em 336, sob a alegação de que seria reintegrado à Igreja. Ele tomou poucas precauções contra assassinos e, chegando ao seu destino, desfilou abertamente pela cidade inteira, acenando para as multidões com a sensação de desagravo, convicto de que suas postulações seriam reconsideradas. Entretanto, antes de chegar à igreja, onde imaginava que o papa o abençoaria agarrou a boca e as nádegas com as mãos. Enquanto tentava correr para um banheiro, seu corpo repentinamente se enrijeceu. O sangue começou a jorrar de cada orifício e testemunhas asseveraram haver visto o baço e o fígado escorrerem juntos com os intestinos. Interpretou-se o acontecido como um sinal de que Deus estava descontente com suas ideias heréticas, embora pareça que Ário tenha sido envenenado por habilidosos alquimistas decididos a matá-lo de um modo espetacular, diante das multidões. A parede onde ele se encostou foi marcada e transformou-se em ponto turístico por séculos como um lembrete do destino reservado àqueles que desafiam a crença na Trindade”.

(p. 47)


Deixo aqui uma sugestão aos não-crentes ou declaradamente ateus, como eu, que se interessem por compreender por que é tão custoso às pessoas de fé romper definitivamente com o sistema de crenças e ideias irracionais de que foram herdeiras. Talvez, a razão pela qual essas pessoas não consigam se emancipar da ideologia religiosa seja o fato de os discursos religiosos se construírem com a retórica da dependência emocional a um Outro supremo. Não é nenhuma novidade o fato de os discursos religiosos serem discursos autoritários. Mas, talvez, não seja claro a muitos o modo como esses discursos constroem a relação de dependência dos fiéis para com esse Outro cuja autoridade é forjada para não ser questionada. E é bom ter em conta que esse Outro, ou melhor, a autoridade desse Outro (Deus) não é senão uma forma de representação da autoridade da própria instituição Igreja.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

"Uns, chegando à vida, tornam-se dela protagonistas; outros, por ela de passagem, apenas a ensaiam e saem de cena" (BAR)





Paraíso


Eu transpiro cansaço
Um deserto de alma
É o que vejo quando me debruço
Sobre mim
O silêncio reverbera amplitudes
Nenhum sinal lírico a dizer-me
Palavras de aconchego
Sinto-me como quem chega de um enterro
Desconfiado da vida
Que mata sem piedade

Sinto nas entranhas a fragilidade da vida
Que se rompe cotidianamente aqui e ali
Mas a marcha prossegue em seu curso
Sem destino
Que nos resta em face desse espetáculo absurdo?
Morte-vida vida-morte vida-morte, morte...
Segue a massa inventando um destino
Esperançosa do paraíso
Em algum lugar
Perdido no meio do nada.

(BAR)