sábado, 20 de dezembro de 2014

"A vocês, eu deixo o sono. O sonho, não! Este eu mesmo carrego!" (Paulo Leminski)



                                                                                                          
A caminho
  (A uma amiga)                                                              


É tempo de juntar os trapos
Jogar fora os calhamaços
O amontoado de folhas vãs
Escritas a custo
É tempo de partir
Para lugares longínquos
Onde jamais estive
Onde preciso estar



Creio em meu destino
Como um devoto ao pé da cruz
O destino é a salvação
De mim mesma
Fujo para reencontrar-me
Para explicar-me

Enquanto parto
Detenho-me na certeza de que não posso
Delegar a outro o ser eu
Finjo ser possível reinventar
Este legado que é o fardo de ser
Ser
Ou
Não-ser?

Prefiro continuar sendo...
Sigo... em trânsito
A caminho...
À procura...
De um remédio
Que me cure
Desta enfermidade
De um indulto
Que atenue a condenação
A este encargo de ser
Do eu sou.

(BAR)




quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Poema - "Dos versos que eu fiz e ainda espero resposta" (Skank)








A resposta

Dê-me logo a velha resposta
Que sinto desde o primeiro instante
Em que ponho o que espero adiante
Tornando a esperança ao desejo contraposta

Não a protele mais que o permitido
Mesmo ao criminoso é dado saber a sentença
E eu, que meu único crime foi a benquerença
Despedir-me-ei condenado e agradecido

Não me torture com esta demora
Apresse-se com isto que é hora
De silenciar cada palavra uma a uma

Diga-ma sem cuidado de uma só vez
Que a tristeza advinda se acostuma
Tão logo me cure desta breve embriaguez



(BAR)

domingo, 7 de dezembro de 2014

Poema - "O amor premia os que a ele não se dobram; e pune implacavelmente os que diante dele se ajoelham" (BAR)


                                              






A arte de amar

São os mesmos caminhos
As mesmas paisagens
Os mesmos atos impetuosos
Os roteiros são os mesmos
O palco e a orquestra
O mesmo canto
Uma lógica irrefletida


O mesmo imperativo
A compulsão à repetição
Repetem-se os cenários da alma
A tirania da imaginação
A convidar-me aos enlevos líricos


A arte que descubro é outra
Convém aprendê-la e dominá-la
A mentira ensaiada com sinceridade
Bordam as venturas do amor
Que se evita por prudência
A rejeição carreia a atração
A indiferença governa o desejo


O amor como a arte deve ser uma mentira crível
Uma tékhne que dominam apenas os astutos
E que produz o deleite sem a paixão
Um mal insidioso que enfraquece
É àqueles que se reservam os céus

No combate do amor, são os “maus” que prosperam
Porque eles estão acima do bem e do mal
Ou disfarçam o engodo com promessas erradias
São os fortes operários da desconstrução
De uma (i)logicidade tirânica
Que hospeda em seu bojo o princípio da contradição



Quanto aos bons, acostumados que estão
Ao é dando que se recebe – lógica dos ingênuos!
Estes nunca provarão das delícias desejadas
Continuarão a navegar sem rumo
Acossados por tempestades psíquicas e emocionais
Estes serão considerados fracos, escravos
Inaptos pela severa lei de Eros
Que determina:
“Decifra-me ou te devoro”

(BAR)




"O romantismo: O romantismo é um produto do cristianismo. Religiosidade exagerada, veneração fantástica às mulheres e valentia cavalheiresca, portanto Deus, a dama e a espada são os símbolos daquilo que é romântico." (Arthur Schopenhauer)

       
                 

                     

                                  Um itinerário filosófico-(des)amoroso
                          O amor-paixão e suas desventuras


Na história do pensamento filosófico, não foram raros os filósofos que levaram a efeito uma crítica corrosiva do amor, que os levou a considerá-lo uma espécie de mal contra o qual deveríamos nos imunizar. Pode-se citar, entre os filósofos para os quais é necessário prevenir-se contra as maquinações do desejo amoroso, Lucrécio, Schopenhauer e Nietzsche. Se nosso interesse é meditar sobre o amor filosoficamente, cumprir-nos-á, de início, reconhecer a necessidade de distinguir entre três tipos de amor, contemplados no curso da tradição: amor-eros ou amor-paixão, amor-philia e amor-caritas.
Quando me debruço sobre o tema do amor, concebendo-o como experiência de envolvimento entre um homem e uma mulher, e busco encaminhá-lo, tomando como modelo para o desenvolvimento de minhas reflexões, o amor materno, que defino como amor de cuidado, estou ciente de que construo uma perspectiva de amor idealizada, explicável, no entanto, pela interpretação psicanalítica, segundo a qual escolhemos nosso parceiro amoroso com base no modelo de amor constitutivo de nossas experiências com nossa mãe. A forma como se deu essas experiências de amor vai moldar nossas escolhas amorosas na fase adulta. O equívoco que se segue dessa tentativa de estender um modelo de amor, fundado na experiência do cuidado, à busca por entender a experiência de amor entre um homem e uma mulher consiste em ignorar que essa experiência de amor é sempre a de um amor interessado e sexual. Disso resulta que, segundo vários filósofos, essa experiência de amor, fundada na atração sexual, é uma experiência de possessividade, contaminada pelo ciúme e pela ilusão de fusão.
Quando Schopenhauer observou que o amor é um mal, ele se referia ao amor- paixão, ou ao amor romântico. A paixão amorosa é um perigo que Lucrécio, filósofo romano do século I a.C, tratou de denunciar. Lucrécio recomendou que os homens deveriam evitar se apaixonar, sob pena de se tornarem escravos de seu desejo jamais satisfeito definitivamente. O desejo sexual é fonte de sofrimentos, pois carreia ciúme e inveja, além de levar também os amantes a idealizar um ao outro. Poder-se-ia dizer que os que se deixam embeber-se da paixão amorosa estão a amar a imagem construída do outro, e não o outro tal como realmente é.
Este texto se destina à exposição e ao esclarecimento do pensamento desenvolvido por Lucrécio, Schopenhauer e Sartre acerca do amor, na tentativa de nos fazer ver as maquinações com as quais nossa sensibilidade moderna está entrelaçada, por força do trabalho de uma tradição romântica, cujos alicerces repousam numa longa tradição socrático-platônica e cristã, no interior da qual o valor do amor foi sobremaneira estimado. É certo que o Romantismo se encarregou de deturpar a visão de amor platônica, a qual não privou o amor de sua dimensão sexual; devemos a essa tradição romântica a crença, muito corrente no senso comum, de que o amor platônico é amor da impossibilidade de realização, da impossibilidade de consumação sexual. O amor platônico é impulsionado por Eros e nunca deixa, por isso, de ser erótico. No entanto, o amor para Platão deve conduzir os amantes, numa escalada de conhecimento, a amar o Belo em si. Os amantes são produtores de belezas; de modo que os enamorados devem ser movidos a amar o saber, a filosofia, até experienciar o amor à Forma, à Essência do Belo.
Cumpre frisar que o amor que será por mim contemplado nesta exposição é o amor-paixão.



1. Da necessidade de não se apaixonar: uma lição de Lucrécio

Lucrécio, poeta e filósofo romano do século I a.C, tornou-se famoso por seu poema filosófico De rerum natura (Da natureza das coisas), no qual enaltece Epicuro e revela sua visão de mundo. Lucrécio, poeticamente, descreve os fenômenos da natureza, os mais belos e os mais horríveis, esclarecendo suas causas naturais, à moda do atomismo mecanicista de Epicuro. Para Lucrécio, a filosofia precisa libertar os homens do terror, das superstições e do medo dos deuses. Face a esses medos, o filósofo deve empreender a busca pelo sentido do belo e a tranquilidade da alma.
A Roma de Lucrécio era um lugar de pragmatistas. O pragmatismo estruturava quer a esfera política, quer a da engenharia, quer ainda a do amor. Para Lucrécio, o amor não é mais do que um impulso natural que se corrompe quando se torna objeto de expectativa para a remissão do sofrimento (concepção esta que a Roma cristianizada viria a rejeitar, quando o cristianismo conferiria ao amor um valor supremo e o veria como uma força capaz de remir o sofrimento, o pecado e a morte), do mal e da morte.
Lucrécio atribuiu ao amor e a amizade um lugar central na vida, mas rejeitou o endeusamento da paixão, a qual era vista como uma espécie de escravidão e portadora das mais terríveis infelicidades. Tendo examinado cuidadosamente o modus operandi do desejo sexual e a irresistível necessidade em que ele está baseado, a saber, a necessidade de procriação e de prazer, Lucrécio esperava que nós nos tornássemos capazes de controlá-lo, em vez de nos deixar controlar por ele. Assim, acreditava que nos libertaríamos do medo, da loucura e da ilusão consequentes da tirania do desejo.
Lucrécio entendia que aquilo que as pessoas eroticamente embriagadas chamavam de amor não é senão um sintoma do instinto inconsciente de autoperpetuação. Seu modus operandi é poder e manipulação, guerra e ilusão.
O amor não era, para ele, uma virtude, mas um perigo; e a arte de amar consiste em viver esse instinto impulsivo e imprudente sem nos submetermos a ele. Fica excluído dessa visão de amor qualquer domínio de espiritualidade.
O sexo vicia – disso tinha certeza Lucrécio. O desejo nunca é satisfeito de modo definitivo e, diferentemente de outras formas de desejo, como o de comida e de água, quanto mais buscamos satisfazer o desejo sexual, mas dele ficamos inflamados. Lucrécio não negará a necessidade de gratificação do apetite sexual, mas recomendará moderação. Seu intento é nos libertar da tirania desse desejo e da paixão amorosa.
Não se segue do exposto acima que Lucrécio deixe de regozijar-se com o impulso amoroso, o qual vê como um poder generativo da deusa Vênus. A vitalidade desse poder emociona-se consigo. É ela o deleite ao qual devemos a conservação da vida como um querer mais de si mesma. Isto é, um querer de procriar.
Não devemos nos apressar em concluir que Lucrécio entendesse ser a vida boa em si mesma, nem má. Não sendo má a vida em si mesma, Lucrécio não era um pessimista, como o foi Schopenhauer. Lucrécio era um desalentado: ele evidenciava os horrores da vida cruamente, sem daí concluir que fosse mal em si.
Schopenhauer também verá a paixão sexual como uma energia erótico-cósmica de que está impregnada a natureza. Essa força vital procriadora ele chamará de “Vontade de vida”. No entanto, ao contrário de Lucrécio, por reconhecer nessa força sua insaciabilidade e o sofrimento a que ela nos conduz, ele verá a vida como um mal em si mesma.

2. Os três remédios de Lucrécio

No mundo antigo, grego e romano, a necessidade de prevenir-se contra a loucura do amor, mormente contra a tendência a ser idealizado ou a ser demonizado, quando nos lega uma grande decepção, era lugar-comum. Lucrécio oferece três remédios a esses males do amor, quais sejam: contemplação, casamento e promiscuidade. Destarte, a tirania do sexo pode ser acalmada pela contemplação, contida pelo casamento e, se tudo o mais fracassar, dissolvida pela promiscuidade.
Pela contemplação, desfrutamos prazeres simples e sociáveis. Podemos ver pessoas sexualmente atraentes, sem nos deixar dominar pela lascívia, o medo, o ciúme, a possessividade ou outras paixões tirânicas.
Correndo o risco de dizer muito esquematicamente, uma vez nos surpreendamos desejando fortemente alguém, devemos, propõe Lucrécio, estabelecer uma relação de amizade com essa pessoa e desfrutar deleites moderados, inclusive sexuais. Aqui, Lucrécio revela-se claramente epicurista. Mas reconhece que é extremamente difícil disciplinar nossos impulsos sexuais e nossos anseios por emoção embriagadora em geral.
Aos que, dentre nós, são incapazes disso, ele sugere o casamento e a geração de filhos, como meio de por termo à tendência de produzir ilusões sobre o nosso parceiro amado. Ambos os amantes passariam a se ver com realismo, sem o qual as relações humanas estão destinadas ao malogro. O desejo, em virtude do casamento, será refreado pela satisfação circunstancial, bem como pelas rotinas da vida conjugal. O sexo será canalizado para seu fim próprio: gerar a prole.
Lucrécio não pretende ser cínico ao sugerir o casamento como remédio para arrefecer o desejo sexual, livrando os amantes de suas armadilhas; ao contrário, ele elogia o casamento, porquanto ele resolve o eterno problema de como tornar possível a socialização e a satisfação de nossos anseios desregrados, tornando possível, assim, atingir uma relação duradoura e feliz.
Não há espaço para dar a saber o que nos diz Lucrécio sobre quem deve ser a pessoa adequada para a união conjugal. Considere-se, finalmente, o seu último remédio contra a tirania da paixão amorosa: a promiscuidade.
Aos que são torturados pela obsessão vã devem, pondo freio à imaginação, se lembrar de que há outras amantes atraentes no mundo e devem buscar alívio para sua carga libidinal onde quer que haja oportunidade de sexo recreativo. Escreve, assim, Lucrécio:

Mantenha longe da imaginação e afugente
Tudo que estimula o amor;
Volte sua mente para outros lugares
Livre-se do fluido em qualquer corpo que puder
Em vez de guardá-lo para uma pessoa
O que está fadado a levar a infortúnio e terminar em dor.


3. O amor na visão de Schopenhauer

A filosofia schopenhaueriana é marcada por um profundo pessimismo. Schopenhauer mantém que toda a realidade é governada por uma vontade cega e absurda de viver que leva todo o universo e cada ser vivo a desejar incessantemente algo que, uma vez obtido, torna-se motivo de insatisfação. Vê-se já aqui a medida da dívida que o pensamento de Freud tem para com o pensamento de Schopenhauer.
Segundo o filósofo de Dantzig, a vida do ser humano  combina tragicamente dor e tédio, anseio e luta: desta situação é possível libertar-se somente pondo fim à vontade e a si próprio, alcançando a tranquilidade nulificante de uma espécie de nirvana.
O amor é visto, portanto, à luz dessa concepção pessimista da vida, como um sentimento falso e enganador, primeiramente porque está calcado sobre o instinto sexual, que não é outra coisa senão um fatídico estratagema de que se serve a natureza e, por isso, a vontade, a fim de perpetuar a si própria, por meio da produção de novos indivíduos. Novamente aqui vemos o amor reduzido a um instinto, sem bem que perverso, de procriação. Em segundo lugar, o amor é ilusão, porque a maquinação da natureza se dá à revelia dos envolvidos na experiência amorosa, os quais acreditam que estão vivendo livremente seu amor, embora eles sejam meros instrumentos da vontade postos a serviço da sua finalidade própria: a reprodução. Para Schopenhauer, o casamento também atende a esta lógica rígida e, portanto, é desprovido de qualquer valor sagrado.
O amor é servo da vontade, da irracionalidade que governa cada evento e situação, fato demonstrável pela loucura que, não raro, caracteriza a experiência amorosa. O amor é poderoso e engana. E o ser humano que sucumbe ao jugo do amor é capaz de cometer qualquer perversidade e de resignar-se a toda sorte de sofrimento. O amor o ilude prometendo-lhe uma felicidade não factível. O prazer sexual é sempre uma experiência momentânea e insatisfatória, porque a finalidade do amor não é o contentamento do homem e da mulher, mas possibilitar a geração de filhos e, assim, a perpetuação da natureza.
Schopenhauer, contudo, contemplou outro tipo de amor, que podemos chamar de amor-caridade. Trata-se de um sentimento de compaixão que o ser humano experimenta quando descobre que sua própria dor é igual à dos seus semelhantes. Esse tipo de amor leva-o a se inclinar a um sentimento de partilha e solidariedade. Mesmo sendo ateu, Schopenhauer concebe um tipo de amor semelhante ao amor cristão, isto é, o amor-caridade, que não satisfaz quem o experiencia, mas expressa tão-só piedade para com a miserabilidade da condição do outro. Poder-se-ia dizer que esse tipo de amor conduz os homens a se reconhecerem como filhos do sofrimento inerente à existência.

4. O amor, segundo Sartre

Na fase existencialista de sua obra, Sartre não cessou de insistir no caráter conflitante das relações interpessoais. Seu pessimismo é extensivo às relações amorosas também.
Na opinião de Sartre, o amor é irrealizável, dado que qualquer relação de um ser humano com outro implica uma série de contradições insolúveis. É de se notar, de início, que a experiência amorosa impõe limites à liberdade alheia, não obstante acreditarem os amantes que respeitam a liberdade um do outro.
Além disso, segundo Sartre, o impulso amoroso funda-se numa vontade de unir-se totalmente à pessoa amada, na esperança, de todo injustificável, de que se estabeleça, assim, uma reciprocidade plena de sentimentos e anseios. Pura ilusão! – dirá Sartre. Toda tentativa nesse sentido está fadada ao fracasso, porque, embora o amante declare ser tudo para o amado, sem que isso signifique reprimir-lhe a livre expressão de sua personalidade, a reciprocidade de sentimentos resulta irremediavelmente impossível, de modo que só resta a cada qual um isolamento insuperável.
Não há lugar para esperanças e salvações, na visão sartreana de amor, porque as relações humanas jamais escapam à lógica da posse e da sujeição. O amor é desprovido de autenticidade, já que as relações humanas também o são. Logo, elas, tanto quanto o amor, estão destinadas ao fracasso. Longe de os outros serem fontes para relacionamentos gratificantes, eles são, para Sartre, nosso próprio inferno.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

poesia - "Com um véu negro e lúgubre me cubro para revelar-me por inteiro em minhas entrelinhas" (BAR)







Auto-retrato

Sinto o despontar desta verdade robusta,
carnal e demoníaca
Prefiro as noites, as madrugadas
as escuridões profundas
A tudo que é luz, que é claro, ensolarado
e ofuscante me oponho
congregando minhas forças instintivas
Resisto como os morcegos e as corujas.

Caminho nas sombras soturno
Inclino-me às trevas líricas
Com um véu negro e lúgubre me cubro
para revelar-me por inteiro nas minhas entrelinhas.

O niilismo é a minha morada
O caos é o que percebo
quando não procuro, como, aliás,quase todos, ordem
num mundo absurdo.

Prefiro Nietzsche a Descartes
Schopenhauer a Kant e a Leibniz
Mas não me recuso a trilhar o caminho de Epicuro e de Sêneca
Na busca por inspecionar a “vida boa”.
Contudo, a eudaimonía – a felicidade, não espero encontrar
ao longo do caminho, pois que acompanhando Aristóteles
Reconheço-a como atividade, esforço ativo e disso me convenço.

Não espero um além do real
Ouso transitar junto à orla de abismos com pensamentos
Em noites tenebrosas, plenas de alento já me afundei
Conheci os infernos psíquicos
únicos que me parecem reais –
se bem que sejam representações de uma maquinaria simbólica
que se assenhoreia de mim.

O Amor me curou de mim mesmo
E eu dele me curei, quando quebrei seu encanto,
e expus suas vísceras trágicas
E compreendi seus ardis
Eros – este miserável deus, filho de Penúria
converteu-se em sintoma de processos bioquímicos
de um cérebro produtor de crenças e de ilusões.

Primado da matéria sobre o espírito
Uma filosofia do corpo contra o dualismo alma-corpo.
O pensamento trágico de um Rosset,
que fez ver uma “lógica do pior”
Pela qual a vida se revela sem mentira e esperança,
“sobre um fundo de morte e nada”.

Mas não sem alegria, não sem grandeza
Pois a morte não é nada,
E a vida, finita.
A morte?
Uma necessidade no âmago da vida:
Tudo que vive DEVE morrer.
Que lugar ocupa o espírito?
Apenas o da tensão entre um materialismo – primado da matéria
e um materialismo como filosofia – exercício de pensamento.

Impossível viver sem ilusões
Ilude-se quem pensa podê-lo
O materialista é aquele que, reconhecendo isso, não pretende
livrar-se de suas ilusões –
porque esforço vão.
É por isso obrigado a se desilusionar incessantemente
de suas crenças ilusórias sem, no entanto, livrar-se delas,
dispõem-nas no seu devido lugar – o das ilusões necessárias.

Eis que entrego estas minhas pinceladas lírico-filosóficas
e com elas pinto-me um retrato autodidático
E nele me reconheço como uma obra não nascida
Que, em se fazendo, se faz esquecida
Conduzida, no entanto, a uma posteridade
que tratará de ignorá-la.


(BAR)


                        


                             

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Sou filho do cansaço - Poema


                                               




O meu cansaço

Sou filho do cansaço
Sinto-me cansado de tudo e de todos
É assim mesmo indefinível
Este cansaço de tudo que não tem nome
De todos que não identifico

Meu cansaço é deste tempo (deste passatempo)
Desta hora, deste instante inapreensível
Meu cansaço flerta com este desencanto
Que sinto como canto retumbante no corpo
E traz à alma convulsões de notas fúnebres
E deste desencanto o cansaço não se discerne

Meu cansaço é cansaço do excesso
E das rasuras de uma geração epidérmica
Que não cessa de arranhar a superfície do verbo
E se contenta com palavrear o mais do mesmo

Meu cansaço é do palavrório
Da lava de mediocridade que grassa
E deserda os espíritos notáveis
De suas forças instintivas

Meu cansaço é um cansaço de poesia
Que se tematiza para virar pretexto
De uma expressão desencantada
Meu desencanto é um canto cansado
Inaudível, ininteligível, de morte

Sinto-me cansado de mim e de meu passado
Do que fui, do que sou, do que não serei
Cansado deste sol, deste céu, destas estrelas
Que costumo diariamente ignorar
Porque tenho de viver a arrastar
Esse cansaço até a hora derradeira
Em que de mim nem desencanto sobrará
Senão um testemunho grosseiro
De um cansaço ósseo
De uma ossada vencida pelo cansaço.
E só dele nada mais restará
Se em cinzas convertida
E ao vento lançada.

(BAR)


"A história de todas as sociedades que existiram até hoje é a história de lutas de classes" (Karl Marx )

                           
                         

                                                                                      


                                   Uma filosofia da práxis
                             Marxismo e materialismo histórico


1. Karl Marx


Karl Marx (1818-1883) foi um filósofo alemão, nascido em Trier, proveniente de uma família judia convertida ao protestantismo. Sua obra exerceu grande influência em sua época e um significativo impacto na formação do pensamento social e político contemporâneo. Seu pensamento se desenvolveu quando da ocasião em que entrou em contato com a obra dos economistas ingleses Adam Smith e David Ricardo e rompeu com o hegelismo e com a tradição idealista da filosofia alemã. Malgrado essa ruptura, o pensamento de Marx deve muito à filosofia de Hegel e ao materialismo de Feuerbach no qual foi buscar o conceito de alienação. Marx reconheceu em Feuerbach o mérito de ter superado a dialética idealista de Hegel, mas lhe censurou a incapacidade de analisar adequadamente a autoconsciência e suas projeções religiosas num quadro de referência que abrigasse a influência determinante de forças econômicas e sociais fundamentais. Para Marx, todo o materialismo ao longo da história do pensamento, inclusive o de Feuerbach, apresenta um problema básico: apreende a realidade, a sensibilidade sob a forma de intuição e não como atividade humana sensível, isto é, como práxis. O que Marx censurou propriamente em Feuerbach foi o não ter este apreendido a própria atividade humana como atividade objetiva. Segundo Marx, o materialismo de Feuerbach descuidou de considerar a práxis. Feuerbach fez abstração do curso da história, o que o levou a pensar tanto o sentimento religioso como algo em si ( e não como produto social, produto de condições históricas, materiais concretas) quanto a tomar o indivíduo humano de modo abstrato. Seu materialismo – tendo em conta a crítica que lhe desfere Marx -, é um materialismo intuitivo, porquanto não teria chegado a apreender a sensibilidade como atividade prática.
De Hegel Marx tomou emprestado o conceito de dialética; no entanto, censurou seu idealismo e sua noção de verdade cujo desdobramento culminaria com a assunção do Absoluto. Ao idealismo de Hegel, à luz do qual o sujeito da história é o Espírito que toma posse de si mesmo ao cabo de um processo que é a história de suas realizações, Marx opôs seu materialismo dialético, que assenta na proposição segundo a qual a contradição que move a história não é a contradição do Espírito com ele mesmo, não é a contradição de sua face subjetiva com sua face objetiva, mas a contradição que se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais. Essa contradição, de acordo com Marx, tem um nome. Chama-se luta de classes.  Os indivíduos só formam uma classe porque se veem obrigados a sustentar uma luta contra outra classe; do contrário, eles continuariam a se enfrentar uns aos outros com hostilidade em termos de competência. O sujeito da história não é o Espírito, consoante pensava Hegel, mas as classes sociais em luta. A história passa, então, a ser concebida não mais como história das realizações do Espírito, mas a história do modo como os homens reais produzem suas condições reais de existência.
Foi, portanto, a partir tanto da ruptura com a tradição idealista hegeliana, na esteira da qual o real era compreendido a partir da ideia, quanto da revisão crítica do materialismo intuitivo de Feuerbach, cujo problema fundamental foi não considerar a práxis histórica, que se desenvolveu o chamado materialismo histórico, termo de que fez uso Engels (posteriormente Lênin) para designar o método de interpretação histórica proposto por Marx. Antes de considerar, em linhas gerais, esse método, cumpre dar a conhecer quem foi Friedrich Engels, principal colaborador e amigo íntimo de Marx.


2. Friedrich Engels

Engels (1820-1895) também era alemão e também sofreu influência do hegelismo. Tendo estudado na Universidade de Berlim, lá conheceu o trabalho dos “jovens hegelianos”. Engels não foi só um colaborador teórico de Marx, mas também seu amigo mais íntimo, tendo-o assistido, inclusive, financeiramente. Ambos escreveram quase sempre juntos, o que torna difícil distinguir, entre as principais teses do marxismo, quais são as ideias de Marx e quais são as de Engels.
Admite-se, contudo, que o materialismo histórico é um produto típico da pena de Engels, muito embora tenha grande importância no desenvolvimento da filosofia marxista.


3. Materialismo histórico

Impõe-se-me esclarecer agora o materialismo histórico. Esse método recobre a interpretação dos acontecimentos históricos como fundados em fatores econômico-sociais (técnicas de trabalho e de produção, relações de trabalho e de produção). O materialismo histórico, endossando a perspectiva antropológica à luz da qual a natureza humana é constituída por relações de trabalho e de produção, estabelecidas pelos homens entre si com vistas à satisfação de suas necessidades, está calcado sobre a tese de que as formas históricas assumidas pelas sociedades humanas dependem das relações econômicas que predominam durante as fases que conformam seu processo de desenvolvimento.
A dimensão histórica do materialismo repousa, portanto, sobre o fato de ele assumir a perspectiva  segundo a qual a produção historicamente diversa da vida material condiciona, em última instância, a produção da vida social, política e espiritual. É preciso, no entanto, salientar que só relativamente as condições materiais são determinantes, porque elas próprias são produtos da ação histórica. Também só são materiais em um sentido muito relativo, porque a prática que as modifica na história é condicionada não só pela base material da sociedade, mas também por fatores ideais.
O materialismo histórico se opõe a toda forma idealista de pensamento, ou seja, a toda forma de pensamento que pretende dar primado teórico ao “Pensamento”, à “Razão”, ao “Espírito”, tomados esses conceitos como realidade primeira, em detrimento das relações sociais, particularmente as relações sociais de produção. À luz desse método de análise e de interpretação do real, a natureza humana e as formas históricas das sociedades são consideradas relativamente às relações de trabalho concretas, diversas e mutáveis. Por conseguinte, não admite que o “Espírito” possa ser pensado como o “Sujeito” da história ou o princípio organizador da totalidade social.
A dimensão histórica do materialismo repousa sobre a assunção de que a produção historicamente diversa da vida material condiciona, em última instância, a produção da vida social, política e espiritual. O materialismo histórico vê a História à luz da articulação de duas dimensões, a saber, a da superestrutura e a da infraestrutura, uma das quais condiciona a outra. A superestrutura compreende o domínio dos fenômenos intelectuais, artísticos, políticos e jurídicos. Nela devemos situar a ideologia. A infraestrutura é a base econômica da sociedade. O materialismo histórico preconiza, portanto, que a superestrutura é determinada, em última instância, pela infraestrutura. Assim, os fatores econômicos constituem a realidade primeira. A ideia de materialismo, neste quadro de referência, sublinha o fato de se conceber a infraestrutura, a dimensão material, como o fundamento. Ele é histórico, porque entende que a formação da infraestrutura e do modo de produção é historicamente determinada. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual em geral.
Não obstante, é sempre importante ter em conta o fato de que a infraestrutura, embora determine, em última instância, a superestrutura, não é o domínio exclusivamente determinante. Destarte, a produção das ideias e das representações incide sobre a atividade material do homem, e os fatores superestruturais podem tornar-se determinantes da forma das lutas históricas.


4.  Marxismo

Entende-se por marxismo o conjunto de ideias, de conceitos, de teses, de propostas de metodologia científica e de estratégia política e, de modo geral, a concepção de mundo, da vida social e política, considerada como um corpo homogêneo de proposições que viriam a constituir uma verdadeira e autêntica “doutrina”, que se pode deduzir das obras de Karl Marx e Friedrich Engels.
O próprio termo marxismo, assim compreendido, dá margem à tendência de distinguir o pensamento de Marx do pensamento de seu amigo e colaborador Engels. É possível também identificar diversas formas de marxismo, seja em razão das diferentes interpretações do pensamento desses autores, seja em razão de juízos de valor com base nos quais haveria um marxismo que se deve aceitar e outro que se deve rejeitar.

Doravante, descerei a pormenores sobre os conceitos da doutrina marxista. Começarei por esclarecer o método dialético de Marx; em seguida, apresentarei e definirei os conceitos de modo de produção e meios de produção; posteriormente, serão contemplados, nesta ordem, os conceitos de ideologia, trabalho e valor, mercadoria, mais-valia, fetichismo de mercadoria, alienação  e práxis. Na sexta seção deste trabalho, vou apresentar, em linhas gerais, a visão de Engels sobre o Estado, situando-a no lugar de confronto com a visão hegeliana de Estado. Na sétima e última seção, apresento, também em linhas gerais, a dialética de Hegel, tendo em vista sua influência no pensamento de Marx.


5.  A dialética marxista

5.1. Modo de produção e meios de produção

Desde já, urge frisar que a dialética de Marx é a antítese da dialética de Hegel. A dialética de Marx se pretende crítica e revolucionária; ela se apresenta numa forma “racional” e não, como a de Hegel, mistificada. A dialética marxista está calcada sobre concepção de realidade como uma totalidade complexa e marcada por contradições. Ela rejeita as abstrações dos economistas clássicos, que, conquanto acreditassem haver uma oposição fundamental entre o consumo e a produção, não se aperceberam de que essa oposição era apenas aparente e de que, em essência, o consumo e a produção são indissociáveis.
Se, por um lado, Hegel transformou em sujeito autônomo a ideia, entendida como o demiurgo do real, o qual se reduziu a uma manifestação daquela; por outro lado, para Marx, a ideia ou o ideal não é nada mais que o material transposto e traduzido na consciência do homem. Por conseguinte, o motor da dialética materialista é a forma determinada das condições de produção e reprodução da existência social dos homens, forma que é sempre determinada por uma contradição interna, isto é, pela luta de classes ou pelo antagonismo entre proprietários das condições de trabalho e não-proprietários (trabalhadores assalariados, escravos, etc.).
A matéria de que fala Marx é, portanto, a matéria social, ou seja, as relações sociais entendidas como relações de produção, o modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições materiais de existência e o modo como eles pensam e interpretam essas relações. A matéria do materialismo histórico-dialético são os homens produzindo, em condições determinadas, seu modo de se reproduzirem como homens e de organizarem suas vidas como homens.
De acordo com essa perspectiva, o sujeito da história não é o Espírito (Hegel), mas as classes sociais em luta. As classes sociais não são ideias, mas relações sociais determinadas pelo modo como os homens, na produção de suas condições materiais de existência, se dividem no trabalho, instauram formas determinadas de propriedade, reproduzem e legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio das instituições sociais e políticas. As classes sociais também são determinadas pelo modo como os homens, em suas condições materiais de existência, representam para si mesmos o significado daquelas instituições, mediante sistemas determinados de ideias que exprimem e escondem o significado real de suas relações. Esses sistemas de ideias cuja função é mascarar o significado real de suas relações sociais materialmente determinadas são chamados de ideologia. Antes de considerar o conceito de ideologia, necessário é dar a conhecer o significado dos conceitos de modo de produção e meios de produção.
Modo de produção designa a relação determinada que as forças produtivas e as relações sociais mantêm entre si. As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas. No momento em que desenvolvem novas forças produtivas, os homens mudam seu modo de produção, e, mudando seu modo de produção, a maneira de ganhar a vida, eles mudam também todas as relações sociais. O modo de produção, portanto, na visão histórica da dialética marxista, determina a forma das relações sociais. Os meios de produção, a seu turno, recobrem o conjunto de ferramentas, instrumentos, terra, maquinaria indispensáveis ao processo de trabalho e que constitui a propriedade do capitalista.
Na dialética materialista, a produção é imediatamente consumo; e o consumo, imediatamente produção. Um é imediatamente o oposto do outro.


5.2. Ideologia

Em Marx, a ideologia é uma ilusão necessária à dominação de classe. Por ilusão, deve-se entender abstração e inversão. A abstração é o conhecimento de uma realidade tal como se oferece à nossa experiência imediata, como algo dado, feito e acabado, que se presta à classificação, à ordenação, sem que nunca nos indaguemos como tal realidade foi concretamente produzida. Uma realidade é concreta porque mediata, ou seja, porque produzida por um sistema determinado de condições que se articulam internamente de maneira necessária. Por inversão deve-se entender o fato de se tomar o resultado de um processo como se fosse o seu começo, de se tomar os efeitos pelas causas, as consequências pelas premissas, o determinado pelo determinante. Assim, a ideologia, porque é abstração e inversão, permanece sempre no plano imediato do aparecer. Em suma, a ideologia, segundo Marx, é o modo ilusório (ou seja, abstrato e invertido) pelo qual os homens representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Por influência da ideologia, a relação entre o real e a ideia aparece para a consciência de modo invertido: não mais o real justifica a ideia, mas, ao contrário, a ideia é que explica o real.


5.3.  Trabalho e valor

A condição sine qua non da história é a satisfação das necessidades. Para satisfazê-las, os homens constroem os meios necessários. Atingindo o seu fim, os homens modificam a própria natureza. Ao modificar a natureza pelo trabalho, os homens modificam, pelo trabalho, a si mesmos. Numa primeira aproximação, o conceito de práxis, no interior da teoria marxista, recobre a relação dialética entre o homem, o trabalho e a natureza. Retomarei esse conceito na seção seguinte. Por ora, descerei a considerações sobre os conceitos de trabalho e valor.
Todo processo de trabalho produz um valor, que é, inicialmente, um valor de uso, ou seja, algo útil à vida humana, passível de ser trocado por outro valor de uso (por exemplo, uma camisa por um sapato). Assim, a utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. O valor de troca é, por seu turno, uma forma que a mercadoria assume enquanto relação quantitativa, isto é, enquanto proporção na qual se dá a troca entre os valores de uso. Ele surge com a divisão social do trabalho e como tal tende a eliminar a dimensão de utilidade do produto do trabalho e a reduzir o próprio trabalho a uma dimensão abstrata, indiferenciada.
O valor de troca do produto do trabalho não reside no objeto produzido, tampouco na sua utilidade. Na relação de troca, esse valor aparece como independente do valor de uso. O que torna possível a troca não é a utilidade, mas o fato de os objetos serem produtos do trabalho. A fim de dilucidar a distinção entre esses dois conceitos, é imperioso considerar a gênese da mercadoria.
O que é a mercadoria? A mercadoria não é a coisa em si, mas um valor. Como valor de uso, vale por sua utilidade; como valor de troca, vale pelo preço no mercado. O valor de troca comanda o valor de uso.
Acontece que o valor de troca não é determinado pelo preço como aparece à primeira vista. O valor da mercadoria não é fixado no momento em que ela entra em circulação no mercado e é consumida. Seu valor é produzido em outro momento e se forma pela quantidade de tempo de trabalho necessário para produzi-la. Esse tempo inclui não só o tempo gasto diretamente na fabricação da mercadoria, mas inclui também o tempo para produzir as máquinas, o tempo para extrair e transportar a matéria-prima, etc. Esses tempos são tempos de trabalho da sociedade.
O preço da mercadoria também encerra o salário pago pelo tempo de trabalho do trabalhador que fabrica essa mercadoria, pagamento que é chamado de custo de produção e que é o suficientemente necessário para que ele se alimente, se aloje, se vista, se transporte e se reproduza, gerando filhos para o mesmo trabalho de produzir mercadorias. A mercadoria é, portanto, trabalho social concentrado e não uma coisa.
A mercadoria, enquanto problema teórico, demanda um pouco mais de atenção. Situando-a no modo de produção capitalista, deve-se dizer que o dinheiro também é uma mercadoria. Cada modo de produção (antigo, escravagista, asiático, feudal e capitalista) é constituído pelas forças produtivas e pelas relações sociais de produção a elas relacionadas e cujo epicentro é um determinado tipo de propriedade dos meios de produção. O modo de produção capitalista se caracteriza pela separação entre o trabalho livre e a propriedade dos meios de produção, separação que se acompanha da produção da mais-valia (conceito a que destinarei uma seção mais adiante) e da formação do próprio capital. Nesse contexto, surgem as novas classes sociais e as formas de relação entre elas: o proletariado, expropriado dos meios de produção (inclusive da terra) que, para viver, precisa vender sua força de trabalho, que não é senão uma mercadoria; e o capitalista, proprietário dos meios de produção e dono do capital. Retomarei o tema da mercadoria, quando me debruçar sobre o conceito de fetichismo da mercadoria.
Convém, agora, definir o termo capital. O capital se constitui com a condição de o possuidor do dinheiro poder trocá-lo pela capacidade de trabalho de outrem, que é mercadoria. Portanto, é necessário que a capacidade de trabalho seja colocada à venda, como mercadoria, no processo de circulação, para que o dinheiro se transforme em capital.
Para sobreviver, o proletário precisa vender sua força de trabalho, a qual passa a ser encarada, na relação antagônica e desigual entre proletariado e burguesia, um valor de troca, uma mercadoria. No domínio do aparecer social, o salário do trabalhador se apresenta como valor de seu trabalho, isto é, como uma certa quantia de dinheiro paga por uma quantidade de trabalho equivalente. Deveras, o que se dá não é isso; e para entendermos o que se passa nessa relação – que, conforme veremos, é de expropriação do proletário pelo capitalista- , devemos compreender o conceito de mais-valia, tema de nossa próxima subseção.


5.4. Mais-valia

No circuito capitalista do dinheiro, cuja configuração supõe a relação dinheiro-mercadoria-dinheiro, a mercadoria comprada é a força de trabalho, a única mercadoria cujo consumo produz um outro valor de uso (o produto do trabalho). A diferença entre o valor da força de trabalho e o valor do produto do trabalho constitui a mais-valia, sem a qual não existiria o capitalismo.
A mais-valia corresponde a uma certa quantidade de trabalho excedente não-pago. A mais-valia é o lucro do capitalista. Para os trabalhadores, essa quantidade de trabalho não remunerado apresenta-se como o mais-trabalho que suplanta a quantidade de trabalho imediatamente necessária à manutenção da condição vital deles. A acumulação da mais-valia está na origem do capital. Graças à mais-valia, a mercadoria não é um valor de uso ou um valor de troca qualquer, mas um valor capitalista (eis a síntese dialética). Dialeticamente, o valor de uso se apresenta como a tese, o valor de troca como a antítese e, finalmente, o valor capitalista é a síntese.


5.5.  Fetichismo da mercadoria

O conceito de fetichismo da mercadoria prende-se intimamente ao conceito de alienação; mas desses conceitos tratarei em seções separadas.
Em vez de a mercadoria aparecer como resultado de relações sociais enquanto relações de produção, ela aparece como um bem que se compra e se consome. Aparece como valendo por si mesma e em si mesma, como se derivasse de um dom natural das coisas. As coisas-mercadoria começam, pois, a se relacionar umas com as outras como se fossem sujeitos sociais dotados de vida própria. A mercadoria passa a ter vida própria, indo da fábrica à loja, da loja a casa, como se caminhasse sozinha.
O fetichismo da mercadoria desdobra-se, por conseguinte, em dois momentos. O primeiro momento do fetichismo é o fato de a mercadoria ser um fetiche, uma coisa que existe em si e por si mesma. O segundo momento diz respeito ao fato de a mercadoria, à semelhança do fetiche religioso, exercer poder sobre seus crentes ou adoradores, dominando-os como uma força estranha. O mundo transforma-se numa grande fantasmagoria.


5.6. Alienação

Retomando-se a ideia de que a mercadoria exerce um poder sobre os homens e os domina como uma força estranha, tornar-se-á mais fácil compreender o conceito de alienação. A alienação é a condição em que se encontram tanto os trabalhadores como a própria atividade de trabalho, no modo de produção capitalista, quando eles vendem sua força de trabalho e quando se dá a separação entre eles, trabalhadores,  e o produto do seu trabalho. O trabalho, no modo de produção capitalista, é trabalho alienado. Vejamos o porquê.
A alienação é, segundo Marx, uma forma de relação historicamente determinada, ou seja, típica da relação capital-trabalho assalariado. Na alienação, o trabalho torna-se trabalho forçado, o homem e a natureza se separam completamente, e os trabalhadores não se reconhecem mais no produto de seu trabalho. É preciso sublinhar este fato, que caracteriza fundamentalmente a condição de alienação: o trabalhador não se reconhece mais no produto de seu trabalho. Segundo Marx, porém, a alienação não aparece apenas no resultado, mas também no interior da própria atividade produtiva. Assim, o trabalho é exterior ao trabalhador, ou seja, ele não pertence à sua essência. O trabalhador não se afirma em seu trabalha, mas nega-se. Essa é a condição do trabalhador alienado: a de um trabalhador que, negando-se no trabalho, sente-se insatisfeito, infeliz, mortificado. Tudo o que, na verdade, constitui condição e resultado da natureza interior do homem (a criatividade, o trabalho) aparece na sociedade burguesa e na sua economia como esvaziamento e alienação.
No contexto da luta de classes, as ideologias funcionam como o cimento da sociedade, na medida em que produzem um senso comum que serve para mascarar a luta de classes. A classe que exerce o poder material ou o domínio material numa dada época também exerce o domínio espiritual. As ideologias, forjadas pelas classes dominantes, têm como função básica ocultar as condições de dominação vigente, mas também podem servir como um conjunto de referências para a tomada de consciência. A produção das ideologias é indissociável do processo de vida real, ou seja, do processo de produção material da vida real. A produção das ideias, das representações, da consciência está, em primeiro lugar, entrelaçada com a atividade material e com as relações dos homens.
O trabalho alienado é aquele no qual o produtor não se reconhece no produto de seu trabalho, porque as condições desse trabalho, suas finalidades reais e seu valor não dependem do próprio trabalho, mas do proprietário das condições do trabalho. Constituem três os fatores que tornam as atividades humanas acontecimentos independentes dos homens: alienação, reificação e fetichismo. Esses fatores estão na base de um processo fantástico pelo qual as atividades humanas começam a realizar-se como se fossem autônomas ou independentes dos homens, passando, assim, a dirigir e comandar suas vidas, sem que eles possam exercer sobre elas controle.
Por fim, cumpre dizer que as ideias originam-se da atividade material, mas essas ideias representam o modo como a realidade das condições materiais aparece na experiência imediata dos homens.


5.7. Práxis

Vimos que a práxis pode ser definida, num primeiro momento, como a relação dialética entre homem, trabalho e natureza. Na práxis, o homem modifica a natureza por meio do trabalho e, no trabalho, modifica a si mesmo. Há, contudo, outro significado de práxis cuja elucidação se faz necessária. Quando consideramos a práxis na sua relação com a filosofia marxista, isto é, quando a situamos no interior do quadro teórico-metodológico do marxismo, a práxis é uma compreensão teórica da realidade, é sua explicação e transformação. A práxis constitui, portanto, o elemento vital da constituição do marxismo. Apresenta-se como núcleo do pensamento de Marx.
Relembremos aqui a famosa passagem de Marx – “O que os filósofos fizeram até o momento foi interpretar o mundo; o que interessa, porém, é transformá-lo”, a fim de que entendamos a práxis como crítica e a filosofia que subjaz a ela como crítica do real. A filosofia não tem em si o poder de transformar o real; por isso, precisa realizar-se por meio da práxis. A passagem da crítica ao real, ou seja, do plano teórico ao prático, é a revolução. A práxis é uma atividade transformadora e emancipadora. Nesse sentido, o marxismo se apresenta como uma filosofia da ação, uma filosofia da práxis.


6. O Estado

Segundo Engels, o Estado constitui o primeiro poder ideológico. No capitalismo, ele cumpre funções que garantem o bom funcionamento da economia e que atendam aos interesses da classe dominante. O Estado destina-se, especialmente, a defender a propriedade privada.
Na visão de Engels, o Estado, criado para defender os interesses comuns a toda a sociedade, tornou-se independente dela, tanto mais se foi convertendo em um instrumento de poder de uma determinada classe sobre outra. O Estado está a serviço das classes dominantes, na medida em que lhes serve de instrumento para o estabelecimento e legitimação de sua dominação. As classes dominantes se servem dos aparelhos do Estado para instaurar sua dominação e para garantir seus privilégios.


7. A dialética de Hegel: um diálogo entre Hegel e Marx

Sem perder de vista a questão da concepção do Estado à luz do marxismo, tema que continuo a desenvolver nesta última seção, trago à baila como a dialética se desenvolveu no pensamento de Hegel, tendo sempre em vista o confronto com a dialética marxista.
Começo por notar que o termo dialética (diálogo, em grego, ou o pensamento e a palavra (logos) divididos em polos contraditórios), em Hegel, consiste num método de interpretação da História, à luz do qual ela é um processo temporal movido internamente pelas divisões ou negações (contradições), cujo sujeito é o Espírito como reflexão.
A dialética hegeliana é, portanto, uma dialética idealista porque seu sujeito é o Espírito e seu objeto também é o Espírito. As obras do Espírito (a cultura), embora apareçam como fatos e coisas, são ideias, pois um espírito não produz coisas nem é coisa, mas produz ideias e é ideia.
O idealismo hegeliano assenta na proposição segundo a qual a história é o movimento de oposição, negação e conservação das ideias, e essas ideias são a unidade do sujeito e do objeto da história, que é Espírito. O Espírito é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da história.
O que é o Estado, para Hegel? O Estado sintetiza, numa realidade coletiva, a totalidade dos interesses individuais, familiares, sociais, privados e públicos. Segundo Hegel, somente no Estado o cidadão torna-se verdadeiramente real e somente nele define-se a existência social e moral dos homens. O Estado torna-se, assim, o Espírito Objetivo.
No idealismo hegeliano, o Estado é uma comunidade, mas difere da família e das classes sociais, porque não possui aparentemente nenhum interesse particular, mas, ao contrário, representa apenas os interesses comuns a todos. O Estado não é um dado imediato da vida social, mas um produto da sociedade concebida como Espírito Subjetivo que busca tornar-se Espírito Objetivo. O Estado é a Ideia política, por excelência, uma das mais altas sínteses do Espírito.
Engels, naturalmente, discordará de Hegel, sobretudo no tangente à ideia de que o Estado não tem interesse particular. E Marx, embora conserve o conceito de dialética, legado de Hegel, como movimento interno de produção da realidade cujo motor é a contradição, rompe com o pensamento de Hegel, ao demonstrar que a contradição não é a do Espírito com ele mesmo, não é a contradição de sua face subjetiva com sua face objetiva, não é a contradição de sua exteriorização em obras com sua interiorização em ideias. Para Marx, a contradição se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais, e essa contradição – reitero – chama-se luta de classes.

Hegel concebia a história como o processo pelo qual o Espírito toma posse de si mesmo, como história das realizações do Espírito; Marx, ao contrário, rejeita essa visão idealista, insistindo em que a história é a história do modo como os homens reais produzem suas condições reais de existência.