Novos caminhos e novos pensares
Linguagem,
mundo e leitura
Aos professores-pensadores
Que me
seja dado dizer algumas palavras sobre as
condições de produção deste discurso, inicialmente. Supondo que nem todos
aqueles que me leem compreendem o que são essas condições de produção do
discurso, apresso-me, então, em esclarecê-las. As condições de produção do
discurso compreendem: a) saberes supostos
sobre o mundo (sobre as práticas sociais); b) saberes supostos sobre os pontos de vista recíprocos dos interactantes.
À luz dessa perspectiva sociocognitiva-interacional, o ambiente físico-social,
ou seja, a situação concreta em que se dá a interação não tem importância em si
mesma, exceto quando a tomamos como constructo
cognitivo. Quero dizer que essa situação extralinguística só passa a
exercer influência sobre a produção e interpretação/compreensão do discurso
quando transformada em palavra por meio dos filtros construtores de sentido, de
que se servem os interactantes (Charaudeau, 2010). Se o leitor ainda não
atingiu uma compreensão satisfatória do que é esse constructo cognitivo,
esforço-me, pois, por fazer-me entender, para o que lanço mão de uma estratégia metacomunicativa, que
consiste em reelaborar o que disse anteriormente. Isso só é possível porque, na
qualidade de usuário da língua, disponho de um conhecimento metacomunicativo (e o leitor também dispõe dele,
evidentemente), que me permite produzir um texto evitando qualquer tipo de
perturbação em sua compreensão. Mais adiante, considerarei, com mais vagar,
esse tipo de conhecimento, ao qual se reúnem outros tantos. No esforço por me
fazer entender, direi que a situação extralinguística só influencia a produção
e compreensão do discurso enquanto ambiente semiotizado já inserido num saber
compartilhado entre os usuários da língua. É esse saber suposto como partilhado
com meu interlocutor que me permite esperar que, ao solicitar ao garçom “uma
caipirinha”, ele me traga uma bebida específica e não uma moça originária da
roça. O ambiente físico-social – o bar, por exemplo – não constitui a condição
determinante para a adequada interpretação de “uma caipirinha”; também não é o
bar (ambiente físico) que garante minha expectativa sobre a adequada
compreensão dessa expressão pelo meu interlocutor, mas é o contrato comunicativo que nos liga e que torna possível que
compartilhemos o mesmo saber sobre o que é “caipirinha”. Tanto eu quanto meu
interlocutor dispomos de um modelo de
contexto ou de um modelo
sociocognitivo que reúne todos os conhecimentos subsumidos no frame “bar”. Esses conhecimentos dizem
respeito, entre outras coisas, ao fato de que bares são locais em que as
pessoas se reúnem para beber e comer, em que há garçons que as atendem, etc. Em
virtude daquele contrato comunicativo, espero que meu interlocutor estabeleça
uma relação entre o significado por mim pretendido quando da enunciação de “uma
caipirinha” e o modelo de contexto que eu suponho ele compartilhe comigo.
Necessário é que nossos modelos sociocognitivos, nesse caso, sejam compartilhados
e que a interpretação de “uma caipirinha” seja feita em consonância com esse
modelo sociocognitivo partilhado. Disso se segue que são as condições de
produção, tomadas como conjunto de
saberes partilhados, que governam o ambiente físico e não o contrário;
ademais, as condições de produção só influenciam o processo de interação verbal
na medida em que assumem a forma de saberes supostos como partilhados pelos
usuários da língua. Cabe dizer que usei os termos modelos de contexto, contexto sociocognitivo e discurso sem defini-los. O contexto
sociocognitivo abrange os modelos de contexto. Embora discurso seja, por vezes, usado como sinônimo de texto, empreguei o termo discurso como domínio que compreende
tanto textos efetivamente realizados como as condições de produção. A língua não existe fora do discurso. Em
tempo, explicitarei a definição de texto
que norteará a articulação das reflexões sobre a questão central a cujo
desenvolvimento destino este estudo.
Ciente de que me alonguei sobre o conceito de condições de produção e de que, por
isso, nada disse sobre as condições de produção deste discurso, esclareço,
então, que elas envolvem algumas suposições prévias minhas sobre a falta de
percepção, tanto entre as pessoas que se servem da língua em sua vida
ordinária, quanto entre professores de português, particularmente, ainda muito
habituados a reduzir ensino de língua a ensino de análise gramatical de formas
linguísticas descontextualizadas e de nomenclatura, do papel
sociocognitivo-interacional que desempenha a linguagem verbal na relação do
homem, ente cuja existência se desenvolve num domínio essencialmente simbólico,
com a realidade. Não pretendo tão-só retomar a questão da intrínseca e complexa
relação entre linguagem, cognição-percepção, realidade e cultura - questão que
pode ser denominada de fabricação da
realidade -; pretendo revisitá-la para estender a compreensão dela de modo
tal, que ilumine o modo de ver e trabalhar outra questão que lhe está
intimamente atrelada: a da referenciação.
Portanto, neste texto, intento contribuir para alargar a forma como se pensa o
fenômeno da referenciação quando do trabalho com a leitura em sala de aula.
Além disso, para os que, não sendo profissionais de ensino de língua, se
interessam por questões inegavelmente filosóficas, espero contribuir com uma
compreensão geral de referenciação como atividade
discursiva de construção cognitiva da própria realidade. Espero poder
contentar os que, não sendo linguistas, mas acalentados por um pendor
filosófico, suspeitam de que exista uma realidade objetiva pronta e uma verdade
independente de nós. Compensarei o teor especulativo desta exposição com dois
textos que servirão para ilustrar muitas das ideias desenvolvidas aqui.
A primeira questão à qual dispensarei minha atenção
foi recentemente explorada no texto O
domínio do simbólico, publicado no dia 6 de abril de 2014 neste blog. Nesta
nova oportunidade, eu a revisitarei tendo em vista a ampliação da compreensão
do fenômeno de referenciação. Pontuem-se, pois, os objetivos perseguidos neste
texto:
1)
Mostrar que o que chamamos de realidade/ mundo é uma construção sociocognitiva
que se realiza no discurso;
2)
Mostrar que a língua que falamos condiciona nossa maneira de
perceber/interpretar o mundo e de nele agir;
3) Os processos
de referenciação, uma vez que são processos de construção de
objetos-de-discurso, são processos de negociação versões públicas do mundo.
No tocante aos referidos textos que servirão
para corroborar a tese, por mim esposada, segundo
a qual a referenciação é uma atividade discursiva por meio da qual se constrói
cognitivamente a realidade com a qual interagimos, tomamos um trecho de A importância do ato de ler (2006),
de Paulo Freire, e o texto Vaguidão
específica, de Millôr Fernandes. Ambos os textos ilustrarão o modo como
podemos trabalhar a referenciação tendo em conta o fato de que ela não é uma atividade de
identificação de referentes que se situam no mundo, mas uma atividade
discursiva de construção de objetos-de-discurso e, como tal, de construção
sócio-cognitiva e interativa do próprio real. Veremos que o texto de Millôr
Fernandes é, sobremaneira, relevante para dar apoio a essa perspectiva.
Considerem-se, pois, os textos, que se fazem acompanhar de considerações gerais
sobre sua temática.
TEXTO
1
A Importância do ato de ler
(...) A leitura do mundo precede a leitura da
palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da
continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem
dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura
crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto.
Ao ensinar a escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti
levado – e até gostosamente – a “reler” momentos fundamentais de minha prática,
guardados na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha
adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão crítica da
importância do ato de ler se veio em mim constituindo.
Ao ir escrevendo
este texto, ia tomando distância dos diferentes momentos em que o ato
de ler se veio dando na minha experiência existencial. Primeiro, a
“leitura” do mundo, do pequeno mundo em que me movia; depois, a leitura
da palavra que nem sempre, ao longo de minha escolarização, foi a leitura
da “palavramundo”.
A retomada da
infância distante, buscando a compreensão do meu ato de “ler” o mundo
particular em que me movia – e até onde não sou traído pela memória -, me é
absolutamente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e
re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que
ainda não lia a palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife,
rodeada de árvores, algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre
nós – à sua sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me
experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras
maiores. (...)
(Paulo Freire – A importância do ato de ler:
2006, pp. 11-12)
TEXTO 2
A Vaguidão Específica
“As mulheres têm
uma maneira de falar que eu chamo de vago-específica”.
(Richard
Gehman)
- Maria, ponha isso
lá fora em qualquer parte.
- Junto com as
outras?
- Não ponha
junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer qualquer
coisa com elas. Ponha no lugar do outro dia.
- Sim, senhora.
Olha, o homem está aí.
- Aquele de
quando choveu?
- Não, o que a
senhora foi lá e falou com ele no domingo.
- Que é que
você disse a ele?
- Eu disse para
ele continuar.
- Ele já começou?
- Acho que já.
Eu disse que podia principiar por onde quisesse.
- É bom?
- Mais ou
menos. O outro parece mais capaz.
- Você trouxe tudo
para mim?
- Não senhora,
só trouxe as coisas.
- Mas traga,
traga. Na ocasião, nós descemos tudo de novo. É melhor senão atravanca a
entrada e ele reclama como na outra noite.
- Está bem, vou
ver como.
(Millôr
Fernandes)
No texto 1, de Paulo Freire, é discutida a
experiência da leitura como forma de reconstrução da experiência de viver. Na
experiência de leitura, no contato reflexivo com a palavra, o sujeito se
apropria do seu próprio mundo. O texto permite-nos avançar reflexões sobre a
relação dinâmica entre palavra (linguagem) e realidade, entre palavra e mundo.
No texto 2, é reconstruída uma situação
dialógica na qual estão envolvidos dois interactantes: um no papel de “patroa”;
outro, no de “empregada doméstica”. Esse texto é, particularmente, interessante
para patentear muitos aspectos que serão teorizados aqui: em primeiro lugar, o
texto suscita questões sobre como é possível que as protagonistas do discurso
se compreendam, se elas fazem largo uso de formas não-definidas,
não-descritivas, ou seja, não-referenciais tais como “outras”, “outro dia”,
“aquele”, “tudo”, “as coisas”, etc.; em segundo lugar, sobre como é possível
que o leitor consiga reconstruir a coerência do texto, consiga atribuir-lhe um
sentido; enfim, consiga entendê-lo. Noto, de passagem, que o título – aliás,
todo título, na maioria das vezes – fornece pistas sobre o assunto do texto e o
que podemos esperar encontrar neste texto. O título “a vaguidão específica”
sugere, pelo menos dois sentidos: a primeira forma de entendê-lo – e me parece
ter sido este o efeito de sentido pretendido pelo autor – pode ser parafraseada
como: há um modo vago de falar exclusivo das mulheres; a segunda forma, não
menos importante para efeito de construção de um sentido, pode ser parafraseada
como: é um modo de falar cuja vaguidão não elide o entendimento mútuo. É
oportuno dizer que toda prática discursiva está ancorada por contextos
sociocognitivos que os interactantes mobilizam por ocasião da interação. A
dependência do uso da linguagem desses contextos precisa ser evidenciada.
Um caso particular de dependência do discurso
em relação à situação em que ele ocorre é o do emprego de expressões dêiticas
(que indicam, “apontam para”,”mostram” objetos, coisas na situação de fala, sem
nomeá-los). Assim, se digo “pegue isso e coloque ali”, só é
possível saber o que “isso” indica e que lugar o “ali” indica, se tanto o
objeto quanto o lugar estão presentes, acessíveis no momento da enunciação. O
saber como usar estas formas deve ser partilhado entre os interactantes,
evidentemente. A forma “isso” tem de tomar como escopo um objeto identificável
na situação de fala; ademais, seu emprego pressupõe a unicidade do objeto. Se
fosse usado numa situação em que houvesse diversos objetos diante do
interlocutor, sua reação esperada seria perguntar qual dos objetos a expressão
“isso” indica, ou seja, qual dos objetos deveria ser deslocado de lugar. É
claro que o fato de sabermos como empregar “isso” não impede mal-entendidos.
Pode suceder que alguma de suas condições de uso não seja satisfeita, o que
acarretaria a não-identificação, pelo menos não imediatamente, do objeto indicado.
Vou-me demorar, doravante, na abordagem da
relação entre linguagem e realidade. Retomo esse tema, com vistas a encaminhar
o tratamento que será dispensado à questão da referenciação, a qual – cumpre reiterar – é uma atividade discursiva responsável pela construção de versões
públicas da realidade.
Não custa lembrar que a linguagem verbal ou a
palavra está na base da consciência reflexiva. A consciência reflexiva é que
habilita o homem a pensar em si mesmo, consciência que, não se reduzindo ao
“eu”, permite, no entanto, ao homem reconhecer-se como um “eu”; é essa
consciência que não só funda a diferença entre indivíduo e mundo, mas também se
torna objeto de reflexão de si mesma. Essa consciência só é possível graças à
palavra ou a linguagem verbal. A linguagem verbal é o sistema simbólico através
do qual o homem transforma os objetos de suas experiências sensíveis em ‘dados’
de sua consciência; é pela língua que o homem constitui e estrutura suas
experiências, cria e ordena o mundo, dotando-lhe de significações.
Em O
que é realidade? (2006), Júnior ilustra como entender essa relação
fundante entre palavra e consciência no homem:
“Quando
digo “Japão”, por exemplo, torno-me consciente de uma região do planeta que no momento
me é inacessível, que não pode ser vista nem tocada por mim. O animal não pode
fazer isto: está irremediavelmente preso, aderido aos seus sentidos. A
consciência animal não vai além daquilo que seus órgãos dos sentidos trazem até
ele. O animal está indissoluvelmente ligado ao aqui”
(p.
18)
Tendo em conta o excerto de Júnior, preciso
frisar o seguinte: não se deve concluir que os animais não-humanos não tenham
consciência, tampouco que não possam ter consciência de si (recentemente, as
neurociências vêm reunindo evidências de que certas espécies desenvolvem uma
consciência de si); também não estou sugerindo qualquer sentido de
superioridade do homem em relação aos animais não-humanos. Estou interessado em
assinalar o papel fundamental que desempenha a palavra na vida do homem como
ente consciente de si, como ente que não está irremediavelmente preso a uma
relação imediata com o mundo. Pela palavra, o homem torna presente a si o que
está ausente. Já foi dito amiúde que os animais têm um habitat, que seu corpo é uma extensão do meio em que vivem e que o
homem, ao contrário, não tem um habitat
e que sua existência é marcada por um desarrancamento em relação à natureza. Esse
desarrancamento inaugura o próprio espaço da cultura que, em última instância,
é o espaço do simbólico.
“Pela
palavra, o homem criou também o tempo, ou a consciência dele. Posso pensar no
meu passado, e não só no meu passado, mas no de toda a espécie humana; com a
palavra encontro e crio significações para aquilo que vivi ontem, anteontem, ou
para aquilo que outros homens viveram três séculos atrás” (p. 19).
A segmentação do tempo em presente, passado e
futuro é uma projeção da consciência humana. O tempo físico, o tempo real é um
presente sempiterno. Somente o presente é o real. A palavra permite ao homem construir
a temporalidade da consciência. Pela palavra, me relaciono com o não-ser que
chamo de futuro; pois, na realidade,
não há o futuro; só há o instante presente. Ao nomear esse não-ser de “futuro”,
torno-o uma possibilidade presente à minha consciência, para a qual me projeto
(posso pensá-lo, posso pensar-me vivendo nesse “futuro”). Consideremos outro
trecho de Júnior, abaixo:
“(...)
o meio simbólico criado pela linguagem humana, linguagem que capacita do homem
a proferir o seu “eu”. (...) Somos mais que nosso corpo: somos também a
consciência deste corpo, que sabemos finito. Neste sentido é que, em linguagem
filosófica, se fala da transcendência humana: o homem transcende, vai além da
imediaticidade do aqui e agora em que está o seu corpo” (pp. 19-20).
O homem é um ser capaz de autotranscendência –
vai além de suas condições naturais, é excesso em relação a seu programa
natural geneticamente herdado. A linguagem verbal funda o reino de liberdade do
homem em relação ao imperativo da natureza. A dimensão do simbólico lhe é tão
importante, que o homem é o único ente capaz de se suicidar. Isso não deixa de
ser espantoso: o suicídio é a forma última de o homem rebelar-se contra as
restrições impostas pela natureza. O suicídio marca, de modo definitivo, quão
importante para a existência do homem é esse domínio das significações,
conforme nota Júnior:
“O
suicídio é o exemplo mais extremo de como este universo de significações
construído pelo ser humano chega a ser-lhe mais significativo, mais importante
que a dimensão meramente física. Muitas vezes, seu corpo está em perfeitas
condições, mas o homem se mata. E se mata porque a vida deixou de fazer
sentido, perdeu a sua coerência simbólica: não há mais valores ou significados
sustentando a existência” (p.20).
O desmoronamento do sentido significa a própria
ruína do homem. Sem significados, a existência humana se torna insuportável. O
homem está condenado a viver na teia de significações que ele mesmo construiu;
quando essa teia se rompe, é a sua própria existência que corre risco de
extirpar-se. Por que a existência humana não se sustenta sem significados? É
preciso compreender o que é existir
para a condição humana.
“As coisas e os animais são, enquanto o
homem existe. Existência é justamente a vida (biológica) mais o seu
sentido. Sentido que advém da linguagem, instauradora do humano, que advém da
palavra, criadora da consciência reflexiva e do mundo. (...) Pela palavra se faz o mundo. Somente
com a palavra surge isto a que chamamos mundo” ( p.20, grifos meus).
No princípio, era o verbo e onde está o verbo
está o homem. O verbo é que sustenta a sua existência. Não há existência para
homem fora do domínio do simbólico. A linguagem é a dimensão que relaciona a
ordem natural com a ordem do simbólico. Existir é esse lançar-se para fora,
para fora da ordem natural; mas esse movimento de ruptura não faz o homem viver
num vazio, mas num universo entretecido de significações. Existir é estar em
relação contínua com esse universo de significações, é estar imerso nesse
universo, é mover-se nesse universo de significações, que acaba por totalizar
as duas ordens: a da natureza (então, significada) e a da cultura. O que
chamamos de “mundo” é a reunião da ordem natural e da ordem simbólica numa totalidade
dotada de significados. O mundo é um conceito fabricado pelo homem. Por isso,
sem o homem, não existe o mundo. Acompanhemos o que nos ensina a esse respeito
Júnior:
“(...)
as coisas, as árvores, rios, pedras, montanhas já não estavam aí antes de surgir
o homem e sua linguagem? Sim, mas ainda não eram o mundo. Mundo é apenas e
tão-somente um conceito humano. Mundo é a compreensão de tudo isto numa
totalidade, é ordenação deste aglomerado de seres num esquema significativo, só
possível ao homem através de sua consciência simbólica, linguística. Sem esta
consciência, sem alguém que dissesse “isto é o mundo”, tudo continuaria apenas
um conglomerado de coisas. O mundo – que é um conceito essencialmente humano –
apenas surge com o homem. Animais e vegetais continuam presos neste aglomerado
chamado meio ambiente. Só o ser humano habita o mundo. Mundo e homem surgiram juntos e permanecessem indissoluvelmente ligados
(p.22, grifo meu).
Na vida ordinária, em que nos movemos e nos
relacionamos com o mundo pragmaticamente, tendemos a pensá-lo e a reduzi-lo a
um conglomerado de coisas ou seres. A suposição, bastante espontânea, segundo a
qual as “árvores”, “pedras”, “montanhas” já estavam no mundo antes do advento
do homem é uma suposição calcada sobre a concepção de linguagem como
nomenclatura. Pensamos que essas coisas já existiam e que coube a nós apenas
nomeá-las, ou seja, colocar “rótulos”. Quase ninguém se dá conta, pois isso
demandaria algum tempo de reflexão, de que as coisas só existem para homem
quando nomeadas. O que não tem nome simplesmente não existe para a consciência
humana. É claro que aquelas coisas que chamamos de “árvores”, “pedras” e
“montanhas” já estavam no planeta antes do surgimento do homem, mas elas não
estavam ali como “árvores”, “pedras” e “montanhas” num sistema significativo. Elas
não compunham uma ordem significativa que se chama “mundo”. Elas estavam pura e
simplesmente, fechadas em si mesmas, mas não totalizavam um mundo, porque não
tinham ganhado ainda um investimento simbólico, que funda o domínio de abertura
delas a uma consciência capaz de representá-las na forma de conceitos. Ao dar
nome, o homem faz distinções e impõe uma ordem; portanto, cria um mundo. Uma
vez nomeadas, as coisas se tornam identificáveis, discerníveis à consciência
humana. E elas passam a tomar parte de uma ordem significativa. As palavras não
são rótulos; elas criam conceitos pelos quais o homem estrutura suas
experiências de mundo. Tomemos a palavra “peixe”. Seu significado pode ser
verbalizado como “animal vertebrado aquático”. Agora, pensemos o que me ensina
essa palavra, ou seja, a palavra enfeixa uma série de conhecimentos, porque ela
mesma é uma forma de conhecimento. Quando uso a palavra “peixe”, sei que
identifico certo animal (o que me permite dizer que o diferencio de “árvores”,
“pedras”, “montanhas”). A palavra “peixe” compõe-se do traço [+ animal]. Ela
categoriza para mim um objeto do mundo. Mas também a palavra “canário” designa
um animal, seu significado também inclui o traço [+ animal]. Mas “peixe” e
“canário” são animais com características e hábitos muito distintos. O peixe
vive na água, ele nada; o canário não, ele voa; o peixe tem escamas; o canário
tem penas. Se fôssemos decompor em traços o significado dessas duas formas
linguísticas, teríamos o seguinte resultado, não exaustivo:
PEIXE CANÁRIO
[+ animal] [+animal]
[+ vertebrado] [+ vertebrado]
[+aquático] [- aquático]
[+ escamas] [- escamas]
[- penas] [+ penas]
[- canto] [+ canto]
[- bico] [+ bico]
O que estou tentando mostrar é que as palavras
não são meros rótulos de coisas, mas formas pelas quais as coisas são
transformadas em conceitos que entram a fazer parte de nossa consciência na
forma de conhecimento. O processo de categorização do mundo pela palavra tem
como base nosso aparelho perceptual-cognitivo, moldado por práticas
sócio-culturais. A categorização é uma atividade linguística em cujo cerne se
acha a percepção e a cognição, sempre pensadas como domínio de experiências
culturais. Precisamos perceber diferenças e semelhanças entre um ente e outro
para, abstraindo as diferenças, categorizá-los. O “peixe” e o “canário”
compartilham traços que nos permitem categorizá-los como [ANIMAL] em oposição a
“planta”, que categorizamos como [VEGETAL]. Mas, mesmo na classe [ANIMAL], há
inúmeras diferenças entre os indivíduos, donde a necessidade de fazer novas
categorizações. Desde já, necessário é dizer que a categorização não é um
processo discreto; ela é sempre instável e dependente do discurso. Antes do
homem e da palavra, não havia ordem na natureza. Pense-se no caso do
ornitorrinco.
Uma mesma realidade será categorizada de modo
diverso, segundo as experiências culturais das comunidades humanas. Povos
diferentes farão categorizações distintas com base em suas experiências
culturais. Devemos também ter em conta o fato de que as categorizações não
incidem apenas sobre elementos do mundo natural; tudo o mais que toma parte da
experiência humana pode ser categorizado. Leia-se o que nos ensina Fiorin
(2004), em Teoria dos signos:
“Imaginemos
que uma pessoa mata a outra. Essa ação pode ser categorizada como assassinato,
como acidente, como cumprimento do dever, como ato de heroísmo, como perda
temporária da razão. Essa categorização determina nossas atitudes: prendemos o
assassino; perdoamos quem foi vítima das circunstâncias; elogiamos o policial
que matou o sequestrador que mantinha pessoas como reféns, porque cumpria o seu
dever; damos uma medalha ao herói que, na guerra, matou o inimigo. (...) a
língua não é uma nomenclatura aplicada a uma realidade cuja categorização
preexiste à significação” (p. 57)
Volvendo olhares para o excerto de Fiorin, dele
depreendemos que o modo como categorizamos as experiências de mundo vai
determinar o modo como agimos, atuamos no mundo e reagimos a essas
experiências. Por isso também a língua é uma forma de ação social; pelo uso da língua, agimos sobre o outro e
reagimos às ações do outro. Toda ação social, já ensinava Weber, é ação dotada
de significado. A língua cumpre, pois, duas funções fundamentais: ela dota
nossas experiências de sentido e nos permite agir significativamente no mundo e
sobre o outro. Retomemos a lição de Júnior no tangente ao significado de
“mundo”.
“Mas
afinal, o que é o mundo? Numa fórmula simples (...): mundo é o que pode ser dito.
Mundo é o conjunto ordenado de tudo aquilo que tem nome. As coisas existem para
mim através da denominação que lhes empresto. Que isto fique claro: só podemos pensar nas coisas através das
palavras que as representam; entendendo-se “coisas” aí não em seu sentido
estritamente físico, material. Ideia, sentimento (...) existem para mim,
tornam-se objetos do meu refletir, pelos nomes. Amor, justiça, fraternidade,
raiva, democracia são conceitos que fazem parte do meu mundo porque criados e
reconhecidos por meio da palavra (pp. 22-23)”.
Cumpre ressaltar o que está pressuposto neste
passo de Júnior: amor, justiça, fraternidade, raiva, democracia não existem sem
o investimento verbal que lhe damos. Decerto, justiça, fraternidade e
democracia são abstrações feitas pelos homens e só existem na medida em que são
nomeadas. Que diremos do amor e da raiva? O amor e a raiva não seriam “fatos
brutos” do mundo? Afinal, não percebemos, algumas vezes, entre os animais essa
experiência de cuidado e carinho, que categorizamos como “amor”? Sim, a
experiência é real e independe de nós (embora a noção de “fatos” seja muito
problemática); nós a percebemos, mas o que chamamos de “amor” é uma invenção
nossa. Ademais, o conceito de “amor” está investido de representações imaginárias
construídas sócio-historicamente. O amor romântico, por exemplo, é, sem dúvida,
uma invenção literária que atende bem aos interesses de um mundo burguês. E
quanto à raiva? Não é ela uma emoção também? Nós não a sentimos? Sim, nós a
sentimos, ela é natural e inata. Mas só passa a existir quando nomeada, pois só
quando é nomeada torna-se conceito, e, portanto, passível de ser pensada. Para
que “amor”, “raiva”, “justiça”, “fraternidade” e “democracia” se revistam de
existência, sejam objetos postos à reflexão pelo homem, precisam ser nomeados,
o que significa dizer: precisam ser transformados em conceitos.
Pode-se dizer, com Júnior, que o ato de nomear
é fundador da existência:
“Definitivamente:
o que existe para o homem tem um nome. Aquilo
que não tem nome não existe, não pode ser pensado. (...) Algumas “coisas”,
alguns conceitos existem para nós sem serem especificamente nomeados pela
linguagem [verbal], mas vêm à luz através de outros sistemas simbólicos criados
pelo ser humano. A linguagem é o sistema fundamental e primordial de criação e
significação do mundo, mas além dela, foram desenvolvidos outros, como o da
matemática, o da química, das artes, etc.” (p.23, grifo meu).
O mundo também pode significar acervo de
conceitos e conhecimentos de que dispõe um indivíduo. Assim, “os limites da
minha linguagem significam os limites de meu mundo” (Wittgenstein). Quanto
maior é a quantidade de palavras que conhecemos, tanto mais apurada é nossa capacidade
de articular conceitos, e tanto maior é o mundo, maior é o alcance e amplitude
de nossa consciência reflexiva.
Uma vez que a linguagem ordena a realidade,
tornando-a significativa, a realidade passa a ser, fundamentalmente,
estabelecida e mantida por ela. É com base na linguagem (bem como a partir de
suas condições materiais) que um povo constrói, em práticas culturais, a sua
realidade. A construção da realidade passa, necessariamente, pelo uso da
língua. A língua que usamos permite-nos organizar e interpretar a realidade,
bem como ordenar nossas ações.
Nossa língua condiciona a nossa maneira de
perceber/ interpretar o mundo e de nele agir. A língua está dialeticamente
ligada às condições materiais de existência, especialmente nas sociedades
divididas em classes. Cumpre insistir em que nossa percepção é influenciada
pela língua que falamos. Visão, audição, olfação, gustação e tato são moldados
culturalmente, o que equivale a dizer que o são também linguisticamente.
Suponhamos que uma tribo africana disponha, em
sua língua, de cinquenta formas de expressão do conceito de “estar andando”.
Cada uma dessas formas faz distinções relativamente ao que é percebido. Por
exemplo, uma expressão pode descrever um traço específico do modo de andar:
seja “balançando os braços”. Outra expressão pode incluir o traço ‘gingando os
quadris’, e assim sucessivamente. Obviamente, desde a infância, o indivíduo
percebe movimentos, vê pessoas andando, mas sua visão, sua percepção do
movimento serão educadas, treinadas, porque ele precisa saber usar corretamente
cada expressão verbal correspondente a um modo específico de andar de seus
semelhantes. Esse indivíduo conseguirá, portanto, perceber nuances, sutilezas;
em suma, conseguirá fazer distinções que indivíduos que vivem em outros
contextos culturais e que usam outra língua não conseguirão fazer
espontaneamente. Depreende-se daí que a língua que usamos condiciona o
desenvolvimento de certo modo específico de perceber o mundo. Essa é uma
questão extremamente instigante, que retomarei mais adiante quando trouxer à
baila a hipótese de Sapir-Whorf.
Pondo termo a esta seção, segue-se este último
passo de Júnior, cujas ideias básicas são destacadas em seguida:
“O
ser humano move-se, então, num mundo essencialmente simbólico, sendo os
símbolos linguísticos os preponderantes e básicos na edificação deste mundo, na
construção da realidade. (...) O mundo, para mim, circunscreve-se àquilo que
pode ser captado por minha consciência, e minha consciência apreende as coisas
através da linguagem que emprego e que ordena a minha realidade. Assim, o real
será sempre um produto da dialética, do jogo existente entre a materialidade do
mundo e o sistema de significação utilizado para organizá-lo”. (p. 27)
1) O ser humano não existe senão num
universo essencialmente simbólico;
2) As palavras são os símbolos básicos
na edificação da realidade;
3) O mundo é a totalidade acessível à
minha consciência;
4) As coisas do mundo só tomam parte
de minha consciência quando transformadas em conceitos por força da função de
simbolização da linguagem;
5) O real é fabricado numa relação
dialética entre a materialidade do mundo e a linguagem que lhe (ao real)
determina uma ordem.
1.2. Linguagem, realidade, cultura e cognição
O linguista Izidoro Blikstein, em seu livro
assaz intrigante Kaspar Hauser ou A
Fabricação da Realidade, declara, na contracapa:
“Para
o senso comum, a realidade parece não constituir problema algum: real é todo o
universo estável e tangível de som, cores, formas, espaços e movimentos.
Trata-se, no entanto, de uma ilusão:
na verdade, o que julgamos ser a realidade não passa de um produto da nossa
percepção cultural. Percebemos os objetos que as nossas práticas culturais já
definiram previamente, em outras palavras, a realidade já foi fabricada por
toda uma rede de estereótipos culturais, que condicionam a percepção. Tais
estereótipos, por sua vez, são garantidos e reforçados pela linguagem(ênfase
minha).
Este livro baseou-se no filme “O Enigma de
Kaspar Hauser”, de W. Herzog (1974). O protagonista Kaspar Hauser foi criado
num sótão até os 18 anos sem ter contato com qualquer pessoa. Por volta de
1828, aparece em Nurembergue, portando uma carta na qual há referências a sua
misteriosa origem. Atônito, vê-se diante de um mundo incompreensível. A ele
tudo assustava: o riso, os movimentos, a lógica, o pensamento, a fala, etc. À
página 17, Blikstein, a propósito do seu objetivo, escreve:
“Kaspar
Hauser: linguagem, mundo, realidade, percepção, significação, cognição... assim
é que, procurando desvendar os enigmas do filme de Herzog, fui sendo levado,
pouco a pouco, a revisitar um antigo e problemático tema, situado num
entrocamento por onde passam a linguística, a semiologia, a antropologia, a
teoria do conhecimento, etc.: trata-se da relação entre língua, pensamento,
conhecimento e realidade. Até que ponto o universo dos signos linguísticos
coincide com a realidade “extralingüística”? Como é possível conhecer tal
realidade por meio de signos linguísticos? Qual o alcance da língua sobre o
pensamento e a cognição?
Essa intricada questão sempre me provocou fascínio;
decerto, decorrente de meu amor à linguagem e da consciência de sua importância
fundamental na existência social dos seres humanos. A compreensão das palavras
que se seguem ao passo de Blinkstein, referido acima, não dispensa a consideração prévia dos pressupostos
abaixo:
1º pp. A linguagem organiza as experiências dos
homens numa estrutura dotada de sentido;
2º pp. O discurso não espelha a realidade, mas
a reconstrói, de acordo com os propósitos e os pontos de vista do
falante/escritor;
3º pp. A linguagem é um elemento estruturador
do real e a base mais profunda das sociedades humanas;
4º pp. Há relação intrínseca entre linguagem e
cognição;
5º pp. Tanto a linguagem quanto a cognição são
fatos de ordem social;
6º pp. Os processos cognitivos não se dão
apenas na cabeça das pessoas, mas, enquanto processos sociais, dão-se nas
práticas sócio-interacionais em que as pessoas estão envolvidas.
Pode-se afirmar, seguramente, que tanto a
linguagem como a cognição se realizam nas práticas sócio-interacionais. Essas
práticas, evidentemente, estão envolvidas e determinadas pela cultura. Importa
ter em conta, fundamentalmente, o seguinte: a linguagem não é um mero
instrumento de comunicação, mas, tomada numa acepção
sóciocognitivista-interacional, a linguagem é uma prática social, ou seja, um tipo de ação conjunta, ação que se
faz com os outros e que demanda a mobilização de diversos sistemas de
conhecimentos armazenados na memória dos usuários. Os sistemas cognitivos constituem formas de
estruturação dos conhecimentos culturalmente determinados em nossa memória.
Ingedore Koch (2004: 32), apresenta a seguinte definição de cognição, de acordo
com a perspectiva assumida aqui:
“Cognição,
aqui, define-se como um conjunto de várias formas de conhecimento, não totalizado
por linguagem, mas de sua responsabilidade: os processos cognitivos,
dependentes, como linguagem, da significação, não são tomados como
comportamentos previsíveis ou aprioristicamente concebidos, à margem das
rotinas significativas da vida em sociedade”.
Urge definir o conceito de cultura, com vistas a elucidar a reflexão que se tem desenvolvido
até aqui. Cultura é um desses termos
científicos polissêmicos, definido diferentemente de acordo com a perspectiva
do estudioso. Pode-se admitir, à guisa de melhor clareza, a distinção entre cultura material e cultura simbólica. A primeira encerra as produções do espírito
humano, concretizadas em obras de artes, livros, teatro, música, etc. A segunda
é de ordem significativa, existe na mente das pessoas, representada nos padrões
artísticos e nos mitos. Pensando a relação entre cultura e linguagem, é preciso
saber que a linguagem é, ao mesmo tempo, produto e meio de expressão,
propagação e conservação da cultura. Também convém ter em conta o fato de que
as culturas são dinâmicas e diversificadas.
Cinjo-me, contudo, a referir o seguinte passo
de Roberto da Mata, colhido de Você tem
cultura?, no qual se nos esclarece o
conceito de cultura:
“Cultura é um conceito-chave para a
interpretação da vida social. Cultura é, em Antropologia Social
e Sociologia, um mapa, um receituário, um código, através do qual as pessoas de
um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É
justamente porque compartilha de parcelas importantes deste código (cultura)
que um conjunto de indivíduos, com interesses e capacidade distintas e até
mesmo opostas, transformam-se num grupo e podem viver juntos sentindo-se parte
de uma mesma totalidade. Podem, assim, desenvolver relações entre si porque a
cultura lhe forneceu normas que dizem respeito aos modos mais (ou menos)
apropriados de comportamento diante de certas situações”.
Em geral, o homem comum,
porque imerso no seu sistema cultural, não se dá conta dos traços mais
imediatos de sua cultura, ou seja, das normas que governam as relações sociais
e os comportamentos exigidos em determinadas situações (embora as domine quase
“inconscientemente”). Por exemplo, os brasileiros, em face de um comentário
elogioso, tendem a dar respostas que mitigam a intensidade de um elogio ou o
efeito que lhes causa. Assim é que, numa situação em que uma mulher faz um
elogio ao vestido de uma amiga, como, por exemplo, “Que lindo esse vestido,
está arrasando!”, esta tenderá a dizer algo como “que nada, comprei numa
ferinha... foi baratinho!”. A menção ao baixo valor do artigo deve-se ao fato,
culturalmente determinado, de que ser rico no Brasil é errado ou de que
ostentar um artigo de luxo é sinal de alto poder aquisitivo, e alto poder
aquisitivo, em nossa sociedade, é sinal de esnobismo, esvaziamento espiritual.
Não é desses aspectos
culturais, no entanto, que me ocupo aqui. Viso a provocar no leitor a
consciência de que a cultura funciona como uma espécie de lente por meio da
qual interpretamos, organizamos e compreendemos a realidade. Sabe-se, por
exemplo, que, segundo os primeiros relatos dos colonizadores da América, os
índios não viram (perceberam) as caravelas que se aproximavam, visto que não
constituíam elas dados da experiência deles (experiência culturalmente
determinada). Logo, as caravelas se confundiam com a paisagem e não eram, pois,
consideradas uma informação ou um ‘dado’ interpretável.
Vale salientar, desde já,
que por percepção entende-se a
faculdade pela qual se atribui significado a dados sensoriais. A percepção organiza
as sensações. As palavras de Marilena Chauí (2008: 133) lançam luzes sobre esse
conceito:
“(...)
na realidade, não temos uma sensação isolada de outras, mas só temos sensações
na forma de percepções, isto é, como reunião de muitas sensações ou como
sínteses de várias sensações. A percepção seria, pois, uma síntese de sensações
simultâneas.”
A sensação é o efeito produzido pelas
qualidades dos objetos sobre nós. Fique claro, pois, que a percepção
interrelaciona-se com a cultura, linguagem e cognição para a construção do
real.
Convém, doravante,
considerar, com o devido acuro, a oposição tradicional entre o idealismo e o
realismo. A perspectiva filosófica idealista, conquanto se insira em correntes
distintas de pensamento, assume como postulado básico a crença em que a
realidade exterior deve ser interpretada em termos da realidade interior ou
mental. Epistemologicamente, o idealismo, de que Descartes é um dos expoentes
rememorados, tende a reduzir a problemática do conhecimento ao papel do sujeito
conhecedor, o que equivale a reduzir a matéria ao pensamento. Platão cuja
teoria das idéias é, segundo Marcondes (2008), erroneamente, chamada de
idealismo, poderia situar-se entre os filósofos que professavam o idealismo. No
entanto, como adverte Marcondes, Platão preconizava um “realismo das ideias”,
porquanto o mundo das idéias puras, de que falava, existiria independentemente
do nosso conhecimento ou pensamento.
O realismo assume que a
realidade exterior existe independentemente do conhecimento que se possa ter
dela. Na perspectiva realista, o conhecimento decorre da concordância entre as
idéias ou juízos e a realidade.
Revisitar essa
problemática é importante, porque, ao admitir, com Coseriu, que a realidade
resulta da interpretação humana, não significa que eu esteja negando a
existência do mundo que se mostra aos nossos olhos.
Portanto, convém atentar
para as lúcidas palavras de Marcuschi (2007: 142), com as quais encerra o
capítulo 6 de seu livro Cognição,
Linguagem e Práticas Interacionais:
“Se
o fato de não podermos dizer o mundo em
si é inevitável, isso não significa que o mundo conhecido seja sempre
produto de nossas atividades cognitivas. Portanto, não há motivo para o
alvoroço: o mundo extramental existe. Contudo, tal como dizia a quarta tese
inicialmente afirmada, todos os objetos de nosso conhecimento são produzidos no
discurso, embora não se achem confinados
ao discurso e podem ser intersubjetivamente comunicados” (ênfase do autor).
Marcuschi acrescenta ser o
mundo independente de nossas crenças, mas estas não são independentes dele.
Cabem algumas observações acerca desse passo do autor. A posição do linguista é,
em parte, também por mim acolhida: de fato, o mundo, enquanto manifestação material apreendido
pelos sentidos, existe. No entanto, quando interpretamos a existência ou
realidade como essencialmente significativa,
interpretação na base da qual se acha o papel valoroso e inegável da linguagem,
parece-me lícito admitir que o real existe
para os homens porque faz sentido para eles. Se, por mundo, entendemos uma
totalidade estruturada significativamente, então esse mundo não existe antes do
advento da palavra. A própria condição de sermos, ao mesmo tempo, homo sapiens e homo loquens impõe-nos a necessidade de pensar o real enquanto existência significativa ou simbólica. É nesse ponto que minha
argumentação acarretou, certa vez, em comunidades virtuais de debate filosófico
e cognitivista, muita controvérsia. Mas reavivar minha posição é necessário
aqui. Alhures, argumentei que uma “montanha”, por exemplo, enquanto elemento do
mundo natural, enquanto realidade do mundo físico, está aí, dada, mas só passa
a existir quando é nomeada. A palavra montanha
não é um rótulo ou uma etiqueta que colocamos nas coisas ou nos seres. Essa
concepção simplista ademais e própria do senso-comum não se sustenta, quando
dispensamos um olhar cientificamente orientado, que considera a relação entre
linguagem, percepção, cognição, cultura e realidade. A realidade pode ser
ressignificada, adquirindo um sentido mais profundo e totalizante. Assim, para
muitos povos, a montanha é a morada dos deuses. Para empresários capitalistas,
interessados na exploração de minérios, a montanha se torna uma fonte de lucro.
O fato que se deve ter em conta é que a designação montanha não é um rótulo, mas uma
forma de categorização de uma coisa, que, por força da função simbólica da
linguagem, à qual se relacionam a percepção, a cognição e a cultura, torna-se
‘dado’ de nossa consciência e assunto
de nossos discursos. As palavras criam conceitos, por meio dos quais
organizamos as nossas experiências de mundo.
Talvez, fosse válido
perguntar se o meio-ambiente faz sentido para um determinado animal. E, talvez,
pudéssemos admitir que o faz, no sentido de que o animal já nasce programado
geneticamente para todos os atos de sua existência. A relação entre o animal e
o mundo é governada pelo instinto. No
entanto, ainda que admitamos que haja uma ordem natural na realidade em que
vivem os animais, como leões, gorilas, chimpanzés, etc., decerto, falta ao
universo deles uma ordem racional e simbólica. Muitos filósofos advogaram que a
possibilidade de se pensar no real advém da racionalidade inerente ao real; em
outras palavras, não só o homem é racional, mas também a realidade. Mas a
faculdade da razão, na acepção de capacidade de elaborar conceitos, formar
juízos e estabelecer relações entre eles, apóia-se na faculdade da linguagem.
Reitero que o fato de
sermos seres racionais e linguísticos impõe-nos, no mínimo, a dúvida sobre a
existência de uma realidade autônoma, ou seja, independente de uma mente que a
pense e a compreenda. Não há pensamento conceitual sem linguagem. As palavras permitem, segundo Vygotsky, a
produção de sistemas conceituais que são constitutivos do pensamento. Vygotsky,
em A formação social da mente (2007:
10), nesse tocante, destaca:
“(...)
o momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual, que dá
origem às formas puramente humanas de inteligência prática e abstrata, acontece
quando a fala e a atividade prática, então duas linhas completamente
independentes de desenvolvimento, convergem” (ênfase do autor).
Vygostsky ensina que a
fala da criança torna-se tão mais importante quanto mais complexa é a ação
exigida pela situação. O psicólogo notou que, muitas crianças pequenas, uma vez
privadas, temporariamente, do uso da linguagem, em dada situação, são incapazes
de resolver um problema que lhes é dado. A fala, à semelhança dos olhos e das
mãos, tornam-se, na tenra idade infantil, um instrumento fundamental para a
realização de tarefas.
Agora, pode-se concluir
que não haveria esse meio de trocas, relações e atividades, a que damos o nome
de sociedade, sem linguagem.
2. O mundo como
construção do discurso
“O homem é um animal amarrado a teias
de significados que ele mesmo teceu”
(Clifford
Geertz)
As
estruturas de nossos conhecimentos e das instituições que lhes dão suporte não
é uma ordem natural. Essa ordem é, essencialmente, cognitiva e interativamente
semiotizada; é uma ordem histórica e sócio-interacional.
Em A construção do Mobiliário do Mundo e da
Mente, texto que se topa no livro Linguística
e Cognição (2005), Marcuschi apresenta-nos a questão que será desenvolvida
aqui. Essa questão
“(...)
[é] saber que estamos construindo modos de existência e referenciação e não
apenas comunicando fatos ontológicos. As coisas não estão no mundo da maneira
como as dizemos aos outros. A maneira como nós dizemos aos outros as coisas é
decorrência de nossa atuação intersubjetiva sobre o mundo e da inserção
sócio-cognitiva no mundo em que vivemos. O
mundo comunicado é sempre fruto de um agir intersubjetivo (não voluntarista)
diante da realidade externa e não de uma identificação de realidades discretas”
(p. 52, grifo meu).
Vou-me
esforçar por mostrar que o texto ou discurso não é um retrato do mundo, não
espelha o mundo. Uma vez aceitemos essa perspectiva, é o próprio estatuto da
verdade que sofre uma mudança sensível. A verdade não resulta de uma pura
correspondência entre a linguagem e mundo. O problema da verdade se desloca
para a natureza do dito e para a natureza do acesso ao mundo. A verdade não
pode mais ser encarada como uma questão de correspondência entre um enunciado e
o fato. Consoante nota Marcuschi,
“(...)
as coisas são não porque as pensamos, mas porque elas podem ser pensadas e o
seu modo de ser não é uma questão empírica e sim uma questão cognitiva (p.53)”.
A fim de
ilustrar o que muda em termos de estatuto da verdade, considerem-se os dois
enunciados abaixo:
(1)
Tiradentes foi um traidor.
(2)
Tiradentes foi um herói.
A questão
premente, quando consideramos (1) e (2), consiste em pergunta qual deles
encerra um valor de verdade. Em (1), Tiradentes é categorizado, por força da
ocorrência do verbo “ser”, como “um traidor”; em (2), como “um herói”. Vê-se
como é difícil decidir qual dos enunciados é verdadeiro, quando tomamos a noção
de verdade supondo que ela resulte de uma correspondência entre o dito e o
mundo. Como o próprio Marcuschi notará, trata-se de uma visão simplista de
verdade. Se assumirmos como pressuposto a definição de verdade como resultado
de correspondência entre o enunciado e o mundo, deparar-nos-emos com
embaraçosos problemas, à medida que nos aprofundamos na investigação do
universo discursivo. Quero dizer que, uma vez considerada a língua em uso, ou
seja, textos reais, a noção de verdade apoiada numa suposta objetividade não se
sustenta, pois que ela é resultado de uma visão ingênua sobre a relação entre
discurso e realidade. Marcuschi mostrará que a objetividade se funda na
intersubjetividade; portanto, a objetividade é construída no discurso, em
práticas intersubjetivas mediante o uso da língua e ela supõe, por isso, um
acordo entre os interactantes, já que o modo como classificam e ordenam o mundo
é parecido, em virtude de compartilharem um código cultural, bem como por
serem dotadas de um mesmo equipamento perceptual-cognitivo. Com Marcuschi,
cumpre notar:
“(...)
a objetividade tem sua fonte na intersubjetividade. As pessoas concordam
intersubjetivamente porque classificam e organizam o mundo de forma parecida
quando vivem na mesma cultura. Assim, o conhecimento objetivo, a verdade, a
categorização, etc. surgem como fruto de uma triangulação entre dois indivíduos
e o mundo sem a necessidade de uma relação direta da mente com o mundo e sim a
coerência de crenças na relação com o mundo (p.59).
O passo acima expressa, em linhas gerais, a perspectiva do filósofo
americano Donald Davidson. Com Davidson, devemos assumir que a verdade não
existe independentemente de nós. A verdade e o conhecimento são construções
discursivas, elaboradas na relação intersubjetiva, ainda que tomem como ponto
de intersecção o mundo empírico e mentes adequadamente equipadas para agir
intersubjetivamente; enfim, mentes que agem, no domínio intersubjetivo, com
base em princípios e regularidades que funcionam de modo similar.
A
linguagem não espelha o mundo. A língua é, sobretudo, uma forma de ação
interacional, social, cognitiva e situada (situada porque se realiza em
contextos sócio-culturais definidos). A produção das categorias é também uma
atividade sócio-cognitiva situada em contextos culturais. Nos exemplos (1) e
(2), anteriormente referidos, a tentativa de determinar a verdade com base numa
correspondência entre os enunciados e a realidade perde sua razão de ser. A
verdade passa a ser alvo de disputa, por força dos dois modos de categorizar o
referente “Tiradentes”. Essa disputa é sócio-historicamente determinada e
envolve dois ou mais sujeitos sociais inseridos em práticas discursivas. A
verdade passa, então, a depender desse domínio intersubjetivo fundante da
disputa e da própria objetividade. Não se trata mais de determinar qual dos
enunciados descreve ou reflete a verdade, pois a própria verdade está
intimamente ligada às esferas de poder. A busca da verdade se realiza pelo
exercício do poder (Foucault). Os enunciados (1) e (2) encerram categorizações
que expressam pontos de vistas conflitantes de, pelo menos, dois enunciadores
para os quais a verdade é objeto de disputa em práticas discursivas atravessadas
pelo exercício do poder.
Segundo
Marcuschi, é necessário, na busca pela exatidão na compreensão da natureza da
categorização, dispensar a noção de representação, assumindo-se que:
“(...)
as categorias constituem-se no processo intersubjetivo de pelo menos duas
mentes convergindo sobre a melhor forma de construir uma dada proposição diante
do mundo (...) a produção de categorias seria uma atividade sócio-cognitiva
situada em contextos específicos na tentativa de construir o conhecimento”
(p.65).
À luz
dessa perspectiva sócio-cognitiva-interacional, o mundo, enfatiza Marcuschi,
“não é um grande supermercado com gôndolas universais divinamente mobiliadas,
restando aos humanos nomearem esse mobiliário para uso coletivo (...) (p.67)”.
Parece-nos que essa é a visão do senso-comum: as pessoas, em geral, pensam o
mundo como esse “grande supermecado” cujos produtos já ordenados se apresentam
para simples rotulação dos homens. Também à luz daquela perspectiva, a
linguagem não é um instrumento transparente, preciso e claro que nos serve para
etiquetar de forma universalmente igual cada elemento desse suposto mobiliário.
Por conseguinte, enfatiza-se que não há
uma relação direta entre linguagem e mundo. O que há então? O que existe é
um trabalho social, um trabalho levado a efeito cooperativamente pelos sujeitos
sociais, os quais se servem de um sistema simbólico, cuja estrutura semântica
vai-se construindo em contextos sócio-culturais, para designar o mundo. O
estatuto do conhecimento, à semelhança do que sucedeu com a verdade, também se
altera, consoante observa Marcuschi:
“(...)
conhecer não é um ato de identificação de algo discreto existente no mundo e
mediado pela linguagem: conhecer é uma atividade sócio-cognitiva produzida na
atividade intersubjetiva (p. 69)”.
Quando
nos ocupamos com a investigação da relação entre discurso e mundo, que nos leva
a por em dúvida a visão ingênua, ontologicamente fundada, segundo a qual o
discurso espelha uma objetividade do mundo, isto é, que o mundo é tal como
dizemos que ele é, o domínio da atividade intersubjetiva se sobrepõe ao domínio
da objetividade. Esse domínio do intersubjetivo ganha relevo. A relação entre
discurso e mundo é uma relação construída; e para essa construção, concorrem a
percepção-cognição, as experiências culturais e a própria linguagem. Assim é
que conhecer um objeto como “cadeira”, “mesa” ou “bicicleta”, por exemplo, não
significa simplesmente identificar algo que está dado, tampouco é usar um
rótulo que lhe caiba, “mas é fazer uma experiência de reconhecimento com base
num conjunto de condições que foram estabilizadas numa dada cultura”
(Marcuschi, p. 69).
Há,
portanto, o mundo dos nossos discursos que não é um reflexo do mundo
extralinguístico. O mundo dos nossos discursos é sócio-cognitivamente construído,
e “a própria ordem de reflexão sob o ponto de vista de sua organização e
dependências lógicas é uma construção predominantemente discursiva” (ib.id.).
As
categorias são modelos sócio-culturais. Na vida ordinária, as pessoas designam
eventos, fatos, indivíduos, objetos físicos, estados de espírito, etc. com
nomes que são adotados pela comunidade em que vivem, visto que todas essas
pessoas aprenderam esses nomes nas experiências de vida em comum.
Adotando-se
uma visão interacionista no tratamento dispensado à questão da relação entre
discurso e mundo , são privilegiadas as relações sociais estabelecidas pelos
interactantes por meio dos recursos linguísticos. É por meio dos recursos
linguísticos que se elaboram versões
públicas do mundo (Marcuschi, p. 71), cuja adequação se estabelece por
negociação pública, ajustes, acordos, desacordos, etc. entre os interlocutores
e o discurso. Essa adequação não depende de uma presumida relação objetiva com
um mundo exterior, mas será sempre construída (p. 72).
A língua,
portanto, se nos apresenta como um domínio de possibilidades de trabalhar e
retrabalhar as versões públicas do mundo. São as atividades descritivas
realizadas pelos interactantes que importam, e não as representações. O que se
faz necessário observar é o que eles fazem e como agem para construir uma
versão de mundo pública num sistema de co-produção discursiva.
Finalmente,
não só o estatuto da verdade e do conhecimento se modifica, mas também o
estatuto do sujeito, consoante pondera Marcuschi:
“O
sujeito não é apenas enunciativo e sim também social e nesta ação social
situada, ele instaura e diz o mundo. Com isto as descrições são reflexivas
(elaboram as circunstâncias de sua aparição na mesma medida em que elas se
ajustam), indexicais (repousam no contexto em que elas são fabricadas e
situadas (invocadas e fabricadas para fins práticos). Portanto, segundo
Mondada, “a indeterminação da descrição é indispensável para o seu
funcionamento em contexto” (p.135).
Evoca-se aqui, em favor da tese da construção
discursiva de versões públicas do mundo, o testemunho de Silva, em seu Linguagem e verdade: jornalismo,
linguagem e realidade (2006):
“(...)
para se chegar ao mundo/ real a única possibilidade é sendo através da
linguagem. Não se nega o mundo objetivo, apenas se afirma que este mundo
objetivo é um mundo organizado e estruturado pela linguagem. Olham-se e
distinguem-se os objetos como são percebidos e categorizados pela linguagem (p.
32)”.
Não se segue do excerto citado que o mundo
extra-mental seja uma projeção do usuário da língua. Pensar assim seria
incorrer numa forma de idealismo imaterialista dificilmente sustentável no
estado atual do conhecimento nas ciências e filosofias da mente/cérebro. A
título de curiosidade, endossando uma perspectiva cujo exame escapa à alçada
deste estudo, o eminente físico Stepnhen Hawking, em seu intrigante livro O grande projeto: novas respostas para
questões definitivas da vida (2011), esposará e defenderá a tese
segundo a qual a própria realidade percebida é dependente de um quadro ou
teoria. Ele argumenta que nossa percepção não é direta; nosso cérebro produz um
modelo mental. Assim, afirma Hawking, se dizemos que “vejo uma cadeira”, o que
está acontecendo é que nosso cérebro está usando a luz refletida pela cadeira para
construir uma imagem ou modelo da cadeira. Com bom humor, nota Hawking que “se
o modelo for virado de cabeça para baixo, com sorte o cérebro corrigirá antes
que a pessoa tente se sentar nela” (p.35).
Creio ser elucidativo o seguinte trecho de
Hawkings com o qual ponho termo a esta seção:
“Fazemos
modelos não só em ciência mas também na vida quotidiana. O realismo dependente
do modelo aplica-se tanto ao conhecimento científico quanto aos modelos
conscientes e subconscientes que criamos para interpretar e compreender o mundo
do dia a dia. Não há como remover o observador – nós – de nossa percepção do
mundo, que é criada pelo nosso processamento sensorial e pelo modo como
pensamos e raciocinamos. Nossa percepção – e, portanto, as observações nas
quais se baseiam nossas teorias – não é direta, mas antes moldada por uma
espécie de lente, a estrutura interpretativa do cérebro humano (p. 34).
O que Hawking nos faz entender, à luz de outro
quadro teórico, é o que temos nos esforçado por mostrar: não há acesso imediato
ao mundo, assim como a alegada objetividade do mundo é produto de práticas
discursivas, em contextos sócio-culturais determinados, nas quais intervém,
evidentemente, a atividade de percepção-cognição humana que produz
interativamente modelos de mundo. Trata-se, na verdade, de reconhecer que o
real não se apresenta pronto; nós não o acessamos diretamente. O que chamamos
de realidade é uma construção sociocognitiva e interacional dependente da
cultura e da linguagem.
3. Categorização e referenciação: a construção
dos objetos de discurso
Doravante, vou-me deter a abordar duas questões
fulcrais, cujo entendimento contribuirá para alicerçar um trabalho de leitura à
luz do qual o fenômeno da referenciação não seja reduzido a
mero mapeamento, no texto, de referentes concebidos como objetos do mundo
objetivo ou extralinguístico.
Nesta seção, discorrerei sobre o que nos ensina
Mondada & Dubois, em seu artigo Construção
dos objetos de discurso e categorização, que se acha no livro Referenciação: clássicos da linguística
(2003). Antes de me lançar a essa tarefa, gostaria de referir e comentar,
brevemente, dois trechos que avivam a compreensão do fenômeno sui generis que é a linguagem. O
primeiro fragmento é de Heidegger; o segundo é do linguista dinamarquês
Hjelmslev.
“O homem – escreve Heidegger –
fala sempre. Nós falamos na vigília e no sono. Falamos sempre. Mesmo quando não
proferimos palavra, mas escutamos ou lemos, dedicamo-nos a um trabalho ou nos
perdemos no ócio. De um ou outro modo, falamos ininterruptamente. Falamos
porque o falar nos é conatural. O falar não brota de um ato de vontade. Diz-se
que o homem é por natureza falante, e é ponto pacífico que, diversamente da
planta e do animal, o homem é o ser vivo capaz da palavra. Com isto não se quer
unicamente afirmar que o homem possui, além de outras capacidades, também a de
falar. Quer-se dizer que é a linguagem que torna o homem o ser vivo que ele é
enquanto homem”.
(Heidegger, 1973 apud.
Mondin, 2009, p. 40).
Heidegger
nos lembra o que nos torna tão profundamente distintos dos animais não-humanos:
a capacidade da linguagem. Essa
capacidade não deve ser reunida simplesmente a outras tantas capacidades de que
somos dotados; essa capacidade – a capacidade da linguagem – define o que
somos, nos humaniza, faz de nós seres humanos. O homem é, essencialmente, homo loquens (ser de discurso, de fala).
“A linguagem (...) é uma
inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e
segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o
homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua
vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é
influenciado, a base última e mais
profunda da sociedade humana. Mas é também o recurso último e indispensável
do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta com a
existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação
do pensador. Antes mesmo do primeiro
despertar de nossa consciência, as palavras já ressoavam a nossa volta, prontas
para envolver os primeiros germes frágeis do pensamento e a nos acompanhar
inseparavelmente através da vida, desde as mais humildes ocupações do cotidiano
até os momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias
retira, graças às lembranças encarnadas pela linguagem, força e calor. A linguagem não é um simples acompanhante,
mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento; para o
indivíduo, é o tesouro da memória, e a consciência vigilante transmitida de pai
para filho. Para o bem e para o mal, (...) é a marca da personalidade, da terra
natal e da nação, o título de nobreza da humanidade. O desenvolvimento da
linguagem está inextricavelmente ligado ao da personalidade de cada indivíduo,
da terra natal, da nação, da humanidade, da própria vida, que é possível
indagar se ela não passa de um simples reflexo ou se ela não é tudo isso: a própria fonte do
desenvolvimento dessas coisas” (Hjelmslev, 1978, p. 179, grifos meus).
Num estilo que se aproxima muito do poético,
Hjelmslev, a despeito de usar a forma “instrumento” para designar a linguagem
(pelo menos, foi a forma usada pelo tradutor), reforça a profundidade dessa
conaturalidade da linguagem, a que se referiu Heidegger. De modo particular,
lembra-nos que, sem a linguagem, não haveria estruturas comunitárias complexas
que chamamos de sociedade, pois que ela é “a base última e mais profunda da
sociedade humana”.
Passemos, agora, a considerar o já referido texto
de Mondada & Dubois. Inicialmente, convém atentar para o seguinte passo, em
que as autoras nos chamam a atenção para a instabilidade das categorias nas
práticas discursivas:
“As
categorias não são nem evidentes nem dadas de uma vez por todas. Elas são mais
o resultado de reificações práticas e históricas de processos complexos,
compreendendo discussões, controvérsias, desacordos. As ciências naturais são,
assim, um lugar privilegiado onde se pode observar a dinâmica da categorização
e da recategorização e suas evoluções linguísticas e cognitivas. Mais
geralmente, a instabilidade caracteriza o modo normal e rotineiro de entender,
descrever, compreender o mundo – e lançar, assim, a desconfiança sobre toda
descrição única, universal e atemporal do mundo” (p.28).
Previnamo-nos contra a crença de que as
categorias não sejam objetos de disputas. As categorias são produzidas e
disputadas nas práticas discursivas. Elas são, essencialmente, instáveis, e sua
instabilidade funda-se no uso que delas fazemos, dado que elas estão sempre
situadas em práticas, as quais, por sua vez, dependem tanto de processos de
enunciação como de atividades cognitivas nem sempre verbalizadas. A
instabilidade das categorias se deve ao fato de elas se situarem em práticas do
sujeito ou de interações em que os interlocutores “negociam uma versão
provisória, contextual, coordenada do mundo” (p.29).
Necessário se faz uma digressão, para esclarecer
o que se está entendendo por categorização.
Em Ferrari (2011), a categorização é
o processo pelo qual inserimos em grupos entidades que compartilham entre si
certo número de traços. Na linguagem, o processo de categorização é essencial.
O mundo do qual falamos, ao usar a língua, é um mundo cujos elementos, as
atividades, as qualidades são agrupadas em classes específicas. Novamente,
cumpre reiterar – e Mondada & Dubois estão de acordo – que não há uma
relação especular entre linguagem e mundo, mas uma relação, necessariamente,
mediada pela arquitetura cognitiva dos falantes, tendo em conta características
e restrições dela (Ferrari, p. 32).
A categorização é sensível ao contexto
sociocognitivo. Os falantes não apenas constroem mentalmente a realidade física
exterior, mas também os estados mentais de conhecimento, crenças e intenção de
seus interlocutores.
Segundo Mondada & Dubois, é no cerne das
atividades discursivas que a instabilidade se deixa ver em todos os níveis de
estruturação da língua. A instabilidade se depreende tanto das construções
sintáticas quanto da construção de objetos
de discurso. Essa instabilidade é especialmente observável nas práticas
orais de uso da língua, embora também se deixe notar nos textos escritos.
Vejamos um exemplo colhido do seriado de televisão Os Normais. Na cena, Vani está no restaurante e o garçom lhe traz a
água que ela pediu. Notemos como ela negocia com o garçom a maneira adequada de
categorizar o objeto-de-discurso “água sem gás”.
- Licença, duas águas sem gás.
- Eu pedi água com gás.
- É....a senhora falou sem gás.
- Com gás. Ninguém pede água
sem gás. Quando a pessoa quer água sem gás, ela fala simplesmente água.
- Mas foi o que a senhora pediu, água.
- Água com gás. Eu pedi água
com gás. Que sem gás vocês enchem na pia.
- A senhora que água da pia?
- Eu quero água com gás.
Compreendeu... com...com...gás c-o-m, com ok?
Na situação
de interação reconstruída, a personagem Vani solicita ao garçom uma garrafa de
água com gás. O garçom, no entanto, traz-lhe uma garrafa de água sem gás. Na
tentativa de convencer o garçom de que ele se equivocou, Vani busca negociar a
melhor maneira de categorizar o objeto-de-discurso “água sem gás”. A certa
altura, ela diz “quando a pessoa quer água sem gás, ela fala simplesmente
água”. Para Vani, portanto, “água sem gás” deve
ser categorizado como “água”. São duas expressões sinonímicas, segundo seu
ponto de vista. O que está em jogo é uma disputa pela extensão do significado
da palavra “água” e, por conseguinte, pelo modo mais adequado de categorizar o
objeto de discurso “água sem gás”. Um olhar mais apurado dessa cena discursiva
leva-nos a entender que é o próprio contrato comunicativo que se busca
negociar, pois que se busca ajustar dois contextos sociocognitivos: o de Vani,
que inclui a crença de que “água” e “água sem gás” são expressões equivalentes
e sinonímicas; e o do garçom, que parece resistir a aceitar tal equivalência.
Novamente, os interlocutores negociam significados, colocam em disputa duas
maneiras de categorizar um objeto-de-discurso. Trata-se de um exemplo
emblemático da concepção de discurso como lugar de disputa, de conflito. Tome-se
mais um exemplo de Os Normais. Nesta
passagem, Rui estava contando uma piada, quando Vani telefona para ele.
- Ô Vani agora não posso porque
tou num gancho de uma piada.
- Tá onde?
- É...tô no gancho. É a
parte da piada que puxa pro final.
Depois eu ligo. Aí...ó o cara pergunta e a notícia boa. Aí o médico responde. Tá vendo aquela enfermeira ali. To
traçando ela...quer dizer a noticia boa não era nem pro cara, era pro pro...A
Internet tem uma coisa sensacional o cara mandou uma notícia agora e daqui a 5
segundos o mundo inteiro já sabe. Vou ver se tem mais uma aqui.
- O Rui desligou na minha cara.
- Por quê?
- Porque disse que tava num
gancho de uma piada
- Aonde?
- Ai, gancho. Aquele pedaço da
piada que puxa final engraçado.
Na cena, Rui introduz um objeto-de-discurso –
“num gancho de uma piada” – cujo significado Vani não compreende. Rui faz uma
categorização cuja compreensão depende de experiências prévias e subjetivas
(rotinas) com o “contar piada”. Trata-se de um conhecimento bem específico que
Rui detinha e que não fazia parte do background
de Vani. Rui poderia selecionar outra forma de categorização mais
compreensível, por exemplo, “clímax da piada (?)”; mas decidiu por enunciar a
definição do referente “num gancho de uma piada”. A construção dos
objetos-de-discurso é sempre cooperativa. No diálogo subsequente de Vani com
uma amiga, Vani também se vê em face da necessidade de definir o
objeto-de-discurso “num gancho de uma piada”, quando sua amiga lhe evidencia
não ter entendido o seu significado.
Nas duas reconstruções de uma situação de fala,
tanto o referente “água” quanto o referente “num gancho de uma piada” não devem
ser vistos como objetos do mundo exterior, mas como objetos do mundo
discursivo, objetos que se constroem discursivamente; que existem, se mantêm,
se modificam no discurso.
Segundo as autoras, a construção da sintaxe do
discurso na modalidade oral é marcada por hesitações, interrupções da
linearidade sintagmática, mudanças e rupturas do tratamento sintático em tempo real.
Esses fenômenos indicam que o locutor está operando processos de planificação
de escolhas paradigmáticas ou de buscas lexicais.
“(...)
hesitando sobre um lexema, o locutor ativa e produz uma lista de lexemas, que
podem estar ligados por uma relação de coordenação adicional ou podem
constituir uma série de candidatos mutuamente exclusivos, um estando mais
apropriado que outro (...) (p. 29)”.
É ponto pacífico a ideia de que a língua funciona
pela intersecção entre os planos paradigmático e sintagmático. Ao usar a
língua, o falante, de modo quase inconsciente, opera escolhas paradigmáticas e
as realiza sintagmaticamente à medida que vai produzindo seus textos. Nesse
processo de seleção-produção, sucedem, com frequência, hesitações, lapsos,
correções, ajustes, sempre tendo em vista a satisfação das necessidades
sociocomunicativas. Ora, quem fala ou escreve quer fazer-se entender e, no
momento mesmo em que vai construindo seu texto, vai fazendo escolhas que mais
adequadamente servirão para realizar seus objetivos. Esse processo não se dá
sem algum custo linguístico-cognitivo e pragmático. Sucede, com frequência, que
o falante hesite entre uma forma e outra, que faça ajustes on line em seu texto, que o interrompa num certo ponto para
fornecer esclarecimento sobre passagens anteriores, etc.
A fim de ilustrar o fato de que as categorizações
são processos discursivos e supõe sempre negociação de objetos-de-discurso,
considerem-se o diálogo abaixo:
A – Paulo, aquele seu colega simpático, te
ligou.
B – Colega, não. Paulo é meu amigo.
Considerando-se a contribuição do falante A,
notemos que ele introduz um objeto-de-discurso que, sintaticamente, constitui
uma construção encabeçada por um pronome demonstrativo recognitivo ou dêitico
memorial. Isso quer dizer que sua interpretação referencial pressupõe o acesso
a um tipo de conhecimento experiencial e socialmente compartilhado. O falante A
pressupõe que o referente possa ser recuperado pelo interlocutor B em sua
memória de longo prazo. Ambos compartilham o conhecimento sobre a identidade
desse referente “Paulo”. Uma vez recuperado pelo interlocutor B em sua memória,
o referente fica ativo. Isso permite que ele o recategorize como “meu amigo”.
Chamo atenção para o fenômeno da negociação que está na base do processo de
referenciação; certamente e por extensão, do uso da linguagem. No turno de A, o
referente “Paulo” é categorizado como “colega (simpático)”; mas o falante B,
não aceitando a categorização feita, recategoriza o referente como “meu amigo”.
Ele o faz com base em representações coletivas correntes em sua sociedade,
representações que orientam o uso que fazemos das palavras e se fazem sentir na
dinâmica da negociação dos significados. O falante B sabe que, em sua
sociedade, chamar alguém de colega é diferente de chamá-lo de amigo. Colega
carece dos traços ‘intimidade’ e ‘familiaridade’ que caracterizam o significado
de “amigo” (sendo essa caracterização determinada culturalmente). É por isso
que é errôneo dizer que “colega” e “amigo” são sinônimos. O uso fixa-lhes
domínios de significação diferentes. Usamos o termo “colega” para nos referir a
uma pessoa que trabalha conosco, com quem mantemos uma relação estritamente
profissional e cordial, mas que não chega a constituir um laço de afetividade.
O colega, ao contrário do amigo, não tem (muito) acesso à esfera de nossa vida
privada. A canção diz que “amigo é coisa pra se guardar no lado esquerdo do
peito”; o amigo é aquele a quem estimamos, a quem temos em grande consideração.
É necessário, pois, esclarecer o que são objetos-de-discurso. Os
objetos-de-discurso são as entidades que se constituem em termos das
predicações (Neves, 2006). Trata-se de entidades provenientes de uma construção
mental, e não de um mundo real independente do discurso. Os objetos-de-discurso,
consoante ensinam Mondada & Dubois, se constroem passo a passo. Eles não
estão disponíveis como categoria única e pronta para ser empregada, o que
significa dizer que, no processo discursivo, eles vão adquirindo propriedades
em diferentes etapas de seu uso. Uma vez admitindo-se que os
objetos-de-discurso estão submetidos a um processo de construção, de reconstrução,
de modificação, de extensão contínuo, a referenciação, para ser adequada,
precisa assumir a forma de um processo de construção de um caminho em que
diferentes denominações aproximadas se vão ligando umas as outras, sem que
nenhuma delas se exclua a cada escolha feita (Mondada & Dubois, p. 30).
A referenciação
não deve, pois, ser vista como um processo de cartografia entre palavras, que
são tomadas como etiquetas, e entidades “reais” do mundo; ela é um processo que
permite explorar as restrições e as potencialidades linguísticas para desenhar
uma representação cognitiva socialmente compartilhada da realidade. Por
conseguinte, segundo as autoras,
“Os
locutores marcam, eles mesmos, os deslizes entre referencialidade e negociação
intersubjetiva dos processos de referenciação, pelos comentários
metalinguísticos que pontuam seu discurso, reconhecendo, por exemplo, os
conflitos entre várias descrições autorizadas pelos diferentes locutores (p.32)”.
Quando nos detemos a investigar o funcionamento
da referenciação, se nossa preocupação é buscar entendê-la como fenômeno
discursivo responsável pela construção e negociação de modelos públicos do
mundo, segue-se que devemos considerar que ela se desenvolve na base de um
conflito entre diferentes convenções e diferentes interpretações. Nesse
processo, necessariamente conflitual, uma categoria lexical impõe um ponto de
vista, um domínio semântico de referência (como vimos nos exemplos anteriores
de Os normais e do diálogo referente a “Paulo”), que concorre com outras
categorias sugeridas e produz sentido a partir do contraste com as precedentes.
Mondada & Dubois são categóricas ao sustentar
que o discurso aponta explicitamente para a não-correspondência entre as
palavras e as coisas. A referenciação emerge da manifestação desta distância,
da demonstração da inadequação das categorias lexicais disponíveis, de sorte
que a melhor adequação vai sendo construída mediante sua transformação
discursiva. Nesse trecho que acabo de encerrar com um “ponto”, dou-me conta – e
espero que o leitor também seja capaz disto – dessa busca pela melhor adequação
das categorizações construídas. Dou-me conta, enfim, da dinâmica da referenciação.
Notemos que escrevi, anteriormente, “emerge da manifestação desta distância,
da demonstração da inadequação...”. Num primeiro momento, usei
“manifestação desta distância”; posteriormente, sempre tendo em vista uma
categorização mais precisa e adequada, usei “demonstração da inadequação das
categorias lexicais”. A cada lance de linguagem, o objeto-de-discurso se
modificou, sem que as cadeias referenciais tenham sido rompidas. No primeiro
momento, “manifestação desta distância” refere-se ao aparecimento da distância
entre as palavras e as coisas; no segundo momento, trata-se de fazer ver a
referenciação como fenômeno que surge do fato de que a inadequação das
categorias lexicais na tentativa de construir um modelo de mundo o mais fiel e
adequado possível ao contexto construído é inerente ao processo de
referenciação.
As tentativas de adequação das categorias
lexicais, ou seja, as tentativas de ajustamento das palavras não se dão em
relação ao referente no mundo, mas no quadro contextual, tendo em vista a
construção do objeto-de-discurso no curso do próprio processo de referenciação.
Segue-se então a proposta de Mondada & Dubois:
“Não
se pode mais, a partir de agora, considerar nem que a palavra ou a categoria
adequada é decidida a priori “no
mundo”, anteriormente a sua enunciação, nem
que o locutor é um locutor ideal que está simplesmente tentando buscar a
palavra adequada dentro de um estoque lexical. Ao contrário, o processo de
produção das sequências de descritores em tempo real ajusta constantemente as
seleções lexicais a um mundo contínuo, que não preexiste como tal, mas cujos
objetos emergem enquanto entidades discretas ao longo do tempo da enunciação em
que fazem a referência. O ato da enunciação representa o contexto e as
versões intersubjetivas do mundo adequadas a este contexto” (p. 34, grifo meu).
Mesmo a atividade cognitiva individual, no nível
psicológico, não verbalizada, segundo as autoras, é uma atividade constante de
categorização e não uma simples identificação de objetos preexistentes. A
categorização cognitiva tem seu locus
de desenvolvimento no discurso; por conseguinte, ela depende de um tratamento
não-exaustivo e sempre seletivo do mundo – tratamento cujas finalidades são
transformadas (ib.id.).
Quando consideramos a categorização do mundo, em
seu nível elementar, os objetos não são determinados segundo as propriedades
intrínsecas do mundo, mas são construídos por meio de processos cognitivos que
se dão nas trocas entre sujeitos. Esses processos cognitivos se aplicam ao
mundo concebido como fluxo contínuo de estímulos. Assim, o reconhecimento do
objeto, mesmo à luz de sua compreensão elementar, não pode ser considerado como
resultado da apreensão de propriedades de um mundo já discretizado, mas como
resultado da construção de categorias flexíveis e instáveis, que se realiza por
meio de processos de categorização responsáveis por produzir categorias
potencialmente memorizadas e lexicalizadas (Mondada & Dubois, p. 35).
As instabilidades da referenciação não são,
portanto, acidentais, tampouco expressão de simples variações individuais que
poderiam ser corrigidas e estabilizadas por uma aprendizagem convencional de
“valores de verdade”. Essas instabilidades são inerentes à dimensão
constitutivamente intersubjetva das atividades cognitivas.
Reforcem-se, então, alguns pontos:
a) A referenciação é um processo de construção
colaborativa de objetos de discurso (Mondada& Dubois, p. 35);
b) Os objetos-de-discurso existem
discursivamente, emergem de práticas linguísticas e intersubjetivas. Eles se
enriquecem, são alimentados e construídos cooperativamente pelos locutores;
c) Os objetos-de-discurso são sensíveis à
variação contextual (p.37).
Na conversação, a vagueza referencial é um
fenômeno bastante comum, conforme pontuam as autoras.
“(...)
a indicialidade da linguagem e do discurso quebra a ilusão de dar uma descrição
única e estável do mundo e sublinha sua necessária dependência contextual. No
lugar de ser atribuível a uma falta de eficácia do sistema linguístico e
cognitivo, esta dimensão manifesta sua capacidade de tratar a variabilidade das
situações através de uma categorização adaptativa (p.40)”.
Acrescente-se ainda que as descrições são
impregnadas de incompletude, fato este que explica ser sua produção
extremamente dependente do trabalho de interpretação, mediante o qual o locutor
as completa e as ajusta ao contexto. As categorias são flexíveis e, portanto,
sempre passíveis de modificações.
Não se trata de dizer que as descrições são
caóticas, porquanto os sujeitos são dotados de estruturas cognitivas que lhes
permitem dar ordem e estabilidade ao mundo; elas não são caóticas também porque
os sujeitos dispõem de procedimentos sistemáticos para organizar a
co-construção dos objetos-de-discurso (ib.id.).
Assumir a instabilidade das categorias significa
reconhecer que elas repousam
“sobre processos complexos,
que operam a um nível psicológico, discursivo, linguístico, advindas de
competências sociais, de pontos de vista, de atividades situadas e de práticas
intersubjetivas e não de propriedades incertas do mundo” (p.41).
O reconhecimento da instabilidade das categorias
suprime a possibilidade de estabilização delas? Segundo Mondada & Dubois,
não, a estabilização é possível, especialmente quando consideramos o papel da
escrita e revisitamos a noção de protótipos.
3.1. A estabilização das categorias: a
noção de protótipos e o papel da escrita
Os protótipos
são construções dinâmicas que resultam de julgamentos sobre o grau de
prototipicidade (Rosch, 1978). No quadro da teoria das categorias como
protótipos, o sistema cognitivo é visto como constructos de invariantes
psicológicas, as quais estabilizariam as interpretações que o homem faz do
mundo. Essas invariantes seriam os próprios protótipos.
E o que são os protótipos? São os membros da
categoria que mais refletem a totalidade da categoria. São os membros que
representam os tipos por excelência da categoria. Assim, os protótipos seriam
aquilo que se abstrai das construções psicológicas e individuais. Por exemplo,
para a categoria [AVE], “canário” é o membro prototípico num continuum em que
“galinha” é o menos prototípico. Grosso modo, quer-se dizer que quando pensamos
em [AVE] pensamos em “canário” como o exemplo mais típico dessa categoria do
que “galinha”. Num enunciado como “A ave pousou na janela”, para efeito de
encadeamento, o candidato esperado é “canário” e não “galinha”. Rosch nota que
a lexicalização contribui para a estabilização posterior do protótipo.
3.1.2. A
visão de Rosch e a crítica de Mondada & Dubois
Cuido necessário dar a conhecer, sem pretender à
exaustão, a visão de Rosch sobre o processo de categorização. Posteriormente,
explicito a crítica feita por Mondada & Dubois à posição de Rosch.
Segundo Rosch, os nomes, tomados como rótulos,
são protótipos e contribuem para a estabilização dos protótipos no curso de
diferentes processos. Em primeiro lugar, os protótipos correspondem às unidades
discretas da língua, as quais tornam possível descontextualizá-las de acordo
com os paradigmas disponíveis na língua. Essas unidades garantem a invariância
dos paradigmas em diferentes contextos. O que se dá, em seguida, é que, ao
receber um nome, o protótipo, passa a ser compartilhado por muitos indivíduos
nas interações linguísticas, o que lhe garante o estatuto de objeto socialmente
distribuído, estabilizado no interior de um grupo social. Esse protótipo atinge
um grau de desenvolvimento de estabilização, tornando-se, assim, uma
representação coletiva chamada estereótipo.
Mondada & Dubois argumentam que a análise de
Rosch se assenta numa concepção reducionista de língua como uma nomenclatura, e
a denominação se reduz a uma mera cartografia direta dos nomes, tomados como
rótulos para as coisas (mesmo quando elas assumem o estatuto de entidades
mentais por meio de protótipos).
Além disso, se é verdade que são produtivos os
processos de transformação de protótipos para estereótipos, segundo reza Rosch,
segue-se daí a necessidade de levar em conta a passagem de um nível
estritamente subjetivo para um nível intersubjetivo. Mondada & Dubois
ponderam o seguinte:
“Numerosos
linguistas já observaram que as unidades lexicais estabilizam convencionalmente
os significados das palavras numa comunidade linguística (...)” (p. 43).
À luz do quadro teórico da Linguística Cognitiva
contemporânea,
“a
evolução dos protótipos e das significações das palavras para estereótipos não
se baseia mais em propriedades realistas ou de valores de verdade, mas na
codificação social dos modos de falar e de representar o mundo (...)” (ib.id.).
De acordo com essa perspectiva, a anáfora passa a
ser vista como um fenômeno de referentes evolutivos. A anáfora consiste no modo
de estabilizar ou de focalizar uma denominação particular, excluindo outras
possibilidades, ainda que elas estejam potencialmente disponíveis no texto.
No que toca à função de estabilização categorial
da escrita, nota Gody (1997, apud.
Mondada & Dubois, 2003), a escrita “domestica o espírito”, muda
radicalmente os modos pelos quais é possível compreender e pensar o mundo.
A escrita permite dispor e fixar, no domínio das
relações espaciais, o fluxo temporal das palavras do discurso oral. Ademais, a
escrita permite novas formas de cálculo. Ela permite também estocar, memorizar,
reencontrar os dados a serem manipulados cognitivamente e organizá-los numa
estrutura sinóptica.
3.2. Visão
sinótica
1) Os processos de referenciação, contemplados
numa abordagem sociocognitivo-interacionista, são processos de construção de
objetos-de-discurso e de negociação de modelos públicos de mundo;
2) A referenciação é produzida por sistemas
cognitivos de sujeitos social e culturalmente situados, que atuam em
cooperação, em práticas discursivas nas quais se produzem versões públicas do
mundo;
3) As categorias e os objetos-de-discurso através
dos quais os sujeitos sociais compreendem o mundo não são nem preexistentes às
atividades discursivas em que eles estão engajados, nem são dados, mas se
elaboram no curso dessas atividades e se transformam de acordo com os
contextos. Subjacente a essa perspectiva, está a tese de que as categorias e os
objetos-de-discurso são marcados por uma instabilidade constitutiva, que se
deixa ver através de operações cognitivas ancoradas nas práticas, discursivas
ou não, verbais ou não-verbais e nas negociações desenvolvidas no âmbito da interação.
4. Duas
línguas e duas visões de mundo
No seu A
língua do Brasil amanhã e outros mistérios (2004), o linguista Mário A.
Perini também se ocupará da desconstrução do que considera nossa “teoria
ingênua” da relação entre a língua e a realidade. Nas palavras do linguista,
“A
ideia de que a diferença entre as línguas se resume em maneiras distintas de se
referir aos objetos do mundo natural pode ser chamada a “teoria ingênua” da
relação entre língua e realidade. E, como a maior parte das teorias ingênuas, é
ao mesmo tempo simples, evidente e incorreta (p. 43)”.
Segundo Perini, “cada língua é expressão de uma
concepção de mundo (...) cada língua reflete uma maneira própria de categorizar
as entidades que compõem o mundo” (ib.id.). Vejamos alguns exemplos.
Em inglês, o limão amarelo se diz lemon, e o limão verde se diz lime. É claro que nós, falantes nativos
de português, percebemos a diferença cromática entre os limões, mas essa
diferença é codificada de modo diferente em português. No inglês, a codificação
é lexical, de modo que se categorizam duas entidades distintas. Em português, a
codificação se faz no nível da construção sintática, em que se atualiza uma
estrutura de modificação com a adjunção do adjetivo ao substantivo núcleo
(SUBST. + ADJ.) Em inglês, a codificação se realiza por designação; em
português, por modificação, isto é, a um substantivo é acrescido um adjetivo
que o caracteriza. Para nós, o limão verde e o limão amarelo é a
mesma fruta; para os falantes de inglês, são frutas distintas.
Considere-se o arco-íris. Para nós, o arco-íris
se divide em seis cores: roxo, azul, verde, laranja, amarelo e vermelho. Há, no
português, recursos para expressar uma gama variada de cores e matizes. Por
exemplo, azul-marinho, azul-claro, azul-escuro. Mas, nesse caso, expressa-se
uma tonalidade da cor azul, que é a cor primária, para nós.
Somos levados espontaneamente a crer em que
aquelas seis cores são dadas pela natureza; afinal, nós as percebemos, e a
língua portuguesa nada tem a ver com isso. No entanto, adverte Perini,
“Ledo
engano: as línguas segmentam o espectro solar cada uma à sua maneira, e seus
falantes juram que essa é que é a segmentação certa” (p.43).
Ocorre que, em russo, o azul se divide em duas
cores básicas: sinny designa azul-escuro; e goluboy, azul-claro. Para
os russos, portanto, o espectro solar tem sete cores, e não seis. Novamente,
tanto os russos como nós percebemos claramente a diferença entre azul-claro e
azul-escuro; mas categorizamos linguisticamente essa diferença segundo os
padrões determinados em nossa língua: os russos categorizam duas cores; nós,
apenas uma.
A sintaxe também fornece exemplos interessantes.
Os tempos do passado em português e em inglês não se correspondem. Assim, se
quisermos traduzir para o inglês “eu trabalhava”, teremos de usar “I worked”.
Acontece que “I worked” também traduz “eu trabalhei”. Como o inglês não
contempla a distinção que o português faz ‘trabalhei/trabalhava’, falantes
nativos de inglês que estão começando a aprender a falar português lidam com
dificuldades inevitáveis (embora não insolúveis).
No inglês, a forma “I have worked” pode ser
traduzida para o português como “Eu trabalhei”. Assim, “I have worked in this
school” se traduz como “Eu trabalhei nesta escola”. O português não autoriza,
em muitos casos, o emprego do pretérito perfeito composto (PPC) desacompanhado
de um adverbial aspectual de duração. Uma frase como “Eu tenho fumado dois
cigarros” não é aceitável em português, já que lhe falta um adverbial de
duração ou de iteração (cf. Eu tenho fumado dois cigarros por dia
(iteração)). Uma frase como “I have travelled to London tree times” é traduzida
em português como “Eu viajei para Londres três vezes”. A forma “*Eu tenho
viajado para Londres três vezes” não é aceitável em português. Nesse caso, o
adverbial expressa quantidade definida, condição esta incompatível com o uso do
PPC.
Todos esses exemplos patenteiam que a língua está
estritamente relacionada a uma maneira de ver o mundo. Segundo Perini, “cada
língua ilustra uma das infinitas maneiras que o homem pode encontrar de
entender a realidade” (p.52). Cada língua natural “recorta” o real de modo
diferente e específico. Com Perini, devemos reconhecer que
“Falar
uma língua é ver o mundo de certa maneira, e falar três línguas é, até certo
ponto, ter a capacidade de ver o mundo de três maneiras diferentes” (ib.id.).
A hipótese de Sapir-Whorf ficou conhecida por
suas duas versões: uma mais forte que não resistiu a experimentos ulteriores,
sendo, portanto, rejeitada; e outra mais fraca, ainda válida. A versão mais
forte da teoria sustenta que a linguagem determina o pensamento, de modo que só
podemos ver, ouvir e experimentar com base nas categorias e distinções
codificadas na linguagem. Essa é a tese do determinismo linguístico prevista
pela hipótese. A outra tese é a do relativismo linguístico, segundo a qual as
categorias e distinções codificadas num sistema linguístico são exclusivos
desse sistema e incomparáveis aos de outros sistemas linguísticos.
A versão mais fraca da hipótese prevê que a
estrutura da língua de uma comunidade influencia a percepção e a memória. Em Linguagem e Linguística (1987),
John Lyons dá-nos a saber o seguinte caso:
“(...)
falantes monolíngues de zuni, uma língua indígena americana, que não codifica a
diferença entre laranja e amarelo, tinham mais dificuldade do que falantes
monolíngues de inglês ou do que falantes de zuni que também sabiam inglês de
tornar a identificar, depois de certo tempo, objetos de uma cor que era
imediatamente codificável em inglês, mas não em zuni. Entretanto, o efeito não
era tal que os falantes de zuni fossem incapazes de perceber a diferença entre
um objeto amarelo e um objeto laranja, se se pedisse que os comparassem” (p.
227).
Após esta longa discussão, ao longo da qual foram
lançados os alicerces para um trabalho com a leitura que, tomado como escopo de
preocupação o fenômeno da referenciação, rejeite, desde o início, a concepção
ingênua e largamente endossada, quer pelos não-especialistas, quer por
professores de português atuantes no ensino básico, segundo a qual os textos
que produzimos e que lemos fornecem um retrato do mundo, permitem-nos o acesso
a um mundo real ou objetivo, concepção esta a que se atrela a crença de que há
textos objetivos que tornam acessível uma verdade objetiva, passo, agora, a
apresentar, a dilucidar e a sistematizar os pressupostos e conceitos que me
parecem relevantes para a fomentação de um ensino de leitura que tenha em mira,
fundamentalmente, a emancipação intelectual e humana dos aprendizes.
Considerem-se, inicialmente, alguns pressupostos,
que serão apresentados, à luz da visão sociocognitivo-interacionista da
linguagem. Os processos cognitivos baseiam-se na percepção e na capacidade de
atuação física no mundo. Mente e corpo não são duas substâncias estanques, por
isso a mente é um fenômeno corporificado (poderíamos dizer, que a mente é o que
o cérebro faz), e os aspectos motores e perceptuais, bem como as formas de
raciocínio abstrato são todos de natureza semelhante e profundamente
interrelacionados.
Tendo em vista o exposto, nossa cognição resulta
de nossas ações e de nossas capacidades sensório-motoras. Os conceitos emergem
e se desenvolvem nas atividades nas quais os organismos estão engajados. Essa é
a forma pela qual eles atribuem sentido ao mundo. As operações cognitivas não
se dão apenas no interior do cérebro dos indivíduos, mas resultam da interação
de várias ações conjuntas por eles realizadas.
De acordo com essa visão, a língua é uma atividade intersubjetiva, é uma forma de ação
conjunta. Seguimos, de perto, Koch (2004), ao sugerir que
“(...)
as ações verbais são ações conjuntas, já que usar a linguagem é sempre
engajar-se em alguma ação em que ela é o próprio lugar onde a ação acontece
necessariamente em coordenação com os outros (...) Essas ações se desenrolam em
contextos sociais, com finalidades sociais e com papeis distribuídos
socialmente” (pp. 31-32).
Por cognição,
entendemos, com Koch, um conjunto de várias formas de conhecimento que, não se
reduzido ao domínio da linguagem, é, no entanto, de sua responsabilidade. Nesse
sentido, faz-se mister admitir que
“(...)
não há possibilidade integrais de pensamento ou domínios cognitivos fora da
linguagem, nem possibilidades de linguagem fora de processos interativos
humanos. A linguagem é tida como o princípio mediador da interação entre as
referências do mundo biológico e as referências do mundo sociocultural” (p.32).
Textos definem-se como entidades multifacetadas resultantes de um processo
extremamente complexo de interação social e construção social de sujeitos,
conhecimento e sentidos. O texto é o lugar de interação entre atores sociais e
de construção interacional de sentidos (p. XII).
Também assumo o postulado segundo o qual a
interação social pelo uso da língua se caracteriza, essencialmente, pela
argumentatividade.
5.1.
Contextos
Contextos são constructos subjetivos e socialmente fundados, e elaborados pelos
interactantes e dizem respeito às propriedades da situação que eles supõem
sejam relevantes. A noção de contexto esposada se assenta numa interface mental
entre o discurso e situações sociais. Segundo Dijk (2012),
“Os
usuários da língua, além de atuar com sequências de proposições, precisam
também ter alguma representação analógica da realidade para derivar inferências
aceitáveis da realidade” (p. 90).
Contextos são modelos mentais, e os modelos
mentais são representações cognitivas de nossas experiências. Adotaremos o
conceito de contextos sociocognitivos (Djik,
2012). Contextos sociocognitivos compreendem
todos os tipos de conhecimentos armazenados na memória dos interactantes e que
são mobilizados por ocasião da interação social. Tais conhecimentos são
elencados abaixo:
- conhecimento linguístico;
- conhecimento enciclopédico ou de mundo;
- conhecimento de situação;
- conhecimento superestrutural;
- conhecimento sobre gêneros textuais;
- conhecimento estilístico;
- conhecimento intertextual.
5.1.2.
Modelos de contexto
Os contextos são um tipo de modelo mental da
experiência cotidiana. Todos os eventos comunicativos e as interações verbais
são formas de experiência cotidianas. Também nós os experienciamos,
construímos, definimos ou interpretamos no momento em que deles participamos.
Os modelos
de contexto representam a interação verbal; eles organizam os modos como
nosso discurso é estruturado e adaptado estrategicamente à situação
comunicativa global (Djik, 2012, p.107). Os modelos de contexto constituem a
interface entre a sociedade, a situação e o discurso.
5.2.
Referenciação
A referenciação – cumpre reiterar – constitui uma
atividade discursiva mediante a qual se constrói toda uma rede de
objetos-de-discurso, o que significa dizer se constrói cognitivamente a
realidade com a qual interagimos.
Temos insistido que a realidade é construída, ao
que devemos acrescentar é mantida e alterada não somente pela forma como
nomeamos o mundo, mas também, mormente, pela forma como interagimos com ele
sociocognitivamente. Nós construímos e interpretamos nossos mundos na interação
com o entorno físico, social e cultural (Koch, 2006, p. 79). A discursivização ou textualização do mundo, que se realiza pelo uso da língua, não
deve ser vista como elaboração de informações, mas sim como (re)construção do
próprio real. Assim, segundo Koch (2006, p.81),
“(...)
Ao usar e manipular uma forma simbólica, usamos e manipulamos tanto o conteúdo
como a estrutura dessa forma. E, deste modo, também manipulamos a estrutura da
realidade de maneira significativa”.
É importante notar que, uma vez admitida a referenciação
como um processo de construção de objetos-de-discurso,
a interpretação da expressão anafórica,
seja nominal, seja pronominal, deixa de ser uma busca por localizar um segmento
linguístico ou um objeto específico no mundo, para tornar-se o estabelecimento
de uma ligação com algum tipo de informação que se encontra no modelo textual. O modelo textual é a representação construída a partir do texto (ou
discurso), que opera como uma memória compartilhada, “publicamente” alimentada
pelo próprio texto. É uma espécie de representação mental do texto, que se
define pela estruturação de conceitos e proposições. Quando ouvimos ou lemos um
texto, construímos em nossa memória episódica, uma representação textual que compreende conceitos e proposições. Além
disso, a essa representação mental do texto liga-se a construção de um modelo episódico ou de situação que o próprio texto
reconstrói. O leitor ativa, em sua memória, modelos de situação similares, os
quais registram cognitivamente suas experiências, mediatas ou imediatas. Esses
modelos encerram acontecimentos, ações, pessoas, enfim, todos os elementos da
situação representados no texto. Por modelo,
devemos entender estruturas complexas de conhecimentos que representam nossas
experiências em sociedade e que servem de base aos processos conceituais.
Os objetos-de-discurso
são dinâmicos. Uma vez introduzidos, podem ser modificados, desativados,
reativados, construindo-se ou reconstruindo-se, assim, o sentido no curso da
progressão textual.
Modelos
sociocognitivos são formas de representação
dos conhecimentos na memória pelos sujeitos sociais, em consonância com suas
práticas culturais, suas atitudes com relação a essas práticas e aos atores
sociais, variáveis espácio-temporais.
Inferenciação é uma atividade linguístico-cognitiva pela qual o interlocutor ou
leitor, atendo-se à informação explícita no texto, levando em conta o contexto
sociocognitivo, constrói novas representações mentais ou estabelece uma relação
entre segmentos textuais ou entre informação explícita e informação implícita
(Koch, 2006).
O fenômeno de referenciação é visto como coesão referencial. Por coesão
referencial, entende-se o fenômeno semântico-discursivo pelo qual um elemento
presente na superfície do texto faz remissão a outros elementos nela presentes
ou acessíveis no modelo textual (memória textual) construído pelo leitor por
ocasião da leitura. Seguem-se os exemplos abaixo:
(3) O homem não sabia ler, por isso ele
não soube dar a resposta.
(4) Pedro adorava jogar futebol. O
menino sonhava em ser jogador.
Tradicionalmente, (3) e (4) ilustram um caso de
remissão anafórica, visto que as formas remissivas “ele” e “o menino” devem ser
interpretadas em dependência aos referentes, anteriormente introduzidos, “o
homem” e “Pedro”, respectivamente. Tendo em conta a noção de anáfora, adotada
aqui, a relação anafórica em (3) e (4) deve ser explicada pelo recurso ao
modelo textual. Uma vez introduzido, o referente fica ativo na memória do
leitor. Uma relação anafórica é bem-sucedida quando o leitor é capaz de
estabelecer uma relação entre um elemento da superfície textual e o referente
inscrito em sua memória ou modelo textual. Assim, em (3), o pronome “ele”
refere-se a um elemento que já se encontra ativo na memória de curto termo do
leitor, ou seja, é acessível no modelo textual construído. O leitor estabelece
assim uma relação linguístico-cognitiva entre “ele” e “o homem”, ou seja, a
interpretação de “ele” é dependente da acessabilidade no modelo textual do referente
“o homem”, que constitui informação dada.
5.2.1.
Princípios operacionais da referenciação
Os princípios operacionais da referenciação devem
ser contemplados tendo em conta a relação entre leitor e texto. São três os
princípios pelos quais a referenciação é operada: ativação, reativação e desativação.
Na ativação,
um referente até então não mencionado é introduzido no fluxo textual, de modo
que passa a ter um endereço cognitivo na rede de conceitos do mundo textual
construído pelo leitor no momento da leitura. Na reativação, um nódulo já introduzido é reativado e novamente
ativado na memória de curto termo do leitor, por meio de uma forma referencial,
permanecendo no foco de sua consciência.
Na desativação,
outro nódulo é introduzido, deslocando a atenção do leitor daquele que estava
no foco de sua consciência anteriormente. Seu estatuto textual é de inferível.
È preciso reconhecer, portanto, que, durante a
leitura, os estados dos referentes se modificam na consciência do leitor. Assim
é que um referente se diz ativo,
quando está no foco da consciência do falante/leitor. O locutor pressupõe que
este referente está ativo na consciência do seu interlocutor. O estatuto desse
referente é o de informação dada. Dado o enunciado “O Flamengo continua na zona
do rebaixamento. O time da gávea joga amanhã contra o Palmeiras”, o referente
“O Flamengo”, uma vez introduzido, mantém-se ativo na consciência do
interlocutor/leitor e é, assim, recuperado pela forma referencial “O time da
gávea”.
Um referente é semiativo, quando está na periferia do foco da consciência do
falante, em seu conhecimento prévio. Se um conceito ativo sai do foco da
consciência, ele vai imediatamente para um estado inativo. O estatuto do
referente semiativo é o de informação acessível. Se continuássemos o texto da
seguinte maneira
(3) O Flamengo continua na zona do rebaixamento.
O time da gávea joga amanhã contra o Palmeiras. O técnico Vanderlei Luxemburgo
não poderá contar com o atacante Alecsandro, mas diz que o time está preparado.
O referente “O Flamengo”, depois de retomado por
“o time da gávea”, sai do foco da consciência do leitor, já que outro referente
vem ocupar essa posição, a saber, “O técnico Wanderlei Luxemburgo”, mas
continua na periferia do foco, ou seja, continua semiativo e facilmente
acessível. Assim, o leitor não tem dificuldade de ligar “o time”, em “o time
está preparado” ao referente “o Flamengo”.
Um referente é inativo quando não se encontra no foco nem na periferia da
consciência, mas está arquivado na memória de longo prazo do falante/leitor.
Não está focalizado imediatamente, nem semiativo, por ter sido mencionado
anteriormente. Seu estatuto é de informação nova. Assim, por exemplo, o
referente “as condições do discurso”, que procurei elucidar no início deste
texto é um referente, a esta altura, inativo, embora possa ser inferível. Se eu
o reintroduzo nesse momento do texto, esse referente será novamente ativado na
consciência do leitor. É o que está acontecendo agora.
5.2.2.
Predicação e referenciação
A construção de todo enunciado está baseada em
dos mecanismos: a predicação e a referenciação.
Por meio da predicação
termos, que designam entidades, são associados a um predicador, que designa
propriedades ou relações. A predicação é o resultado da atribuição de um certo
número de termos a um predicador. O predicador é o responsável por determinar a
estrutura da predicação, ou seja, a estrutura relacional. A função de
predicador é desempenhada pelo verbo. O verbo é o predicador, por excelência.
Por meio da referenciação,
os termos da predicação passam a orientar o falante para as entidades
envolvidas na predicação. Essas entidades são constructos mentais. A
referenciação é uma ação cooperativa pela qual os falantes, referindo-se a
essas entidades por meio de termos, introduzem objetos-de-discurso para ir
construindo redes referenciais que contribuirão para compor a tessitura
textual.
A predicação designa um estado-de-coisas. O estado-de-coisas
é uma codificação linguístico-cognitiva que o falante faz da situação. O estado-de-coisas
“encena”, no enunciado, um evento ou uma experiência de um “mundo”, no qual se
distinguem as entidades envolvidas como participantes da situação. O termo situação está sendo usado aqui num
sentido geral para designar ação, evento, estado ou processo.
Como eu já me ocupei da referenciação, gostaria
de explicar, portanto, o conceito de predicação que, como se verá, é também uma
atividade básica na construção do mundo discursivo. Disse, anteriormente, que o
verbo é o predicador, por excelência, e isso é verdade; mas há predicadores
não-verbais, que não me interessarão aqui. Os verbos predicadores são os verbos
plenos, ou seja, verbos cujo significado descreve, por si mesmo, ações,
eventos, processos e estados e, sobretudo, determina uma estrutura predicativa.
Verbos plenos são dotados de significado lexical, significado este que é ele
mesmo um “recorte” de um tipo de experiência do mundo biopsicossocial. Nesse
sentido, o verbo “cantar” é um verbo pleno, ao passo que o verbo “estar” não é
um verbo pleno. Não se segue daí que seja um verbo “esvaziado” semanticamente,
mas apenas um verbo que, não comportando um significado descritivo, ou seja, um
significado diz respeito a dados do universo de nossas experiências
biopsicossociais, não é capaz de estabelecer uma estrutura de predicação. O
significado de “estar” (e correlatos) está em dependência do contexto sintático
em que ocorre; é um significado construído na relação com os termos com os
quais se articula na cadeia sintagmática. Por isso, “estar com dor de cabeça”
não significa o mesmo que “estar em Florianópolis”, ou seja, o significado da
oração com “estar” varia segundo o tipo de constituinte (predicador) que se
pospõe a esse verbo. Em minha tese de doutorado, empreendi uma investigação
exaustiva dos usos de “estar” (e também do verbo “ser”).
A predicação se estrutura em dois domínios: um formal (ou sintático) e outro semântico. O domínio formal ou sintático é o do estabelecimento pelo predicador da estrutura
relacional. Nesse domínio, o predicador abre espaços vazios ao seu redor, que
devem ser preenchidos por seus argumentos. O domínio semântico é o da determinação pelo predicador das propriedades
semânticas que devem comportar seus argumentos. Essas propriedades são seus
traços sêmicos (mínimas unidades que compõem o significado da palavra) e seus
papéis semânticos (que decorrem da interpretação que os falantes fazem
relativamente ao modo como as entidades estão envolvidas na situação descrita
no estado-de-coisas). É preciso, no entanto, entender que os dois domínios
foram separados aqui por razões didáticas; eles são, na realidade,
indissociáveis; e o domínio semântico é o domínio-base, já que é a semântica do
verbo que prevê o número de espaços vazios a serem preenchidos pelos argumentos
do verbo. O argumento corresponde a cada constituinte que entra a fazer parte
da estrutura relacional determinada pelo predicador. Vejamos dois exemplos, que
nos ajudarão a compreender o fenômeno da predicação:
(4) Pedro deu
a caneta ao irmão.
argumento 1 predicador argumento 2 argumento 3
(5) A
escuridão amedrontava o menino.
argumento 1 predicador argumento 2
Adotemos as variáveis X, Y e Z para representar cada uma das
entidades que devem ocupar os espaços vazios em torno do verbo. Assim, em (4),
temos X dar Y a Z; em (5), temos X amedrontar Y. Devemos, pois, representar a estrutura relacional, no
domínio formal, da seguinte maneira:
(4a)
X DAR Y a Z
(5a)
X AMEDRONTAR Y
(4a) e (5a) determinam que, todas as vezes em que
usamos os verbos “dar” e “amedrontar”, nossos enunciados, com estes verbos,
preveem essa estrutura. Note-se que falo em “prever”, pois, no uso da língua,
condições contextuais explicam a ausência de um ou outro argumento. Deve-se
reter, não obstante, que o significado do verbo “dar” prevê uma estrutura
relacional do tipo (4a); e o significado do verbo “amedrontar” prevê uma
estrutura relacional do tipo (5a). Os espaços correspondentes a X, Y e Z devem
ser preenchidos lexicalmente.
Sucede que “dar” descreve um estado-de-coisas de
‘ação’; e “amedrontar”, de ‘estado’. Assumindo-se os traços [dinamicidade], [duração]
e [controle] para caracterizar os estado-de-coisas, diremos que as ações são um
tipo de estado-de-coisas que comporta os traços [+ dinâmico], [- durativo] e [+
controle]. O traço [controle] se aplica à entidade que preenche a posição de
sujeito e que pode ou não exercer controle sobre (ou ter responsabilidade
direta por) o estado-de-coisas designado. Em (4), a entidade “Pedro” controla a
ação, ou seja, é responsável pela ação. Os estados se caracterizam pelos traços
[- dinâmico], [- durativo] e [+/- controle]. Em (5), o sujeito não exerce
controle sobre o estado descrito. Os sinais (+) e (-) significam,
respectivamente, ‘presença’ e ‘ausência’ do traço.
Como é o predicador o centro irradiador da
estrutura semântico-sintática da oração, segue-se que é ele que determina essas
propriedades do estado-de-coisas. Assim, o verbo “dar” prevê os traços [+
dinâmico], [+ controle] e [- durativo]. Preciso advertir que o traço
[dinamicidade] não se confunde com o traço [duração]. A dinamicidade de um
estado-de-coisas diz respeito à representação de uma ‘força’, de um ‘movimento’
nesse estado-de-coisas; a duração, por sua vez, descreve o prolongamento desse
estado-de-coisa num espaço de tempo representado, construído no enunciado. Não
se trata do ‘tempo real’, mas do tempo de referência (interno) construído no
estado-de-coisas. Assim, se dizemos “Quando cheguei em casa, mamãe passava
roupa”, devemos distinguir três variáveis de relação de tempo: o momento da
enunciação (ME), que corresponde ao agora do falante; o momento que serve de
ponto de referência do fato expresso pelo verbo (PR); e o intervalo de tempo,
que é o segmento da linha do tempo em que se situa o fato designado pelo verbo
(IT). Assim, o PR é passado em relação ao ME, ou seja, os dois fatos descritos
aconteceram num tempo passado em relação ao momento da produção do enunciado;
mas o IT é contemporâneo do PR, ou seja, a situação descrita na primeira oração
encabeçada por “quando” é contemporânea da situação descrita na oração
subsequente.
Retomando-se os exemplos (4) e (5), devemos
atentar para o fato de que os verbos “dar” e “amedrontar”, na medida em que
selecionam seus argumentos, determinam as propriedades semânticas que eles
devem comportar. Assim, por exemplo, não poderíamos construir uma frase com o
verbo “dar”, cujo sujeito fosse preenchido por um substantivo [- animado]. Uma
frase como “A cenoura deu a caneta ao meu irmão” é, obviamente, absurda. Mas
ela serve para mostrar um fato interessante: o verbo “dar” (decerto, todos os verbos predicadores) faz exigências
quanto aos traços semânticos que devem comportar seus argumentos. Quando
usado na acepção de ‘transferir algo da posse de X para a posse de Y’, o
sujeito de “dar” deve, necessariamente, comportar o traço [+ animado] (na
maioria das vezes, [+ humano], ainda que possamos admitir que cachorros possam
“dar” a chave ao seu dono, quando treinados). O argumento 2, que representa a
entidade a quem transferimos alguma coisa, também deve comportar o traço [+
animado] ou [+ humano]. Vamos ignorar, por ora, casos de metonímia, quando, por
exemplo, dizemos “Dei tudo que tinha a instituições de caridade”. Ainda nesse
caso, podemos argumentar que essas instituições são produtos de ações humanas,
existem enquanto entidades construídas pelo homem e são pessoas que representam
a instituição que recebe o donativo (são elas, em última instância, os
destinatários).
O verbo “amedrontar” também faz exigências
semânticas. Seu sujeito deve ser uma entidade [+ animada], visto que não é
possível que uma coisa como “parede” experiencie medo. Creio que o leitor já
deve ter entendido. O fenômeno da predicação nos evidencia como nós construímos
na língua nossas experiências, as organizamos dando-lhes uma materialidade
linguística. É graças ao mecanismo de predicação que nossas experiências de
mundo são estruturadas e representadas nos enunciados que produzimos.
Gostaria, apenas, de acrescentar que as entidades
que compõem a estrutura relacional de (4) e (5) desempenham papéis no
estado-de-coisas representado. Em (4), o sujeito é o agente da ação; o
argumento 2 (objeto direto, na tradição gramatical) é o objeto (aquilo que é
transferido); e o argumento 3 representa o destinatário (a pessoa a quem se
destina o objeto). Em (5), o sujeito, argumento 1, representa a causa (coisa ou
evento que provoca uma experiência, torna real um acontecimento), e o
complemento, argumento 2, representa o experienciador (é quem experiencia o
sentimento de medo). Nesse caso, “a escuridão” não deve ser interpretado como
[agente] porque lhe falta os traços característicos do papel de agente, a
saber, [animação] e [intencionalidade]. Agentes são animados e têm a intenção
de praticar alguma coisa, de realizá-la. Ademais, “amedrontar” não designa uma
ação, mas um ‘estado’ que é provocado em alguém. É notável como essas questões
de semântica estrutural suscitam, necessariamente, reflexões filosóficas e,
certamente, questões que são da alçada das ciências cognitivas. Elas nos dizem
algo sobre a estrutura da mente humana.
Tudo que se procurou apresentar e desenvolver
neste texto diz respeito às modalidades oral e escrita da língua. É claro, no
entanto, que, como estejamos preocupados em propor um roteiro de trabalho que
aproveite ao professor no ensino de leitura, a noção de texto que devemos ter
em conta é a de texto escrito, a qual supõe a interação entre duas instâncias
básicas: a de autor (produtor do
texto) e a de leitor (co-produtor, e
não mero receptor, do texto). Autor e leitor são ambos agentes de um mesmo
processo: o da produção de sentido. O
autor ou produtor do texto tem uma intenção, tem um projeto de sentido que
pretende realizar pela produção de seu texto. Essa produção, ou melhor, no
momento em que vai produzindo o seu texto, o autor vai produzido um sentido
para seu texto, que pode ser ou não, o sentido reconstruído pelo leitor. Este é
também um produtor de sentido: cabe ao leitor reconstruir o sentido pretendido
pelo autor. Há uma longa e densa teorização sobre o sentido que excede os
propósitos deste estudo. Empreendê-la aqui demandaria muito mais tempo e
espaço. Basta entender que não há apenas
um sentido para o texto, mas muitos sentidos. Também é importante ter em
conta a ideia de que o sentido não está no texto em si, mas é produzido na
relação entre autor, texto e leitor. Consoante disse anteriormente, textos são
atividades de constituição interacional de conhecimentos, de sujeitos e de
sentidos. Os sentidos se constroem na interação entre os interactantes através
dos textos.
Não estou ignorando que as condições de produção
do texto variam, segundo se trata de produção oral ou de produção escrita. É
verdade que o leitor não participa, efetivamente, da produção do texto escrito
sobre o qual se debruça no ato de leitura, mas ele é co-produtor do sentido
pretendido quando da produção do texto. E poderíamos até dizer que, de certo
modo, o leitor, imageticamente, se faz presente no momento da produção do texto
pelo autor, visto que o leitor do texto é uma imagem construída pelo autor. Por
ocasião da produção de seu texto, o autor constrói uma imagem de leitor para o
texto. A produção do texto supõe uma audiência, um certo número de leitores em
potencial. O autor também é uma imagem construída pelo texto e pelo leitor por
ocasião da leitura; o autor não é o indivíduo empírico, mas uma função do discurso.
O discurso não é o lugar constitutivo de autores (a autoria supõe a atribuição
de uma obra e demanda uma discussão que não caberia aqui). O discurso é o lugar
de constituição de sujeitos, de sujeitos sociais. O sujeito não é senhor de seu
discurso; apenas tem a ilusão de sê-lo; não é um sujeito adâmico que toma de
modo inaugural a palavra; o sujeito é sempre atravessado por muitas vozes;
vozes que falam através do seu discurso.
Convém, no entanto, ater-me ao conteúdo desta
seção. Essa seção se destina à exposição e à descrição dos quatro grandes
sistemas de conhecimentos de que dispõem autor e leitor por ocasião do
processamento textual. O autor, quando da produção de seu texto, mobiliza esses
quatro sistemas de conhecimento; assim também o faz o leitor, por ocasião da
leitura.
Quer para a produção, quer para a
interpretação/compreensão de um texto, é necessário dispor-se de conhecimento linguístico. Quem não sabe
alemão, jamais poderá produzir um texto em alemão. Portanto, para se produzir
textos, é necessário dispor de saberes referentes à gramática e ao léxico da
língua. É preciso, portanto, saber o significado das palavras e como usá-las,
saber construir enunciados segundo as regras previstas pela gramática da
língua. O conhecimento linguístico é responsável pela articulação som e
sentido. Além disso, recobre também a capacidade de estabelecer relações entre
os componentes da superfície textual mediante os recursos coesivos.
Todavia, o conhecimento linguístico apenas,
embora necessário, não é suficiente para que os usuários da língua possam
produzir textos que atendam adequadamente aos seus propósitos
sociocomunicativos. Eles precisam dispor também de outros conhecimentos.
Passarei a elencar e definir cada um deles.
O conhecimento
enciclopédico ou de mundo se encontra armazenado na memória de cada
indivíduo, quer se trate de conhecimento de tipo declarativo a respeito de
ocorrências do mundo, quer de tipo episódico, constituído por modelos
cognitivos socioculturalmente determinados e adquiridos através da experiência.
Há, na literatura, diversos tipos de modelos cognitivos propostos, entre os
quais refiro:
a) frames:
constituem conjuntos de conhecimentos armazenados sob certo “rótulo”, sem que
seja necessário ordenação entre eles.
Por exemplo, o frame Carnaval ativa em nossa memória uma série de conhecimentos. Se
somos brasileiros, especialmente cariocas, pensamos em blocos de rua, Cordão do
Bola Preta, Desfiles das Escolas de Samba, alegorias, fantasias, Marquês de
Sapucaí, etc. Nós detemos de uma série de conhecimentos sobre esse frame. Assim
também, o frame Show ativa uma série
de saberes a respeito da experiência relativa a show em geral. Sabemos que há
uma banda ou cantor, normalmente, que se apresenta; há o palco onde eles tocam;
há um lugar próprio para a realização do espetáculo. Para participar do show
como espectadores, precisamos comprar ingressos, etc.
b) esquemas:
recobrem conjuntos de conhecimentos armazenados em sequência temporal ou
causal.
Pensemos no cotidiano de um cidadão comum. Pensemos
num dia de sua vida. Esse dia se estrutura em hábitos ou rotinas. É claro que
as descrições variarão em alguma medida por força de nossas experiências
pessoais. Pensemos num típico domingo em família. Se ele é passado em casa,
talvez boa parte do tempo estejamos assistindo televisão, após o almoço, ou
tirando um cochilo, antes do jogo começar.
c) planos:
constituem conjuntos de conhecimentos sobre como agir para atingir
determinados objetivos.
Pensemos na situação em que se busca vencer uma
partida de futebol.
d) scripts:
recobrem conjuntos de conhecimentos sobre modos de agir estereotipados em
uma dada cultura, incluindo-se aí modos de comportar-se linguísticamente.
A língua dispõe de várias fórmulas de cortesia.
Pensemos também nos rituais religiosos, como batismo. Quando vamos a um
enterro, assumimos determinados comportamentos previstos culturalmente para
essa situação. Dizemos “meus pêsames pelo falecimento de seu marido”, ou algo
parecido; mas não “sinto muito por seu marido ter batido as botas”.
Os modelos
cognitivos constituem, portanto, estruturas complexas de conhecimentos que
representam as experiências que vivenciamos em sociedade e que servem de base
para processos cognitivos. Nosso conhecimento de mundo está, portanto,
organizado em nossa memória na forma de modelos cognitivos, como os que
descrevi aqui.
A importância desses modelos no processo de
interpretação/compreensão textual é enorme, visto que da mobilização desses
modelos por ocasião da leitura depende a possibilidade de construir um sentido
para o texto, isto é, de construir sua coerência.
Nenhum texto fornece todas as informações
necessárias à sua compreensão. Grande parte das informações está implícita e
deve ser inferida pelo leitor com base nos modelos cognitivos armazenados em
sua memória.
O conhecimento
sociointeracional é igualmente indispensável tanto para a produção quanto
para a interpretação/compreensão de textos. O conhecimento sociointeracional
recobre o conhecimento sobre as ações verbais realizadas, sobre as formas de
interação por meio da língua. Esse conhecimento se subdivide em:
a) conhecimento ilocucional: esse tipo
de conhecimento permite-nos reconhecer os objetivos ou propósitos que um
falante ou autor, em dada situação, pretende atingir. Trata-se de conhecimentos
atinentes a tipos de atos de fala, que se verbalizam, comumente, por formas
características, ainda que possam também se realizar por formas indiretas, o
que exige do interlocutor o conhecimento necessário a seu reconhecimento.
Há um exemplo muito recorrente na literatura a
cuja referência eu não poderia me furtar. Imagine uma situação (aliás, muito
comum) em que uma pessoa, amigo ou não, se dirija a nós com o seguinte
enunciado: “Você tem um cigarro?”. A
despeito de a forma do enunciado, a que se acrescenta uma entonação específica,
ser a de pergunta, nós somos capazes de captar a intenção de nosso locutor. Nós
sabemos que o que ele está realizando, na verdade, é um pedido, de tal sorte
que uma resposta do tipo “sim” é inapropriada. É claro que sempre podemos nos
fazer de desentendidos, por pilhéria ou implicância; mas isso demonstraria que
nós detemos o conhecimento de que o enunciado realiza um pedido, ainda que
tenha a forma característica de uma pergunta. Esse exemplo é um caso típico de
ato de fala indireto. Nesse caso, há um descompasso entre a forma do enunciado
(forma de pergunta) e a intenção da qual ele é a realização. Nós, porque
detemos conhecimento sociointeracional (mais especificamente, ilocucional),
somos capazes de compreender a intenção subjacente a esse enunciado e,
portanto, de manifestar a reação não-verbal adequada, qual seja, em caso
afirmativo, cedendo um cigarro ao interlocutor. Lembro que podemos responder
com um “tenho”, mas essa forma deve acompanhar-se do ato de dar um cigarro,
pois, somente nesse comportamento não-verbal, demonstramos ter entendido que se
tratava de um pedido e não de uma simples pergunta.
b) conhecimento
comunicacional: este tipo de conhecimento diz respeito a normas
comunicativas gerais (seja claro, diga a verdade, seja relevante, etc.); à
quantidade de informação que se deve por acessível, numa situação concreta,
para que o nosso interlocutor seja capaz de reconstruir o objetivo pretendido
por nós; à seleção da variedade linguística adequada a cada situação de
interação e à adequação dos tipos de texto (descritivo, narrativo,
dissertativo, etc.) às situações comunicativas. É preciso dizer que todos os
falantes de uma língua detêm, portanto, uma competência comunicativa, que lhes permite usar essa língua. A competência comunicativa consiste na
capacidade que têm os usuários não só de construir enunciados numa língua,
segundo os padrões previstos pela gramática dessa língua, mas também de adequar
suas produções linguísticas às diferentes situações de interação. Um falante é
tanto mais competente comunicativamente quanto mais é capaz de mobilizar um
vasto repertório de variedades linguísticas e de fazer uso delas de modo
adequado às diversas situações de interação. Um falante sociocomunicativamente
competente é aquele que, detendo um rico repertório de variedades linguísticas,
consegue fazer uso delas tendo em vista parâmetros situacionais que governam
sua adequação de uso. Portanto, usar uma variedade linguística de prestígio
numa situação em que ela não é desejada ou esperada é tão comunicativamente
inapropriado quanto usar uma variedade linguística não prestigiada socialmente
numa situação em que a variedade de prestígio é esperada ou mesmo exigida.
c) conhecimento
metacomunicativo: é aquele que permite ao produtor do texto evitar
perturbações pervisíveis na comunicação ou resolver conflitos efetivamente
ocorridos mediante a inserção no texto de sinais de articulação ou apoios
textuais e mediante atividades específicas de formulação textual, como paráfrases,
repetições, correções, glosas, etc.
Esse tipo de conhecimento engloba os vários tipos
de ações linguísticas que auxiliam o locutor/autor a assegurar a compreensão do
texto e a conseguir a aceitação pelo interlocutor/leitor dos objetivos
pretendidos. O produtor do texto pode, assim, monitorar o fluxo verbal no
momento mesmo em que ele se dá, ou pode, no caso da escrita, ajustá-lo
posteriormente.
d) conhecimento
superestrutural: diz respeito ao conhecimento sobre modelos textuais
globais, que permite aos falantes reconhecer textos como exemplares de
determinado tipo ou gênero. Esse tipo de conhecimento também abriga saberes
sobre as macrocategorias que distinguem vários textos, sobre como organizá-los
e sobre como se ligam seus objetivos e estruturas globais.
6.1.
Conhecimento procedural
A cada um dos tipos de conhecimento aqui
apresentados e definidos, corresponde um saber específico de como utilizá-los.
Trata-se do conhecimento procedural,
o qual se constitui de procedimentos ou rotinas por meio dos quais aqueles
sistemas de conhecimento são mobilizados. O conhecimento procedural funciona
como um tipo de “sistema de controle” dos demais sistemas, porque permite
adaptá-los ou adequá-los às necessidades dos interlocutores no momento da
interação (Koch, 2004, p. 25).
O conhecimento
procedural compreende, portanto:
a) saberes sobre práticas culturais próprias da
sociedade em que vivem os interactantes;
b) domínio das estratégias de interação, como
preservação de faces, representação positiva do self, polidez, negociação, atribuição de causas a mal-entendidos ou
fracassos na comunicação, etc.
Cabe lembrar que o processamento textual é estratégico, já que tanto o autor quanto o
leitor mobilizam no processo mesmo de interação os diversos sistemas de
conhecimento armazenados em sua memória.
6.2. Teses básicas
Pondo termo a esta seção, explicito três teses
básicas que se depreendem do conjunto de questões discutidas neste texto:
1a) Para que duas ou mais pessoas se
compreendam mutuamente, é necessário que seus contextos sociocognitivos sejam, pelo menos, parcialmente,
semelhantes;
2a) O conhecimento são estruturas estabilizadas na memória de longo
termo, que são empregadas para o reconhecimento, a compreensão de situações e a
interação social. Tais saberes são constituídos a partir de estados provisórios
de conhecimento elaborados pela memória operacional e são resultado de nossas
atividades de construção de sentido e de interpretação de situações e eventos.
´´É por isso que se pode falar em construção de conhecimento.
3a) A coerência não está no texto em si, mas é construída pelo leitor
numa dada situação em que interage com o texto. A coerência liga-se à
capacidade de o leitor calcular um sentido para o texto. Por isso, é, a um só
tempo, um princípio de inteligibilidade e princípio de interpretabilidade do
texto. A coerência se constrói na interação entre autor, texto e leitor numa
dada situação de comunicação.
A coerência se constrói por meio de processos
cognitivos operantes na mente dos usuários e desencadeados pelo texto e pelos
contextos sociocognitivos.
7. Avaliando os textos
Não tenho a intenção de empreender uma análise
exaustiva dos textos de Paulo Freire e de Millôr Fernandes. Vou-me cingir a
explorar as duas questões que motivaram a produção deste texto, a saber, a não-relação especular entre mundo e texto
e a referenciação. No domínio desta
última, estarei preocupado em mostrar que as relações anafóricas devem ser
vistas não como relações de remissão no nível da superfície textual, mas como
uma atividade discursivo-cognitiva pela qual o leitor, com base em seus
contextos sociocongitivos, estabelece (por inferenciação) uma ligação entre um
termo presente na superfície textual e uma informação armazenada em seu modelo
textual.
TEXTO 1
A Importância do ato de ler
(...) A
leitura do mundo precede a leitura
da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir
da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem
dinamicamente. A compreensão do texto
a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações
entre o texto e o contexto. Ao ensinar a escrever sobre a importância do
ato de ler, eu me senti levado – e até gostosamente – a “reler” momentos
fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as experiências mais
remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha mocidade,
em que a compreensão crítica da importância do ato de ler se veio em mim
constituindo.
Ao ir
escrevendo este texto, ia tomando distância dos diferentes momentos em
que o ato de ler se veio dando na minha experiência existencial.
Primeiro, a “leitura” do mundo, do pequeno mundo em que me movia;
depois, a leitura da palavra que nem sempre, ao longo de minha escolarização,
foi a leitura da “palavramundo”.
A retomada da
infância distante, buscando a compreensão do meu ato de “ler” o mundo
particular em que me movia – e até onde não sou traído pela memória -, me é
absolutamente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e
re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que
ainda não lia a palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife,
rodeada de árvores, algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre
nós – à sua sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me
experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras
maiores. (...)
(Paulo Freire – A importância do ato de ler:
2006, pp. 11-12)
Desde
já, é preciso enfatizar que o próprio autor reconhece ser o seu texto uma
atividade pela qual ele recria e revive a experiência vivida antes de adquirir
a linguagem. Vê-se, pois, que o texto não é um retrato fiel de sua experiência
pessoal. O texto a recria, lhe dá certa ordem. O texto (re)constrói um mundo em
que a experiência de leitura da palavra é inseparável da experiência de leitura
(interpretação/compreensão) do mundo. Neste mundo construído pelo texto, o
autor revisita, em sua memória, suas experiências de infância nas quais
interagia, ainda sem o domínio da linguagem, diretamente com o mundo à sua
volta. Mas essa “revisita” é também uma reconstrução da experiência vivida. É
interessante notar que o “eu” de “me vejo então...” (linha 18) não é o mesmo
“eu” reportado. Há um desdobramento do sujeito do discurso: o eu que vê (que
lembra) no momento da enunciação reconstrói a experiência vivida pelo eu da
infância. A sumária descrição do mundo natural (“...rodeada de árvores...”),
que constitui um cenário em que se apreende a interação do eu do passado com a
realidade imediata é também uma construção da subjetividade do autor, mas de um
autor que é um sujeito sócio-histórico.
As
expressões destacadas em negrito constituem objetos-de-discurso introduzidos
como informação nova. Uma vez introduzidos no modelo textual, eles passam a ter
um endereço cognitivo na memória do leitor. Assim é que “a leitura do mundo” e
“a leitura da palavra” assumem o estatuto de referentes ativos na memória do
leitor. Por estarem ativos, podem ser recuperados quando da introdução das
formas remissivas “leitura desta” e “leitura daquele”. Em seguida, um novo
objeto-de-discurso é introduzido: “a compreensão do texto”. Na verdade, não se
trata de um objeto-de-discurso novo, mas semi-novo (se poderíamos dizer assim),
porque “texto” é interpretado por associação com os referentes anteriores
constituídos de “a leitura”. É isso que explica a possibilidade de usar o
artigo definido para introduzir um referente novo. Esse referente fica ativo na
memória do leitor e reaparece no modelo textual no constituinte “texto e
contexto”. Cabe notar, no entanto, que, com a introdução desse novo referente,
o referente “a leitura” assume o estatuto de semiativo. Ele saiu do foco da
consciência do leitor, mas não a ponto de deixar de ser acessível.
TEXTO 2
A Vaguidão Específica
“As mulheres têm
uma maneira de falar que eu chamo de vago-específica”.
(Richard
Gehman)
- Maria, ponha isso
lá fora em qualquer parte.
- Junto com as
outras?
- Não ponha
junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer qualquer
coisa com elas. Ponha no lugar do outro dia.
- Sim, senhora.
Olha, o homem está aí.
- Aquele de
quando choveu?
- Não, o que a
senhora foi lá e falou com ele no domingo.
- Que é que
você disse a ele?
- Eu disse para
ele continuar.
- Ele já
começou?
- Acho que já.
Eu disse que podia principiar por onde quisesse.
- É bom?
- Mais ou
menos. O outro parece mais capaz.
- Você trouxe tudo
para mim?
- Não senhora,
só trouxe as coisas.
- Mas traga,
traga. Na ocasião, nós descemos tudo de novo. É melhor senão atravanca a
entrada e ele reclama como na outra noite.
- Está bem, vou
ver como.
(Millôr
Fernandes)
O texto de Millôr Fernandes reconstrói uma
situação dialógica em que uma patroa orienta a empregada doméstica na arrumação
da casa. A compreensão deste texto é extremamente dependente da capacidade de o
leitor construir um modelo de contexto adequado. A fim de levantar a hipótese
segundo a qual o texto reconstrói um diálogo entre uma patroa e sua empregada e
a situação reconstruída é de arrumação da casa, o leitor precisa recorrer a seu
contexto sociocognitivo. O leitor ativa em sua memória um frame ou script, um
modelo cognitivo, que representa sua experiência com arrumação da casa.
Por maior que seja a fidelidade da descrição da
experiência, essa experiência é sempre experiência
textualizada. Não é o mundo que se deixa ver no texto, mas uma versão do mundo, uma versão de uma
experiência de mundo. Entre o texto e o mundo, há sempre a mediação do ponto de
vista de um enunciador.
Esse texto deve ser lido considerando-se duas
dimensões: a que põe em interação leitor e texto; e a que põe em interação as
personagens da cena interna ao discurso. Da perspectiva do leitor, a
compreensão do texto depende, fundamentalmente, de um incessante trabalho de
inferenciação levado a efeito pelo leitor com base em seu contexto
sociocognitivo, que lhe permite produzir hipóteses sobre o conteúdo referencial
de expressões como “isso”, “lá fora”, “as outras”, etc. O texto não esclarece
nada a respeito da natureza dos objetos-de-discurso, mas o contexto
sociocognitivo que permite a ativação pelo leitor do frame “arrumação da casa” permite-lhe inferir que “coisas” pode
designar “caixas”, “malas”, roupas”, etc.
Da perspectiva das personagens, elas conseguem se
entender porque seus contextos sociocognitivos são partilhados e os referentes
são constantemente ativados e recuperados no momento mesmo da enunciação. É
claro que devemos considerar a liberdade literária do autor e o seu propósito
de caricaturar a realidade. Numa situação efetiva de uso, seríamos obrigados,
para que houvesse compreensão, a usar expressões referenciais em alguns
momentos. Quero dizer que, em certos momentos da interação, haveria a
necessidade de especificar o referente de que se trata. Por exemplo, em vez de
“no lugar do outro dia”, se produziria “na lavanderia”. No ponto em que a
empregada diz “não, só trouxe as coisas”, quase certamente se usaria uma
expressão referencial, para responder satisfatoriamente à questão da patroa,
que usou a forma “tudo”. Vejamos:
- Você trouxe tudo
para mim?
- Não senhora,
só trouxe as coisas.
Por
mais que as personagens saibam do que estão falando, é pouco provável que a
patroa saiba, a esta altura, de que coisas se trata, especialmente porque a
arrumação envolveu- supomos - o deslocamento de objetos diversos. Para evitar a
sobrecarga de memória, seria necessário lembrar ao interlocutor os referentes
no modelo textual construído. Nesse ponto, numa situação de uso efetivo, o
interlocutor seria obrigado a dar a conhecer o referente ou, ao menos,
acrescentar uma expressão especificadora, dizendo algo como “Não, senhora, só
trouxe as roupas e os livros que estavam no quarto”, ou “... só trouxe as
coisas que estavam no quarto” (mas, ainda aqui, haveria a probabilidade
de o interlocutor não conseguir acessar imediatamente em sua memória o
referente de “coisas que estavam no quarto”).