quinta-feira, 29 de maio de 2014

“Se nossa condição fosse verdadeiramente feliz, não seria necessário desviarmos dela nossos pensamentos” (Blaise Pascal)

                                    
                                    
                                      Fragmentos trágicos

Escrever é, para mim, um exercício de existência. O que se seguirá são rascunhos, rasuras, esboços, rabiscos de fragmentos de um filosofar que me atrai, que me seduz, que me revela verdades atemporais e que convém ter presentes no espírito. Por isso, tenciono tão-somente referir passos de alguns livros que li, que leio e releio, de fragmentos que destaquei, que reproduzi num caderno e que, agora, dou a conhecer, a fim de que, através da leitura deles, possa eu mesmo reconhecer-me. Não deixarei de comentá-los, mas só me cingirei a fazê-lo; não pretendo submetê-los a uma análise rigorosa. O trabalho do leitor consistirá não tanto em ler os fragmentos que cito, com vistas a compreendê-los; há que fazer um ultrapassamento, que é próprio da filosofia. Necessário será ler o que não está neles, o que está para além deles, num lugar outro mais denso e profundo, num escuro iluminado que se revela. Ao cabo, espero que se perceba que é o escuro de todos nós, porquanto todos os registros que aqui dou a conhecer dizem respeito à condição humana. Não espero, no entanto, que a consciência desta condição esteja tão avivada no leitor quanto  está em mim. Talvez, seja isso, leitor, que nos distancia; decerto, devo a ela meu interesse pela filosofia, meu abandono gratuito ao filosofar, meu convívio aturado com os livros.
Comecemos, pois, referindo dois trechos de Gilvan Fogel, em seu O que é filosofia? – filosofia como exercício da finitude (2009). Escreve o autor a respeito da filosofia o seguinte:

“A filosofia não é “coisa” nenhuma. Não é uma disciplina de um curso ou de um currículo acadêmico; não é um acervo, uma reserva de informações, sobretudo não é um domínio da “cultura” (...)”.
(p. 86)


O saber filosófico não é um saber de que nos apropriamos na academia (o que não significa negar a importância do diálogo com a tradição, com a apropriação do já pensado, trabalho de que depende o desenvolvimento desse saber). Mas a filosofia não é uma disciplina acadêmica; a filosofia é um saber-ação para exercitar a existência. Contra o acadecismo filosófico, pondera Gilvan:

“Não. Dispor-se, pré-dispor-se para a filosofia significa, na verdade, abrir-se para a conquista de um modo próprio de ser do homem, da vida”.
(p. ib.id., grifo meu)


Há pressuposta, neste trecho, a existência de um modo próprio de ser do homem e da vida que precisa ser conquistado. Mas a conquista deste modo de ser do homem depende do predispor-se à filosofia. Nem todos se apropriam desse modo de ser, visto que nem todos se predispõem à filosofia. E Fichte nos lembra que “filosofar não é propriamente viver; viver não é propriamente filosofar”. Não, leitor, não se está afirmando um divórcio entre viver e filosofar; está-se afirmando que, para filosofar, necessário é um distanciamento relativamente ao viver, que é viver chapado (Gilvan), um viver preenchido de preocupações, de ocupações, um viver que nos habitua à azáfama do cotidiano, que reúne todos os seres humanos numa massa que está sempre a caminho, sempre em movimento ininterrupto. Distanciamento e isolamento, que permitem-nos sentir a vida, sentir e auscultar o fundo da vida (Gilvan), que é Dor - Dor “que é evidência de nada ser de antemão (p. 96)”, são duas condições para o filosofar. São as vozes de Kierkegaard e de Sartre que ecoam mais nitidamente aqui. Gilvan é mais inquietante e interessante do que deixam sugerir esses esboços interpretativos. Não me interessa explicar a filosofia, nem elucidar o modo como Gilvan no-la explica. Tomem-se outros passos e prossigamos.

“Filosofar consiste em uma ação na qual o mundo do trabalho é ultrapassado”.
(p.8)


“O mundo do trabalho é o mundo do cotidiano do trabalho, o mundo da utilização, da serventia a fins, do rendimento de exercício de funções; trata-se do mundo da necessidade e da renda, o mundo da fome e do modo de saciá-la. O mundo do trabalho é dominado pelo objetivo de realização da “utilidade comum”.
(ib.id.)


Estes passos foram tomados a Josef Pieper, em O que é filosofar? (2007). Já antecipo uma provável interpretação, equivocada, e que deve, por isso, ser rechaçada. O autor não pretende menosprezar o trabalho; mas sustentar que o exercício do filosofar supõe o ultrapassamento desse mundo utilitário, da produção, no qual os indivíduos são avaliados segundo sua eficiência e produtividade. O lugar da filosofia foi, desde seu começo com os antigos gregos, o do ócio, não o do negócio. O mundo do trabalho é o mundo da necessidade de subsistência: trabalha-se para sobreviver. O viver chapado de que nos fala Gilvan é, em parte, também esse viver destinado a produzir a subsistência. Viver comum do homem comum. Lugar comum do homem comum. Mas o lugar do filósofo é onde reside o distanciamento e o isolamento. Pois enquanto se vive chapado ao viver dificilmente se pode filosofar. Todo ato de filosofia supõe e exige um distanciamento relativamente ao viver, como condição para pensar o viver e a condição humana. Viver não é o mesmo que existir. O leitor chegaria a essa conclusão, caso se detivesse na leitura do texto de Gilvan – conclusão que, a mim, se impõe, na verdade, como pressuposto do filosofar. Viver e existir não se confundem. Consideremos, agora, os trechos que tomei a Luc Ferry, em seu Aprender a viver – filosofia para os novos tempos (2010):

“O que desejamos, de fato, acima de tudo? Não queremos ficar sozinhos, queremos ser compreendidos, amados, não queremos ficar separados dos próximos, em resumo, não queremos morrer, nem que eles morram. Ora, a existência real, um dia ou outro, frustra todas essas expectativas (...)”.
(p. 22)


Observe-se, de início, que o locutor nos interpela sobre o que mais valorizamos, o que mais desejamos. Trata-se, agora, de nos chamar a atenção para nossos medos básicos: o da solidão, o do desprezo e indiferença e o da morte. Prossigamos com Ferry:

“Pois a verdade é que a morte, ao contrário do que sugere o adágio antigo, possui faces diferentes cuja presença é, paradoxalmente, perceptível no próprio coração da vida mais viva”.
(p. 23)


“Ora, é exatamente isso o que, num momento ou noutro, atormenta esse infeliz ser finito que é o homem, já que apenas ele tem consciência de que o tempo lhe é contado, que o irreparável não é uma ilusão, e que é preciso que ele reflita bem sobre o que deve fazer de sua curta vida”.


“Filosofar, mais que acreditar, é, no fundo – pelo menos do ponto de vista dos filósofos, já que o dos crentes é, com certeza diferente -, preferir a lucidez ao conforto, a liberdade à fé. Trata-se, em certo sentido, é verdade, de “salvar a pele”, mas não a qualquer preço”.
(p.31)


O fato sempre presente da morte; desse já-aí da morte, como presença enraizada em nosso âmago, como verdade de razão e de fato que recalcamos. A morte é – diz Ferry – “perceptível no coração da vida mais viva”, isto é, se faz pulsante numa consciência que sente em profundidade o que significa existir para o homem. É preciso considerar que uma grande medida de nossa infelicidade reside no fato de sermos seres finitos conscientes de nossa morte inevitável, que é esse domínio do “nunca mais”. Outra medida dessa infelicidade encontra raízes na consciência de que nossa existência é efêmera, de que cada dia vivido nos aproxima da morte inevitável. Mas a morte não está à nossa espera; ela nos espreita (eu posso morrer aqui e agora). Morre-se todos os dias, em qualquer hora. No entanto, ainda não alcançou uma consciência avivada da morte quem não a pensa como uma possibilidade já-aí que lhe é própria; trata-se de ouvir a Heidegger: trata-se de encarar a morte como minha morte, minha possibilidade real (e não como um fato que se estende aos outros).  A filosofia não nos salva da morte, é claro; porque nada, na verdade, nos salva dela. Por isso, é necessário filosofar.
Avivada a consciência desta terrível condição (o leitor poderia me dizer que ele sabe disso; mas trata-se de um saber recalcado, afastado da consciência, um saber que preferimos não vasculhar, não remexer, é um saber-sentir que silenciamos). Por isso, quando escrevo “avivada consciência” quero dizer um saber desperto que sente a verdade da morte na estrutura de nosso ser, que necessariamente perderá tudo que ama na vida. O destino do amor, em face da morte, é a perda inevitável. Triste destino o nosso: amamos os que nos faltarão inevitavelmente. Mas amor é desejo de possuir mais e mais; é desejo não só do que falta, mas do que faltará necessariamente. O homem amante é homem que vive a perda, que está no caminho incontornável da perda. É o que a vida nos ensina. Alguns preferirão acreditar num Deus; outros não se deixarão convencer-se da existência de tal ser, nem seduzir-se pelas promessas das religiões. Para estes, a filosofia se apresenta como uma necessidade urgente.
No entanto, a filosofia, enquanto exercício de existência, não se impõe apenas quando somos confrontados com o estar-aí da morte, mas também com o fato mesmo do existir, tão humano, por isso tão frágil, pleno de misérias, de dor e sofrimento. O sofrimento tece as malhas da existência. Trata-se de uma proposição irrefutável. Doravante, citarei passos tomados a Blaise Pascal, Schopenhauer e Luiz Gonzaga de Bem, que me contentam pela verdade trágica que revelam e pelo sentimento estético que provocam. Quem negará que do trágico pode nascer a beleza? Os antigos gregos o provam!

“De fato, a vida devotada ao saber se esvai silenciosamente e é muito vazia de acontecimentos. O mal existe. Todos os seres vivos sofrem, ora pelo corpo,ora pelo espírito. Padecemos pelas intempéries, pelas misérias, pelas doenças, pela ignorância, pelos vícios, pelas injustiças, pelas guerras, etc. Crianças há que nascem para sofrer e morrer. Homens existem de tal modo desgraçados que melhor lhes fora nunca haverem nascido. E há os que não deixam memória, que morrem como se jamais tivessem existido, e parece que sequer nasceram, e o mesmo ocorre com a sua prole. O mal existe, portanto – eis uma verdade insofismável”.
(p. 127, grifos meus)


Este excerto topa-se na obra Confissões de um filósofo desesperado (2009), de Luiz Gonzaga de Bem. A morte, o sofrimento e o mal existem e afirmá-lo é evidenciar a dureza de uma verdade que resiste às tentativas de refutação. O locutor representa uma realidade onde o mal e o sofrimento se manifestam sob várias formas. Uma dessas formas é a insignificância desse acontecer que, como costuma dizer o vulgo, “faz parte”, a falta de sentido da existência e do mal. Nem a existência nem o mal se justificam. A mim me espanta o fato terrível da morte dos que já nascem desgraçados, dos que existem num intervalo de tempo muito breve e morrem jovens demais para deixar seus rastros de dor suportável. A vanidade dessas vidas que já nascem seladas pela morte prematura é um acontecimento para o qual qualquer esforço de justificação é igualmente inútil ou mesmo ofensivo aos que sofrem pela perda de tais vidas tão desafortunadas. Por isso, insurjo-me contra os que, intentando salvaguardar a bondade de um Deus criador, empregam todo e qualquer estratagema e se dedicam a longas elucubrações para elaborar uma teodiceia repugnante às sensibilidades, escandalosa ao bom senso.
“Ser pai, disse Victor Hugo, é oferecer reféns ao destino”. Fazer nascer uma criança é transmitir-lhe o legado de nossa miséria. Tales permaneceu solteiro e adotou o filho de sua irmã. Negou-se a ter os seus próprios filhos, “por amor aos filhos”. Segue-se daí, forçosamente, que trazer ao mundo uma criança é condená-la às agruras, às dores, às angústias, às instabilidades da fortuna, à decrepitude de uma existência que se sabe finita. Esse pensamento trágico é libertador: quer elevar o homem ao poder de resistir aos apelos de seus genes, que o impelem a reproduzir-se para garantir a perpetuação da espécie. A morte de um indivíduo que não deixou descendentes é a impossibilidade de seus genes legarem a miséria da existência a outros que prolongariam gerações de inocentes entregues à fortuna. O homem, que é ser social também, dotado de consciência de sua real condição de existência e por profunda comiseração para com o sofrimento das crianças, cuidará, de bom grado, não condenar qualquer delas à amargura de uma vida a ser suportada em condições socioeconômicas precárias.
Acompanhemos outro trecho de Gonzaga de Bem:

“O homem, o mais valente dos animais e mais habituado ao sofrimento, não repudia o sofrimento em si; o homem o deseja, chega a buscá-lo, desde que reconheça no sofrimento um sentido, um propósito. A falta de sentido para o sofrimento, não o sofrimento em si, era o malefício que afligia a humanidade”.
(p. 136)


Um pensamento trágico afirma a falta de sentido no sofrimento, por isso é incompatível com um pensamento religioso, que tenta atribuir um sentido ao que se nega a ter um. O sofrimento de uma criança é o abismo do sem-sentido. Insanidade humana: procurar sofrer desde que suponha ter esse sofrimento algum significado! Isso não deixa de ser tragicômico, consoante nos lembra Schopenhauer.


“Efetivamente, em toda parte a vida humana é um estado em que há muito a sofrer e pouco a desfrutar. A vida humana não passa de um sonho. A vida é apenas um torpor no claro-escuro, uma inércia entre luzes e sombras, uma caricatura desse sol interior que nos faz crer ilegitimamente em nossa excelência sobre o resto da matéria. Nossa vida é curta e entediante, é uma sombra que passa, e depois do nosso fim não há retorno, pois está selado: homem algum haverá de retornar; para a morte não há remédio. A vida é a piedade da duração, o sentimento de uma eternidade dançarina, o tempo que se supera e rivaliza com o sol. Nada prova que sejamos mais que nada. Ontem, hoje, amanhã: categorias para uso de criados”.
(p. 126, grifo meu)


Nasce-se condenado e sem direito à apelação. Os que, após mensurar benefícios e custos, cuidam que os custos pesam mais, embora estejam assaz entediados para tirar a própria vida, vivem a piedade da duração. Que a existência não exceda os limites das forças que são dispensadas para suportá-la é o que esperam da piedade da duração!

“O que as pessoas não inventam por tédio! Elas estudam por tédio, jogam por tédio e finalmente morrem de tédio!” (George Büchner)


Leiamos estes passos de Blaise Pascal:


“Não tendo os homens podido curar a morte, a miséria, a ignorância, resolveram, para ficar felizes, não mais pensar nisso”.

“Se nossa condição fosse verdadeiramente feliz, não seria necessário desviarmos dela nossos pensamentos”

“É necessário conhecer-se a si mesmo. Ainda quando isso não servisse para encontrar a verdade, pelo menos serve para regrar a própria vida, e nada há de mais justo”.


“Condição humana: Inconstância, tédio, inquietação”.


“Quando se lê depressa demais ou devagar demais, não se entende nada”.


Não leia nem depressa, nem devagar, nem com demasiado escrutínio crítico, leitor; leia com o coração este rascunhado texto de quem se deleita com o desespero do filosofar: porque é não esperar nada além do que a alegria do pensar.


“A grandeza do homem é grande por ele conhecer-se miserável; uma árvore não se reconhece miserável. É então ser miserável se conhecer(-se) miserável, mas é ser grande conhecer que se é miserável”.


Neste trecho, Pascal argumenta que a grandeza do homem reside na sua capacidade de conhecimento. Somente o homem é capaz de conhecer a sua miséria, ou seja, ter consciência dela. Mas também nesse (re)conhecimento de nossa condição miserável repousa nossa fraqueza. A inconsciência da fraqueza talvez seja preferível? Saber-se miserável é também fonte de dor, de um excruciante terror! Grandeza do homem e fraqueza reconhecida do homem: eis nossa inquietante condição!
O homem é um desconhecido de si mesmo. Freud desferiu um duro golpe sobre nossa auto-estima calcada sobre a crença no livre-arbítrio, na liberdade do eu racional. Ele sugeriu que há uma dimensão nos homens que põe em movimento forças à revelia deles próprios, há algo neles que age sem que eles saibam sobre o que fazem. Freud descobriu o inconsciente e asseverou “o eu não é o senhor nem mesmo em sua própria casa”. O homem foi descentrado de si. Antes dele, Copérnico retirou a Terra do centro do universo e Darwin lançou por terra a máscara e as vestes de nossa suposta superioridade no universo natural, revelando-nos nossa nudez animal. Desde então, o homem não era mais um ser especial no reino da natureza.

Ouçamos Schopenhauer, em Do mundo como vontade e representação:

“A vida de qualquer indivíduo, considerada no seu conjunto e na sua generalidade unicamente nos fatos mais silentes, é, em realidade, sempre uma tragédia, mas examinada nos pormenores, tem caráter duma comédia. Porquanto o andamento e os tormentos de cada dia, as incessantes amolações do momento, os desejos e os temores da semana, os aborrecimentos de toda hora que nos foram mandados pela sorte sem pausa ocupada em escarnecer-nos, tudo isto são deveras cenas de comédia. Mas as ambições sempre desiludidas, os esforços sempre inúteis, as esperanças esmagadas sem piedade pela fortuna, os erros fatais de toda vida, com a dor que vai aumentando e com a morte por conclusão, eis em verdade a tragédia. Deste modo, e como se à  desolação da existência, a sorte tivesse querido juntar ainda a ironia, a nossa vida deve compreender todas as dores da tragédia, sem que ao mesmo tempo nos seja possível conservar ao menos a dignidade das personagens trágicas; devemos, ao contrário, nas largas particularidades da vida, ser, forçosamente, vulgares caracteres cômicos”.
(p.93)


Estranha essa vizinhança entre tragédia e comédia tomados como domínios da existência humana; não obstante, o trágico é da ordem estrutural e geral; e a comédia se imiscui no domínio das vivências particulares. As limitações de espaço e o arrefecimento do espírito desencorajam-me a levar adiante um gesto de interpretação desse passo. Considere-se o passo seguinte também de Schopenhauer.

“(...) a base de cada querer é uma falta, é uma indigência, é a dor; pela sua origem, pela sua essência, o querer está, portanto, destinado a sofrer. Ainda que tivesse objetos a desejar, uma satisfação demasiado fácil de súbito lhos tolheria, e o homem sentir-se-ia invadido por um vácuo espantoso e pelo fastio, em outros termos, seu ser e sua existência se lhe tornariam um peso insuportável. A vida, portanto, oscila como um pêndulo entre a dor e o fastio que são, de feito, os elementos que a constituem. Fato estranho que deveis exprimir de maneira assaz estranha: depois de ter colocado no inferno todas as dores e todos os suplícios, o homem nada encontrou para colocar no paraíso, além do tédio”.
(p.79, grifos meus)


Não espanta que os que se deixam guiar irrefletidamente pelos padrões da cultura do otimismo, que nos inculca continuamente ilusões de prosperidade e que, tendo em sua base também o legado cristão, promessas de redenção (porque, numa cultura do otimismo cristão, é necessário supor que sejamos sempre culpados), sintam-se desconfortáveis ao ler Schopenhauer. Não raro, Schopenhauer conduz seu leitor a um beco sem saída, pouco apropriado ao trânsito dos pensamentos que se alimentam da esperança e da salvação. Pois não há salvação e esperança alguma em Schopenhauer. Cada vontade individual se funda numa carência, numa penúria, numa dor. Essa carência, essa penúria, essa dor em que repousa o querer são insuperáveis. O homem está destinado a sofrer. Ele jamais consegue conservar um estado de felicidade e de prazer, porque “a vida oscila entre a dor e o tédio (ou fastio)”. Schopenhauer exerceu sobre Freud marcante influência. Em seu mal-estar da civilização (2010), Freud mostrará que o homem, por força da estrutura de sua psique, jamais pode permanecer indefinidamente no estado de prazer, posto que o desejo seja essa permanência. Nessa obra, Freud nota que o homem está cercado de sofrimento por todos os lados; ele identifica três origens donde lhe advém o sofrimento: da fragilidade de seus corpos, que nos destina à ruína; das forças implacáveis da natureza e do convívio com os seus semelhantes. No tangente ao sofrimento oriundo desta última fonte, observa Freud: “(...) talvez seja sentido de modo mais doloroso que qualquer outro” (p. 64).
Volvemos nossos olhares para este outro trecho de Schopenhauer:

“Os esforços contínuos para alhear a dor não tem outro resultado senão o de transformá-la. Ela originariamente se manifesta como privação, necessidade, inquietação pela manutenção da vida. E quando se tem conseguido, o que aliás é bem difícil, afastar a dor sob tal forma, eis que se apresenta sob mil outras formas variantes com a idade e as circunstâncias: instinto sexual, amor apaixonado, ciúme, inveja, angústia, ambição, avareza, doença, etc., etc. E se por fim não encontrar outras maneiras para introduzir-se, virá sob a triste e sombria capa da saciedade e do tédio, contra os quais há de provar-se, então, todos os meios. Mas se lograrmos, finalmente, derrotá-la também sob tais formas,mui dificilmente se terá feito tal coisa sem lhe abrir acesso sob alguma das formas precedentes e então a dança recomeça: porquanto a vida de todo homem oscila entre a dor e o fastio”.
(pp. 83-84, grifos meus)


Vamo-nos debruçar sobre este trecho de Schopenhauer com vistas a lhe atribuir um sentido. Seu tópico discursivo é a dor e as formas como a dor invade a existência. Schopenhauer aponta-nos várias formas pelas quais a dor se manifesta. O enunciador aprisiona seu leitor num labirinto lógico: mesmo que nos esforcemos por afastar a dor, por nos curar dela, o que fazemos não é senão dar-lhe outras formas. Não há meios de escapar à dor. Todos os nossos esforços nesse sentido são vãos, risíveis. A dor resiste a todos os nossos esforços para impedir que ela penetre as entranhas de nossa existência. Até mesmo na saciedade, o homem há de experienciar uma forma de insatisfação, porquanto, como vimos antes, a base do querer é a falta. O homem é impulsionado pelo desejo que o condena à insatisfação permanente, que o condena à busca contínua de outras formas de satisfação, todas destinadas ao fracasso da saciedade do desejo. O desejo nos move, mas nos move para o abismo do “jamais satisfeito”. Eis o trágico escuro de nossa condição! A verdade do desejo é sua permanente insatisfação, é seu vácuo impreenchível. A dança existencial é dolorosa, pois, malgrado os esforços para cessá-la, uma vez preservando-se em seu ser, o homem é impotente para interromper-lhe seu contínuo oscilar. Schopenhauer nos oferece alguma alternativa? Há alguma forma de exercer domínio sobre a realidade positiva da dor? Em seu A arte de ser feliz, a influência que sobre o pensamento schopenhaueriano exerceu o budismo se deixa entrever. No passo seguinte, o enunciador schopenhaueriano ilumina-nos algum caminho:


“(...) o edifício da nossa felicidade comporta-se de modo inverso ao que se verifica em relação a quaisquer outros edifícios, que são tão mais estáveis quanto maior é a amplitude de seus alicerces. O modo mais seguro de evitar uma grande desventura é reduzir ao máximo as próprias pretensões em relação aos meios de todo tipo de que dispomos. Pois toda felicidade positiva é quimérica, enquanto a dor é real.” (pp.83-84, grifo meu)


Considere-se com atenção este trecho. Em primeiro lugar, diz-nos Schopenhauer que quanto mais amplas são as pretensões de felicidade mais profundas e permanentes podem ser nossas desventuras. O excesso em nossas pretensões à felicidade é proporcional à desventura de um viver que se sabe decepcionante. Ora, se viver é sofrer, se a felicidade é uma quimera e apenas a dor é real, convém não instilar excesso em nossas aspirações à felicidade, pois que também excessivo pode ser o peso da dor que daí sobrevém. Schopenhauer considera a felicidade na modalidade do negativo, ou seja, a felicidade é um estado de ausência de perturbação, de inquietude. Ela é desprovida de realidade positiva. Nesse sentido, Schopenhauer foi influenciado pelo estoicismo. Devemos renunciar a uma felicidade positiva, porque ela é ilusória; nunca a alcançaremos, porque ela não tem realidade objetiva. Só nos resta uma pálida sensação de felicidade, que é o sentir-se impertubável, que é o encontrar-se num estado de ausência de perturbação, de dor, de inquietude. Retomemos a famosa imagem schopenhaueriana: “a vida é um pêndulo que oscila entre a dor e o fastio”.  Dor e fastio são extremos de descontentamento para o homem, são os domínios da desventura. Esse movimento entre um extremo e outro não cessa. Pois existir é estar em movimento. O pêndulo nunca cessa de oscilar, de ir-e-vir; o seu vaivém nos arremessa continuamente de um extremo ao outro; esse movimento incessante é a própria dança dolorosa que recomeça. Há momentos em que nos encontramos nem num extremo nem no outro, embora nunca estejamos em repouso, de resto, nunca atingimos o estado permanente de satisfação ou felicidade. Entre a dor e o tédio, há átimos de sensações de impertubabilidade, há instantes em que a vida nos é amena, suportável; talvez até nos sorria com algumas alegrias fugazes, com algum contentamento circunscrito a um momento de graça. Mas nada além disso nos é possível experienciar, segundo parece nos querer dizer Schopenhauer.
Outros trechos poderiam ser acrescidos aos que referi, de modo a compor um cenário trágico mais abrangente. Limitar-me-ei ao seguinte excerto, colhido de Dezoito brumário de Napoleão Bonaparte, de Karl Marx. Neste trecho, Marx patenteia-nos que os homens são, ao mesmo tempo, produtores e produtos da História. Os homens produzem as condições históricas que os dominam, que se tornam forças que se impõem independentemente de sua vontade e ação. Os homens ao fazer a história não se reconhecem mais como os agentes produtores das condições históricas. Experienciam no interior de si uma alienação, uma cisão entre a consciência e a prática.

“Os homens fazem sua história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas sob circunstâncias com que se depararam diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo sobre o cérebro dos vivos”.


Certa feita, entrei em desacordo com um amigo no tocante à importância da filosofia. Nossa motivação para a filosofia é bastante diversa. As necessidades que esperamos ela satisfaça de algum modo não são as mesmas entre os indivíduos. No entanto, de minha parte, é preciso ver que toda sorte de questões que ocupara os grandes filósofos ao longo dos séculos se atrela a uma questão fundamental e precedente a todas elas: a questão do bem viver. Mesmo um Kant, que se preocupou especialmente com as condições do conhecimento, que se debruçou sobre uma questão que, aparentemente, parece não dar espaço para algum pronunciamento sobre como devemos viver (sabemos, no entanto, que o Kant da Crítica da Razão Pura escreveu outras duas Críticas), não deixou de ter em conta o problema da condição humana e não deixou de oferecer sua perspectiva sobre como os homens devem viver. Toda a filosofia parte do homem, da condição humana e se debruça sobre ela. As perspectivas pelas quais ela é abordada variam, é claro. Mas pretender afastar da reflexão sobre o homem ou sobre a condição humana problemas como o do sofrimento, do sentimento do trágico, da morte, da dor, supondo haver questões mais urgentes, é sinal de uma grave miopia filosófica; em última instância, é não se ter ainda apropriado daquele modo de ser próprio do homem (de que nos fala Gilvan), que é condição para o exercício da filosofia, o qual não se confunde com erudição filosófica, embora passe por ela.


sexta-feira, 2 de maio de 2014

Poema antigo






Infelicidade

Esta infelicidade rasga-me as pálpebras
Ácida! Morde-me as maçãs do rosto
Lança-me ao leito em lancinante desgosto
Sorvido no ventre das noites álgicas

Amor ficcional no coração liliputiano
Trama, urdidura de angústia das virgens vestais
Enredos me tramam o dissabor Danteano
Morre-me o fogo de Héstia em suspiros matinais

Abandonado ao colo de sono abissal
Beijo os lábios de imagens lascivas
E na minha alma doces estigmas

Supurados em ardência e anseio
Legam-me das auroras as apatias
No túmulo pulsante de meu peito.


(BAR)


quarta-feira, 30 de abril de 2014

"A fragilidade da vida me é uma certeza familiar" (BAR)

                                           Imagem relacionada
                                
                                         O meu silêncio

Este é mais um dia comum, deste meu cotidiano comum que, no entanto, me é próprio. Não há um só dia em que eu não pense na morte, na minha, na morte de tudo que é vivente e frágil. A fragilidade da vida me é uma certeza familiar. Não há um só dia em que eu evite pensar nos amores não vividos, nos que perdi, nos que queria ter vivido num instante de insensatez poética, nos que foram esmagados pela tirania do efêmero, por razões que não compreendo ou que dispensam compreensão.

Ouçamos a Camus:

“Um homem é mais homem pelas coisas que silencia do que pelas que diz” (p. 99)

Eu escrevo para não ser lido e assim consigo algum contentamento. Este silêncio me é também familiar; eu o arrasto pelos caminhos que percorro; eu o constranjo pela insistência nos versos ou na prosa; forço-o a dizer o inefável, o que me excede no labor da filosofia. A minha verdade mora nesse silêncio que faço falar sem falar, não nas palavras que enuncio; palavras costumam nos trair. O meu silêncio é de dor, é de desejo que não calo. Nesse silêncio, convivem o que me é estranho e o que me é familiar.

Ouçamos a Camus:


“(...) o homem é seu próprio fim. E seu único fim. Se ele quer ser outra coisa, é nesta vida”.
(p. 103)



Nada me é mais estranho do que o eterno, que nega no homem o mundo sem o qual não há o humano. Eterno e humano são antíteses, são abstrações antagônicas.


“Um coração tão tenso – escreve Camus – foge do eterno, e todas as Igrejas, divinas e políticas, pretendem o eterno”.




E de novo a pertinência da morte, meu silêncio definitivo, meu abismo imperscrutável, meu leito derradeiro onde toda dor é silenciada, pois na cova onde jazerá meu corpo não estará mais quem fui; apenas o que de mim restou, os restos que resistiram à aniquilação total. Mas não se iludam: eu mesmo estarei aniquilado; somente meu silêncio permanecerá. Ele é minha obra, meu legado. Os gênios deixam seu silêncio no que escreveram. Estão nas bibliotecas. O meu silêncio ficará com os restos do que um dia fui eu. Que seja!

Ouçamos a Camus, que, brilhantemente, nos lega este passo:



“No fim de tudo isso, apesar de tudo, está a morte. Nós o sabemos. Também sabemos que ela termina com tudo. Por isso são horríveis os cemitérios que cobrem a Europa e que obcecam alguns entre nós. Só embeleza o que se ama, e a morte nos repugna e nos cansa (...)”.

(p. 103)


Escrevo estas linhas enquanto leio um capítulo de Camus; e me reconheço no conquistador que “escolheu o cercado de ferro negro ou a fossa anônima” que confirmam minha breve estadia neste mundo do absurdo, único e verdadeiro mundo.E não posso deixar de referir as palavras de Camus novamente, antes de retornar ao meu silêncio familiar:


“Os melhores entre os homens do eterno sentem-se às vezes tomados por um espanto cheio de consideração e piedade pelos espíritos que podem viver com tal imagem de sua própria morte. Esses espíritos, no entanto, extraem disso a sua força e a sua justificativa. Nosso destino está à nossa frente e é a ele que desafiamos. Menos por orgulho que por consciência de nossa condição insignificante. Também temos às vezes piedade de nós mesmos. É a única compaixão que nos parece aceitável: um sentimento que talvez vocês não compreendam e que lhes parece pouco viril. No entanto, são os mais corajosos entre nós que o experimentam. Mas chamamos viris os lúcidos e não queremos uma força que se separe da clarividência”.
(p. 104)



segunda-feira, 14 de abril de 2014

De amores só conheço traços breves



Esboços

Tenho sido insistentemente insensato
no equilíbrio que busco em minhas linhas
Tenho sido desorientado nos esboços
nunca finalizados de meus amores

De amores só conheço traços breves
E a tortuosidade de rabiscos de que só se veem
as sombras de tão pálidos

Tenho sido diligente com a sorte
Que ao fazer-me a mim ciente
De que tudo que nasce tem um prazo de morte
Vivo inda que desta certeza consciente
Como o insensato a confundir as sombras
Com os corpos e os corpos
Vivos transeuntes com as sombras
Que trafegam em minha alma


(BAR).

domingo, 6 de abril de 2014

"A linguagem é o 'lugar' de significação/construção do mundo" (BAR)

                   
                                    


                          O domínio do simbólico
        Sobre a relação entre o homem e a realidade



No filme 2001 Uma odisséia no espaço, produzido e dirigido em 1968 por Stanley Kubrick, chama-nos especialmente a atenção uma cena em que um dos macacos pega de um dos ossos de uma ossada e desfere sobre ela vários golpes. Trata-se de um momento emblemático, no qual nosso ancestral descobre estar de posse de uma ferramenta que lhe investe de um poder de agir sobre o meio ambiente. Desse instante em diante, sua relação com o mundo exterior se transforma. Ele não mais depende de ervas para se alimentar; caça para obter alimento. Também expande seu domínio territorial, intimidando os demais grupos com o poder que lhe confere a posse do osso. Aquela ferramenta torna-se, sem que ele ainda tivesse consciência disso, signo do poder, signo de força e domínio sobre o ambiente.
O uso do osso como instrumento de poder não se acompanhara, àquela altura ainda, do desenvolvimento da linguagem. Não havia ainda fala articulada, embora houvesse alguma forma de “insight”, sem raciocínio deliberado. O germe da inteligibilidade, talvez, estivesse ali naquele “insight” primevo, mas ainda não havia entendimento, não havia apreensão conceitual do mundo. O mundo ainda não fora interiorizado na forma de conceitos. A capacidade de produção de conceitos é dependente do desenvolvimento da aquisição da linguagem. Para ser mais específico: dependente da aquisição da linguagem verbal.
Ainda que admitíssemos haver, naquele momento, uma possibilidade de sentido, sua massa não estava ainda organizada, pois não havia um sistema de signos que a segmentasse e a estruturasse. O sentido ainda não estava domesticado pela língua. A palavra sentido vale, aqui, por significado. Não faço distinção entre esses conceitos, para efeito das considerações que se seguirão. Mas será preciso definir o que entendo por significado ou sentido, em tempo.
Neste texto, sustentarei a tese de que não há possibilidade de pensamento conceitual sem linguagem. Essa tese pode ser também expressa com a afirmação segundo a qual as palavras criam conceitos e delas depende a produção dos conceitos. Nesta exposição, procurarei explorar e desenvolver as complexas questões que compreendem as relações entre linguagem e pensamento, linguagem e realidade, linguagem e consciência. Não poderei dar conta da profundidade dessas complexas relações e tampouco poderia pretender mensurar todas as suas consequências (o que seria tarefa impossível num único texto), mas me esforçarei por patentear o importante papel que desempenha a linguagem no desenvolvimento da cognição humana. Estamos condenados a significar – e essa asserção será devidamente justificada neste texto. Não temos saída; não há como pensar (formar juízos, combinar conceitos) fora dos domínios da linguagem. Até mesmo para contemplar as referidas questões precisamos valer-nos dos signos que a língua nos disponibiliza. Não há, insisto, outra forma de existir para os homens senão na dimensão simbólica. Não há possibilidade de sair da linguagem para dela se ocupar. Tampouco sair dela para pensar a relação dela com o mundo, a consciência e o pensamento. Como pensar o que são os conceitos sem produzir estruturas conceituais? Como defini-los sem usar signos, que combinam, de modo indissociável, som e conceito (ou significado, para os linguistas)?
Este texto será desenvolvido em várias seções. Começarei por esclarecer o conceito de linguagem e de língua; posteriormente, debruçar-me-ei sobre a natureza do signo. A cada questão contemplada, destinarei uma seção ou subseção. Desse modo, espero poder deslindar a complexidade das questões, contribuindo para que elas se esclareçam, sem que, no curso de sua elucidação, o leitor se sinta enfadado com a revelação de suas diversas maneiras de se relacionarem umas com as outras. É consensual entre muitos estudiosos (psicólogos, linguistas, filósofos, antropólogos, sociólogos) que a faculdade da linguagem demarca uma linha divisória entre os humanos e os animais não-humanos; ademais, a capacidade de usar uma língua foi um acontecimento determinante do desarrancamento do homem em relação aos limites impostos por sua condição natural. Mas, valeria perguntar se há, de fato, uma linguagem animal e, se há, o que a torna distinta da linguagem humana? São questões que aqui tocarei de leve, sem pretender me demorar em sua exposição. O tema, por si mesmo, é complexo o bastante para pretender esmiuçar sua miríade de aspectos em um único texto.


1. A função de simbolização da linguagem verbal

Em nossas vivências cotidianas, servimo-nos de nossa língua materna para estabelecer relações comunicativas com as pessoas. É justamente porque esse é o modo imediato de nos relacionarmos com a língua no dia-a-dia que, por força do hábito, vemo-la como mero instrumento de comunicação. Essa visão reducionista da linguagem apresenta, ao menos, dois problemas que me apresso em apontar. O primeiro dos quais diz respeito à noção de instrumento de comunicação, que, facilmente, nos leva a acreditar que a língua é um simples recurso pelo qual transmitimos informações a outras pessoas. Ocorre que o uso da língua é muito mais do que transmissão de informações, é mais do que comunicar pensamentos; o uso da língua é uma atividade interacional, uma atividade intersubjetiva de produção de sentidos. A língua é o próprio lugar onde acontece a inter-ação social. Portanto, ela permite que nós interajamos com as outras pessoas; permite, em suma, que ajamos sobre o comportamento delas; é o domínio que possibilita a construção interacional dos significados. Pela língua, os falantes agem uns sobre os outros, influenciando-se de modos vários reciprocamente. Segundo essa perspectiva interacionista da linguagem, o que produzimos, ao usar a língua, são atos de fala, ações linguísticas que visam a provocar um efeito em nossos interlocutores. Nesse sentido, nossos atos de fala destinam-se a provocar neles um comportamento, uma reação, que pode ser verbal ou não-verbal.
O segundo problema que a concepção de língua como instrumento de comunicação suscita, ao mesmo tempo em que o mascara, toca ao fato de que a língua, antes de servir à interação – ou talvez, ao mesmo tempo em que serve à interação social – torna possíveis as relações do homem com o mundo.
A par de sua função comunicativa, entendida como função de interação social, é imperioso reconhecer sua função, mais básica, que é a de simbolização. Desta função depende a função de interação social. É a função de simbolização que possibilita a relação entre o indivíduo e o complexo de suas experiências de mundo. Graças a essa função, “(...) podemos transformar todos os elementos do mundo em dados da nossa consciência e em assunto de nossos discursos (Azeredo, 2002, p. 17)”.
Em Fundamentos da Gramática do Português, (2002), Azeredo mostra que a função de simbolização supõe que a língua medeia a relação entre o homem e o mundo, servindo como uma espécie de mapa que o orienta para a percepção das coisas e das relações entre as coisas. Nas palavras do autor, “assim como o mapa estrutura o território para quem o percorre, a língua organiza o mundo como uma estrutura dotada de significado” (ib.id.).
A linguagem verbal simboliza tanto o universo real em que vive o homem quanto o universo imaginário que ele cria. A tese, já anunciada, que pretenderei defender terá desdobramentos que tomam forma no seguinte fragmento tomado a Azeredo:

“Os conteúdos que o homem concebe e expressa por meio da linguagem não estão no mundo, mas na consciência humana formada na vida em sociedade, como resultado do poder simbólico da palavra”.
(p. 17, grifo meu).



Esses “conteúdos que o homem concebe” são o que podemos chamar de conceitos. Será necessário definir o que entendo por conceito, tarefa esta a que destinarei uma seção mais adiante. Por ora, cumpre notar que esses conteúdos ou conceitos não existem no mundo, nem podem existir sob qualquer condição, sem o advento das palavras, ou, o que é o mesmo, sem o poder simbólico de que elas são investidas.
O locus dos conceitos é a consciência humana, e não o mundo da experiência sensível e exterior a ela, o que não significa negar a participação da experiência sensorial no processo de produção dos conceitos (as sensações são a matéria-prima nesse processo). A condição para que haja conceitos é que exista uma consciência capaz de fabricá-los. Mas essa consciência, conforme veremos, é ela mesma produzida nas relações sócio-históricas, ou seja, no processo do viver social por força do poder simbólico da palavra.
Para bem acompanhar o curso da discussão, dever-se-á tomar a palavra como algo intimamente relacionado à vida, à realidade; mas não como uma coisa entre as coisas; e sim como condição de existência significativa das coisas. Na sua relação necessária e indissociável com a vida, a palavra é uma dimensão fundamental do processo de interação entre o indivíduo e a realidade. Na sua relação com a realidade, devemos pensar a palavra como signo dotado de quatro propriedades definitórias, das quais destaco três, por sua relevância para o tratamento do tema deste texto:


1) pureza semiótica: diz respeito à capacidade que tem a palavra de funcionar como signo ideológico – grosso modo, como forma de interpretações e reflexos da realidade social – em toda e qualquer esfera social. A palavra perpassa todas as esferas sociais;

2) possibilidade de interiorização: ela é o único meio de contato entre a consciência do sujeito, constituída de palavras, e o mundo exterior, também construído por palavras;

3) participação em todo ato consciente: a palavra opera tanto nos processos internos da consciência, pela compreensão e interpretação do mundo pelo sujeito, quanto nos processos externos de circulação da palavra em todas as esferas ideológicas.

A propriedade de interiorização que tem a palavra é, particularmente, interessante, na medida em que ajuda-nos na compreensão do conceito de consciência como produto socioideológico. Se admitirmos que a consciência humana é construída nas inúmeras relações sociais em que ela está, evidentemente, envolvida – relações estas que se tornam possíveis pelo uso da língua –, a realidade da própria consciência se forma pela interiorização das palavras, donde ser apropriado dizer, com Bakhtin, que a realidade da consciência é o signo.
Pela consciência, estruturada pela palavra, o homem percebe a si mesmo na sua relação, entretecida de significados, com o mundo. Esse contato consciente com o mundo é possibilitado pelas palavras.



2. O pensar totalizante

Creio necessário fazer uma breve digressão para esclarecer o leitor sobre a dimensão metodológica de minha abordagem. Neste texto – reitero – pretendo advogar a tese segundo a qual não há possibilidade de elaborar conceitos sem o domínio pelo homem da palavra ou da linguagem verbal. Não nego, de modo algum, que a elaboração de conceitos dependa de uma base sensorial, ainda que, neste texto, não tenha eu a pretensão de investigar de que modo as sensações tomam parte do processo de fabricação de conceitos e, portanto, da realidade. Certamente, comungo da visão de autores como Izidoro Blikstein (2003), por exemplo, segundo a qual a realidade é fabricada por toda uma rede de estereótipos culturais que condicionam a percepção. A linguagem reforça e garante esses estereótipos, de modo que a realidade é produto da interação entre linguagem, percepção-cognição e práticas culturais.
Como eu não suponha que este texto esgote tudo que se poderia dizer sobre a relação linguagem-percepção-cultura-realidade, oriento minha análise à luz de pressupostos da dialética marxista. Com base nesse método, devemos compreender que o conhecimento é totalizante e que a atividade humana é um processo de totalização. Como tal, esse processo nunca atinge uma etapa definitiva e acabada.
O que se deve entender, portanto, por totalização?
O conceito de totalização supõe a ideia de que todo objeto que se dá à percepção do homem é parte de uma totalidade. Em cada momento da ação empreendida pelo homem, ele precisará lidar, inevitavelmente, com problemas que se ligam de formas complexas. A fim de solucioná-los, o ser humano terá de construir uma visão de conjunto. Somente com base nessa visão de conjunto poderá ele avaliar o alcance de cada elemento da totalidade.
A visão do todo, portanto, precede e condiciona a avaliação das relações complexas entre as partes. No entanto, se nos ativermos ao postulado da dialética marxista anunciado acima, qual seja, “todo objeto é parte de uma totalidade”, devemos, forçosamente, reconhecer que aquela visão de conjunto é provisória e jamais pretende esgotar a realidade a que se refere.
É preciso também admitir, em consonância com esse postulado, que a realidade é sempre mais vasta, mais complexa do que o conhecimento que podemos construir dela. Há sempre alguma esfera ou região da realidade que escapa às nossas sínteses, o que não deve nos desencorajar de elaborar sucessivas sínteses, com vistas a alcançar uma compreensão cada vez mais satisfatória e totalizante da realidade.
A síntese é a visão de conjunto pela qual o homem pode descobrir a estrutura significativa da realidade, numa dada situação. É essa estrutura significativa, que se torna conhecida por nossas sínteses ou visões de conjunto, que se chama totalidade.
Na medida em que os elementos se articulam de modo vário, passam a ter propriedades que lhes faltariam caso estivessem fora do conjunto. Ora, uma vez que se assuma o conhecimento como um processo totalizante, e mesmo a própria atividade humana como um processo de totalização, impõe-se-nos a conclusão de que há várias totalidades de extensão variável. Assim, há totalidades mais abrangentes e outras menos abrangentes; as menos abrangentes integram as mais abrangentes.
O grau de abrangência das totalidades depende do nível de generalização do pensamento e dos objetivos concretos perseguidos pelo homem em cada situação. O que se disse até aqui é suficiente para advertir o leitor de que não se pretende, portanto, nesta abordagem proposta, atingir o grau máximo de totalização, o que seria um esforço inútil, visto que a própria pretensão de alcançar esse grau máximo parece estar fora do domínio das possibilidades da cognição humana. À medida que, pelo pensamento investigativo, vou desdobrando o objeto de cujo conhecimento me ocupo aqui, será inevitável que nos confrontemos com uma série reticular de problemas, de questões, de elementos que não pode ser totalmente recoberta pela análise, donde a necessidade de um “recorte”, que torne possível delimitar uma totalidade em cujos limites de desenvolva o processo de conhecer.



3. O que é o conceito?

A proposição a cuja sustentação me dedicarei, ao longo da produção deste texto, é que o conceito não preexiste à linguagem verbal e que não há conceitos no mundo, nem possibilidade de conceptualização num universo que não tenha produzido um organismo biológico dotado da capacidade de falar uma língua natural.
Em filosofia, o conceito é empregado na acepção de ideia. De passagem, noto que Ferdinand Saussure, considerado o pai da Linguística moderna, não distinguia entre significado e conceito. Na filosofia, no entanto, Kant diferenciou conceito de ideia. Para ele, as ideias eram noções gerais formadas pela razão de modo independente do mundo. Elas serviam de condição de possibilidade do próprio conhecimento. Ainda para Kant, os conceitos, por outro lado, embora preexistissem ao contato do homem com o mundo, prendiam-se às intuições sensíveis. O conceito, para Kant, comporta, pois, um conteúdo empírico, já que estava relacionado às representações do mundo. As ideias, ao contrário, entendidas como ideias da razão, são desprovidas desse conteúdo empírico.
Para Platão, Ideia ou conceito têm o mesmo significado: dizem respeito à essência das coisas. Aristóteles também não distinguia entre conceito e ideia, conquanto empregasse a palavra conceito para tratar do entendimento, isto é, da faculdade de conhecer o mundo, de nomear as coisas e de formar juízos sobre elas.
A compreensão aristotélica deixa-nos entrever a definição de conceito como representação mental ou imagem mental dos objetos de nossa percepção. Essa noção, encontramos também em Saussure.
No domínio da linguagem e da lógica, o conceito é uma unidade ou estrutura cuja função é designar alguma coisa. Nesse caso, o conceito é dotado de uma função expressiva (denotativa), na medida em que dá voz a alguma coisa. Também, nesse caso, deve ser visto como uma noção geral, por exemplo, o conceito de “árvore”, de “homem”, de “animal”, etc.
Nietzsche, seguido de perto por Deleuze, não definia o conceito apenas como uma representação mental passiva; tampouco ambos pensavam-no como uma forma a priori. Para eles, os conceitos são elaborados numa atividade contínua e intensa do espírito, na sua relação com o mundo e com outros conceitos.
É particularmente interessante notar que, segundo Deleuze, a tarefa da filosofia é criar conceitos e que os conceitos, ainda que subscritos pela assinatura de um filósofo, entram a fazer parte de um devir eterno, depois de trazidos a lume. Por isso, eles podem e são continuamente reposicionados em outros planos de significação, adquirindo, não raro, novos contornos ou matizes de significado.



3.1. Propriedades do conceito

O conceito é um objeto do conhecimento consciente, que se liga ao seu significado específico. Esse significado o distingue de outros objetos do conhecimento consciente. Por exemplo, tomemos os conceitos de “xícara” e “caneca”. Tanto a “xícara” quanto a “caneca” têm alças, por onde as seguramos, mas a xícara não tem a forma cilíndrica que tem a caneca. A caneca pode ser feita de metal, mas a xícara não o é. Xícaras, em geral, são menores que as canecas. Xícaras servem para tomarmos líquidos quentes, como café ou chá. É interessante notar que entram como parte do conceito de “xícara” e “caneca” não só aspectos formais e materiais, mas também referentes ao uso que fazemos desses objetos. Todo conceito é constituído de mínimos componentes de significado. Esses componentes é que determinam a distinção entre os diversos conceitos. Por exemplo, o conceito de “homem” inclui o componente ‘racional’, em contraste com a ausência desse componente no conceito de “animal”. Poderíamos também propor como traço distintivo dos conceitos de “homem” e “animal” a capacidade linguística: o homem é um ser de linguagem articulada; os animais são desprovidos dessa propriedade.
Todo conceito comporta duas propriedades básicas: a abstração e a generalização. Melhor será pensá-las como propriedades inerentes ao processo de produção de conceitos. Todo conceito se forma por abstração e por generalização. A abstração é o ato pelo qual se isola uma propriedade do objeto ou coisa; a generalização, a seu turno, em seguida, reconhece que a propriedade, então, abstraída, pode ser atribuída a vários objetos. Assim, por exemplo, “aspereza”, “doçura” e “maciez” são conceitos abstratos que a mente humana apreende como qualidades comuns a uma determinada classe de coisas. Também “humanidade” é um conceito abstrato para os seres humanos em geral ou para um modo de ser moralmente aceitável, quando dizemos, por exemplo, “Que falta de humanidade!”, caso em que repreendemos alguém por uma atitude moralmente depreciada.
Em filosofia, embora conceito não guarde total sinonímia com a palavra ideia (isso não deve nos surpreender, pois nenhuma palavra de nenhum língua conhecida é sinônima perfeita de outra), pode-se defini-lo como uma ideia geral e abstrata sob a qual se reúnem diversas propriedades. O conceito é condição para o pensamento elaborador e reflexivo, pois designa tudo que pode ser pensado.
Além das propriedades, já mencionadas, de abstração e de generalização, que são etapas básicas do processo de elaboração do conceito, todo conceito envolve, nesse processo, as propriedades de intensão e extensão.
Por intensão, entende-se o conjunto de características ou propriedades que integram a estrutura semântica ou a definição do conceito. Por exemplo, o conceito de “cão” encerra propriedades tais como: animal, mamífero, quadrúpede, etc. O conceito de “cadeira” encerra as propriedades: mobília, para sentar, quatro pernas, etc.
Por extensão, entende-se o conjunto dos entes ou coisas ao qual se aplica o conceito. O conceito de “cão” recobre os exemplares “basset”, “fila”, “poodle”, etc. Na semântica lexical, a propriedade de extensão é recoberta pela oposição entre hipônimos e hiperônimos. O hipônimo é o termo mais específico do qual o hiperônimo, na relação, é o termo geral. Assim, “gato” é hipônimo de “animal”; “automóvel” é hiperônimo de “caminhão”. De passagem, não ignoro o fato de que os conceitos se produzem e se transformam em condições históricas. Portanto, os conceitos são marcados por uma historicidade, da qual não poderei tratar aqui.
Finalmente, cabe lembrar que, durante uma grande extensão de tempo de sua vida, os seres humanos estão pensando. Quando acordados, dedicam grande parte do tempo a categorizar, comparar, sintetizar, analisar, avaliar os conteúdos que se lhes chegam à consciência por meio dos sentidos. Em grande parte do tempo, quando no estado de vigília, dispensam atenção ao mundo exterior.
Há razão para se acreditar que, mesmo enquanto dormimos, continuamos a processar informações. Alguns cientistas cognitivos sustentam que sonhar é uma atividade especial de pensamento. Todas as operações cognitivas – atenção, percepção, memória, pensamento e linguagem – são interdependentes; estão intrinsecamente ligadas entre si.



4. Significado ou significação?

Uso de modo intercambiáveis os termos significado e significação, embora com este último, muitas vezes, eu pretenda salientar o aspecto interpessoal-interacional implicado no conceito de significar. Assim, a significação é uma atividade que se realiza no discurso. Na Linguística, a significação é tratada, por vezes, em referência a fatores extralinguísticos, tais como, situação, conhecimentos pressupostos, intenção e uso da língua. De acordo com essa perspectiva, a significação não é um componente da palavra ou das expressões linguísticas de modo geral, mas é um processo, uma atividade  a que subjaz interpretação e na qual estão envolvidos certos mecanismos discursivos.
Há vários tipos de significação, conforme a ênfase dada aos elementos envolvidos no processo. Por exemplo, se a ênfase recair sobre a relação entre a língua e entidades, eventos, estados, etc. externos a ela e ao falante, chama-se a significação de referencial ou denotativa (há outras designações). Se a ênfase recair sobre a relação entre a língua e o estado mental do falante, tem-se a significação de atitude, ou afetiva, ou conotativa, ou emotiva, ou expressiva.
Basta-nos entender a significação (ou o significado), não obstante existirem modos variados de caracterizá-la, como o “lugar” em que o homem e o mundo se encontram, ‘lugar’ em que o mundo torna-se compreensível ao homem e lugar onde o homem se torna um modo sui generis de o Ser dar-se como objeto para o pensamento.


5. Signo, significado e a dupla articulação da linguagem


5.1. O signo e o significado

Em seu Curso de Linguística Geral (2003), Ferdinand de Saussure, considerado o homem dos fundamentos e aquele que estabeleceu, em contraste com a tradição de estudos anteriores, da qual é devedor, o que pensava ser o verdadeiro objeto da Linguística Moderna – a langue (a língua como sistema abstrato de signos considerada em si e por si mesma). Para Saussure a langue deveria ser estudada sem que se fizesse qualquer referência a fatores de ordem social, o que não o impediu de encará-la como uma realidade social, à qual opôs a parole (fala), tomada como uma realidade individual. Mas, por ser da ordem do social, a estrutura da langue decorria de convenções que não admitiam, segundo Saussure, variação. A variação, que Saussure não deixou de reconhecer, era um fato do domínio diacrônico, e não do sincrônico. As variações, para Saussure, não chegavam a constituir uma sistematicidade. Portanto, para ele, a langue era um sistema de signos homogêneo, abstrato, invariável, que deveria ser estudado num dado estado sincrônico; ao passo que a parole (fala) era heterogênea, a própria realização (uso) da langue e variável. Os linguistas – os cientistas da linguagem - tinham de se ocupar com a descrição da langue, já que, segundo a mentalidade à época, a ciência só poderia se ocupar daquilo que é invariável, homogêneo e que permitisse aprender uma sistematicidade (a parole era assistemática, segundo Saussure). A condição para que a Linguística alcançasse o status de ciência era, em suma, que seu objeto de estudo fosse passível de delimitação e que fosse homogêneo.
A langue saussuriana é um sistema de signos abstrato que se constitui de oposições recíprocas. Após rejeitar a concepção trivial de língua como nomenclatura, Saussure diz que o signo linguístico implica a combinação de dois termos de natureza psíquica (entenda-se duas faces). Nas palavras do mestre genebrino,

“O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica”.
(p. 80)


Saussure prossegue chamando-nos a atenção para o fato de que a  imagem acústica não é o som material – uma coisa puramente física -, cujo estudo – supomos – está excluído do domínio da linguística, - mas a “impressão psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos” (p. 80).
Para fins de discussão, é interessante atentar para o que levou Saussure a concluir que a imagem acústica é de natureza psíquica. Ele observou que podemos falar conosco ou recitar mentalmente um poema, sem que, para tanto, precisemos articular uma fala. As palavras podem “falar” em nós, no silêncio de nossa mente. Saussure manteve, portanto, que o signo linguístico é uma entidade psíquica dicotomicamente constituída de um conceito e uma imagem acústica. E enfatizou:


“Esses dois elementos estão intimamente unidos e reclama o outro”.
(ib.id.)


      O signo, para Saussure, resulta da combinação do conceito com a imagem acústica. Posteriormente, ele substituirá esses termos pelos correspondentes “significado” (conceito) e “significante” (imagem acústica).
Saussure se ocupou do signo linguístico, mas há outras espécies de signos, como os símbolos, por exemplo. Dessas outras espécies não tratarei neste texto. No entanto, há que se notar um traço fundamental que distingue o signo linguístico, de que tratou Saussure, e cuja natureza tratei de definir, e as demais espécies de signo. Nestas outras formas de signo (símbolo, índice, etc.), o significado está sempre do lado de fora. É atribuído a outra forma de signo. Por exemplo, um pedaço de fazenda preta é símbolo do luto (que, enquanto palavra, é um signo linguístico; de modo que, na relação estabelecida pelo símbolo, a ideia abstrata está representada em outra forma de signo – o signo linguístico “luto”). No símbolo, dá-se uma associação entre uma ideia abstrata (que precisa do signo linguístico para ser concebida) e um objeto concreto, material (a ideia de luto associa-se a um pedaço de pano da cor preta). Essa associação é convencional, tanto quanto a convenção subjacente à associação entre o significado e o significante no signo. Por ser convencional, ou seja, estabelecida por um acordo social, a associação pode ser modificada pelos homens. Ao falar da arbitrariedade na relação entre o significado e o significado, Saussure reconheceu que essa relação não era da ordem do natural; isto é, não há nenhuma base natural para justificar a associação entre a sequência sonora /mar/, por exemplo, e o significado, grosso modo,  ‘grande extensão de água salgada’. Ora, é fácil mostrar que essa associação é estabelecida por convenção social. No inglês, o significado de “mar” associa-se a outra sequência sonora /sea/. O conceito de arbitrariedade na relação entre o significado e o significante, em Saussure, diz respeito ao fato de que o significado é imotivado em relação ao significante: não há nada que explique por razões naturais a ligação do significado ao significante que encontramos num signo. Por ser estabelecida por convenção, essa relação não pode ser modificado por um indivíduo. O indivíduo sozinho não pode alterar nada na ordem do signo, segundo Saussure. Nos termos de Durkheim, podemos dizer que a arbitrariedade do signo linguístico é um fato social, no sentido de que se impõe de fora aos indivíduos, tendo sobre eles uma força coercitiva, no entanto, aceitável (e até desejável, para garantir a coesão social).
Toda significação, para ser inteligível, necessita, em última análise, de um sistema de signos verbais. Por isso, o que distingue fundamentalmente o signo linguístico das demais formas de signos é o fato de estes últimos poderem ser traduzidos pelos primeiros, que são meta-signos universais. Os signos linguísticos ou meta-signos só são traduzidos com adequação por outros signos linguísticos.
Eles não se baseiam em significados ligados a outras formas de signo, de modo que não há inteligibilidade possível para o homem fora de seus domínios. Finalmente, cumpre observar que a relação entre o significado e o significante (a imagem acústica) é chamada de relação simbólica (tomando “simbólico”no sentido amplo) e que, embora estejamos identificando o signo com a palavra, a linguística moderna chama signo toda unidade linguística que combina um significado com um significante, de modo que abaixo do nível da palavra situa-se o “morfema” como signo também. Todos os estratos gramaticais ilustram formas de signos: o menos complexo é o morfema, a ele se segue a palavra, depois o sintagma, depois a oração, depois a frase, depois o texto complexo. Este texto que escrevo é, portanto, um macro-signo, uma grande e complexa estrutura sígnica.



5.2. A dupla articulação da linguagem

A linguagem humana apresenta uma característica fundamental que a torna distinta do que se costuma chamar, sem os devidos cuidados, de “linguagem dos animais”. Essa característica foi chamada pelo linguista francês André Martinet a dupla articulação da linguagem.
Observemos que a palavra articulação significa ligação e supõe divisão; e articulado significa “constituído de partes ligadas”. Aplicado às línguas naturais, o vocábulo articulação designa a propriedade que tem um enunciado de ser dividido nas partes que o constituem. Se digo que o radical “leal” se articula ao sufixo “-dade”, quero dizer que ele se liga a esse sufixo. A ligação supõe a possibilidade de análise, de divisão do todo em suas partes constitutivas. Ilustremos a dupla articulação da linguagem, tomando-se o seguinte enunciado abaixo:

(1) O menino chorava muito.

A dupla articulação da linguagem consiste na propriedade de a estrutura linguística fundar-se em dois planos: o primeiro plano de articulação é o das unidades dotadas de significado. Trata-se do plano do significado. O segundo plano é o das unidades destituídas de significado (fonemas).  Trata-se do plano da expressão. Pela análise de (1), revela-se que o enunciado se constitui de unidades dotadas de significado. A análise dar-nos a conhecer, assim, o plano do significado. Para nos atermos apenas ao nível do vocábulo, temos a seguinte divisão do enunciado em suas partes constitutivas:

(1a) O /  menino / chorava / muito
_____________________________________
           Plano do significado


Faz-se mister observar que todas as unidades separadas por (/) são dotadas de significado, se bem que de tipo diferente. Por exemplo, as formas “menino”, “chorava” são dotadas de significado lexical, isto é, de significado que representa elementos do mundo biossocial ou extralinguístico. A forma “muito” que denota ‘grau alto’, ‘intensidade’ tem significado categorial, ou seja, um significado que indica como a realidade extralingüística é apreendida, de modo que a forma que o comporta pode inserir-se numa ou noutra categoria gramatical segundo o lugar que ocupa na cadeia sintagmática. Por exemplo, “muito” pode ser advérbio, quando se prende a um verbo, como em (1), mas pode ser pronome, se modifica um substantivo, caso em que apresentará os gramemas indicativos de número e gênero (cf. Muitos alunos faltaram hoje/ Muitas pessoas ficaram insatisfeitas).
O artigo “o”, por seu turno, comporta significado gramatical – melhor será dizer, significado referencial, já que ele indica que a entidade designada pelo substantivo “menino” constitui uma informação pressuposta como conhecida do interlocutor. Evidentemente, isso fica claro quando inserimos o enunciado (1) na totalidade do discurso. Vejamos o exemplo (2):

(2) A diz – Hoje, vi uma mulher gritando com uma criança. Gente, tadinho, o menino chorava muito.

Notemos que o uso do artigo definido “o” ocorre com a condição de já ter sido dada a informação à qual faz referência o sintagma que ele introduz. O interlocutor é capaz de interpretar “o menino” como uma unidade nominal que faz referência a “uma criança”. O artigo “o” indica que a informação contida no sintagma que ele introduz já foi dada, já é conhecida do interlocutor, ou já tem um endereço cognitivo em sua memória. Via de regra, usamos o artigo definido sempre que nosso interlocutor detém conhecimentos prévios que possibilitem a ele recuperar o referente do grupo nominal definido. Se me dirijo a meu interlocutor, no primeiro momento em que o encontro, sem dispor de nenhum conhecimento prévio de que ele detém algum conhecimento sobre o fato comunicado, numa frase como “O deputado foi cassado”, posso esperar dele uma reação de estranhamento, que poderia ser expressa na forma de um enunciado como “Do que você está falando?”. De um modo geral, somos comunicativamente competentes para calcular se nosso interlocutor tem ou não a quantidade de conhecimentos prévios necessários à compreensão de nossos enunciados, mas situações como estas não são raras e, em alguns casos, ocorrem por força de atos voluntários do locutor. Por exemplo, eu poderia querer insinuar que meu interlocutor anda muito desinformado sobre os acontecimentos políticos em nosso país. Eu poderia provocá-lo de modo que ele me desse a saber que está a par do que está acontecendo no cenário político de nosso país.
Volvendo, pois, ao significado do artigo, basta entender que esse significado não denota um elemento do mundo extralinguístico. Esse significado opera relações entre unidades linguísticas no interior do discurso ou entre a materialidade discursiva e o seu exterior (por exemplo, entre o que se atualiza no discurso e o conhecimento pressuposto como partilhado pelos interlocutores). O significado do artigo se constrói no discurso, mas vai além dele, ou depende de algo que se acha fora de seu domínio. Põe em jogo o interior e o exterior do discurso.
O enunciado (1) pode ainda ser analisado de tal modo, que seu plano de expressão se manifeste. Nesse plano, discriminam-se as unidades sonoras de que se compõe cada uma das palavras que integram o enunciado. Vejamos, então, o que se dá em (1b):

(1b) O/   /m/  /e/ /n/ /i/ /n/ /n/ /o/   /X/ /o/ /R/ /a/ /v/ /a/   /m/ /u/ /i/ /t/ /o/.

Não sigo rigorosamente a transcrição fonológica, se o fizesse, deveria sobrepor um til ao “i” em “muito”. Mas desconheço o modo como fazê-lo pelo computador. De qualquer modo, claro fique que esse “i” de “muito” é nasalizado.
A análise, em sua totalidade, revela que a produção da significação depende da relação recíproca entre esses dois planos de articulação: no segundo plano, são necessários determinados padrões de combinação de fonemas para a produção de unidades significativas. Assim, “vela” apresenta um padrão de combinação de fonemas adequado ao sistema gramatical do português, mas uma sequência como “eavl” infringe os padrões possíveis.  Essa sequência não é uma palavra, e por duas razões: em primeiro lugar, não apresenta uma estrutura fônica, não foi calcada sobre um padrão estrutural que permite construir um exemplar de estruturas fônicas em português (em “vela”, temos a combinação CVCV (consoante-vogal-consoante-vogal). O problema de “eavl” não é propriamente a combinação de duas vogais iniciando sílaba (o português admite essa combinação, como se vê em “eira”, “eivar”, “eixo”, etc.); o problema é que o português não admite sílaba sem vogal. Quando se dá o encontro consonantal, como o “vl”, necessário é que haja uma vogal, que é o núcleo da sílaba. Não há, em português, sílaba sem vogal. Em segundo lugar, “eavl”, não, sendo uma palavra, não comporta qualquer significado. A importância do significado para que uma sequência de sons linguísticos seja considerada uma unidade comunicativa é evidente, se levarmos em conta que, mesmo uma sequência como “eavlo”, calcada sobre um padrão fônico aceitável pelo sistema do português, não é uma palavra, já que não se convencionou associar a ela qualquer significado. Essa forma poderia ser um substantivo, poderia designar alguma coisa e, portanto, poderia carrear um significado; mas a comunidade de falantes do português não teve necessidade de inventá-la, ainda que seja uma forma estruturalmente prevista pelo sistema de regras da língua portuguesa. Na verdade, a criação de novas palavras é feita, sistematicamente, com base no estoque de itens lexicais já disponíveis na língua. Isso evita a sobrecarga de memória.
As unidades mínimas do plano da expressão – os fonemas – são desprovidas de significado. O “i” de “ilha” nada significa isoladamente, tampouco o “lh” e o “a”. O significado se associa à estrutura fônica, e da combinação desta com o significado resulta o signo.
Cabe notar, finalmente, que as unidades mínimas destituídas de significado, que pertencem ao plano da expressão – os fonemas –, se combinam para formar unidades de nível linguístico superior. No plano da expressão, os fonemas formam sílabas, que não são também dotadas de significado. Em “ve-la”, nem “ve” nem “la” comportam significado. O plano da expressão apresenta uma contraparte significativa, que é o plano do significado, onde se situam as unidades significativas. Quando as duas sílabas “ve” e “la” se combinam, forma-se uma unidade dotada de significado, isto é, uma palavra – “vela”.
É importante notar, contudo,  que a arquitetura gramatical se constitui apenas das unidades significativas. Essa arquitetura se organiza em níveis, os quais se dispõem na seguinte ordem, do mais baixo ao mais alto nível.

          Frase
         Oração
         Sintagma
        Palavra
       Morfema


O “a” de “vela” é, no plano da expressão, o fonema vocálico oral baixo, central e não-arredondado; no plano do signficado, é um morfema, chamado vogal temática, que permite que o radical receba uma desinência de flexão de número (s).
O mecanismo da dupla articulação da linguagem constitui um universal linguístico, isto é, existe em todas as línguas naturais. Certamente, é uma propriedade importante, quando estamos interessados em determinar as diferenças, de resto, evidentes entre a linguagem humana e a enganosamente chamada “linguagem animal”. É da “linguagem dos animais” que me ocuparei na próxima seção, com vistas a pontuar, principalmente, o que a torna muito diferente da linguagem humana. Se queremos manter o temo linguagem para designar os sistemas de comunicação dos animais, devemos, contudo, reconhecer as diferenças marcantes entre essa forma de linguagem e a linguagem articulada dos homens. Somente assim entenderemos por que muitos estudiosos insistem na opinião segundo a qual o uso da linguagem distancia os homens do reino animal. A faculdade da linguagem nos distingue ontologicamente das demais espécies de seres vivos.


5.3. A linguagem animal?

Há fartas evidências de que os animais são capazes de exteriorizar o medo, o prazer, a cólera, etc., mediante a emissão de determinados sons ou a manifestação de gestos. Nesse sentido, eles seriam capazes de comunicar, uma vez que podem influenciar o comportamento uns dos outros.
Há um interessante estudo, publicado, em 1959, pelo etologista alemão Karl von Frisch, em que é estudado o comportamento das abelhas. Nesse estudo, o autor nos dá a saber como a obreira, uma vez tendo encontrado uma fonte de alimento, transmite à colmeia a sua descoberta. Ela o faz por meio de dois tipos de dança. Se a fonte de alimento está próxima da colmeia, a abelha dança de modo circular; se, ao contrário, está distante, ela dança de modo a contrair o abdômen (a conhecida dança do oito). É interessante que a transmissão da mensagem é bastante precisa. Estando o alimento a 100 metros, a abelha executa cerca de 9 ou 10 vezes, em 15 segundos, o movimento da dança, em linha reta. Quanto maior é a distância, menos giros faz a abelha (6 giros em 15 segundos para 500 metros). Há um ritmo definido de dança correspondente a cada distância.
Para chegar ao destino pretendido, as abelhas se orientam pela direção da linha reta virtualmente traçada pela posição do sol. A linha reta forma um ângulo determinado com a vertical, e esse ângulo equivale ao ângulo formado pela direção da fonte do alimento em relação ao sol.
Sem embargo da sofisticação desse sistema de comunicação, ele não chega a constituir uma linguagem, no sentido rigoroso do termo. Não se equipara à linguagem humana.
Apontem-se as diferenças mais evidentes entre os sistemas de comunicação dos animais não-humanos e a linguagem humana.

1a diferença: é evidente que a linguagem dos animais não é produto e expressão da cultura (a cultura é uma dimensão humana por excelência).Os animais herdam a sua linguagem juntamente com a programação genética da espécie. Ainda que se possa defender um inatismo para a aquisição da linguagem humana, seu desenvolvimento depende da exposição dos usuários a um ambiente linguístico estimulante como parte do domínio sócio-cultural deles.

2a diferença: A linguagem dos animais é invariável, no tempo e no espaço. Há sempre um mesmo tipo de informação ligado a formas mais ou menos estáveis de expressão. A linguagem dos animais desconhece a pluralidade de sentidos.

3a diferença:  A linguagem dos animais se constitui de índices, ou seja, um dado físico liga-se a outro dado físico por causa natural. Não há nela signos produzidos por convenção, graças à qual o significado, associado à forma significante, pode dessa forma destacar-se. Pode-se entender esse fato dizendo que a linguagem dos animais não é articulada. Ela não permite a decomposição das unidades em elementos menores distintivos de significados.
Falta, em suma, à linguagem dos animais uma significação sistêmica. É particularmente interessante, no que tange a essa carência, notar que as línguas naturais usadas pelos seres humanos permitem a produção de um número quase infinito de combinações com base num número finito de formas de expressão, para a produção de uma gama praticamente infinita de significados. Por exemplo, o português, com 31fonemas (19 consoantes e 12 vogais), permite um número ilimitado de combinações para a produção de um número vastíssimo de significados. Vejam-se, por exemplo, as formas “gato”, “pato”, “cato”, “dato”, “fato”, “bato”, “rato”, “mato”, etc., nas quais se conservou a estrutura “ato” e trocaram-se os fonemas iniciais. Cada escolha feita produz um resultado significativamente diferente. Por isso, todas as escolhas operadas pelos falantes são portadoras ou produtoras de significado. Nada na língua é por acaso. Escolhas produzem significados. Quem escolhe inserir “garoto” em vez de “rapaz”, “ancião” em vez de “velho”, por exemplo, no ambiente  “(_______) está cansado” , escolhe entre várias maneiras de significar.
Retome-se, aqui, o que já explicitei anteriormente, agora com grifo: todas as operações cognitivas – atenção, percepção, memória, pensamento e linguagem – são interdependentes. Compreendamos essa complexa relação mútua. Se somos incapazes de pensar, não conseguimos aprender a usar uma língua. O uso de palavras depende de uma capacidade intelectual. Certamente, os usuários de uma língua precisam saber muitas coisas mais do que apenas dominar as regras do sistema gramatical da língua (as regras ou princípios que governam a construção dos arranjos linguísticos), a fim de serem comunicativamente competentes no uso dessa língua.
Há, ao menos, segundo Simon Dik (1978), quatro competências que são mobilizadas no uso da língua – competências, entenda-se, indispensáveis para que os falantes sejam bem-sucedidos no uso da língua, ou seja, para que consigam produzir e interpretar de modo adequado as expressões linguísticas. Além da competência linguística, que é a capacidade que têm os usuários da língua de produzir e interpretar enunciados de modo correto, nas mais diversas situações de interação, de outras quatro competências ou capacidades depende o sucesso sociocomunicativo dos usuários, quais sejam: a capacidade espistêmica, a capacidade lógica, a capacidade perceptual e a capacidade social. Vou-me cingir a definir apenas duas. A capacidade epistêmica consiste na capacidade que tem o falante de construir, manter e trabalhar uma base de conhecimento organizado. Ele extrai conhecimento das expressões linguísticas, estoca esse conhecimento de modo apropriado na memória, ativa-o para interpretar expressões linguísticas ulteriores. A capacidade perceptual habilita o falante a perceber seu ambiente e a derivar de suas percepções conhecimento, a fim de usá-lo quer para produzir, quer para interpretar expressões linguísticas.
Também é indispensável ao uso adequado de uma língua saber as regras ou convenções sociais que governam os padrões de interação linguística, nas mais diversas situações de uso dessa língua. Esses padrões de interação são social e culturalmente determinados. Os falantes não só sabem o que dizer, mas também como dizê-lo a um interlocutor em particular, numa situação de interação específica, a fim de atingir objetivos determinados. Essas regras sociais, em suma, governam o comportamento linguístico dos falantes, de modo a adequá-lo às diferentes situações de interação.
Não há dúvida de que a linguagem verbal influencia o pensamento. As palavras, veremos, nos liberta da relação imediata com o mundo exterior: podemos tornar presentes à consciência objetos ausentes de nosso campo de observação; podemos, através delas, reportarmo-nos ao passado, com o auxílio da memória; projetarmo-nos para o futuro, ou mesmo criá-lo na imaginação.
A próxima seção é destinada a considerações sobre a natureza da consciência e sua relação com o signo. Na seção posterior e última, examinarei a relação entre a palavra (ou linguagem verbal) e a realidade. Aí, esforçar-me-ei por mostrar de que modo a linguagem nos humaniza. O domínio da cultura não passará ao largo de minhas insistências em fazer ver o lugar demasiado representativo que a palavra ocupa na existência humana.


6. O problema da consciência

A consciência é um domínio da realidade cuja compreensão ainda é incipiente nas ciências do cérebro. O livro do renomado neurocientista António Damásio estampa um título ilustrativo desse estado de ignorância, sob muitos aspectos, em que se encontram as neurociências – O mistério da consciência (2000).
Nessa obra, Damásio observa que, em estágios antigos da evolução, os nossos ancestrais ignoravam o fluxo e o refluxo dos estados internos, incluindo os que chamamos de emoções. Esses estados eram reguladores da vida; eles desencadeavam ações vantajosas, interna e externamente, mas os organismos que as realizavam nada sabiam sobre a existência dessas ações e das operações nelas envolvidas, já que sequer tinham conhecimento de sua própria existência como indivíduos.
Os organismos, evidentemente, tinham corpo e cérebro, e o cérebro tinha alguma representação do corpo; a vida estava presente e também a sua representação, mas faltava o dono legítimo de cada vida individual (um self). Esse dono não sabia que a vida existia, porque a natureza ainda não o tinha inventado. O ser vivo existia, mas não o conhecimento. A consciência, portanto, não havia começado.
Consoante Damásio, o surgimento da consciência – o que ela é ainda não sabemos, embora intuamos sua natureza – depende da aquisição, pelos cérebros, da capacidade de “contar um história sem palavras, uma história de que existe vida pulsando incessantemente em um organismo” (p. 51). A consciência, como se pode depreender daí, surge no instante em que o organismo se percebe como uma coisa viva. Mas essa história contada sem palavras deve incluir a percepção de que os estados do organismo, nas fronteiras do corpo, são continuamente afetados, alterados pelos contatos com os objetos, nas relações com os eventos em seu meio, ou também por pensamentos e processos internos responsáveis pela dinâmica da vida.
O acontecimento da consciência é a própria emersão de um self que se manifesta como sentimento de um sentimento. Não poderei, aqui, descer a pormenores sobre a noção de self em Damásio. Remeto o leitor ao livro referido. Todavia, parece certo dizer que esse self ainda não é uma identidade pessoal, um “eu” tal como o pensamos hoje.


6.1. A consciência à luz da fenomenologia de Peirce

Charles Sanders Peirce foi filósofo, lógico, tendo se interessado também por estudos em semiótica (a ciência que estuda os diferentes sistemas de signos). Descerei a expor a contribuição fenomenológica de Peirce ao estudo da consciência. É no lugar de abertura ao Ser que pretendo tratar do problema da consciência humana, à luz da fenomenologia peirciana.
É nessa abertura que começa a fenomenologia de Peirce. Nada há mais aberto à observação humana do que os fenômenos. Começarei, portanto, por considerar o que são os fenômenos. Eles são nosso ponto de partida.
Fenômeno é, segundo Peirce, qualquer coisa que se apresente ou que esteja presente à nossa mente, de algum modo. Esse modo pode ser em sua exterioridade, como uma batida na porta (percebemos o ruído), em sua interioridade, como uma dor no estômago, um desejo ou expectativa, uma ansiedade. O fenômeno é também o que está presente na forma de um sonho, de uma ideia geral e abstrata da ciência; portanto, para Peirce, a fenomenologia é a descrição e análise de todas as experiências que se abrem para o homem em seu cotidiano, em cada instante, em todo lugar.
Começando na abertura ao real, a fenomenologia dispensa qualquer julgamento; é livre de pressupostos que classificariam os fenômenos em falsos ou verdadeiros, reais ou ilusórios. Para Peirce, fenômeno recobre tudo que está presente à mente, quer seja uma coisa real ou não.
Ora, calcada sobre esse estado de liberdade, em que tudo que esteja presente à mente é um fenômeno do qual se deve afastar prejulgamentos, ao fenomenologista impõe-se a tarefa de estabelecer categorias gerais, simples, elementares e universais a todo fenômeno. Essa tarefa depende, contudo, de que ele identifique as características que se ligam a todos os fenômenos e a todas as experiências.
Trata-se de um empresa extremamente difícil, dado que tudo que se nos apresenta à observação se reveste de múltiplas formas, se envolvem em um complexo de sensações, e também se enredam nas malhas das interpretações que fazemos, inevitavelmente, das coisas. Com frequência, os fenômenos se nos dão à mente investidos de interpretações; eles não se apresentam de modo “puro”.
Qual é, então, a tarefa da fenomenologia, segundo Peirce? Ela deve discriminar as diferenças nos fenômenos com base na observação direta deles. Mas deve também generalizar as observações de tal modo, que seja possível estabelecer certas classes de características muito vastas, universais em todas as coisas que se apresentam a nós.
Durante essa tarefa, a fim de que ela logre êxito, é necessário o desenvolvimento de três faculdades:

1) a capacidade contemplativa, a qual consiste em “ver” com o espírito o que está em face dos olhos;

2) a capacidade de discriminar diferenças nas observações feitas;

3) a capacidade de generalizar as observações em classes ou categorias abrangentes.

Peirce se lançou àquela empresa e estabeleceu as categorias universais, como elementos formais do pensamento, dispensando atenção acurada aos próprios fenômenos. Não deixa de nos surpreender que foi por esse caminho que ele conseguiu examinar o modo como as coisas aparecem à consciência. Os fenômenos mentais situavam-se no início da análise peirciana.
Foi pela cuidadosa e cirúrgica observação de tudo o que acontece que Peirce identificou as características elementares e gerais da experiência. Essas características tornam-na possível.
Antes de prosseguir, será necessário definir o conceito de experiência. Por experiência, com Peirce, deve-se entender tudo aquilo que exerce sobre nós algum efeito, que se impõe ao nosso reconhecimento. Peirce, não confundindo pensamento com pensamento racional (deliberado), que é uma das formas possíveis de pensamento, concluiu que tudo que se faz presente à consciência o faz segundo uma gradação de três propriedades, as quais correspondem aos três elementos formais de toda experiência, quais sejam, a qualidade, a relação e a representação. Esses termos foram, posteriormente, substituídos por outros correspondentes, que são primeiridade, secunridade e terceiridade.
Essas três categorias lógicas, que também se aplicaram à natureza, far-nos-ão compreender que, para o homem, o mundo se apresenta e se traduz como linguagem. Vou enfocá-las em tópicos separados, mais adiante.
Necessário é acrescentar que Peirce não reduz a consciência à razão. Para ele, a razão é uma dimensão da consciência. Ao  me debruçar sobre a realidade da consciência, não estarei interessado em determinar sua essência, em dizer o que ela é. Sartre a entendia como um nada. E poderíamos assumir que ela é uma espécie de lago sem fundo, embora não um vazio, já que habitada por ideias. Mas essas ideias se acham em diferentes camadas cujo grau de profundidade é bastante variável. Ademais, essas ideias são móveis e assim permanecem.
A razão é uma camada da consciência, a mais próxima de sua superfície. Peirce entendia a consciência como uma totalidade na qual não há senão estados mutáveis. A razão sofre, continuamente, a influência de estados que escapam ao nosso controle. Esses estados internos provêm das profundezas de nosso mundo interior. Há também influência dos estados externos, que dizem respeito às forças objetivas, que atuam sobre nós. Essas forças encontram origem nas percepções, as quais nos inundam, a todo momento, pelo simples fato de estarmos vivos.
Há também forças provenientes das relações intersubjetivas – relações de amizade, amor, ódio, etc. Trata-se, em geral, de relações sociais.
Uma vez que a consciência não é uma alma ou espírito etéreo, mas o lugar onde interagem formas de pensamento, as três categorias, já mencionadas, propostas por Peirce são modos de processamento do pensamento-signo na mente.


1. Primeiridade

Se há uma afirmação a respeito da consciência que encontra apoio nas filosofias fenomenológicas, essa afirmação consiste em que a consciência é presentidade no estar presente. Quer-se dizer com isso que a consciência é consciência imediata, pura presença tal qual é. É pura qualidade de ser e sentir aqui e agora. A consciência imediata caracteriza-se por uma impressão, um sentimento indivisível, não analisável e frágil.
Tudo que aparece à consciência de alguém imediatamente é tudo aquilo que está na sua mente no momento presente. Toda a nossa vida é dada, é aprendida no momento presente; ela está no aqui e agora.
Uma vez assumindo que a vida está inteira no presente, no momento em que nos perguntamos sobre o que está nesse presente (o instante em que escrevo esta linha, por exemplo), a pergunta vem num momento posterior, em outro presente. O primeiro presente já não é mais e o que permanece dele é algo transformado. Todo presente é fugaz à consciência imediata.
Esse sentimento que é a própria qualidade da consciência imediata, ainda que lhe dê certo sabor, é justamente aquilo que se oculta ao nosso pensamento. Eis o paradoxo em que se funda esse sentimento: uma vez que a existência humana envolve consciência do tempo, toda vez que produzimos um pensamento, ocorre um deslocamento de nós mesmos no tempo; esse deslocamento põe-nos fora do domínio do sentimento que buscamos apreender pelo pensar.
Atentemos para a descrição que nos dá a saber Lúcia Santaella, em seu O que é semiótica (2005), a fim de que nos fique clara essa presentidade da consciência:

“(...) aí está você, em algum lugar, provavelmente sentado, lendo este livro. Tome agora o que está em sua consciência em qualquer um dos seus simples momentos. Há primeiro uma consciência geral da vida. Então, há a reunião de pequenas sensações epidérmicas, de sua roupa. Há, então, o senso de qualidade geral do lugar em que você está. Há então a consciência de estar só, se estiver só. Então, há a luz, uma sensação muito vaga do cheiro e da temperatura do ambiente e do seu corpo, um certo gosto na boca... Então, as letras impressas neste livro, as quais, em qualquer um dos instantes, serão a mera apreensão de um simples traço. Há, ainda, um conjunto de noções, o provável sentimento de estar compreendendo o que estou tentando lhe transmitir (...)”.
(p. 67)



    É claro que há um sem-número de coisas mais em nossa consciência: lembranças vagas, desejos indiscerníveis, sentimentos muito gerais de estar bem ou mal. O fragmento referido ajuda-nos a ver que a nossa vida inteira se faz presente num lapso de instante em que estamos a existir. É a existência que se nos dá à consciência imediatamente no instante presente.
Agora, alcançaremos um instante de iluminação sobre o modo como a linguagem se relaciona com a consciência. A linguagem é, indubitavelmente, o principal meio pelo qual conhecemos a realidade. Esse conhecimento que nos possibilita a linguagem é sempre analítico. A fim de descrever o que supostamente ocorre em nossa consciência num dado momento, a autora precisou segmentar em partes a própria consciência que é objeto da descrição. E não há outro modo de proceder, dada a natureza da linguagem verbal. A função de simbolização que lhe é fundamental opera sempre um “corte”, uma análise no continuum de nossas experiências de mundo.
É preciso dizer, no entanto, que a consciência de um momento nunca se apresenta fragmentada. As parcelas que se revelam pela análise operada na descrição não são partes do sentimento tal como ele está no exato momento em que está presente. Pensemos, pois, na relação da criança em tenra idade com o mundo, naquele momento em que ela ainda não é capaz de fazer distinções, no momento em que ela não se tornou consciente de sua própria existência. O mundo, nessa relação, é primeira presença, é imediaticidade, é fonte de vivacidade, se revela num sentimento fresco e evanescente.
Sumariando, compreende-se – creio, sem dificuldade – que a consciência na categoria de primeiridade é a primeira apreensão das coisas, mas uma apreensão que, para nós, já aparece traduzida. Ela é uma espécie de película muito fina de mediação entre nós e os fenômenos. Consoante nota bem Santaella,

“Qualidade de sentir é o modo mais imediato, mas já imperceptivelmente mediatizado de nosso estar no mundo. Sentimento é, pois, um quase signo do mundo; nossa primeira forma rudimentar, vaga, imprecisa e indeterminada de predicação das coisas”.
(p. 92)


Sendo nossa forma primeira e rudimentar de predicação das coisas, o sentimento é uma forma primária e vaga de dizê-las; é nossa primeira forma de linguagem.


2. Secunridade

A categoria de secunridade, segundo Peirce, assume a existência de um mundo sensível independente do pensamento. A secunridade revela a vida cotidiana, revela as formas como nós nos relacionamos com as coisas, assumindo-as como fatos externos a nós.
Uma certeza se nos impõe imediatamente no modo da secunridade: o simples fato de existirmos redunda em que, a cada instante, somos consciência reagindo ao mundo. Existir é ação sobre o mundo; é sentir também a ação dos fatos externos a nós sobre a nossa vontade. Ação-reação é o movimento da existência.
O que é existir? Penso eu que é estar-em-relação-com, mas numa relação que é dinâmica e significativa. Enquanto existimos, tomamos parte numa série infinita de determinações do universo; estamos, a todo momento, resistindo e reagindo, ocupando espaços particulares, confrontando-se com outros corpos. Heidegger entendia a existência como “ser fora de si”, um estar-adiante-de-si, sempre lançado no mundo, sempre projetado para o futuro. Sartre pensava-a como ser diferente do que se é. Existir é ser sempre atormentado pelo nada, sempre ansioso, sempre ser-para-a-morte. Nesse sentido, só os seres humanos existem verdadeiramente. Quero, contudo, contrapor a essa visão filosófica moderna, a de Sponvile (2006), que inverte a máxima sartreana: a essência precede a existência. Em síntese, escreverá Sponville: “existir é insistir: porque é continuar a ser e a agir” (p. 92).  Existir, para Sponville, é persistir no ser, é resistir, é esforçar-se no presente, no mundo que nos contém. Existir é esforço por preservar uma vida que se sabe frágil e finita. Sua visão parece afinar-se com a ideia de confronto implicada na existência, tal como a pensa Peirce.
A factualidade da existência repousa sobre a corporeidade material. É a matéria que faz face às influências ou pressões da realidade objetiva. A qualidade do sentimento, não resiste ao objeto material; é puro sentir, antes mesmo de ser percebido num “eu”.
Toda sensação é secunridade, porque ação de um sentimento sobre nós e nossa reação específica. É comoção do eu para com um estímulo. A sensação encerra o sentimento e a força da adesão desse sentimento num indivíduo. Esse estar acordado é consciência de uma reação, e não pode ser confundida com cognição. A apreensão do estado de vigília se dá por meio da percepção direta, que é anterior ao pensamento.
Só há consciência do eu pela consciência do não-eu ou do outro. Tornamo-nos cônscios de nosso eu na relação consciente com o não-eu.
Na secunridade, a experiência é o próprio curso da vida, e o mundo é o conteúdo interiorizado na experiência. A experiência é o conteúdo em nós que o fluxo da vida nos impele a pensar. Por isso, é a experiência que move o pensar. E pensamento é mediação interpretativa entre o nosso eu e os fenômenos. È na categoria da terceiridade que o pensamento toma forma, conforme veremos.
Antes de por fim a este tópico, faz-se mister dizer que agir, reagir e interagir são modos concretos de dizer o mundo; é interação dialógica do homem com sua historicidade.


3. Terceiridade

Se, conforme vimos, a primeiridade é a categoria da originalidade irrepetível da experiência e se a secundidade confere à experiência uma qualidade brutal, pois supõe luta e confronto, a categoria da terceiridade, síntese intelectual de ambas as categorias precedentes, corresponde à categoria da inteligibilidade.
Na terceiridade, formam-se os pensamentos em signos, por meio dos quais representamos e interpretamos o mundo. Nessa categoria, realizam-se sínteses. Dada a experiência da sensação de aspereza, essa sensação é da ordem da primeiridade. A parede, como lugar e no tempo, em cuja superfície sentimos a aspereza, é a segundidade. A síntese intelectual, elaborada pela cognição – a aspereza da parede, a aspereza na parede, é a terceiridade.
O signo ou a representação é o modo mais proeminente por meio do qual nós, seres humanos, estamos lançados no mundo. Em face de qualquer fenômeno, a consciência produz um signo, ou, conforme entende Peirce, um pensamento que é mediação inegável entre nós e os fenômenos. Essa mediação se dá na percepção. Perceber não é outra coisa senão interpretar. É traduzir um objeto dado à consciência em julgamento de percepção. Há sempre um lugar de interpretação interposto entre a consciência e o objeto de percepção. O simples olhar já está impregnado de interpretação, porquanto é resultado de uma elaboração cognitiva.
O homem só conhece o mundo, porque, de algum modo, o representa e só interpreta essa representação por meio de outra representação, que Peirce denomina de interpretante. Por isso, conhecer um signo implica conhecer o que é representado pelo signo. Para conhecer e conhecer a si mesmo, o homem se faz signo e só interpreta seus signos traduzindo-os em outros signos.
Experimente, leitor, explicitar o significado do signo “casa”, ou seja, defina seu significado. Para fazê-lo, terá de recorrer, impreterivelmente, a outros signos, com os quais construirá um enunciado descritivo. Não definimos o significado de uma palavra apontando para o seu referente, isto é, o objeto “casa” do mundo real. Nesse caso, situamo-nos no domínio da referência exofórica, que relaciona o signo com o objeto designado. É interessante ver que o significado, na medida em que medeia a relação entre o significante e o referente (a coisa designada), é responsável pelo contato de nossa consciência com o mundo. O significado é um ‘dado’ de nossa consciência, que, no entanto, pelo signo, vincula-a ao mundo exterior. O significado está de permeio entre consciência e mundo.
Compreender um signo é explicitar seu significado; é explicitar a representação que ele comporta. Compreender, interpretar é o processo pelo qual traduzimos um pensamento em outro pensamento num movimento incessante, já que só podemos pensar um pensamento em outro pensamento.
Lembro que o signo, de um lado, representa uma coisa que está fora dele; e, de outro lado, remete-se a alguém em cuja mente evocará um outro signo que traduz o significado do primeiro signo. Todo signo, para ser interpretado, tem de ser traduzido em outro signo, e assim ad infinitum.
Todo o desenvolvimento deste texto é motivado por minha convicção de que não há possibilidade de pensamento conceitual fora dos quadros da linguagem verbal. Sigo, de perto, autores como o linguista José Luiz Fiorin (2005) e o psicólogo Vygotsky. Mesmo aqueles que sustentam existir uma forma de pensamento pré-verbal não podem recusar a indissociabilidade entre linguagem e pensamento. O historiador Adam Schaff observou, corretamente, que linguagem e pensamento são dois aspectos de um mesmo processo: o do conhecimento do mundo, o da reflexão sobre esse conhecimento e o da comunicação dos resultados obtidos. Vygotsky sustenta que, ao longo do processo evolutivo, o pensamento e a linguagem se soldaram num todo inquebrantável. Sua compreensão da relação entre linguagem e pensamento confirma nossa intuição ordinária, já que é inegável que, para refletirmos sobre os conteúdos elaborados por nosso entendimento, devemos usar palavras. Mesmo quando nosso objeto de reflexão é a própria linguagem, não há outro meio de pensá-la senão pelo uso da palavra. Não me parece exagero dizer que pensar é falar; mas falar não deve ser tomado aqui como ‘articular sons linguísticos oralmente’, mas sim como ‘concatenar enunciados no silêncio da mente’. Pois, quando não exteriorizados pela fala, que são os pensamentos conceituais senão concatenações de signos em nossa mente?
No tangente à indissociabilidade entre pensamento conceitual e linguagem, pondera Fiorin, em Linguagem e ideologia (2005):

“(...) se dissermos que o que caracteriza o pensamento humano é seu caráter conceptual, o pensamento não existe fora da linguagem. Há processos mentais que escapam ao nível puramente linguístico, mas, a partir de certa idade, o pensamento torna-se predominantemente conceptual e este não existe sem uma linguagem”.
(p. 33)


Mistério do signo: seu significado. O significado é uma face do signo que se desloca incessantemente, ou seja, é sempre outro signo ou pensamento. Tentemos compreender esse deslocamento. Tomemos o signo “casa” e busquemos definir seu significado. Pouco importa que a definição seja vaga, para o que tentarei demonstrar aqui. Então, definamos “casa” como “o lugar onde as pessoas moram”. A definição capta mais ou menos o significado de “casa”. Note-se que o significado se desdobra numa combinatória de outros signos, que constituem o enunciado da descrição. Mas não se deve concluir que o significado resulte da soma do significado de cada palavra do enunciado. O significado de um enunciado nunca é produto da soma das palavras que o constituem. Não obstante, o significado de “casa” se desloca para uma combinatória de outros signos que, de algum modo, representam uma parcela de nossa experiência com o objeto “casa”. Assim, “casa” denota um lugar, esse lugar serve de moradia, há pessoas, em geral, que a habitam, etc. O que “casa” codifica é alguma parcela de nossa experiência com o objeto representado. Assim, para esclarecer o significado de qualquer palavra, estamos aprisionados na dinâmica da significação; não há como “sair da linguagem” para explicá-la ou para compreender o mundo e dizê-lo (significá-lo). Temos de recorrer a palavras, que puxam outras palavras, que demandam outras palavras, e assim sucessivamente. Uma consulta ao dicionário prova ser esse o caso.
Há miséria e grandeza em nossa condição como seres simbólicos. Estamos condenados a significar. Consoante nota Santaella,

“Somos no mundo, estamos no mundo, mas nosso acesso sensível ao mundo é sempre como que velado por essa crosta síginica que, embora nos forneça o meio de compreender, transformar, programar o mundo, ao mesmo tempo usurpa de nós uma existência direta e imediata, palpável, corpo a corpo e sensual com o sensível”.
(p. 81)


A consciência interpretativa é produto de nossa condição de seres que traduzem um pensamento em outro. Mas não é correto supor que ela esteja divorciada de outros dois estados possíveis da mente. Não há linha de demarcação entre a primeiridade, a segundidade e a terceiridade.
É verdade que Peirce alarga o conceito de signo de modo, que ele recobre qualquer coisa que se produz em nossa consciência. O signo não é, pare ele, apenas representação na mente; pode ser uma ação ou experiência, ou mesmo uma qualidade de impressão.



7. O significado para Vygotsky

Para Vygotsky, é o significado das palavras que permite a elaboração de conceitos e de sistemas conceituais, de complexidade crescente de cadeias de pensamento. Lembro que o acesso ao significado das palavras é o momento de transição feita pela criança da inteligência prática – sensório-motora, para Piaget – aos complexos processos de pensamento.
Ainda com base em Vygotsky, uma vez que a natureza da linguagem é significar, segue-se daí que o desenvolvimento do pensamento conceitual é determinado pela linguagem, no curso das experiências sócio-culturais em que a criança está envolvida. Vygotsky percebeu bem que o significado é um elemento necessário e constitutivo da palavra e que a palavra sem significado não é palavra, mas um som (como são os fones de uma língua). Ademais, ele via o significado de uma palavra como uma generalização e, como tal, não era senão um conceito. A generalização é o próprio processo de formação de conceito, segundo Vygotsky, no que estamos de acordo. É um ato inegável e específico de pensamento. É forçoso, portanto, reconhecer que o significado da palavra, ou o conceito, é também um fenômeno do pensar.
As coisas que se dão em nossa experiência sensível não seriam totalmente conhecidas se não fossem reconhecidas pelo pensamento humano fundado no signo. Antes da aquisição da linguagem ou durante o desenvolvimento do processo, a criança já está sendo moldada pelas palavras dos adultos. Ainda que, nesse período, a imagem e a palavra se confundam para a criança, a palavra confere à imagem significado.
Quando as coisas são nomeadas pela palavra, ela liga a ordem do real (das coisas sensíveis) à ordem simbólica (das coisas para si), tornando aquela primeira ordem pensável e comunicável. Vale ponderar sobre este ponto. Não se negue uma ordem do sensível, mas essa ordem só se torna inteligível, só pode ser submetida aos processos de pensamento, quando a palavra ou a linguagem verbal lhe impõe uma ordem. Somente quando essa ordem sensível é estruturada numa ordem simbólica é que passa, então, a entrar a fazer parte da consciência humana como conhecimento.
Vygotsky nos mostra que o processo de internalização da linguagem faz confluir para um mesmo sentido o mundo biológico e as referências do mundo sócio-cultural. Esse processo desencadeia mudanças na relação do sujeito com a linguagem; marca as impressões culturais nos processos cognitivos, conferindo-lhes uma dimensão humana e estruturando a consciência e a cognição infantil.
O que é o mundo humano senão um sistema de significados? (Azeredo, 2007, p. 17).



8. A palavra e a realidade

        8.1. O mundo humano


Note-se, de início, que, para Bakhtin, sem linguagem, não há psiquismo, mas tão-somente processos fisiológicos, porquanto o que define o conteúdo da consciência são fatores sociais. A consciência se constitui do conjunto dos discursos que o indivíduo interioriza ao longo de sua vida. O homem aprende a compreender o mundo pelos discursos que interioriza e, na maior parte do tempo, os reproduz em sua fala.
O que chamamos de mundo humano não é a totalidade das coisas existentes como dadas à experiência sensorial humana. O conceito de mundo não se reduz à noção de planeta em que habitamos.
O que é, então, o mundo? O mundo só existe para os seres humanos, porque é apenas para eles (veja-se como a linguagem nos permite transcender a relação imediata com o mundo, pois o autor deste texto pode, sendo um ser humano, mediante o pronome “ele”, referir-se à espécie a que pertence como objeto de reflexão) que esse mundo pode ser nomeado. O mundo é tudo aquilo que pode ser dito; é a totalidade ordenada passível de ser nomeada, de modo que as coisas só podem existir para uma consciência humana na medida em que são passíveis de receber um nome. Mas “coisas” designa não só os objetos materiais, acessíveis à nossa experiência sensível, mas também as entidades mentais, como ideias, sentimentos, entes imaginários, etc. Por exemplo, amor, justiça, amizade, bem como bruxa, vampiro e lobisomem existem como objetos para o pensamento reflexivo, por força dos nomes que lhes atribuímos. O amor existe como conceito que faz parte do mundo criado e reconhecido por meio das palavras.
Não há existência possível para o homem fora da dimensão simbólica: tudo que existe para o homem tem um nome. Aquilo que não tem nome, em última instância, não existe, tanto no mundo exterior quanto no mundo interior da mente. O que não tem nome não pode ser pensado; e se não pode ser pensado, não existe.
Embora a linguagem verbal seja o sistema fundamental de criação e significação do mundo – a base fundamental da cultura e da sociedade (Hjelmslev) -, não ignoro a existência de outras formas de linguagem, como a da matemática, a das artes, as gestuais, etc. Aliás, a linguagem corporal é parte constitutiva do processo de produção de nossas interações verbais. Quando falamos, fazemos gestos com as mãos, revelamos expressões faciais, por exemplo, franzindo as sobrancelhas quando não concordamos com o que nos dizem, etc. As expressões de nosso corpo estão em sintonia com o significado de nossas expressões linguísticas. Não franzimos as sobrancelhas ao mesmo tempo em que demonstramos verbalmente contentamento. Franzir as sobrancelhas pode sinalizar reprovação e é de esperar que se acompanhe de expressões linguísticas que demonstrem reprovação ou insatisfação.
O mundo humano é também um gigantesco acervo de conceitos e conhecimentos. “Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo” – escreveu Wittgenstein. Quanto mais palavras conhecemos, quanto mais conceitos conseguimos articular, maior será o nosso mundo, maior é a extensão e alcance de nossa consciência. A extensão de nossa linguagem é proporcional à extensão do conhecimento que temos do mundo.
Tomemos, agora, o significado de existir. Sei bem que já o evoquei anteriormente; mas o conceito de existência é extremamente problemático e parece nos envolver em uma trama metafísica. Existir é, decerto, mais do que o viver biológico. Se os animais são, se a planta é ( em-si, segundo Sartre), o homem é ser para-si, ao que eu acrescentaria, ser-com. Existir é um movimento relacional com o sentido, que é seu fundamento. Para o homem, existir é estar consciente da relação com o em-si. A existência do para si (a consciência humana), dirá Sartre, é liberdade e transcendência, pois que nega sua facticidade tanto quanto os objetos. O homem existe sabendo o que não é. E a relação com o sentido é sempre de abertura para um além de sua facticidade, de sua condição natural. O sentido é lugar de transcendência do homem em relação a essa condição, que não pode negar completamente, é claro (não pode deixar de ser finito), mas que lhe permite continuar a existir na condição de ser-para-a-morte (Heidegger). O conceito de “ser-para-a-morte” não é referido aqui por capricho intelectual. Ao evocá-lo, quero salientar que, se o Dasein é constitutivamente um ser-para-a-morte, se a morte é sua possibilidade mais autêntica, se essa condição é fonte de angústia, não pode o homem abrir mão do sentido, de existir tecendo sentido. Se existir é correr para a morte inevitável, se, como notara Durkheim, a sociedade é um bando de homens que caminha em direção à morte inevitável, o homem está condenado, ao longo dessa corrida, a produzir sentidos, a tecer de significados as malhas de sua existência.
Um exemplo extremamente interessante que ilustra a indispensabilidade do sentido para o existir humano é o fenômeno do suicídio.  É um truísmo dizer que somente os seres humanos são capazes de se suicidar, mas o que daí se segue tem importância filosófica. O homem é o único ser que, deliberadamente, pode dar cabo de sua própria vida e não deixa de ser espantoso, para muitas pessoas, que alguém que goze de perfeita saúde  possa se matar. É possível que as razões para explicar o suicídio variem bastante, mas vistas em conjunto, de uma perspectiva filosófica, elas indicam a percepção pelo indivíduo da absurdidade de sua existência. O suicídio também ajuda-nos a ver a importância da dimensão do sentido para a própria conservação da existência. O suicídio parece testemunhar em favor do fato de que, para o ser humano, a manutenção do viver é dependente de sua coerência simbólica. Pessoas se matam porque a vida deixou de fazer sentido para elas.



         
8.2. A construção da realidade

“Não há sentido sem palavras nem mundo sem linguagem”
(W. Luijpen)

“Na palavra, na linguagem, é que são primeiramente as coisas”
(Heidegger)

Nesta seção, enfocarei, de modo especial, como a linguagem verbal se relaciona com a realidade. Vou-me esforçar por mostrar que o que chamamos de realidade se apresenta em formas ou níveis distintos. Não existe uma realidade já dada, situada fora de uma relação significante entre a consciência humana e o seu exterior. Lembro que a fabricação da realidade depende de uma complexa interação da qual participam a cultura, a percepção-cognição e a linguagem no domínio da práxis. A linguagem verbal não opera sozinha, portanto. Mas, nesta seção, é do papel da palavra nesse processo que me ocuparei especificamente.
Quando nos debruçamos sobre a questão da realidade – o que se seguirá é extensivo também à questão da verdade -, precisamos levar em conta as maneiras como o homem se relaciona com o mundo – por exemplo, pela ciência, pela filosofia, pela arte, pela religião, etc.
A realidade imediata é a realidade da vida cotidiana; é a dimensão mais tangível, mais próxima de nós; é, por excelência, a realidade mesma, na qual nos movemos como os animais se movem em seu habitat. Mas, lembro que, ao contrário dos animais, nós não temos um habitat. Nossa capacidade de adaptação às condições mais hostis no planeta é devedora de nossa capacidade de transformação do ambiente. Somos a única espécie do planeta que conseguiu se fazer presente em toda parte (isso soa até trivial para uma espécie que ousou e conseguiu romper as fronteiras do próprio planeta em que vive).
A fim de examinar a relação entre a palavra e a realidade, será necessário assumir o pressuposto segundo o qual o homem, não sendo um ser meramente passivo, que tão-somente recebe as impressões no contato de seus sentidos com a realidade exterior, é um ser que as compreende enquanto age numa totalidade dotada de sentido para ele (é o homem que doa sentido a essa realidade). Ademais, devemos admitir que o homem é construtor ou fabricador do mundo, edificador da realidade. A realidade é fabricada ou construída na práxis por sujeitos humanos numa rede interacional na qual atuam a cultura, o aparelho perceptual-cognitivo e a linguagem.
Não se negue o fato de que o homem, imerso no viver cotidiano, não se percebe como tal: crê estar submetido à realidade, cujas forças naturais ou sociais se voltam contra ele e os domina. Essa questão é especialmente interessante à sociologia (veja-se, por exemplo, o que sobre ela escreveu Durkheim); não poderei desenvolvê-la aqui.
A existência para o homem não é a mesma existência dos demais animais. A diferença fundamental entre a existência humana e a das demais formas de vida repousa sobre a palavra ou a linguagem verbal.
Pelo exposto na seção em que me ocupei da consciência, pode-se depreender que a consciência humana é uma consciência reflexiva, já que ela pode voltar-se sobre si mesma, isto é, pode ela mesma ser objeto de reflexão de si. Essa reflexividade da consciência só é possível – vale frisar – graças à linguagem: um sistema simbólico pelo qual o homem constrói a realidade, estrutura suas experiências de mundo, dando-lhes um investimento de sentido.
Graças ao poder simbólico da palavra, os seres humanos arrancam-se da relação imediata com o ambiente biofísico, de modo a tornar presentes a sua consciência espaços que não estão acessíveis aos sentidos.
A palavra presentifica à consciência regiões a que nossos sentidos não têm acesso no aqui e agora. Se pronunciamos a palavra “baleia”, imediatamente evocamos na mente do nosso interlocutor uma imagem (imagem acústica), uma impressão psíquica do som, à qual está associado um significado. O conjunto dessa relação dicotômica é o signo, que é sinal de uma operação que não encontra um equivalente entre as demais espécies: a transformação de um objeto ou coisa do mundo exterior em dado ou objeto da consciência.
Os animais não-humanos estão irremediavelmente presos aos seus sentidos. Embora muitos dos quais sejam dotados de consciência, esta não parece transcender as informações recebidas dos sentidos. Enquanto eles têm um meio ambiente, o homem vive no mundo (o mundo que é entretecido de significados, mundo que se funda no simbólico).
Devemos à palavra também a possibilidade de o homem ter criado o tempo. Esclareça-se o que se quer dizer com isso. Não se está negando que o tempo físico exista e que tanto o homem quantos animais dotados de consciência tenham dele uma experiência. Mas o modo como o homem experiencia o tempo é distinto. Em primeiro lugar, o homem – e somente ele – é capaz de segmentá-lo num passado, presente e futuro. Filosoficamente, podemos até dizer que apenas o presente é do domínio do ser, que o passado e o futuro se identificam ao não-ser. Essa concepção, que é desenvolvida por Sponville, já foi esposada por mim alhures. No entanto, a questão que me ocupa é outra. Por força da função de simbolização da linguagem, o passado existe para o homem como representação, como uma esfera de tempo (representada) na sua memória. Isso que chamo de passado, ou seja, que categorizo como passado pode ser ressignificado, de modo que sua extensão compreenda o passado da espécie humana (donde a possibilidade de reconstruir a História, pelos registros deixados pelas gerações anteriores). Essa reconstrução é produto de uma textualização. O mundo de que falamos, o mundo de que se ocupam nossos discursos é mundo textualizado, o que significa dizer que é um mundo ou um modelo de mundo que é produto da ordem imposta pelo simbólico. Nossos textos não são como fotografias do mundo real; não fazem uma fotocópia do mundo real; mas operam uma espécie de taquigrafia. Todas as configurações linguísticas que dão forma aos nossos textos são expressões de interpretação. O mundo textual não é o mundo real tal como ele nos aparece; é um mundo reconstruído pelas lentes de sentido, lentes que podem embaçá-lo, que podem nos fornecer uma visão deformada. O mundo de que falamos em nossos textos é mundo interpretado. O mundo, aliás, não existe para nós fora dos domínios do sentido; por isso, dizer o mundo é investi-lo de sentidos, é reconstruí-lo pela interpretação que é processo de significação. O que apreendemos – por exemplo, no caso do texto escrito, o que o leitor apreende - é o olhar que o locutor ou escritor (em sentido lato) lança sobre a realidade ou um aspecto dela.
A palavra permite que o homem planeje seu futuro; ele sabe que há um tempo por vir; o porvir já lhe está antecipado. O meio simbólico é o domínio onde a existência humana acontece, onde o viver torna-se existir. Esse meio é criado pelas práticas linguísticas no interior da cultura de uma comunidade de fala. Pela palavra, o homem cria também um “eu”, reconhece-se como um “eu”; nesse momento, funda-se a alteridade no interior do mundo, pois o “eu” só existe ou se reconhece como tal na diferença confrontiva com um “outro”, ou um “não-eu”. O fundamento da identidade é a diferença.
Por meio do uso da palavra, por meio da produção do discurso, na dimensão das práticas culturais, o “eu” se constrói constituindo o “eu” do outro e por esse eu-outro é constituído. Não há “eu” fora dessa relação eu-outro-eu-do-outro, mediada e fundada pela palavra.
No domínio da linguagem verbal, o ser humano reconhece-se como “eu” diferente do corpo. Ao contrário dos animais não-humanos, que são seu corpo, ou que a ele estão fortemente aderidos, o homem tem um corpo. É uma espécie de truque da linguagem – talvez, fosse melhor falar em truque do cérebro capaz de linguagem, que o reforça – a crença de que existe um “eu” “descolado” do corpo, que pode tomar este corpo para objeto de reflexão. Há algo mais interessante aí: não só o corpo se torna objeto de reflexão do “eu”, mas o próprio “eu” pode objetificar-se. Na psicologia, pode-se falar em introspecção. Por essa atividade, o eu se ocupa dos seus próprios sentimentos e, ao fazê-lo, toma consciência de seus estados mentais.



9. Conclusão

Não supondo que tudo que se poderia dizer sobre o assunto discutido neste texto esteja esgotado, evidentemente, ponho-lhe termo, não sem antes reforçar alguns domínios de conhecimento explorados. Em primeiro lugar, espero que tenha ficado claro que se o mundo é organizado e significado pela linguagem calcada sobre a palavra, a realidade será fundamentalmente construída e mantida por ela. Além disso, nossa percepção do mundo é influenciada pela língua que falamos.
Nossa língua materna está dialeticamente relacionada às condições materiais de existência e, numa sociedade estruturada pela divisão de classes, como a nossa, a língua está a serviço, pela produção do discurso que materializa formações ideológicas, da reprodução das injustas condições sócio-históricas que mantêm uma grande maioria da população impedida de participar ativamente das esferas de poder.
Evidentemente, minha preocupação foi atingir uma totalidade que fizesse abstração de questões sócio-históricas específicas, por exemplo, como de que modo a linguagem se relaciona com a ideologia, de que modo o discurso contribui para reproduzir e transformar as estruturas de dominação, etc. Minha preocupação consistiu em perfurar certas crenças empedernidas que levam as pessoas, em geral, a assumir simplesmente que a língua que usam no dia-a-dia só lhes serve de meio para comunicar seus pensamentos a outrem.
Não poderia neste texto tratar com acuro do modo como as práticas culturais enformam os processos de construção linguística da realidade. É interessante notar que nossa visão, nossa audição, olfação e gustação são moldados culturalmente. Essas sensações são codificadas de modos diferentes nas diversas línguas. Esse fato nos levaria a contemplar a hipótese de Sapir-Whorf, que se apresenta sob duas formas: uma forte e uma fraca. A versão mais fraca e mais aceita diz que a estrutura da língua falada por um indivíduo influencia a percepção e a lembrança. Sapir-Whorf também sustentaram que, de certo modo, falantes de línguas diferentes teriam visões de mundo diferentes, o que significa dizer que a realidade não seria a mesma para comunidades linguísticas diferentes. Um falante de francês veria o mundo de modo relativamente diferente de um falante de inglês, e assim por diante. Esse é um tema muito interessante e que nos fornece muitas questões sobre as quais pensar; por isso, a ela seria necessário destinar outro texto.
De tudo que se expôs, creio ser possível concluir que a realidade é a dimensão que nós produzimos dialeticamente quando nos relacionamos com a materialidade do mundo por meio do sistema de significação de que nos servimos para organizá-lo. Esse sistema de significação é produto de nossas experiências culturais, ao mesmo tempo em que serve para torná-las possíveis.  A base da cultura é de ordem simbólica.

Libertos estejamos da visão instrumentalista da linguagem, podemos compreender claramente que, antes de servir à comunicação, a língua é o ‘lugar’ de construção interacional de sentidos, ‘lugar’ de significação do mundo, é lugar de emergência do próprio real entretecido de significados que constituem, eles mesmos, seu fundamento.