sexta-feira, 7 de março de 2014

"Viver sem filosofar é o que se chama ter os olhos fechados sem nunca os haver tentado abrir." (Descartes)

                                                Resultado de imagem para Descartes


                                                        Filósofos em cena

                                        Cogito, ergo sum
                                                                    (Penso, logo existo)

Ao longo deste texto, debruçar-me-ei sobre a questão do Cogito cartesiano. Antes de atacá-la, serão necessárias algumas considerações prévias que lhe darão uma consistência contextual. Como a questão sobre a qual versa este texto se assenta na distinção entre alma e corpo, convém apresentar, em linhas gerais, como o conceito de alma (em oposição ao corpo) foi definido e desenvolvido na tradição filosófica. Posteriormente, vou-me deter a considerá-lo na filosofia de Platão, cuja posição sobre o tema determinou o caminho das especulações posteriores (cite-se a influência que o pensamento de Platão exerceu sobre o de Santo Agostinho). Em seguida, trago à cena o itinerário da filosofia de René Descartes, etapa em que me deterei a discorrer sobre a questão do Cogito.

1. Anima

Do latim anima, a alma se opõe ao corpo e é um dos princípios do composto humano. Trata-se dos princípios da sensibilidade e do pensamento. A alma torna o corpo vivo distinto da matéria inerte ou da máquina. Para Aristóteles, a alma é “o ato primeiro de um corpo natural organizado”.
Na filosofia antiga e clássica, a alma é tomada como sinônimo de espírito e se opõe ao corpo. Se, por um lado, o corpo está destinado à destruição, ao perecimento, a alma, por outro lado, é indestrutível. É preciso dizer, no entanto, que os antigos falavam de uma imortalidade da alma (ver Platão) e não do espírito.
Na filosofia contemporânea, usa-se apenas a forma espírito. A partir de Kant, questões como a imortalidade da alma não faziam mais parte da alçada da filosofia. Como nos interesse compreender o conceito de alma no racionalismo de Descartes, devemos ter em conta que, em sua filosofia, alma é sinônimo de espírito. Descartes concebia a alma como uma substância completamente distinta do corpo.
Na filosofia antiga e clássica, a alma era vista como o sopro ou princípio da vida e do movimento. Ainda que a ela esteja associado um sentido religioso, a alma ou o espírito recobre a atividade pensante e pode chegar a identificar-se com a mente.
Decerto, a ideia de espírito abriga as atividades intelectuais. Para os materialistas, não há o dualismo corpo-alma, de modo que a alma é tão material quanto o corpo, embora ela assuma uma forma mais sutil da matéria.



2. A alma para Platão

Que a brevidade com que tratarei da questão da relação entre a alma e o corpo em Platão não sinalize uma compreensão empobrecida ou descuido interpretativo meu é coisa com que me preocuparei ao situar o dualismo alma-corpo no pensamento platônico. Não é difícil sustentar que a filosofia platônica deu margem a uma interpretação dualista.
O problema da alma, em Platão, pode ser visto sob duas perspectivas: a primeira toca à relação entre a alma e o corpo e consiste em saber se a alma é ou não separada do corpo; a segunda diz respeito à imortalidade da alma. À parte a distinção feita por Platão entre corpo e matéria – que o cristianismo tratou de tomar como sinônimos -, para Platão, o corpo é mortal; e a alma, imortal. Platão nos legou a crença numa vida após a morte e também a crença em que a alma preexiste ao corpo. E muitas religiões se apropriaram dessa compreensão, ainda que seus doutrinadores sequer tenham consciência disso.
Platão sofreu, como se sabe, influência da doutrina pitagórica, que não só sustentava a imortalidade da alma, mas também a possibilidade de a alma, após a morte do corpo, habitar outros corpos. Ainda que eu esteja ciente de haver certas contradições em Platão, por exemplo, quando admite que o corpo é um suporte da alma tornando possíveis, assim, as sensações – entendimento este que aponta para uma imprescindibilidade do corpo em relação à alma -, mantenho-me no curso de uma interpretação dualista que, em todo caso, Platão autoriza, ao pensar a relação entre a alma e o corpo.
A alma é; o corpo também é. Assim, eles são o mesmo; no entanto, o corpo é a seu modo: é mortal, é perecível; a alma é imortal, imperecível. Nesse sentido, se opõem. A morte nunca atinge, no homem, a alma. Ela foge do corpo, escapando à morte. Daí depreender-se a ideia do corpo como cárcere da alma. Uma vez perecido o corpo, a alma se liberta. No mundo das coisas sensíveis, a alma existia habitando o corpo. Quando a morte atinge o homem, apenas o corpo perece; a alma, todavia, retorna a uma além-mundo donde proveio.
O argumento platônico – aliás como todo argumento – não pretende provar nada, mas convencer. E sua lógica supõe que tudo tem o seu contrário; o contrário da morte é a vida, mas não a vida cujo fim ela decretou: sua lógica não se encerra aí. Ela nos leva a compreender uma continuidade da vida no “além-vida-morte”. Destarte, antes de nascermos neste mundo, antes de vivermos esta vida, já vivíamos em outro mundo e uma outra vida.


3. O racionalismo de Descartes

Descartes (1596-1650), filósofo e matemático francês, é considerado na tradição da historiografia filosófica o pai da filosofia moderna. Embora seja conhecido por ter descoberto a lei da refração, em ótica, seu trabalho mais famoso é uma obra filosófica, intitulada de Meditações sobre a filosofia primeira. Ela orientou as especulações sobre a filosofia da mente e epistemologia por, pelo menos, trezentos anos.
Descartes ventilou questões atinentes ao modo como conhecemos o mundo, valendo-se, para tanto, de um ceticismo radical. A única coisa de que dizia poder ter certeza é de nossa própria existência. Essa certeza toma forma na máxima “Cogito, ergo sum”, traduzida, comumente, como “penso, logo existo”.
Seu objetivo, nas Meditações, era a construção do edifício do conhecimento sobre sólidas fundações. Ao submeter à revisão as crenças que tinha, Descartes se deu conta de que elas eram, por vezes, contrárias entre si. Resolveu, então, por ordem a esse emaranhado de crenças, de sorte que pudesse justificar uma proposição com base em outra por inferência.
Seria, evidentemente, dispendioso e mesmo impossível examinar uma crença por vez. Descartes decidiu, pois, lançar mão de um método: o método da dúvida. Por esse método, se questionava sobre a origem de suas crenças. Se a origem delas se revelasse falível, a crença devia ser descartada; se, ao contrário, se revelasse infalível, ele poderia estar seguro de que qualquer crença da mesma origem garantiria os princípios do conhecimento.
Descartes critica tudo que aprendeu na escola, porque não repousava sobre fundamentos ou princípios sólidos. Para se fundar na certeza, o conhecimento deveria iniciar-se pela busca de princípios absolutamente seguros. O método serve ao homem para conduzir bem a sua razão (para Descartes, a razão é a faculdade de bem julgar e de discernir o verdadeiro do falso). Serve-lhe também para procurar a verdade nas ciências. A busca da verdade depende de que sigamos um caminho reto, seguro e certo, isto é, um método.
O bom método deve exibir as seguintes características, segundo Descartes:

1) Deve permitir o conhecimento do maior número possível de coisas;
2) Deve compreender o menor número de regras possível;

O método cartesiano se pretende universal e se inspira no rigor da matemática e se assenta no encadeamento racional. Para Descartes, o método é sempre matemático, visto que no horizonte do filósofo estava o ideal matemático. A matematização do mundo era a ambição cartesiana. Para tanto, o conhecimento deve ser completo e inteiramente dominado pela razão.
Aspirando à brevidade, não vou apresentar as quatro regras fundamentais do método cartesiano. Passo, doravante, a considerar o porquê de Descartes ser considerado um racionalista. O estudo da filosofia de Descartes faz-nos ver o primado da Razão sobre os sentidos na busca pelo conhecimento e pelo estabelecimento da verdade. Descartes concebia o homem como um animal racional. Sustentava que a razão ou o bom senso era distribuída igualmente entre os homens, conquanto observasse que nem todos os homens se servissem dela corretamente, donde se segue a necessidade de um método para a boa condução da razão.
No século XVII, tempo em que vivera Descartes, o racionalismo é definido como a doutrina que, por oposição ao ceticismo, atribui à Razão humana a capacidade exclusiva de conhecer e de estabelecer a verdade. O racionalismo se opõe ao empirismo, por considerar a Razão como independente da experiência sensível. A razão é inata, imutável e igual em todos os homens. O racionalismo, em oposição ao misticismo, rejeita toda e qualquer intervenção dos sentimentos e das emoções (Descartes separa a Razão da Emoção). No domínio do conhecimento, a única autoridade admitida por um racionalista é a Razão.

3.1. As verdades primeiras

Por intuição, Descartes entendia um conhecimento direto e imediato, que nos permite aceitar uma coisa como verdadeira. A intuição é a visão da evidência. Uma idéia é evidente sempre que é uma ideia clara e distinta. Uma ideia clara se impõe a nós em sua verdade imediata, sem que possamos dela duvidar. Uma ideia é distinta quando não se confunde com nenhuma outra.
Segundo Descartes, além da intuição, precisamos nos valer do raciocínio discursivo, bem como da dedução. A dedução é uma demonstração que conduz o espírito (a alma) a uma conclusão certa, com base num conjunto de proposições que se encadeiam necessariamente umas as outras, segundo uma ordem: cada proposição deve estar ligada àquela que a precede e àquela que a segue.
Descartes advoga que devemos rejeitar como falsas todas as crenças das quais não podemos duvidar. Só devemos aceitar as coisas indubitáveis. A dúvida, em Descartes, não se confunde com a dúvida cética, que serve para sustentar a impossibilidade de o conhecimento humano atingir a verdade. Descartes objetivava a verdade; por isso, sua dúvida visava a encontrar uma primeira verdade, que se impusesse ao espírito de modo que ele aderisse a ela com absoluta certeza. Trata-se de uma dúvida metódica, voluntária, provisória e sistemática. Não é possível atingir a verdade, se, antes, não pusermos todas as coisas em dúvida. São falsas todas as crenças das quais não podemos duvidar. Por isso, Descartes rejeita os dados dos sentidos: eles, muitas vezes, nos enganam. Além disso, rejeita os raciocínios: por vezes, eles nos induzem ao erro.

4. O Cogito

Após duvidar de tudo, Descartes descobre a primeira verdade, expressa na fórmula Penso, logo existo. A primeira observação sobre essa máxima é que ela não é uma prova, não deve ser interpretada como uma prova. Ela é um saber imediato, uma espécie de intuição intelectual, por meio da qual se conclui do “eu penso” o “(eu) existo”.
Lembremos que duvidar de tudo que julgava saber não era o fim da filosofia cartesiana. Descartes não era um cético; ele buscou por em revista tudo aquilo  que acreditava ser verdadeiro, com vistas a atingir uma primeira certeza. Essa primeira certeza é a da existência de um “eu pensante”. Não podemos duvidar nem de que pensamos nem de nossa existência, já que o fato mesmo de duvidar é pensar e, para duvidar, precisamos, necessariamente, existir. Quem pensa é uma substância; como tal, precisa existir enquanto pensa. Tendo-se assegurado de sua existência, Descartes, perguntando-se sobre “quem sou eu”, conclui ser uma substância que pensa. Ele identifica o “eu” à alma; e a alma, ao pensamento. Assim, ele estabelece o primado do espírito, fazendo dele algo completamente distinto do corpo. Fica estabelecido o dualismo cartesiano: a alma é uma substância completamente distinta do corpo.
Com base na primeira verdade, Descartes chega à segunda verdade: a da existência de Deus. Ele argumenta que o exame das ideias desse “eu” leva à certeza da existência de Deus. É Deus quem garante as verdades matemáticas e nos permite, através delas, agir sobre o mundo. Deus também assegura a existência do mundo, campo da atividade humana. Recuperando o argumento de Santo Anselmo, Descartes “prova” a existência de Deus: por definição, o ser perfeito é aquele que possui todas as perfeições. A existência é uma perfeição; logo o ser perfeito (Deus) existe. Pressuposta, nesse argumento, está a ideia de que a existência é um atributo de Deus tanto quanto o é a perfeição.
Faço uma digressão, a fim de trazer à cena o chamado Argumento Ontológico de Santo Anselmo (1033 -1109), evocado por Descartes. Santo Anselmo, que se baseava no pressuposto segundo o qual não poderia haver oposição entre a Fé e a Razão, manifestava grande confiança na capacidade de a Razão poder demonstrar a verdade dos dogmas revelados. Ele era um verdadeiro racionalista, ainda que nutrisse grande confiança na Revelação. Santo Anselmo assume a premissa segundo a qual Deus é o ser perfeito além do qual não é possível pensar um ser maior e mais perfeito. Esse Ser não poderia existir apenas em nossa inteligência ou pensamento, porque, assim, poderíamos supor existir na realidade um ser ainda mais perfeito. Seres que existem na realidade são mais perfeitos do que os que só existem na inteligência. Como Deus é o ser mais perfeito além do qual nada maior pode ser pensado, é necessário que Deus exista tanto na inteligência quanto na realidade.
Volvemo-nos a Descrates. O sentido da fórmula “penso, logo existo” consiste em inferir a existência necessária de um eu pensante. A existência dessa substância pensante é a primeira certeza a que chegou Descartes, a qual resistiu à dúvida suscitada pelo argumento do Deus enganador. Essa primeira certeza também se mantém imune à dúvida cética.
O cogito é a fonte de todo o idealismo posterior: o pensamento é a única realidade que é imediatamente dada ao espírito, de modo que qualquer outra realidade deve ser deduzida dele. O idealismo cartesiano é uma filosofia dualista, porque define o corpo e a alma como duas substâncias completas, heterogêneas e essencialmente opostas. As ideias são separadas das coisas. As ideias são modos do pensamento, ao passo que as coisas são modos da extensão.
Fazendo eco a Platão, Descartes sustenta que, em virtude de o eu estar ligado a um corpo, o conhecimento que temos do mundo exterior é confuso, porque provém dos sentidos.

4.1. A distinção entre alma e corpo

Tomem-se excertos da obra Discurso do Método: Meditações (2008), nos quais ficam patentes a distinção entre o físico e o psíquico e a desvalorização dos sentidos como fonte de conhecimento. No primeiro trecho, a seguir, Descartes estabelece a separação entre alma e corpo:
“(...) quando examinara por que dessa não sei qual sensação de dor se segue a tristeza no espírito, e da sensação de prazer nasce a alegria ou então por que essa não sei qual comoção do estômago que se chama fome, nos faz ter desejo de comer, e a secura na garganta nos faz ter a vontade de beber (...) não podia apresentar nenhuma razão, senão que a natureza assim mo ensinava; pois certamente não há nenhuma afinidade e nenhuma relação, pelo menos que eu possa compreender, entre essa comoção do estômago e o desejo de comer (...)”.

(p. 130)


Nesse trecho, a separação entre o psíquico e o físico se depreende dos pares “sensação de dor” e “tristeza no espírito”, “sensação de prazer” e “alegria”, etc. As sensações situam-se no domínio corpóreo; e as emoções de tristeza e alegria, no domínio do espírito.
Abaixo, não é custoso ver a desvalorização dos sentidos como fonte segura para o conhecimento:

“(...) depois, muitas experiência foram pouco a pouco arruinando todo o crédito que dera aos meus sentidos: pois observei numerosas vezes que umas torres que de longe pareciam redondas, de perto se mostravam quadradas, e que uns colossos erguidos sobre as mais altas cumeeiras dessas torres me pareciam estatuetas quando as olhava de baixo (...) encontrei erros nos juízos fundados nos sentidos externos; e não só nos sentidos externos, mas até nos internos: pois há algo mais íntimo ou mais interno que a dor?”.

(p. 130-131)


Após alcançar a certeza de sua existência, Descartes conclui que a sua essência é ser uma coisa que pensa (é o pensamento). Eu sou uma substância pensante. No próximo fragmento, é patente a distinção entre alma e corpo. Destaco os trechos que marcam essa distinção:

“(...) embora talvez - ou antes certamente como o direi em breve – eu tenha um corpo ao qual estou muito intimamente unido, no entanto, porque, por um lado, tenho uma ideia clara e distinta de mim enquanto sou somente uma coisa pensante e não extensa, e, por outro, tenho uma ideia distinta do corpo enquanto é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é certo que eu, ou seja, a minha alma, pela qual sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta do meu corpo e pode ser ou existir sem ele”.

(p. 132)


Descartes não nega a íntima união entre alma e corpo, mas pensa o eu ou se percebe a si mesmo como independente do corpo. A alma e o corpo são tomados como ideias claras e distintas e, como tais, não se confundem; são concebidos como coisas separadas. Eu não sou o meu corpo; sou uma coisa que pensa.
Descartes segue apontando outras evidências que dão base à compreensão da alma e do corpo como duas substâncias completamente distintas. Descobre que aas faculdades de imaginar e de sentir não são indispensáveis para a consciência que ele tem de si mesmo. Essas faculdades dependem, no entanto, da substância pensante (o eu, a alma), à qual estão irremediavelmente ligadas.
Também outras faculdades como a de mudança de lugar não podem ser concebidas, ou mesmo não existiriam sem que estivessem unidas a alguma substância, que Descartes identifica com a substância corporal ou extensa. O conceito claro e distinto dessa substância (o corpo) dá a conhecer que nela há uma espécie de extensão, mas, de modo algum, inteligência. O que dá base para que a relacionemos a uma substância independente.
Descartes não duvida de que é dotado de uma faculdade passiva de sentir, isto é, “de receber e reconhecer as ideias das coisas sensíveis” (p. 132). Porém, a utilidade dessa faculdade depende da existência de uma faculdade ativa habilitada a formar e produzir ideias. Descartes, como se pode ver, subordina a faculdade da sensibilidade à faculdade da inteligência. No excerto abaixo, ele fornece mais um argumento para endossar a distinção entre alma e corpo:

“Ora, essa faculdade passiva não pode estar em mim enquanto sou apenas uma coisa que pensa, visto que ela não pressupõe o pensamento e também que aquelas ideias muitas vezes me são representadas sem que eu contribua de modo algum para tal e até mau grado meu; cumpre, pois, necessariamente, que ela esteja em alguma substância diferente de mim, na qual toda a realidade que está objetivamente nas ideias que são produzidas por essa faculdade esteja contida formal e eminentemente, como notei acima; e essa substância é ou um corpo, isto é, uma natureza corporal, em que está contida formal e efetivamente tudo o que está objetivamente e por representação nessas ideias; ou então é Deus mesmo ou alguma outra criatura mais nobre que o corpo, na qual aquilo está contido eminentemente”.

(pp.132-133, grifos meus)


Descartes recorre, por vezes, a Deus como uma espécie de fiador do conhecimento seguro do mundo. Deus não pode enganar, portanto, fica excluída a falsidade do domínio das ideias ou opiniões sobre as coisas sensíveis. Na passagem, a seguir, é mesmo estranho que Descartes chegue a suprimir a rígida separação entre alma e corpo, mas o texto não parece deixar margem à dúvida sobre essa supressão. Descartes reconhece que tem um corpo dotado de disposições, necessidades, que é capaz de sofrer efeitos como o de dor:

“A natureza também me ensina por essas sensações de dor, de fome, de sede, etc., que não estou só alojado em meu corpo como um piloto em seu navio, mas , além disso, a ele estou unido estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que componho como um só todo com ele”.

(p. 134)

Claro parece que não mais se distinguem corpo e alma. Descartes não só suprime a separação estrita entre a alma e o corpo (“a ele estou unido estreitamente), como também desliza facilmente da ideia de “união estreita” para a de “unidade” (“compondo como um só todo com ele”). Adiante, Descartes considera as sensações de fome, de sede, de dor como “maneiras confusas de pensar” e afirma que elas se originam “da união e da mistura do espírito com o corpo”. Agora, não faz sentido situar as sensações como atributos exclusivos do corpo. Elas assumem formas confusas da atividade do pensamento, porquanto decorrem da mistura do espírito com o corpo.
A natureza é concebida por Descartes quer como reunião ou complexo de todas as coisas dadas a mim por Deus, quer como reunião que compreende muitas coisas que só pertencem ao espírito, como a noção de verdade, a de infinitude, a de irreversibilidade do efeito no tempo, etc. Em sentido estrito, a natureza recobre apenas as coisas que Deus me dá enquanto sou um composto de espírito (alma) e corpo.
Sendo racionalista, Descartes sustenta que somente o espírito permite-nos ter acesso à verdade. O espírito não é responsável por dar vida ao corpo. Descartes diz ser possível ao corpo, concebido como uma máquina composta de ossos, nervos, músculos, etc., mover-se do mesmo modo. A natureza do homem é um composto de alma e corpo. Descartes reconhece que essa natureza é falha e se engana facilmente. Como, então, em face disso, assegurar a bondade de Deus?
A retomada da rigorosa distinção entre alma e corpo se acha no excerto a seguir:

“há uma grande diferença entre o espírito e o corpo”

(p. 137)

O corpo é, por natureza, divisível (res extensa); e o espírito (res cogitans) é inteiramente indivisível. O eu cartesiano é concebido como uma coisa absolutamente inteira. O eu ou essa coisa que pensa é representado como uma totalidade uma. É verdade que o espírito está unido ao corpo, ou assim pareça, mas a eliminação de uma parte do corpo não implica a subtração de qualquer das faculdades do espírito, segundo crê Descartes: a do querer, sentir, conceber, etc.
Essas faculdades estão intimamente ligadas ao espírito, pois que “é o mesmo espírito que se aplica inteiro a querer, a sentir e a conceber, etc.” (p. 137).
Sucede ao contrário com as coisas corporais ou extensas. Elas podem ser segmentadas em nosso pensamento. Nosso espírito pode dividi-las em muitas partes facilmente. Descartes extrai daí a conclusão segundo a qual “o espírito ou a alma do homem é inteiramente diferente do corpo” (p. 139).
O cérebro é a base das impressões recebidas pelo espírito. O espírito as recebe do cérebro. O componente físico atua sobre o mental: o espírito é afetado pela sensação quando o corpo manifesta algum sintoma. Por exemplo, a secura da garganta causa no espírito a sensação de sede, fazendo com que ele leve o composto à satisfação dessa necessidade.
Descartes reconhece que os sentidos indicam muito comumente o verdadeiro quando se referem às comodidades e incomodidades do corpo. O espírito pode servir-se deles para examinar uma mesma coisa e, com o auxílio da memória, relacionar os conhecimentos disponíveis no presente aos obtidos no passado. Graças ao entendimento, o espírito descobre as causas dos seus erros.

4.2. A relação mente-corpo

Há, ao menos, uma região da experiência que não se esclarece facilmente pela razão. Ao descobrir, com Descartes, que sou uma substância pensante, impôs-se-me a compreensão de que meu corpo é uma substância distinta de mim, cuja essência consiste em pensar. Ademais, dei-me conta de que há coisas materiais diferentes de meu corpo que se movimentam no espaço-tempo.
Descobri também que posso compreendê-las como figuras geométricas por meio do espírito. Não obstante, persiste o problema de saber como meu corpo – uma res extensa (coisa extensa) – pode interagir com a minha mente, a substância pensante que sou.
Descartes nos fez ver que o corpo age sobre a mente, quando, por exemplo, a sensação de sede causa-me o desejo de beber água. Todavia, quando nos detemos sobre a questão ainda não se nos afigura ao espírito clara e distintamente como um ato corporal pode afetar um sentimento na mente. Como o corpo, substância material, pode afetar a alma, substância imaterial?
A substância pensante é clara e distintamente acessível ao pensamento; o corpo também pode ser conhecido do mesmo modo, quando considerado como uma máquina. Mas, na medida em que eu sou um composto de alma e corpo, o modo como essas duas substâncias distintas se relacionam continua me sendo um mistério.
A esta altura, preciso esclarecer o que Descartes entende por substância. Para ele, é o que pode existir por si mesmo, é o que tem existência independente. Descartes foi chamado de dualista por assumir a existência de duas substâncias apenas, conforme vimos: a substância corpórea, que ocupa espaço e é divisível; e a substância pensante, que não ocupa espaço e é indivisível.
Mas o próprio Descartes reconhece ser Deus também uma substância, de modo que já não são mais duas as substâncias de que se constitui a realidade, mas três. Ocorre que a definição de substância por ele adotada supõe que ela seja algo independente, que existiria independentemente de qualquer outra coisa, o que nos leva a concluir que somente Deus, por definição, deveria ser considerado uma substância. Aliás, essa foi a posição assumida por Espinoza, que marcou sua filosofia como um monismo. 
Coube a Descartes conferir um lugar central ao problema da interação entre mente e corpo na filosofia. Ele se notabilizou pelo modo como o enfocou. Ainda que o dualismo corpo-mente fomente discussões calorosas na filosofia contemporânea, filósofos há hoje que reconhecem que o dualismo não fornece uma explicação satisfatória sobre o modo como pensamos a nós mesmos, à luz do que sabemos por meio da ciência atual.
O dualismo cartesiano não se desenvolveu nos mesmos moldes do dualismo medieval. Descartes postulou a existência de duas substâncias distintas: res extensa e res cogitans. Ele insistiu na independência dessas substâncias e julgou ser o “eu” uma consciência unitária e transparente a si mesma.
As faculdades mentais eram atividade de um “eu” presente e capaz de existir sem o corpo.
A teoria cartesiana enfrentou visões adversárias. Na concepção de Aristóteles, por exemplo, a alma, denominada de pneuma, era uma coisa física. O cristianismo jamais se desprendeu da ideia, forjada pela visão ortodoxa da Igreja, de que a ressurreição se estendia ao corpo e à alma, portanto, ao composto corpo-alma. Destarte, nem os cristãos se sentiram dispostos a acolher a visão cartesiana, que não cessava de fazer apelo ao Deus cristão, da existência de uma alma completamente independente do corpo.
A inovação de Descartes repousa em ter conferido à substância pensante independência relativamente ao corpo. Hoje, no entanto, dispomos de conhecimentos, advindos das ciências do cérebro, que endossam uma objeção de peso ao dualismo cartesiano: como sustentar que o pensamento seja independente do corpo, mais especificamente, do cérebro, se há evidências de que certas faculdades mentais são prejudicadas ou deixam de existir quando certas regiões cerebrais são lesadas? É certo que lesões no cérebro suprimem certas possibilidades de pensamento.
Não obstante, do ponto de vista lógico, a concepção de Descrates da imaterialidade da alma não deixa de ser válida. Ele notou bem que, no homem, a existência se funda na capacidade de o eu ser concebido como distinto do corpo. A noção de conceber tem um papel importante no postulado da distinção entre o corpo e a alma. Descartes argumentou que o que pode ser concebido como algo distinto poderia ser tomado como existindo de modo distinto. Descartes recorre a noção de Deus para assegurar que a separação fosse possível.
O raciocínio de Descartes esclarece-se com o seguinte encadeamento de ideias: se posso conceber o “eu” como uma substância pensante (um conhecimento que se me dá de imediato), então posso imaginar esse “eu” prescindindo de um corpo; desse modo, o corpo não precisa ser parte essencial da natureza do eu.
Espinosa assumiu, contrariamente ao dualismo cartesiano, uma posição que se acomoda bem à perspectiva funcionalista da mente. Segundo Espinosa, mente e corpo são uma mesma substância. Essa substância única encerra o atributo do pensamento e da extensão. A mente é um modo finito da substância infinita concebida como pensamento; o corpo é um modo finito da substância infinita concebida como extensão. Para Espinosa, portanto, mente e corpo são uma única coisa, ainda que, da perspectiva em que nos situamos, os concebamos como sistemas irredutíveis um ao outro.
No que tange à teoria funcionalista da mente, os estados mentais são considerados como componentes do software; e os estados corporais (cerebrais) são concebidos como componentes do hardware. À luz dessa concepção, fisiologistas e neurocientistas se ocupam da atividade cerebral como se estivessem considerando componentes do hardware; ao passo que psicólogos tratam das atividades mentais como sistemas de input e oupt de informação, ou seja, como propriedades de um software.





quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

"O que a história pode nos ensinar de mais seguro é que nos enganávamos sobre um ponto de história" (Valéry)

                               
                                    


                                 O antijudaísmo cristão
                                  Discurso, verdade e poder


Do latim historia, que, remontando ao grego, significava “pesquisa”, “informação”, História será tomado, neste texto, na acepção de sucessão de acontecimentos. Trata-se da história-acontecimentos, os quais são produzidos por forças humanas encarnadas em disputas e em contradições. Essas disputas e contradições, que constituem elas mesmas os acontecimentos históricos, devem ser contempladas em sua relação necessária com o poder.
O termo poder é extremamente importante na discussão que empreenderei neste texto. Por isso, urge defini-lo.

1. Poder

Para Max Weber, poder é a capacidade de exercer controle sobre indivíduos, eventos ou recursos, isto é, é agir de modo tal a produzir aquilo que se quer que aconteça, não obstante obstáculos, resistência e oposição.
Há muitas divergências sobre como se deve conceituar o poder. As dificuldades de conceituação se devem, em parte, às formas diferentes que ele assume. Acrescente-se que a maneira como é definido tem efeito significativo no modo como se pensa em sistemas sociais e no seu funcionamento.
A forma de poder que me interessa, para a elaboração deste texto, é a denominada power-over (poder-sobre). O poder chamado de poder-sobre deve ser entendido como um recurso que os indivíduos possuem, tendo em vista um sistema social organizado hierarquicamente. Assim, o poder é algo que pode ser retido, retirado, capturado, perdido, cobiçado ou roubado e que é usado em relações basicamente marcadas por antagonismo. O poder-sobre assenta num conflito entre os que o têm e os que não o têm.
Destarte, as disputas históricas assumem a forma de lutas em torno do poder-sobre em sistemas sociais, compreendidos como totalidades cujos subsistemas são interdependentes e permeados de interesses que podem corresponder aos interesses do todo social ou colidir com eles. É verdadeiro para a modernidade, ao menos, que o poder produz o real, produz os domínios de objetos do saber e os rituais de verdade.
A noção de sistema social também precisa ser elucidada, a fim de que se perceba sua utilidade para a compreensão do fenômeno histórico de que este texto se ocupa.





2. Sistema social

O conceito de sistema social tem analogia com a noção de sistema nas ciências naturais, notadamente na física (sistemas mecânicos) e na biologia (sistemas orgânicos). As analogias com esses dois tipos de sistemas permitiram a construção de dois principais modelos sociológicos de sistemas sociais, embora sempre houvesse a preocupação de salientar os traços que os tornam distintos dos sistemas das ciências naturais.
Um sistema social é, portanto, a totalidade social no interior da qual coexistem inúmeros campos de ação superpostos, cada qual com sua própria dinâmica de desenvolvimento. As instituições sociais são constituídas de subsistemas do sistema social geral. Assim, devem-se distinguir os subsistemas econômico, político ou religioso, cada qual comportando uma função específica, contribuindo, desse modo, para assegurar a coesão geral do sistema social mediante o intercâmbio de energia e informação.
Todo sistema social depende do equilíbrio para manter um bom funcionamento, e o equilíbrio só se obtém quando há reciprocidade nas relações entre os diversos subsistemas. Uma dimensão importante que assegura o equilíbrio da totalidade do sistema são as interações linguísticas mediadas pelos indivíduos.
Os sistemas sociais são moldados por processos de integração e adaptação (Parsons). Assim, eles são suscetíveis de influências ambientais, as quais se expressam na forma de um fluxo constante de energia e informação (visão biológica), o que não impede que, em certas condições ambientais, um sistema possa ser estudado em estado de equilíbrio, isolado do ambiente, como se fosse um sistema estanque.

Outro conceito que ocupa um lugar importante nas reflexões que se seguirão é o de verdade. A verdade é uma moeda cara; todos nós queremos possuí-la. Seu valor é inegável tanto aos homens da ciência quanto ao homem comum. Foucault nos chamou a atenção para o fato de que a busca da verdade e o discurso da verdade se realizam através de um exercício de poder. A busca pela verdade é sempre interessada. Na modernidade, verdade, conhecimento e ciência estão, portanto, intimamente articulados ao poder.
As religiões organizadas também namoram a verdade (quando não a depravam) . Desde as origens, a fé cristã se impôs como a única fé verdadeira. Os cristãos alegavam que o seu Deus era o único deus verdadeiro. Mesmo a fé cristã que, de tempo em tempo, precisou ora articular-se à razão, ora reivindicar, em face dela, a sua superioridade, não desistiu de cobiçar a verdade. A teologia cristã se apoia em verdades reveladas. Os cristãos creem que sua Bíblia é o próprio registro dessas verdades. Decerto, desconfio demais dessas verdades, o que me impede de atribuir-lhes qualquer sentido de utilidade que não seja abusivamente ideológico. A teologia está repleta de abusos semânticos desse tipo. O uso que a doutrina cristã faz da palavra Revelação, por exemplo, para se referir a um projeto do Deus “vivo” que se fez conhecido do homem, está entre os abusos semânticos a que me refiro.
Veremos que nossa concepção de verdade provém de três ramos linguísticos: o grego, o latim e o hebreu. Isso equivale a dizer que o conceito de verdade, no pensamento ocidental ,foi legado pelas culturas matrizes da cultura ocidental: a greco-romana e a judaico-cristã.
Começarei apresentando e definindo as três concepções de verdade de que somos herdeiros; posteriormente, vou-me debruçar sobre a exposição que Adam Schaff faz do tema em seu livro História e Verdade (1983), com o objetivo de sublinhar a relação entre verdade, conhecimento e história.

3. As três concepções de Verdade

3.1. A verdade como alétheia

Em grego, verdade se diz alétheia, palavra que se constitui da combinação do prefixo “-a”, que expressa negação (cf. amoral), com a forma léthe, que significa ‘esquecimento’. Alétheia significa, portanto, o ‘não-esquecido’. Platão falava da verdade como o que é lembrado ou o que não é esquecido. Por extensão semântica, alétheia passou a significar também o ‘não-escondido’, ‘não-dissimulado’.
A verdade é, assim, o que se manifesta aos olhos do corpo e do espírito. Os antigos gregos concebem-na como a manifestação do que é realmente. Portanto, a verdade se opõe à falsidade, a qual é o encoberto, o ocultado, o escondido. A verdade é aquilo que se mostra plenamente para a razão. A verdade é o que é evidente. A palavra evidência quer dizer justamente o desocultamento total de algo para a visão que, portanto, o apreende completamente.
A concepção grega de verdade supõe que a realidade se manifeste, se desvele (‘remova o véu que a encobria’) à visão intelectual dos seres humanos. A verdade, assim, é uma propriedade das próprias coisas, na medida em que elas manifestam o seu próprio ser. Para os antigos gregos, conhecer é ver e dizer a verdade que se acha na realidade e que, por isso, depende de que a realidade se manifeste. Por isso, entre os gregos, o ser é o verdadeiro (estar de posse da verdade é contemplar a manifestação do ser (o que é realmente)). O falso é o parecer, ou seja, algo que apresenta ser mas que não é.


3.2. A verdade como veritas

Em latim, verdade se diz veritas e diz respeito à precisão, à exatidão de um relato. Nesse caso, diz-se que se atingiu a verdade, se o relato é fiel ao que realmente aconteceu. A verdade se acha, agora, na linguagem, compreendida como narrativa adequada aos fatos. Logo se vê que a verdade é dependente da acuidade com que os fatos são relatados. Prende-se à memória, já que resulta da fidelidade dos fatos rememorados na forma de relato ao que de fato aconteceu.
Não há mais aparência (como na acepção grega), mas mentira e falsificação. Os fatos são reais ou imaginários; e os relatos sobre eles é que são verdadeiros ou falsos.


3.3. A verdade como emunah

Em hebraico, a verdade se diz emunah, que quer dizer ‘confiança’. Um Deus verdadeiro ou um amigo verdadeiro são aqueles que cumprem o que prometem; são fiéis à palavra dada e, por isso, dignos de nossa confiança. A concepção de verdade hebraica está na origem de enunciados como “Um amigo verdadeiro não trai”, “Um verdadeiro pai cuida de sua família”, etc. Emunah é uma verdade fundada na esperança e na confiança na promessa feita; portanto, ela se reporta ao futuro. Sua forma mais elevada é a Revelação divina e a perfeição de sua expressão está na profecia.

Passando em revista as três concepções de verdade em que se baseia a compreensão ocidental de verdade, vale notar o que se segue:

Alétheia é a verdade que se encontra na realidade; é a verdade cujo acesso depende de uma automanifestação da realidade à visão racional e intelectual (evidência). O conhecimento verdadeiro é a apreensão racional dessa verdade. Dessa concepção de verdade, deriva uma teoria da verdade como evidência e correspondência, segundo a qual o critério da verdade é a adequação de nosso intelecto à realidade. Nesse caso, nossas ideias correspondem efetivamente à realidade por elas representadas. Inversamente, a verdade pode resultar da adequação da realidade ao nosso intelecto, caso em que as coisas correspondem, de fato, às ideias que a representam.
Veritas é a verdade cujo critério é o rigor e a precisão no uso da linguagem, na forma como se elabora o raciocínio, como encadeamos as ideias. Nossas ideias, nesse caso, relatam em nossa mente os acontecimentos exteriores a nós e são verdadeiras quando organizadas segundo regras e princípios lógico-semânticos e gramaticais previstos pela linguagem. Os relatos são verdadeiros quando correspondem a uma realidade externa. O critério da verdade é a coerência interna entre as ideias e as cadeias de ideias de que se compõem o raciocínio. O que marca o verdadeiro é a validade lógica dos argumentos.
Emunah é, em sua forma secular, a verdade que depende de um acordo, um pacto de confiança entre pesquisadores, que definem um conjunto de convenções universais sobre o conhecimento verdadeiro. Todos devem respeitar essas convenções. A marca da verdade é o consenso e a confiança recíproca entre os membros de uma comunidade de pensadores e cientistas.
O consenso é estabelecido com base em três princípios:

1) somos seres racionais e nosso pensamento é governado por princípios da razão;
2) somos seres dotados da faculdade da linguagem, e a linguagem funciona segundo regras lógicas e gramaticais convencionais;

3) os resultados auferidos numa investigação devem ser submetidos à discussão e ao exame pelos membros de comunidade de estudiosos, os quais lhes atribuirão ou não valor de verdade.


3.4. Verdade, conhecimento e história

Em seu História e Verdade (1983), Adam Schaff considera a verdade como juízo verdadeiro, cuja definição supõe a noção de reflexo. Assim, escreve Schaff “é verdadeiro um juízo do qual se pode dizer que o que ele enuncia é na realidade tal como o enuncia” (p. 92).
Schaff reconhece que a definição clássica de verdade está entre as inúmeras definições já formuladas. Além da dificuldade de conceituar a realidade, não menos embaraçoso é elucidar a relação entre o conteúdo do juízo e a realidade. Nesse tocante, propõem-se termos como adequação, correspondência, reflexo, conformidade, analogia, cópia, etc. Com vistas a descrever as condições de verdade, vários foram os esforços mobilizados para definir a verdade: alguns a viram como consentimento universal, economia de pensamento; outros a consideraram como coerência entre proposições, crenças no interior de um sistema de crenças, utilidade prática. Observa Schaff que “nenhum dos critérios mencionados (consentimento universal, coerência, etc.) garante a verdade do conhecimento (p. 93)”, o que significa dizer que não nos assegura a certeza de que o que nós enunciamos se conforme com o que é de fato.
Do ponto de vista científico, observa Schaff, um juízo é verdadeiro sempre que os pesquisadores estão convencidos (porque dispõem de provas científicas que dão sustentabilidade à sua convicção) de que o juízo está em conformidade com o objeto real. É preciso considerar uma questão que facilmente nos induz a equivocar-nos: a relação entre verdade e objetividade.
As concepções grega e romana de verdade se esteiam sobre o pressuposto da existência da realidade objetiva, de modo que toda verdade é objetiva. A objetividade do conhecimento – deve-se frisar – é seu valor universal, o qual não é afetado por alguma coloração emotiva. Trata-se, certamente, de um ideal de objetividade, já que o componente subjetivo (quem conhece é um sujeito social) não pode ser separado do componente objetivo. O oposto de uma verdade objetiva não é, portanto, uma “verdade subjetiva”, porque a verdade subjetiva não seria outra coisa senão uma falsidade (Schaff, p. 93). Em todo caso, a oposição comum entre verdade objetiva e verdade subjetiva conduz-nos a encarar outro problema relevante a toda discussão desenvolvida sobre o conceito de verdade. Trata-se do litígio entre relativistas e absolutistas. Afinal, a verdade é absoluta ou relativa? Longe de resolver a questão, procurarei aqui posicionar-me como um partidário da verdade absoluta. Dois são os problemas que se devem distinguir na questão que consiste em determinar se a verdade é absoluta ou relativa.

1º) Saber se um juízo dado é verdadeiro ou falso independentemente (visão absolutista) ou dependentemente (visão relativista) das circunstâncias, as quais recobrem os sujeitos sociais e o contexto sócio-histórico a partir do qual eles enunciam;

2º) As verdades são totais (visão absolutista) ou parciais (visão relativista).

Tendo em conta o primeiro problema, contra a posição relativista da verdade, a qual se afina com a concepção de verdade subjetiva, argumentam os partidários da visão absolutista que o problema se encontra na forma dos enunciados. Atos de fala constatativos, ou seja, que exprimem constatação pelo enunciador de um estado-de-coisas do mundo podem dispensar regularmente as marcas dêiticas de pessoa, tempo e lugar. Dizemos, por exemplo, “Está chovendo”, numa situação em que constatamos o fenômeno da chuva. Desprovido das marcas de enunciação, esse enunciado pareceria aos relativistas descrever uma verdade (consideradas as condições do mundo) relativa a quem o enuncia, ao lugar e ao tempo em que se enuncia. Na verdade, argumentam os absolutistas, especificadas as marcas dêiticas, o enunciado passa a ser verdadeiro (ou falso, consideradas as condições do mundo) independentemente da pessoa que o enuncia. Por exemplo, se o enunciado assumisse a forma “Eu percebo que está chovendo na cidade em que estou hoje”, a proposição “está chovendo na cidade em que estou hoje” é verdadeira tanto para mim quanto para o resto do mundo.
Evidentemente, a relação mundo-verdade-linguagem não é, de forma alguma, simples. Em primeiro lugar, a linguagem (o discurso) não é transparente. A linguagem não espelha o mundo. Nossos enunciados não são fotografias do mundo. Em segundo lugar, o acesso ao mundo não é direto, já que é permeado por uma complexa relação entre linguagem, cognição-percepção e cultura. Considerados a não-transparência da linguagem e o acesso mediato do mundo, a verdade parece ser efeito daquela relação e dependente de certa negociação entre os sujeitos do discurso. Ora, se nos parece simples determinar a verdade numa situação em que vejo meu cachorro correr atrás do gato e digo “o meu cachorro está correndo atrás do gato”, menos simples nos parece determinar a verdade numa situação em que alguém diz “Esse tênis é caro”. Esses dois exemplos mostram que nem todos os enunciados são passíveis de medição em termos de valor de verdade. A verdade, muito frequentemente, quando consideramos nossos discursos, está ligada ao poder de convencimento de nossos argumentos. Dizemos “é verdade”, com frequência, para enunciar nosso assentimento à crença de um enunciador, numa situação em que ouvíssemos algo como “A vida é difícil”. Essa proposição não descreve um fato do mundo; trata-se de um juízo de valor sobre a vida. Na opinião do enunciador, há muitas dificuldades na vida. E, se eu enuncio “é verdade”, estou tão somente concordando com ele.
A verdade é absoluta, na medida em que ela é o próprio desvelar do real aos olhos do espírito e do corpo; ela é absoluta e eterna, porque evidente para todos e em todas as épocas.
Consideremos o segundo problema. No que toca à divergência entre os que pensam que só há verdade total e os que admitem verdades parciais, a questão consiste em saber se é verdadeiro apenas o conhecimento total, completo, eterno e imutável, ou se a parcialidade da verdade pode ser obtida a cada etapa do conhecimento concebido como processo em desenvolvimento.
A visão relativista, nessa controvérsia, pensa que o conhecimento humano é cumulativo, que se desenvolve no tempo e que esse desenvolvimento revela, em seu curso histórico, mudança das verdades obtidas como resultado desse conhecimento. Pensemos no que se sabia, no tempo de Ptolomeu, sobre o universo e o que se sabe hoje, desde Copérnico. No tempo de Ptolomeu, acreditava-se que a Terra estava no centro do universo (crença tida como conhecimento à época). O conhecimento cosmológico, em seu desenvolvimento, atingiu o estágio em que um Copérnico trouxe à luz a verdade: “O sol está no centro do universo”.
O conhecimento de um objeto não se reduz a um único juízo verdadeiro, é claro; mas é reflexo da complexidade, das fases de desenvolvimento do próprio objeto do conhecimento. Esse conhecimento se estrutura com uma sequência de juízos. O conhecimento é um processo. Destarte, o juízo também pode sofrer mudanças, tornando-se mais completo, mais complexo, em função do desenvolvimento do conhecimento. Evidentemente, as mudanças que incidem sobre o juízo influenciam na forma do conhecimento.
No entanto, se um juízo nem sempre é visto como um processo (ele pode não sê-lo), o conhecimento é sempre um processo, em virtude da inesgotabilidade da realidade estudada. Em outras palavras, a realidade é sempre mais complexa, mais extensa e inesgotável do que o conhecimento que podemos ter dela. Por outro lado, é um processo também porque a realidade se apresenta em desenvolvimento, em fluxo sem fim.
Se não é possível um conhecimento totalizante da complexidade do real, sempre em desenvolvimento, em curso contínuo, é possível um conhecimento exaustivo de uma região delimitada do real. Sabe-se que as teorias científicas operam com base em “recortes” da complexidade do real; elas setorizam a realidade. Cada recorte teórico do real estabelece um objeto a ser estudado, descrito, explicado pela teoria. Toda teoria delimita uma “região” da realidade e a toma como objeto de estudo. As entidades de que se ocupam uma teoria são entidades teóricas, e não entidades do mundo.
Convém lembrar que a exaustividade do conhecimento não é a totalização da realidade, visto que

“(...) o objeto do conhecimento é infinito, quer se trate do objeto considerado como totalidade do real ou do objeto percebido como qualquer um dos seus aspectos e fragmentos. Com efeito, tanto o real na sua totalidade como cada um dos seus fragmentos são infinitos na medida em que é infinita a quantidade de suas correlações e das suas mutações no tempo”.
(p. 97)

É forçoso concluir do exposto que o conhecimento de um objeto cuja complexidade é infinita deve ser também infinito. Constitui ele um processo infinito: “o processo de acumulação de verdades parciais” (p. 97). Como processo infinito, o conhecimento cumula as verdades parciais que a humanidade estabelece nas diversas fases do seu desenvolvimento histórico. À medida que se vão alargando, limitando, superando essas verdades parciais, o conhecimento vai-se expandindo.


4. O lugar do discurso no social

Começo anunciando uma tese com base na qual edificarei as cadeias de pensamentos seguintes.

 O discurso existe na exterioridade do linguístico; existe no social e é marcado sócio-histórica e ideologicamente.

Situado no social, o discurso deixa ver posições divergentes porque, nesse domínio, coexistem muitos discursos. A interdiscursividade implica diferenças no que toca à inscrição ideológica dos sujeitos e grupos sociais em uma dada sociedade; por conseguinte, são inevitáveis os conflitos, as contradições, porquanto o sujeito, ao revelar-se, inscreve-se num espaço socioideológico e não em outros. O sujeito enuncia a partir do lugar dessa inscrição. De sua voz originam-se outros discursos, cuja existência situa-se na exterioridade da materialidade linguística dos enunciados produzidos.
Em Discurso e mudança social (2001), Norman Fairclough propõe que se considere o discurso, ao mesmo tempo, como um texto, um exemplo de prática social e um exemplo de prática discursiva. Vou definir essas três dimensões do discurso.
Como texto, o discurso é concebido como um fragmento de linguagem de extensão variável dotado de estrutura e significado, que cumpre uma função relevante num dado contexto sociocomunicativo.
Como prática discursiva, o discurso é uma atividade interacional entre, pelo menos, dois enunciadores e especifica processos de produção e interpretação textual.
Como prática social, o discurso é indissociável das circunstâncias institucionais e organizacionais do evento discurso. Essas circunstâncias moldam a natureza da prática discursiva, os modos como se dão as relações sociais e posicionam os diferentes sujeitos sociais.
Os discursos não apenas refletem as entidades e as relações sociais, mas, principalmente, as constroem. Essa ideia de construção das relações sociais pelo discurso é de suma importância para a compreensão do modo como o discurso se conecta com o social. Vou-me deter na noção de discurso como prática social, já que é como prática social que o discurso se caracteriza como o modo de ação, uma forma pela qual e na qual os indivíduos agem sobre o mundo e sobre os outros.
O discurso como prática social é, portanto, uma atividade interacional de produção de significados. É também um modo de representação da realidade. Como prática social, o discurso precisa ser visto em sua relação dialética com a estrutura social. A estrutura social é condição e efeito da prática social (Fairclough, p. 91).
O discurso é moldado e limitado pela estrutura social, ou seja, pelas classes sociais, pelas relações sociais diversas, gerais ou específicas em instituições particulares, como no direito, na educação, na religião; mas também por normas e convenções, quer de natureza discursiva, quer de natureza não-discursiva.
Se, do exposto, se depreende que as práticas discursivas variam estruturalmente segundo as condições sociais ou o quadro institucional em que são produzidos, é preciso reter a ideia de que o discurso é socialmente constitutivo. Ele contribui, portanto, para a constituição de todas as dimensões da estrutura social, a qual o molda direta ou indiretamente e o restringe. O discurso é uma prática; como tal, não se limita a representar o mundo. O discurso constrói a significação do mundo, ou melhor, constitui o mundo como significado. O mundo discursivizado é mundo significado.
Convém assinalar três aspectos básicos na compreensão de discurso como prática social:

1) o discurso contribui para a construção de identidades sociais e posições de sujeito para sujeitos sociais e tipos de “eu”;

2) O discurso constrói as relações sociais;

3) O discurso contribui para a construção de sistemas de conhecimento e de crenças.

Consoante Fairclough (p. 92), é indispensável que a relação entre discurso e estrutura social seja considerada dialeticamente, a fim de evitar que se faça recair indevidamente a ênfase em um dos domínios apenas. Se a ênfase recai sobre o discurso, tender-se-á a vê-lo apenas como reflexo de uma realidade social mais profunda; se, por outro lado, ela incide sobre a estrutura social, ver-se-á o discurso, de modo idealizado, como fonte do social.
O cerne da visão dialética sobre a relação entre discurso e estrutura social consiste em ver que a constituição discursiva da sociedade não resulta de um jogo livre de ideias que habitam a cabeça das pessoas, mas de uma prática social que se enraíza profundamente em estruturas sociais materiais concretas.
Fairclough ilustra essa compreensão com a relação entre pais e filhos. Essa relação se dá na família e a determinação das posições de “mãe”, “pai” e “filho”, que são socialmente disponíveis, a inserção dos indivíduos reais nessas posições, a constituição da família e do lar são construídos parcialmente no discurso. Essa construção é o resultado de processos complexos cumulativos de conversa e escrita.
Não se trata de pensar que a família seja uma entidade ideal, que brota da cabeça das pessoas (p. 93); isso porque, em primeiro lugar, as pessoas se confrontam com a família como instituição real, que se lhes afigura como ‘dada’. Essa instituição se compõe de práticas concretas, relações e identidades preexistentes, as quais foram constituídas no discurso, mas reificadas em instituições e outras práticas. Em segundo lugar, os efeitos constitutivos do discurso se articulam com outras práticas, como a distribuição das tarefas domésticas, o vestuário, os aspectos afetivos do comportamento dos membros da família. Em terceiro lugar, a constituição operada pelo discurso encontra restrições na determinação dialética do discurso realizada pelas estruturas sociais, bem como nas relações de lutas de poder particulares.

4.1. As dimensões da prática social e sua relação com o discurso

A prática social se organiza nas dimensões econômica, política, cultural e ideológica. O discurso, naturalmente, pode estar envolvido em todas elas, sem que se possa reduzi-las a ele.
O discurso como prática política estabelece, conserva e transforma as relações de poder e as comunidades entre as quais se estabelecem relações de poder (p. 94). O discurso como prática ideológica constitui, apaga, mantém e transforma os significados do mundo, apoiando-se em posições diversas nas relações de poder. A prática política e a prática ideológica estão articuladas necessariamente, já que “a ideologia são os significados gerados em relações de poder como dimensão do exercício do poder e da luta pelo poder” (p.94).
É preciso acrescentar primeiramente que a prática política é superior, enquanto dimensão de lutas pelo poder. Em segundo lugar, o discurso não é tão-só o lugar da luta de poder; é também um lugar de delimitação da luta de poder. Assim, a prática discursiva se serve de convenções que mascaram as relações de poder e ideologias particulares e as próprias convenções. As formas como as relações de poder, as ideologias particulares e as convenções se articulam são alvo de luta.
Finalmente, vale dizer que a prática social, política, ideológica, etc. é uma dimensão do evento discursivo, tal como o é o texto.


4.2. Discurso e poder: um ponto de encontro

No seu Discurso e poder, o linguista holandês Teun A. van Dijk define o poder social como “controle de um grupo sobre outros grupos e seus membros” (p. 17). Quando esse controle se exerce sobre as ações comunicativas dos outros (sobre seus discursos, portanto), pode-se falar em controle sobre o discurso dos outros. Esse controle é uma das formas óbvias pelas quais o poder e o discurso se relacionam.

“(...) as pessoas não são livres para falar ou escrever quando, onde, para quem, sobre o que ou como elas querem, mas são parcial ou totalmente controladas pelos outros poderosos, tais como o Estado, a policia, a mídia ou uma empresa interessada na supressão da liberdade de escrita e da fala (tipicamente crítica)”.
(p. 18)


Pode suceder também que as pessoas tenham de falar ou escrever segundo os modos que lhe são prescritos. O controle é extensivo não só ao discurso como prática social, mas também às mentes daqueles que são submetidos ao controle, ou seja, aos seus conhecimentos, opiniões, atitudes, crenças, ideologias, bem como às outras formas de representações pessoais e sociais. Geralmente, esse controle da mente é indireto, embora possa ser intencional, mas apenas provável consequência do discurso.
Na medida em que as ações das pessoas são influenciadas por suas atitudes, conhecimento, ideologias, crenças, valores, normas, segue-se daí que o controle da mente redunda em controle indireto da ação. Quando a ação submetida ao controle é ação discursiva, o discurso poderoso pode, indiretamente, influenciar outros discursos que sejam compatíveis com o interesse daqueles que detêm o poder. Como observa Dijk, muito perspicazmente, “não há necessidade de coerção se se pode persuadir, seduzir, doutrinar ou manipular as pessoas” (p. 23).

5. Uma contextualização da história cristã

O tema deste texto é o antijudaísmo cristão, que teve origem na época de Costantino e que perdurou pelos séculos culminando no terror antissemita dos nazistas no século XX – o que não é o mesmo que assumir haver uma continuidade entre as duas formas de antissemitismo. Meu objetivo é patentear de que modo a prática discursiva cristã, nos quatro primeiros séculos da era cristã, contribuiu significativamente para transformar as relações entre judeus e cristãos e para posicionar os sujeitos sociais envolvidos na peleja. Para a realização desse intento, precisarei passar em revista o desenvolvimento do cristianismo nesses quatro primeiros séculos (I ao IV d.C.).
Desde já, a importância de Costantino deve ser sublinhada. O cristianismo, no seu incessante esforço por consolidar-se como religião hegemônica, deveu muito ao poder político de Constantino, convertido sinceramente ao cristianismo em 312 d.C. Sua pretensão sempre foi, desde sua vitória sobre o perseguidor Licínio, unificar todos os seus povos fazendo-os aderir à mesma concepção de Deus e livrá-los das perseguições. Constantino era declaradamente um “servidor de Deus”. Coube a ele dar forma ao cristianismo do mundo. Seus sucessores reproduziram o tom profético que dava à sua linguagem um poder de fé-verdadeira e sincera. A cristianização do mundo antigo foi uma revolução cujo impulso inicial devemos a um indivíduo, chamado Constantino, cujos objetivos foram exclusivamente religiosos (Veyne, 2011, p. 196). Dois fatores, segundo Veyne, foram fundamentais para que o cristianismo começasse a se impor ao mundo todo: o convertido Constantino, que favoreceu e sustentou o desenvolvimento da religião cristã; e o fato de essa religião estruturar-se numa Igreja forte.
Nos primeiros séculos do cristianismo, as instituições cristãs foram responsáveis por transmitir a tradição cristã estruturada com base em certos arranjos mentais presentes na época. A forma e o controle dessas estruturas mentais provinham não apenas da tradição cristã oral, mas também de filosofias e crenças religiosas de diversos povos, os quais contribuíram para sistematizar e oficializar um corpo de crenças cristãs.
Durante algum tempo, o que se sabia sobre a figura de Jesus de Nazaré e seus seguidores foi transmitido pela tradição oral. Posteriormente, escribas codificaram-na de modo a compor um conjunto de crenças consideradas oficiais por uma elite eclesial de pensadores masculinos que detinha o poder para tanto. Por isso, é impossível dizer, certamente, quem foi Jesus de Nazaré, bem como é difícil determinar a experiência pessoal e coletiva dos que se identificaram como cristãos após sua morte.
Restaram interpretações e interpretações de dados pretensamente históricos que não são senão interpretações. Há, evidentemente, nessas interpretações, algumas informações históricas de monta, como, por exemplo o surgimento de movimentos sociais e religiosos que se rebelaram contra a política e a religião do dominador romano (paganismo), por volta do século I d.C.
No século I d.C., era grande a opressão dos pobres, nas cidades e no campo, o que tornou mais acentuados os conflitos com o poder dominante. Tais condições deram origem a uma grande diversidade de movimentos de reivindicação.
O cristianismo, então chamado Movimento do Caminho e Movimento de Jesus, estava entre os movimentos de origem judaica que buscavam reanimar a esperança do povo. Os cristãos afirmavam que os famintos não tardariam em ser saciados e que os injustiçados encontrariam a justiça no Reino de Deus. Eles insistiam, ademais, na importância dos marginalizados deste mundo e procuravam assisti-los: os cegos e os leprosos eram curados; os famintos, saciados; os estrangeiros, acolhidos.
As críticas cristãs ao judaísmo do Templo e das sinagogas da época provocaram insatisfação e revolta nos romanos e nos judeus ortodoxos. Os cristãos eram considerados hereges, e o cristianismo, uma espécie de heresia no interior do judaísmo. À medida que avançava o tempo, a coexistência entre cristãos e judeus no judaísmo se tornava intolerável.
Jesus foi acusado pelas autoridades judaicas de agir de modo que só Deus poderia agir, como, por exemplo, perdoando os pecados. Jesus teria infringido as leis judaicas do sábado, foi culpado de se reunir aos impuros e de comer com os ladrões. Por isso, foi crucificado e morreu.
Alguns séculos se passaram, e a Igreja cristã, cuja diversidade, então, era enorme, enfatizou menos o nascimento histórico do cristianismo e as assistências dispensadas aos oprimidos e aos injustiçados. Enfatizou menos a crucificação e a morte injusta do líder Jesus de Nazaré por decorrência de uma conspiração político-religiosa e insistiu com vigor na obediência à vontade de Deus ou ao desígnio divino, que é eterno.
Assim, sobre a memória histórica revolucionária do movimento de Jesus foi lançado um véu que permitiu, ao longo dos séculos, o desenvolvimento da crença de que o cristianismo foi de fato, a própria intervenção espiritual de Deus na história humana. Essa intervenção estava ligada à tradição judaica codificada no Antigo Testamento, conforme veremos, segundo a qual Deus enviaria um Messias que salvaria seu povo então disperso e subjugado.
Essa mesma tradição sustentava que o Deus de Israel havia se revelado de muitas maneiras a seu povo através de acontecimentos especiais, pelas figuras de patriarcas, de profetas e profetisas e de reis cuja função era orientar e conduzir o povo ao longo da história. Essa traição afirmava também que a revelação de Deus era a expressão de seu amor pela humanidade, a qual, em virtude do pecado, havia se desviado dos justos caminhos e rompido a Aliança com ele.
Entre os primeiros cristãos, era tenaz a crença na iminência do fim dos tempos. Eles acreditavam que Deus expressou-se por meio de seu Filho, Jesus Cristo, enviando-o ao mundo para redimir o homem de seus pecados e, assim, restaurar a Aliança.
Com a vinda à Terra do Filho Jesus, nascido da Virgem Maria, Deus Pai encerrou o que tinha a dizer à humanidade. Para os cristãos, havia se completado a suprema revelação de Deus para salvar a humanidade de seus crimes e pecados. Por isso, a Igreja dos primeiros séculos estabeleceu como dogma a crença de que Jesus era o único e verdadeiro messias, quem revelou sua íntima relação com Deus Pai, criador de todas as coisas.
O Concílio de Nicéia, em 325 d.C., seguido do de Constantinopla, em 381 d.C., proclamou que o Filho Único de Deus é consubstancial ao Pai, isto é, tem a mesma substância do Pai, retomando a expressão “O Verbo se fez carne”, que figura no Evangelho atribuído a João. A Igreja primitiva denominou “Encarnação” o “fato” de o Filho de Deus ter assumido a natureza humana para habitar entre os homens e os salvar.
Consagrou-se um traço distintivo da fé cristã no momento em que a Igreja afirmou que Jesus era, ao mesmo tempo, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. O cristianismo nasceu, pois, como uma religião, ao mesmo tempo, de base humana e divina. Essa religião era entendida e explicada como a revelação definitiva de Deus ao mundo, cuja finalidade foi a salvação e a integração de todas as criaturas na unidade trina de Deus (um único Deus mas três pessoas). Donde a afirmação segundo a qual tudo provém da Trindade e retorna a ela. Essa elaboração teológica extravagante permitiu que uma teologia racional se desenvolvesse para explicar a figura de Jesus, a missão da Igreja e a finalidade da vida humana e do mundo.
Não custa lembrar que, embora muitas das afirmações feitas, com entonações diversas, tenham sido acolhidas pelo conjunto das igrejas cristãs, não deixaram de ser objeto de incessantes disputas e contestações ao longo dos séculos – contestações oriundas, nos primeiros séculos da Igreja, das próprias comunidades cristãs (arianos, nestorianos, monofisistas). Direi, com brevidade, apenas para destacar um ponto divergente dessas comunidades em relação ao cristianismo proto-ortodoxo, que os arianos negavam que o Filho fosse completamente divino; para eles, havia sido criado por Deus Pai, o que o tornaria inferior a Deus. Os nestorianos, além de afirmarem que Jesus reunia em si duas pessoas – o Verbo e o homem -, de tal modo, no entanto, que elas não se distinguiam, negavam que Maria fosse a mãe de Deus. Finalmente, os monofisistas acreditavam que Jesus encerra apenas uma natureza: a divina. Escusa dizer que essas divergências eram motivos de acirradas contendas e impasses, embora pareçam, de fundo, desgraçadamente ridículas. Essas divergências também tinham outra origem: na relutância daqueles que não aceitavam a superioridade alegada pelo cristianismo, que se apresentava como a palavra mais elevada e derradeira de Deus destinada à humanidade. Essa superioridade levou o cristianismo a ser cúmplice dos poderes imperiais e instrumento para a dominação política e religiosa.

5.1. A historicidade do Cristianismo

O cristianismo nasceu como uma seita herética no seio do judaísmo nos tempos da dominação romana. Tornou-se uma religião autônoma depois de alguns conflitos. Foi perseguido sob as ordens dos imperadores romanos, e seus mártires foram lançados como comida aos leões.
A igreja primitiva não gozava de direitos na cidade do Império, o que levava os cristãos a se reunir à surdina para celebrar a memória de Jesus em cemitérios subterrâneos, chamados de catacumbas.
A população marginalizada, especialmente, sentia-se, cada vez mais, atraída pela memória de Jesus; o número de discípulos não cessava de crescer (entre os discípulos, havia também mulheres). Os adeptos – eis um fato importante – se organizaram em comunidades, para seguir os ensinamentos daquele que era chamado o Filho Único do Deus Único.
A formação das comunidades cristãs deveu-se, em parte, ao descontentamento geral dos pobres que, não bastasse fossem explorados, tinham de prestar culto ao Império Romano. O culto a Jesus, que era um dos seus, chamá-lo Deus significava rejeitar o culto a César. Além disso, a reunião do culto a Jesus Cristo tornava possível fomentar uma esperança diferente para o presente, porquanto se acreditava que Jesus representava uma nova era destinada à satisfação e à assistência aos excluídos e aos famintos.
Foi, no entanto, apenas no século IV, quando reconhecido pelo poder do Império Romano, que o cristianismo pôde manifestar-se publicamente. Essa liberdade, no entanto, tinha um preço: teve de ajustar-se aos códigos jurídicos e precisou assumir uma atitude contrária às aspirações do movimento em sua forma original: passou a pregar a submissão aos poderes oficiais. O cristianismo tornou-se, assim, uma religião comprometida com a ordem institucionalizada e subserviente aos poderes constituídos. Por outro lado, tornara-se também uma religião mais poderosa, constituída de lógica própria, afirmando-se na forma de uma dogmática combatente e perseverante na missão de eliminar as heresias, que se multiplicavam nos primeiros séculos. Lembro que o herege é aquele que diverge da visão dogmática oficial. O termo latino haeresis significa “escolha” ou “opção”. Uma interpretação secular não vê o herege senão como alguém que tem crenças simplesmente diferentes das do sistema doutrinário instituído.
Necessário é assinalar alguns fatos. O primeiro diz respeito à aliança subserviente do cristianismo com o poder de Roma. Deve-se notar que desse acontecimento dependia o próprio estabelecimento do cristianismo como uma religião poderosa. A lógica, aqui, é clara: sirva ao poder instituído e se beneficie das concessões do poder. O segundo toca ao esforço mobilizado pelo cristianismo para se defender contra as heresias. Desse esforço resultou a elaboração dos dogmas cristãos pelas igrejas do Oriente e do Ocidente. Em outras palavras, a dogmática cristã se institui num longo esforço por silenciar outros credos concorrentes. Dogmas são uma explicação elaborada e decretada pela Igreja como verdade que deve ser aceita pelos fiéis.
A função dos dogmas era também construir uma identidade doutrinária de que todos os cristãos partilhassem, ainda que tenha reproduzido um sistema de policiamento que culminaria, mais tarde, na Inquisição. A despeito disso – o que é surpreendentemente paradoxal nessa religião -, o cristianismo se tornou uma religião para o povo.
O povo passara a organizar sua vida social por meio das festividades cristãs e desencadeou revoluções de cunho social inspiradas em ideais de liberdade enraizados na tradição fundadora. Esses movimentos sociais insurgentes ocorreram em diferentes épocas e lugares do mundo.
A esta altura, não se poderia deixar ao abrigo da duvida o fato de que a historicidade do cristianismo só se constrói por uma via única: a das instituições religiosas do poder. Somente a tradição do cristianismo oficial teve condições de ser assimilada, documentada e difundida. Tudo o que o cristianismo foi fora dessa tradição institucional é quase desconhecido, já que os registros históricos são escassos.
O cristianismo – vale dizer – pode ser compreendido como um movimento cujo desenvolvimento resultou de acontecimentos sobre a vida de Jesus de Nazaré, cujo valor de verdade é dependente de interpretações calcadas sobre a fé de seus seguidores. Por isso, é difícil saber, com segurança, o que é verdade a respeito da vida de Jesus. Não há dúvidas, por outro lado, de que a partir do homem Jesus, proclamado divino, muitas mulheres e homens construíram um significado para as suas vidas, conseguiram expressar seus desejos mais profundos e combater a opressão e a injustiça. E, certamente, malgrado as inumeráveis contradições, conseguiram afirmar sua identidade única em face de muitas outras.


5.2. Um poder avesso à diversidade

É certo que Jesus não pretendia fundar uma nova religião. Ele era judeu, vivia como um típico judeu de seu tempo, ainda que discordasse de certos preceitos e práticas de uma elite espiritual no interior do judaísmo. Foram, portanto, os seguidores do Nazareno que criaram o cristianismo. Em virtude disso, a vitalidade do movimento cristão e sua força em muitos grupos culturais levavam à elaboração de muitas reinterpretações da vida de Jesus, todas em consonância com modos de compreender e pensar o mundo moldados em seu próprio contexto. Isso significava uma ameaça à unidade institucional da Igreja.
O discurso, novamente, estava a serviço da construção da hegemonia, cuja instabilidade ou perda jamais deixara de preocupar a Igreja. Esta afirmou que suas elaborações dogmáticas contavam com a assistência do Espírito Santo. Pretendia, assim, preservar a verdade revelada pelas interpretações oficiais.
A presença do Espírito Santo entre nós assegurava, na visão da Igreja, o valor de verdade de seus ensinamentos, que eram eles mesmos portadores da verdade sobre o ser humano e sobre Jesus Cristo. Graças à proclamação dessa verdade, a Igreja podia doutrinar os fiéis e provocar-lhes a adesão incondicional.
Jesus morreu judeu. Fora perseguido pelo judaísmo oficial. Depois de sua morte, seus ensinamentos se disseminaram numa tradição oral até os anos 70 d.C, quando surgiram os primeiros escritos cristãos.
As comunidades cristãs, ao longo do tempo, se multiplicaram em diferentes regiões do Império. Com o avanço do tempo, também diversas interpretações da vida e da morte de Jesus e de sua identidade foram surgindo. Essas interpretações alteraram a imagem de Jesus, que passou de um revoltado e crítico profeta apocalíptico judeu, para o Cristo (o Messias), Filho Único de Deus, a segunda pessoa da Trindade, que nasceu da Virgem Maria, Mãe de Deus.
Sua prática de cura de enfermos, a partilha do pão, seu comportamento crítico da lei, sua amizade com pessoas de má reputação, tudo isso foi sendo relegado a segundo plano. Pouco a pouco, se ia delineando uma personalidade dotada de um poder supranatural, a ela se lhe atribuía uma natureza divina. Jesus era, pois, considerado um ser pré-existente, de consubstancia com Deus, que se assenta no trono celeste para de lá julgar os vivos e os mortos.
A filosofia grega, nesse momento, exerceu uma influência decisiva na formação e consolidação da teologia cristã. Essa filosofia lhe enxertou uma estrutura lógica por meio da qual foi possível situar a realidade de Deus num mundo à parte – o mundo das essências eternas sobre o qual escreveu Platão, mundo que se opunha ao mundo material, precário e efêmero.
Essa versão do cristianismo – a versão do neoplatonismo cristão – tornou-se oficial na Igreja, ainda que, ao longo da história, tenham ocorrido tentativas de voltar à simplicidade dos primeiros tempos da vida de Jesus.
Os dois mil anos de cristianismo conheceram sempre movimentos que tendiam para uma ou outra posição sobre qual deveria ser a versão definitiva do cristianismo. Mas as igrejas cristãs mantiveram a versão platônica como a verdade absoluta revelada por Deus, que deveria ser mantida longe do abrigo de dúvidas.
A versão teológica cristã calcada sobre a filosofia platônica, de que Santo Agostinho foi o eminente sistematizador, permanece ainda hoje como um pilar que dá sustentação ao complexo edifício doutrinário ao abrigo do qual se anima a alma e a paixão dos fiéis defensores. Desse edifício, se serviu o cristianismo para impor suas doutrinas como verdades, seus princípios de controle – pelo discurso – sobre a vida pessoal e social dos fiéis. Pelos discursos gerados nas esferas de poder eclesiástico, esses princípios são representados como diretamente emanados de Deus (embora não sejam mais do que ficções produzidas pelos próprios bispos). O cristianismo crê possuir uma espécie de procuração especial para tudo atinente às relações humanas e à fé cristã.
O rótulo cristianismo recobre a doutrina oficial cuja história foi fartamente documentada e que, por isso, conhecemos bem. Esse modo singular de se referir ao movimento cristão acabou por apagar a grande diversidade de cristianismos primitivos que sabemos terem existido. Ainda hoje, se percebe um pouco dessa diversidade, na qual cada cristianismo acentua um aspecto do que considera mais importante nas fontes bíblicas cristãs. Hoje, como outrora, a história cristã abriga muitos conflitos. Novas interpretações surgem ainda hoje, o que mostra o vigor desse fenômeno religioso, cultural, político e social, misturado às mais diferentes histórias e acontecimentos. Mas é bom ter em conta que essas “novas interpretações” não devem ser pensadas como avanços, já que o conservadorismo, em matéria de fé, é condição de possibilidade de subsistência.

5.3. O poder de um imperador

Com a conversão do então imperador Constantino, em 312 d.C., ao cristianismo, os cristãos, pelo menos até a sua morte, puderam prosperar em condições políticas bastante favoráveis.
O antissemitismo surge no período em que governava Constantino. Os judeus, tanto quanto os pagãos, eram estigmatizados. Um sucessor de Constantino perpetuará o estigma. Mas Constantino não reagiu aos judeus com vigor; manteve a legislação pagã que garantia legitimidade à religião judaica. O castigo, severo, só se aplicava nos casos em que um judeu maltratasse um irmão convertido ao cristianismo. A lei, todavia, não se aplicava aos casos em que um judeu se convertesse a uma terceira religião.
Uma triste, mas não menos surpreendente ironia, se depreende da observação de que, mesmo os judeus crendo no Deus exclusivo que não era senão o Deus dos cristãos, e mesmo sendo o livro judaico santo também para os cristãos, e mesmo o líder dos cristãos ter sido um judeu praticante do judaísmo em sua passagem pela Terra, os judeus eram considerados verdadeiros inimigos, porque não reconheciam Jesus como o Cristo (o Ungido).
Se os discursos cristãos posicionavam os pagãos como os “outros”, reservavam aos judeus um lugar mais desprezível. Os judeus eram considerados falsos irmãos.
A cristianização que se estendia por todo o Império Romano levou os judeus a se isolarem. Sua religião ia se tornando cada vez mais solipista (reclusa, solitária). À medida que o cristianismo tornava-se religião do Estado, o judaísmo ia voltando a ser uma religião nacional do povo judeu, permanecendo assim até os nossos dias. Prova a dificuldade de um não-judeu converter-se ao judaísmo.

5.6. O antijudaísmo cristão

Ainda hoje, persiste entre os cristãos conservadores um estorvado entendimento sobre o porquê de os judeus não aceitarem a alegação de que Jesus é o Messias (Ehrman, 2013, p. 147). Esses cristãos se apoiam em passagens do Antigo Testamento que, segundo creem,  dão testemunho profético da vinda de um messias. Para os cristãos, Jesus fez e experienciou tudo que fora registrado. Por exemplo, em Isaías 7, 14, se diz que o messias nasceria de uma virgem:

14. Portanto, o mesmo Senhor vos dará um sinal: Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamará o seu nome Emanuel.

Em Miquéias 5, 2, diz-se que ele nasceria em Belém:

2. E tu, Belém Efrata, posto que pequena entre os milhares de Judá, de ti me sairá o que governará em Israel, e cujas saídas são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade.

Os registros poderiam ser multiplicados. Basta-me, no entanto, fazer ver que os cristãos pensavam que as passagens bíblicas referiam-se ao messias que eles chamaram Jesus. Contra os cristãos, os judeus alegavam que as passagens das Escrituras hebraicas não se referiam a um futuro messias e nem expressavam qualquer previsão. Nas passagens em que, supostamente, haveria uma previsão sobre a morte e a ressurreição de Jesus, a palavra “messias”, por exemplo, nunca aparece, o que não deixa de causar perplexidade nos cristãos. Basta, contudo, consultar Isaías 53 para atestar-lhe a ausência
Por que razão, então, a maioria dos judeus rejeitava o messianismo de Jesus? A razão era que Jesus não representava, de forma alguma, as expectativas acalentadas pelos judeus acerca da identidade de um messias. Muitos judeus do mundo antigo não aguardavam ansiosamente a chegada de um salvador, embora houvesse judeus extremamente religiosos, na época de Jesus, que nutriam a crença de que Deus enviaria um messias para livrá-los de graves problemas. Todos esses grupos assentaram suas expectativas na Bíblia hebraica, o que não impedia que eles construíssem uma imagem do salvador.
Em hebraico, “messias” se diz “o Ungido”. Em suas origens, a Bíblia hebraica abrigava essa palavra para referir-se ao rei de Israel, tal como o rei Saulo, Davi ou Salomão. O rei era, de fato, ungido com óleo em sua cabeça durante a cerimônia de posse. Esse ato sinalizava que o benefício especial de Deus recaía sobre ele (Salomão 2).
Algum tempo depois, não havia mais rei em Israel, de modo que alguns judeus acreditavam que Deus enviaria um futuro rei, que seria um ungido como o grande rei Davi, que liderou os Exércitos de Israel contra os seus inimigos e erigiu Israel novamente em um Estado soberano. Esse futuro rei, por conseguinte, foi o messias, ou seja, um ser humano dotado de grande poder, um guerreiro e governante grandioso do povo de Deus.
Por outro lado, havia judeus que acreditavam que essa figura messiânica seria dotada de grande poder sobrenatural. Eles a criam um ser celestial, enviado à Terra para julgar a humanidade e enfrentar o inimigo com uma força descomunal, antes de estabelecer um reino de Deus, cujo governante seria eleito pelo próprio Deus.
Sem perder de vista a diversidade de opiniões, cabe lembrar que havia também judeus que estavam especialmente preocupados com a “religião” de Israel. Nesse caso, o domínio de suas aspirações políticas ficava embaçado pela crença em que o futuro governante do povo seria um sacerdote poderoso, que teria em mira fortalecer o povo de Israel, ensinado a ele a correta interpretação da lei judaica. O seu governo exigiria do povo de Deus a observância da lei de Deus codificado nas Escrituras.
Tendo em vista os objetivos perseguidos por esta exposição, chamo a atenção para o seguinte fato. Essas diferentes visões judaicas sobre como seria esse messias e sobre quais seriam as suas atribuições devem ser pensadas como vozes ou posições inscritas no discurso que acenam para diferentes posições ideológicas. Essa diversidade de vozes é apagada por uma visão hegemônica – a do cristianismo oficial – discursivamente estruturada. Vê-se claramente a dimensão ideológica do discurso: o discurso cristão ortodoxo, apagando as vozes judaicas, cujas interpretações eram divergentes, estabelece uma “verdade”, a qual tem efeito sobre as práticas sociais entre os cristãos uns com os outros e entre estes com os judeus.
Tratemos de elucidar de que modo o discurso religioso, como prática social, contribui para constituir relações conflituosas, posicionando os sujeitos sociais em lugares socioideológicos antagônicos. O que fizeram os seguidores de Jesus? Eles alegaram – pela produção, naturalmente, de discursos – que Jesus era o messias. E o fizeram com base em pressupostos afinados com o interesse, em última instância, de tornar o cristianismo a única religião que expressa a revelação definitiva de Deus. Suas interpretações colidiam com as interpretações feitas pelos Judeus, isto é, os sentidos cristãos não eram os sentidos produzidos pelos Judeus para suas próprias Escrituras. De imediato, trata-se de uma luta pelo controle do sentido “verdadeiro”, “correto”. Vimos que a forma mais evidente pela qual o discurso e o poder se relaciona é pelo controle sobre o discurso dos outros (nesse caso, pelo sentido passível de ser produzido). Ora, a Palavra de Deus é unívoca e inequívoca, de modo que somente um sentido é possível descobrir.
Mas pensemos em quem era Jesus. Tratava-se de um pregador pouco conhecido na atrasada Galileia, que insurgiu-se contra as autoridades judaicas, o que atraiu sobre si humilhação pública e tortura. Seu fim é bem conhecido: foi preso à cruz como criminoso onde morreu. Esse retrato breve de Jesus explica por que a maioria dos judeus não poderia admitir que tal homem fosse o messias aguardado. Ao contrário dos cristãos, os judeus alegaram que sua Bíblia nunca afirmou que o messias viria duas vezes. Eles estavam certos de que Jesus não era o glorioso ungido por Deus.

5.6.1. Intermináveis conflitos

Nos primeiros quatro séculos da era cristã, os conflitos entre cristãos e judeus se tornaram mais intensos e árduos. Inicialmente, os judeus eram muito mais numerosos e podiam, sem esforço, superar os cristãos. Todavia, estes primavam pela perserverança com que discutiam e combatiam.
Eis o rosto da contenda: muitos judeus cristãos não entendiam como judeus não-cristãos não compreendiam o “fato” de que Jesus era o messias. As provas saltavam aos olhos!
A oposição foi-se acirrando, e os cristãos começaram a dizer que os judeus que rejeitavam Jesus como o messias eram tão responsáveis pela sua morte quanto as autoridades judaicas que delataram Jesus e pediram sua morte. Para os cristãos, rejeitar Jesus equivalia a matá-lo.
Ponderemos sobre o seguinte, a fim de que compreendamos o modo como o discurso se liga às relações sociais conflituosas.
O discurso cristão posicionava os judeus não-cristãos como inimigos de Jesus, ou mais assombrosamente, como assassinos de Jesus. Os judeus eram, para os primeiros cristãos, verdadeiros cristicidas.
As relações entre cristãos e judeus se modificaram sensivelmente, muito graças, embora não só, aos modos como elas se constituíam, ao longo do tempo, pelos inumeráveis discursos produzidos com o objetivo de estabelecer e garantir a hegemonia da nova fé.
No século II, Justiniano produziu um escrito para debater com um rabino judeu, apontando-lhe os erros que a interpretação dele das próprias Escrituras revelava. No afã de estabelecer a verdade, nessa interminável polêmica teológico-política com os judeus, os cristãos não hesitavam em falsificar os próprios escritos produzidos. Neles, insistiam em que Jesus era um ser divino, e não um mero mortal, como pensavam as autoridades romanas.
Nesses escritos, tanto os romanos quanto o povo judeu, com seus líderes mais resistentes, eram posicionados como responsáveis pela morte de Jesus. Lembro que os cristãos não só insistiam em que os judeus tinham rejeitado o próprio messias Jesus e, consequentemente, repudiado o próprio Deus, mas também eram tenazes em observar que os judeus também interpretavam mal suas próprias escrituras.
Uma carta supostamente escrita por Barnabé, companheiro do apóstolo Paulo, afirma que os judeus sempre se equivocaram na interpretação da lei de Moisés. Eles eram acusados de interpretá-la literalmente, quando, na verdade, tinham de interpretá-la alegoricamente, o que permitiu aos cristãos reivindicar a autoridade sobre o Antigo Testamento.

5.6.2 O Evangelho de Nicodemos

Para encerrar, considero um exemplo de escrito cristão manifestamente antijudaico, que cristãos antigos incluíram no cânone do Novo Testamento.
Surgido nos fins do século IV d.C., o evangelho supostamente escrito por Nicodemos (sobre sua verdadeira autoria direi algumas palavras adiante) é um longo relato do julgamento, morte e ressurreição de Jesus.
Nicodemos fora um seguidor “secreto” de Jesus (João 3, 1-15). Seu livro se tornou bastante popular e exerceu grande influência por toda a Idade Média, sendo conhecido do Ocidente latino e, enfim, traduzido para quase todas as línguas da Europa Ocidental, por onde se disseminou.
Entanto, é provável que o relato tenha sido redigido em algum momento do século IV – portanto trezentos anos depois da morte de Nicodemos (considerando-se a hipótese de se tratar de um indivíduo real). Estudiosos há que creem ter sido esse livro calcado sobre histórias reunidas numa tradição oral transmitida dois séculos antes de assumir a forma escrita.
O evangelho inicia com a indicação de que Nicodemos era o verdadeiro autor da narrativa em hebraico, muito embora a narrativa pareça ter sido escrita em grego originalmente (Ehrman, 2013, p. 152). A alusão à forma original hebraica do manuscrito dava autenticidade ao documento. Isso significa que se tratava, segundo quem quer que tenha sido o autor, de um escrito muito antigo e, portanto, pretensamente baseado em um testemunho ocular.
Ehrman nota que “não há dúvida de que o relato não tem nada de histórico, já que se baseia em lendas posteriores sobre as últimas horas de Jesus, sua ressurreição e morte” (p. 152). A narrativa foi produzida com um objetivo básico: inocentar Pilatos da execução de Jesus; certamente também com o objetivo determinar os culpados: os líderes judeus e o povo judeu, os quais, porque rejeitaram Jesus, acabariam por rejeitar o próprio Deus.
Já no início da narrativa, a dimensão divina de Jesus é apresentada “em uma de suas cenas mais interessantes e divertidas” (ib.id.). Na cena do julgamento, antes, porém, de ele ser realizado, as autoridades judaicas conversam com Pilatos, tentando convencê-lo da culpa de Jesus por seus crimes. Eles queriam sua condenação.
Pilatos ordenou que seu mensageiro conduzisse Jesus até o tribunal. Dentro da sala, estavam dois escravos portando “estandartes” com a imagem de César “divino”. Assim que Jesus entrou no salão, os porta-estandartes se curvaram diante dele, de sorte que era a imagem de César que parecia lhe prestar deferência.
Qual não foi a fúria das autoridades judaicas, que trataram de lançar injúrias contra os porta-estandartes. Estes se defendiam dizendo que não fizeram aquilo: foram as imagens de César que se curvaram por livre vontade para reverenciar Jesus.
Pilatos, então, tomou uma resolução. Solicitou aos líderes judeus que escolhessem alguns dos seus, que ostentassem grande força física para segurar os estandartes. Ordenou Pilatos que retirassem Jesus da sala e que entrassem com ele outra vez. Assim fizeram os líderes judeus, escolhendo doze judeus com notável protuberância muscular, que se dividiram na execução da tarefa. Jesus retorna ao salão e, novamente, os estandartes se curvaram perante ele.
A moral da história é clara. Pilatos tentou, inutilmente, salvar Jesus, mas as autoridades judaicas, irredutíveis, declaram-no um malfeitor que merecia a morte.
Muitas foram as vezes em que as autoridades judaicas pleiteavam com Pilatos a condenação de Jesus; e outras tantas foram as vezes em que Pilatos buscava inocentá-lo.
Está claro que o discurso do evangelho atribuído a Nicodemos posiciona os judeus como responsáveis pela condenação e morte de Jesus, ao mesmo tempo em que confere a Pilatos o lugar de inocente. Nesse jogo discursivo, em que os sujeitos sociais assumem lugares diferentes, opostos, em que se estabelece um antagonismo entre culpados e inocentes, em que as responsabilidades pelos acontecimentos trocam de agentes, em que os agentes sociais passam a ter outra participação no curso da história, pelo menos à luz de uma interpretação interessada, vai-se construindo o mosaico da história, repleto de contradições ou, - para usar uma metáfora mais condizente com o devir histórico-, vai-se construindo o movimento histórico, que torna a busca por determinar a verdade uma pesquisa acurada de decifração, de identificação das estratégias com que ela foi mascarada, encoberta, transformada, negociada.
O antijudaísmo já estava presente, alguns séculos anteriores, no evangelho atribuído a Mateus.
A narrativa termina mostrando ser Jesus divino. Ele ressurge dentre os mortos e os próprios líderes judeus se veem em face de uma prova inconteste da ressurreição pelo testemunho de pessoas confiáveis.
Uma vez considerado o discurso como prática discursiva, entre outras e, como tal, responsável também pela constituição da história, é forçoso concluir que, estando claro que a literatura cristã se produziu com inúmeros escritos falsificados, vários dos quais entraram a fazer parte do cânone do Novo Testamento, segue-se que a própria história cristã é uma arena onde as lutas pelo poder, condição de apropriação da verdade, encobrem ou dificultam a contemplação da verdade por cujo valor seus protagonistas permaneceram lutando.
O evangelho atribuído a Nicodemos é um relato falsificado, escrito há cerca de trezentos anos depois dos acontecimentos que narra. Em meados do século IV, os cristãos aliaram-se aos romanos. É de esperar que os romanos fossem inocentados: o benefício do poder produz sua própria verdade.
Na Europa Ocidental da Idade Média, esse evangelho gozava de grande prestigio – nessa época, o ódio aos judeus era permanente, tornando paradoxal e perturbador o significado de ser cristão.