Mostrando postagens com marcador análise do discurso. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador análise do discurso. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Interdiscursividade e filosofia - "Toda a filosofia se desenvolve e se constitui a partir de uma outra" (BAR)


                          



 princípio metodológico
na compreensão da produção filosófica
Um confronto entre a teoria do conhecimento
de Kant e de Schopenhauer


Num encontro com uma amiga, também doutora em Linguística, ela procurou saber se eu passaria a me dedicar mais aos estudos filosóficos do que aos estudos da linguagem, dado o entusiasmo manifesto ao contar-lhe sobre a lida diária com a filosofia na graduação. Respondi que não via na dedicação à filosofia nenhum empecilho para a tenacidade de meu empenho nos estudos da linguagem. Ajuntei que não via o estudo filosófico como uma atividade incompatível com o estudo linguístico. Ao contrário, entendo que minha vocação para o estudo da linguagem, para o ensino de língua acompanha harmoniosamente meu pendor para as reflexões filosóficas. Muito antes desta ocasião em que fui questionado sobre qual seria minha preferência, apercebi-me de que o background que adquiri como resultado destes mais de dez anos em que estive ocupado com meu processo de formação continuada na área dos Estudos da Linguagem iluminaria a estrada que então se me abria por ocasião de meu ingresso na graduação em Filosofia. O estudo informal da filosofia vinha sendo feito desde 2005, nove anos antes de eu iniciar a graduação. Naquela época, eu estava fazendo mestrado em Estudos da Linguagem; e, mesmo decididamente devotado aos estudos desse curso, não deixava de visitar os filósofos.
Tendo em vista o que expus até aqui, espero fique claro que não encontro razão para preferir um estudo ao outro, para ocupar-me, com mais deleite, de um estudo em prejuízo do outro. Vou-me esforçar por demonstrar que, não havendo qualquer dissonância entre os estudos da linguagem e os estudos filosóficos, o que entendo haver é justamente uma contribuição dos estudos da linguagem para o desenvolvimento da compreensão filosófica. A tese basilar desta exposição se acha no excerto abaixo, colhido de um trabalho desenvolvido por mim, no ano passado, como requisito para a aprovação numa disciplina do curso de filosofia. Nesse texto, pondero o seguinte:

Toda a filosofia se desenvolve e se constitui a partir de uma outra. Isso é verdade também para qualquer domínio discursivo: todo discurso se desenvolve e se constitui na base de outros discursos. Conforme nos dá testemunho Cossuta, “(...) cada filosofia pretende encontrar sua origem num começo radical”; mas acrescenta “todo começo é apenas recomeço” (p. 33). Aqui nos parece estar a especificidade do discurso filosófico, visto que os discursos filosóficos jamais se superam uns aos outros (no sentido de que cada discurso precisa constituir-se pela reelaboração, pelo retorno a e trabalho contínuo sobre as proposições, as teses, os argumentos, a abordagem de outros discursos). Toda a herança discursiva é, a cada nova etapa de discurso, revitalizada, reanimada, reincorporada, ainda que seja para dela se distanciar, para submetê-la ao impacto de um martelo nietzscheano. Esse recomeço da filosofia, que não se dá senão por construção de discurso, é ele o próprio exercício contínuo e ininterrupto do pensamento. É o pensamento que, retomando o já pensado, o prolonga, o faz dizer o que até então havia permanecido silenciado. Por isso, Platão nunca será superado, nem Santo Agostinho, nem os que os precederam. É nesse recomeço que reside a vitalidade do discurso filosófico – um discurso que, embora tenha no seu horizonte a verdade, jamais pretende, por isso mesmo, alcançá-la definitivamente; e também, por isso, se apresenta como um recomeço: é um discurso que, animado pela busca da verdade, está sempre disposto a percorrer os mesmos caminhos, a retomar os mesmos pontos de partida; pois o contentamento está não tanto na chegada, mas nesse percorrer.
Se não há um discurso inaugural, tampouco há um sujeito adâmico, também o discurso filosófico engendrará suas formas na herança de enunciações filosóficas (daí o recomeço).O filósofo mobiliza uma série de atitudes, de estratégias pelas quais essa herança se faz presente em sua obra. Essa é uma questão que, no entanto, não nos ocupará aqui, por limitações de tempo e espaço. (...)
À luz das considerações desenvolvidas nesta subseção, cuidamos que se pode pensar toda a história da filosofia como uma imensa cadeia de discursos que se relacionam entre si de modos vários e complexos. Pensamos também que é tarefa do estudioso e estudante de filosofia também o debruçar-se sobre a história do pensamento filosófico, com vistas a investigar as formas como os discursos que compõem essa memória discursiva se articulam, se constroem por assentimento ou refutação, por retomadas, reelaborações, alusões, tendo sempre em vista o diálogo constante que os atravessa, mesmo quando esse diálogo, paradoxalmente, assume formas de silenciamentos. Aqui, vale lembrar uma lição cara aos analistas do discurso: em matéria de linguagem, as formas de silêncio, o não-dito também significam, também dizem. (grifos meus).


Com base na constatação de que todas as formas de produção filosófica (quer se apresentem como sistemas, quer como tratados, ensaios, diálogos, etc.) “se desenvolvem e se constituem a partir de uma outra [ou de outras]”, proponho como princípio metodológico de estudo e compreensão da produção filosófica, ao longo da história do desenvolvimento do pensamento Ocidental, o conceito de interdiscursividade que, gestado no interior da Análise do Discurso[1], aviva a percepção segundo a qual “toda a história da filosofia [pode ser encarada] como uma imensa cadeia de discursos que se relacionam entre si de modos vários e complexos. De modo algum, proponho que se faça Análise do Discurso a partir de textos filosóficos. Embora seja possível a realização de tal análise segundo o aparato teórico-metodológico e os procedimentos fornecidos pela Análise do Discurso, quem quer que pretendesse dedicar-se a uma empresa como esta estaria movimentando-se num horizonte hermenêutico cujos objetivos divergiriam – talvez, radicalmente - daqueles que, comumente, orientam a prática interpretativa dos comentadores. De modo geral, os comentadores que se debruçam sobre a compreensão de um pensamento filosófico procuram fornecer dele uma exegese que não está comprometida com os pressupostos teóricos que dão corpo à Análise do Discurso. A Análise do Discurso tem por interesse compreender o modo como um discurso produz sentido, para o que ela leva em conta a língua, a História e o sujeito, em funcionamento, com vistas a revelar a determinação histórica dos processos semânticos e, consequentemente, a dispersão dos sentidos. A Análise do Discurso se constitui pela inter-relação entre Linguística, História e Psicanálise, do que resulta ser ela uma área transdisciplinar.
Há que distinguir três campos teóricos com que a Análise do Discurso está em constante diálogo. O primeiro campo é o do materialismo histórico. No quadro da Análise do Discurso, o materialismo histórico é compreendido como uma teoria das formações e transformações sociais. A Análise do Discurso, articulando-se dialogicamente com o materialismo histórico, manterá que as condições de produção do discurso só podem ser observadas na e pela História. As condições de produção do discurso, sendo historicamente determinadas, explicam o aparecimento de um dado enunciado em um tempo e lugar, e não em outros. Da Linguística, a Análise do Discurso aproveita as ferramentas necessárias ao trabalho com os elementos linguísticos que tornam possível a materialização dos discursos. No horizonte de investigação da Análise do Discurso, situa-se a inter-relação constitutiva da linguagem e a sua exterioridade. Por fim, a Análise do Discurso precisa elaborar uma teoria do discurso, à luz da qual se desenvolverá o exame da determinação histórica dos processos de significação. Nesse caso, está sob foco de investigação a produção dos sentidos tomada como decorrente de fenômenos históricos.
A despeito do que se apresenta no parágrafo precedente, não intento propor que o estudo da produção discursiva filosófica se transforme num trabalho de interpretação e compreensão de textos segundo os pressupostos teóricos e metodológicos e os objetivos da Análise do Discurso. O que proponho é que possamos interpretar/compreender os textos filosóficos à luz da noção de interdiscursividade, a qual se acompanhará de outros conceitos que serão definidos e que, uma vez reunidos, contribuirão para fornecer um quadro sinótico elucidativo desse campo de estudo recoberto pela designação Análise do Discurso.
Convém salientar que os conceitos de interdiscursividade e interdiscurso deverão, segundo minha proposta, ser tomados como pressupostos orientadores do trabalho de interpretação e compreensão dos textos filosóficos. Estes dois conceitos resultam da compreensão de que todo discurso está calcado sobre outros discursos que o antecedem ou o precedem. Os conceitos de língua, discurso, sujeito, formação discursiva, historicidade do texto, formação ideológica e ideologia serão definidos como condição para que se elucide as bases teóricas da Análise do Discurso. No que diz respeito à formação discursiva, farei uma tentativa rudimentar para torná-la operacional a partir da elaboração compreensiva da produção discursiva do epicurismo e do estoicismo. Evidentemente, uma análise que se pretendesse acurada teórica e metodologicamente deveria prever um recorte dos discursos que constituiriam um arquivo[2] para a investigação, já que são vários os filósofos epicuristas e estóicos e diversos, portanto, os discursos produzidos.
Este texto divide-se em duas partes: na primeira, versarei sobre os pressupostos e os referidos conceitos com os quais trabalha a Análise do Discurso, enfatizando a relevância dos conceitos de interdiscursividade e de interdiscurso. Na segunda parte, com o intento de ilustrar de que modo esses conceitos contribuem para que nos tornemos leitores mais competentes no trabalho de interpretação e compreensão de textos filosóficos, abordarei, sem pretensão à exaustão, de modo dialógico, as teorias do conhecimento elaboradas por Kant e Schopenhauer.

1. A Análise do Discurso: pressupostos e conceitos


“A filosofia – define Epicuro- é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz”. Seja-me permitido, então, destacar este truísmo: a filosofia não é possível senão pela produção de discursos. Ao destacar deste passo de Epicuro tal truísmo, ciente estou de que deixo à margem de minhas considerações o vínculo necessário entre filosofia e vida feliz, de que dá testemunho não só Epicuro mas toda a tradição grega.
Epicuro lembra-nos que a atividade da filosofia se realiza pela produção de discursos. Definir os conceitos de discurso e de língua à luz do quadro teórico da Análise do Discurso se me impõe como uma pré-condição para que se esclareçam os demais conceitos, já referidos, que contribuirão, por sua vez, para a elucidação da complexidade do objeto teórico da Análise do Discurso.

1.2. Discurso e Língua

Discurso não se identifica com a fala, nem com a língua. O discurso, tal como definido pela Análise do Discurso, é um acontecimento sócio-histórico; é, segundo Orlandi (2007), efeito de sentidos entre interlocutores. Tanto o locutor quanto o interlocutor, participantes da atividade discursiva, estão sempre afetados pelo simbólico. Esses efeitos de sentidos são consequência das relações entre sujeitos simbólicos que participam do discurso, em condições sócio-históricas dadas. Os efeitos de sentidos se realizam como consequência do fato de esses sujeitos serem situados sócio-historicamente e de serem afetados pelas suas memórias discursivas, as quais, por sua vez, são memórias sociais. As memórias discursivas fundam um espaço que se apresenta como condição de possibilidade do funcionamento do discurso. Esse espaço constitui um corpo sócio-histórico-cultural. (Fernandes, 2007, p. 59-60). O conceito de memória discursiva será definido quando eu me debruçar sobre o conceito de interdiscurso. Desde já, noto que memória discursiva e interdiscurso são conceitos correlatos, sinônimos.
A língua não é meramente um código entre outros. Não há separação entre emissor e receptor, como postula uma clássica Teoria da Comunicação. Tampouco a língua é mero instrumento de comunicação. Ao usarmos a língua, não só comunicamos, como também não comunicamos. A língua é, fundamentalmente, uma prática social, e os participantes dessa prática social atuam interacionalmente na produção de significados. O que eles fazem, quando envolvidos nas práticas linguísticas, é produzir discurso. Portanto, o funcionamento da linguagem põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela História, num complexo processo de constituição desses sujeitos e de produção de sentidos.
No que tange ao texto, é ele um objeto linguístico-histórico. Não carece fazer uma distinção entre texto e discurso aqui. Texto e discurso são atravessados pela incompletude. O texto não é, assim, uma unidade fechada, embora, na prática de análise, possamos compreendê-lo como uma unidade inteira em relação com outros textos existentes, possíveis ou imaginários (intertextualidade), com suas condições de produção (os sujeitos e a situação), com sua exterioridade constitutiva (o interdiscurso, a memória discursiva).
O texto é caracterizado por sua historicidade. Falar em historicidade do texto é apreender seu acontecimento como discurso, seu funcionamento, o trabalho de sentidos que ocorre nele. Trata-se de pensar a temporalidade interna do texto, ou seja, sua relação com a exterioridade constitutiva, segundo o modo como ela se inscreve no texto. Essa exterioridade não é a exterioridade histórica da qual o texto é um produto; essa exterioridade determina o texto internamente. Não é algo que está lá fora e que se reflete no texto. Não se vai da História (acontecimentos, eventos) para analisar o texto, mas se parte do texto enquanto materialidade histórica, com suas marcas. Destarte, compreender a materialidade do texto é compreender como a matéria textual (historicidade do texto) produz sentidos.
Não se está negando que há uma relação entre a História fora do texto e a historicidade do texto, que é a trama de sentidos nele, mas essa relação não é direta, nem imediata, nem de causa e efeito. Essa relação é complexa e demanda, a fim de que possa ser explorada, a compreensão do funcionamento do texto.

1.3. Sujeito

Desde já, é necessário rechaçar um possível equívoco: o sujeito de que trata a Análise do Discurso não é o sujeito cartesiano, ou seja, como uma consciência unitária e transparente a si mesma, e suposta como existente independentemente do corpo. Esse sujeito cartesiano é um “eu” a-histórico, senhor de si, cuja existência é postulado pelo pensamento. O sujeito de que trata a Análise do Discurso é um sujeito sócio-histórico. Este sujeito não se confunde nem com o autor nem com o indivíduo empírico que produz um texto. Trata-se de uma posição-sujeito ou forma-sujeito constituída na relação com o simbólico na História. O sujeito é discursivo e descentrado (não é a origem do seu dizer), porquanto afetado pelo real da língua e pelo real da história. Ele não exerce controle sobre o modo como língua e História o afetam. Por isso, o sujeito funciona pelo inconsciente e pela ideologia.
O sujeito deve sua instituição à interpelação ideológica (Althusser)[3]. O sujeito não é o centro do seu dizer, de modo que ele se caracteriza por duas formas de esquecimento: 1o esquecimento – o sujeito se constitui pelo esquecimento da formação discursiva que o determina. Só há sujeito pela sua inscrição na formação discursiva. É devido a esse esquecimento que o sujeito tem a ilusão de ser a origem do que diz; 2o esquecimento – o sujeito esquece que há outros sentidos possíveis. Nesse caso, ao formular o seu dizer, vão-se construindo cadeias parafrásticas de tudo aquilo que ele poderia dizer, mas não disse. Quanto mais operamos formulações tanto mais silenciamentos se deixam vazar de nossas palavras. Esses silenciamentos compreendem o domínio do formulável (eles também dizem). Esse esquecimento segundo acarreta a ilusão da relação termo a termo entre o dizer, o pensar e a realidade.
Retomando-se a contribuição do materialismo histórico para a constituição do campo de estudos da Análise do Discurso, deve-se reter que há o real da História, de sorte que o homem faz história, mas ela não lhe é transparente. Conjugando a língua com a História na produção de sentidos (os sentidos são produto do trabalho de uma relação determinada do sujeito com a História), os estudos do discurso se ocupam com a dinâmica da forma material, que é a forma encarnada na história para produzir sentidos. Essa forma é de natureza linguístico-histórica. Esclarecendo os elementos que estão em jogo no trabalho do analista do discurso, cumpre sublinhar: a) o sentido não é o conteúdo semântico das palavras; b) a História não é um contexto, um enquadramento de acontecimentos; c) o sujeito não é a origem de si e nem está na origem do que diz. A Análise do Discurso está, portanto, preocupada com a ordem do discurso, na qual o sujeito se define por meio de sua relação com o sistema significante dotado de sentidos, sua corporeidade, sua historicidade (Orlandi, 2007, p. 49). O sujeito é, assim, sujeito significante (que significa), é sujeito histórico (ou seja, material). Esse sujeito, conforme mostrei, é uma posição-sujeito, isto é, ele se define como “posição”, porque é um sujeito atravessado por diferentes “vozes”, por diferentes discursos, numa relação, submetida a regras, com a memória discursiva (o interdiscurso). Esse sujeito só existe por sua relação com uma formação discursiva, a qual, por sua vez, mantém relação com as demais formações discursivas. Portanto, o sujeito de que se ocupa a Análise do Discurso é um lugar de significação que se constitui historicamente, vale dizer, pelo interdiscurso.
Uma vez que não se separam forma e conteúdo, a Análise do Discurso visa a compreender a língua não só como estrutura, mas, sobretudo, como um acontecimento. Da reunião da estrutura e acontecimento, resulta que a forma material (linguístico-histórica) é considerada como o acontecimento do significante (língua) num sujeito afetado pela História. É importante destacar que as palavras que usamos no trato cotidiano com a língua já nos chegam carregadas de sentidos, dos quais ignoramos a origem de constituição. Não obstante, elas significam em nós e para nós.

1.4. Formação discursiva e Ideologia

A língua é a materialidade específica do discurso, e o discurso é a materialidade específica da ideologia, de modo que não há ideologia fora do signo, do discurso. Descerei a considerações sobre o conceito de formação discursiva, definindo, posteriormente, sem me estender sobre o tema, o conceito de ideologia, tal como compreendido pela vertente da Análise do Discurso de cuja apresentação venho-me ocupando.
Todas as formações discursivas são constituídas de formações ideológicas[4] que as governam. O conceito de formação discursiva foi cunhado por Foucault, em Arqueologia do Saber (1969), para designar o domínio que, numa dada formação ideológica, a partir de uma posição social numa conjuntura histórica dada, determina o que se pode e deve-se dizer. É da formação discursiva que as palavras e os enunciados recebem seus sentidos. A formação discursiva refere-se ao que se pode dizer somente em determinada época e espaço social, ao que tem lugar e realização a partir de condições de produção específicas, historicamente definidas. A formação discursiva permite explicitar como cada enunciado tem seu lugar e sua regra de aparição, e como as estratégias que presidem à sua produção derivam de um mesmo jogo de relações; em suma, como um dizer encontra espaço num determinado lugar e época.
Foucault ensina que a formação discursiva torna possível a descrição, tendo em vista certo número de enunciados, de um sistema de dispersão. Além disso, ela permite definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações) relativamente a objetos, tipos de enunciação, conceitos e escolhas temáticas. Uma formação discursiva não se limita a uma época apenas. No seu interior, se acham elementos que existiram em diferentes espaços sociais, e em outros momentos históricos, e que reaparecem sob novas condições de produção, tornando-se parte constitutiva de um novo contexto histórico e, consequentemente, possibilitando outros efeitos de sentido.
Tentarei, de modo rudimentar, mostrar como se pode operar com o conceito de formação discursiva por meio da consideração de duas escolas filosóficas que vicejaram no período helenista, justamente numa época em que o homem grego via dissipar-se o horizonte único da vida moral, a saber, a pólis. A partir de então, Estado e política passaram a ser situados entre as coisas moralmente indiferentes ou mesmo moralmente negativas. A fim de assinalar a ruína espiritual experimentada pelo homem grego neste período, vale lembrar que, na era clássica, a pólis era o lugar sem o qual o homem não poderia conceber sua própria existência, nem relativamente aos outros, nem em relação a si mesmo. Na pólis, homem e cidadão se identificavam quase completamente. É, por outro lado, no período helenista, que o homem descobre-se indivíduo. Doravante, não podendo mais orientar-se pela Cidade, pelo éthos do Estado e seus valores, a fim de tornar plena de conteúdos sua própria vida, o homem, coagido pela força dos acontecimentos, não teve alternativa senão encerrar-se em si mesmo. Com a empresa revolucionária de Alexandre, a cultura passou a formar indivíduos. Atentemos para o seguinte passo de Reale (2011, p. 11)[5], que nos esclarece sobre a grande transformação cultural e filosófica ocorrida nesse período:

“Assim como a cultura helênica, tornando-se helenística, perde o seu vigor originário e a sua força primigênia, assim também a filosofia, em particular, perde profundidade o que ganha em extensão. A perda se dá justamente na dimensão da teoreticidade e, portanto, na força e no vigor especulativo. O ganho se dá no número incomparavelmente superior de pessoas para as quais a filosofia, transformada essencialmente em problema da vida, sabe comunicar uma mensagem válida. A filosofia torna-se efetivamente a fonte da qual o homem helenístico extrai os valores que antes extraía da polis e da religião da polis; oferece novos conteúdos de vida espiritual, ilumina as consciências, ajuda o homem a viver e lhe ensina como ser feliz mesmo na época trágica em que vive na qual todos os antigos valores parecem subvertidos”.


Não se pode negar que as novas condições sócio-históricas da era helenística vão ser determinantes do aparecimento de discursos assentados numa orientação ideológica diversa, redefinida em relação aos discursos produzidos no período clássico. No entanto, nos quadros da Análise do Discurso, não se parte da exterioridade histórica para examinar os textos; a atenção se concentra na exterioridade constitutiva (interdiscurso, memória) que atravessa o texto e o determina do interior. Vou-me ater ao conceito de formação discursiva, a fim de lhe externar a operacionalidade. Sabe-se que Epicuro apregoou ser o prazer o soberano bem. O prazer, para ele, é o começo e o princípio da vida feliz. Foi justamente por fundar sua moral no prazer que Epicuro foi acusado por seus contemporâneos e pela posteridade de defensor da volúpia[6]. No entanto, o próprio Epicuro não descurou de advertir que se deve buscar os prazeres moderados, afastando aqueles que não são nem naturais nem necessários. A título de ilustração, vamos considerar como a palavra prazer recebe seu sentido pela inscrição dos sujeitos epicuristas e estóicos em formações discursivas diversas. O epicurismo subordinou a virtude ao prazer: a virtude era um meio para alcançar o prazer. Um estóico como Zenão, o fundador do estoicismo, não poderia concordar com Epicuro. A ética estóica se assenta no seguinte preceito estruturado em consequências: deve-se viver segundo a natureza, que significa viver segundo a razão, que, por sua vez, coincide com viver segundo a virtude. Para o estóico, a virtude é, ela mesma, a felicidade; por conseguinte, viver segundo a virtude deve ser desejado. Vivendo segundo a virtude, o estóico conquista a autarquia; por isso, não tem necessidade de prazeres. Segundo a opinião estóica, os prazeres não concorrem para aperfeiçoar a natureza humana; são tão-só fenômenos que acompanham o aperfeiçoamento, mas não estão totalmente sob o poder do indivíduo.
Há que se ver, pois, o confronto entre duas formações discursivas, que fazem com que os sujeitos e a palavra “prazer” signifiquem de modo diverso. As condições sócio-históricas do helenismo favorecem o aparecimento de discursos filosóficos nos quais há uma preocupação com a orientação moral ou ética dos indivíduos, conforme nota Reale (ib.id.): “os filósofos da era helenística são substancialmente moralistas, grandes moralistas; são pregadores de um credo ético; são, a seu modo, apóstolos e missionários”. Malgrado sejam mobilizados por um interesse ético em comum, os filósofos epicuristas e estóicos se inscrevem como sujeitos em formações discursivas e ideológicas diferentes. Essas formações discursivas deixam transparecer temas que atravessaram outras formações discursivas em outras épocas e lugares. Por exemplo, naturalmente, o tratamento dispensado ao prazer pelo epicurista e pelo estóico se faz num movimento de redefinição/re-produção de efeitos de sentido produzidos em outro lugar e época, como, por exemplo, na época de Platão, em Filebo. Aqui, já se entrevê a importância da memória discursiva ou interdiscurso como condição de possibilidade de existência do próprio discurso, pois o discurso de epicuristas e estóicos só é possível pela intervenção dessa memória coletiva, que é a memória discursiva. Os discursos, portanto, se imbricam e se relacionam com outras formações discursivas anteriores e exteriores, e que atravessam o discurso de um sujeito. Escapa aos propósitos deste texto uma demonstração acurada da operacionalidade do conceito de formação discursiva, para cuja tarefa supõe-se a constituição de um corpus discursivo ou arquivo que se conclui apenas no fim do procedimento analítico.
Tomando-se, agora, o conceito de ideologia, será suficiente dizer que, no quadro teórico a que remetem minhas considerações, a ideologia não é uma forma de ocultamento de conteúdos, mas um mecanismo de produção de uma interpretação necessária que atribui sentidos fixos às palavras. Por isso, o mecanismo ideológico não envolve uma falta, mas um excesso (Orlandi, 2007, p. 66). A ideologia representa a saturação do sentido, o efeito de completude, o qual, por sua vez, é responsável pelo efeito de evidência (do sentido).


1.5. Interdiscursividade e Interdiscurso (memória discursiva)

A interdiscursividade recobre o entrecruzamento de diferentes discursos, produzidos em diferentes momentos na História e a partir de diferentes lugares sociais. Todo discurso é constituído de diferentes enunciados que o antecedem e o sucedem, e que integram outros discursos. Correlato ao fenômeno da interdiscursividade, o interdiscurso ou memória discursiva é a instância da repetição histórica, porque inscreve o dizer no repetível (interpretável) enquanto memória constitutiva (interdiscurso). Esta memória é uma rede de filiações de dizeres que faz a língua significar. Destarte, sentido, memória e História se entrecruzam no interdiscurso.
O interdiscurso é aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente da formulação de um discurso dado. É a memória discursiva, o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pré-construído[7], o já-dito que está na base do dizível e que dá suporte a toda tomada da palavra. O interdiscurso põe em movimento dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada.
Tendo ficado claro que o interdiscurso é o próprio espaço de inscrição da memória de dizeres, que a memória discursiva expressa a inscrição da língua na História, passo, na próxima seção, a dissertar sobre a teoria do conhecimento em Kant e em Schopenhauer, procurando assinalar como nossa experiência com a filosofia se beneficia da compreensão do modus operandi dos conceitos de interdiscursividade e interdiscurso. Levando a termo esta seção, refiro as palavras de Orlandi (2010, p.18), que definindo o interdiscurso, sublinha a relação deste com a formação discursiva:

O interdiscurso determina a formação discursiva. E o próprio da formação discursiva é dissimular na transparência do sentido, a objetividade material contraditória do interdiscurso que a determina. Essa objetividade material contraditória reside no fato de que algo fala sempre antes em outro lugar e independentemente. O interdiscurso é irrepresentável. Ele é constituído de todo dizer já-dito. Ele é o saber, a memória discursiva. Aquilo que preside todo dizer. É ele que fornece a cada sujeito sua realidade enquanto sistema de evidências e de significações percebidas, experimentadas. E é pelo funcionamento do interdiscurso que o sujeito não pode reconhecer sua subordinação-assujeitamento ao Outro, pois, pelo efeito de transparência, esse assujeitamento aparece sob a forma de autonomia”. (grifos meus).



2. Kant e Schopenhauer: uma leitura com base no princípio da interdiscursividade


Quando no livro 1 de O mundo, Schopenhauer desenvolve sua concepção do mundo como representação, são repostos vários elementos já presentes no desenvolvimento do criticismo kantiano. Decerto, essa reposição não consiste em mera apropriação, mas é expressão de uma ressignificação desses elementos num movimento que articula assentimento e divergência. Mobilizando os conceitos já trabalhados por Kant e reinscrevendo-os num novo horizonte hermenêutico, Schopenhauer permite-nos acompanhar o percurso pelo qual o interdiscurso irrompe em seu discurso – na forma de intertextualidade - como condição de possibilidade para a sua própria construção. Ao dizer, o sujeito schopenhaueriano deixa ressoar um já-dito produzido em outro lugar e época de modo independente. Todo discurso é constituído de diversas formações discursivas. É, por isso, de esperar que o discurso schopenhaueriano seja atravessado por formações discursivas várias. Não obstante, estou interessado em mostrar, a partir da perspectiva da interdiscursividade, por que tem razão Schopenhauer quando considerou a si próprio um herdeiro do kantismo. Para levar a efeito esta empresa, precisarei, em primeiro lugar, dispensar atenção sobre a teoria do conhecimento de Kant. Posteriormente, debruçar-me-ei sobre o desenvolvimento da concepção do mundo como representação de Schopenhauer na tentativa de mostrar a intervenção do interdiscurso que traz o registro, especialmente, da voz kantiana.

2.1. Kant e sua teoria do conhecimento

A distinção estabelecida por Kant entre sensibilidade e entendimento inspirou-se na clássica distinção dos antigos entre objetos sensíveis (aisthèta) e objetos inteligíveis (noètá). A sensibilidade recobre a faculdade das intuições; e o entendimento encerra a faculdade dos conceitos.
De modo geral, por intuição, entende-se a visão direta e imediata de um objeto apresentado ao espírito e apreendido em sua realidade individual. Portanto, só há intuição quando um objeto nos é dado ao espírito. Na medida em que objetos que nos são dados são aqueles que nos afetam o espírito, as intuições serão recobertas pela faculdade da sensibilidade, a qual se caracteriza por receber as representações. Segundo Kant, para o homem, só há intuições sensíveis.
Sublinhe-se que a sensibilidade é a faculdade que tem nosso espírito de ser afetado por objetos. É a sensibilidade, assim, que nos fornece as intuições, e somente ela.
Por outro lado, o entendimento encarrega-se de pensar os objetos fornecidos pela sensibilidade. Trata-se de uma faculdade não sensível de conhecer. O entendimento se caracteriza pela espontaneidade. Ao entendimento cumpre produzir representações. As representações do entendimento são os conceitos. Destarte, de acordo com Kant, o entendimento humano produz um conhecimento por conceitos. Não sendo, portanto, um conhecimento intuitivo, esse conhecimento é discursivo.
Cuido indispensável esclarecer, a esta altura, o que é representação. A representação é a operação pela qual a mente tem presente a si mesma uma imagem mental, uma ideia ou conceito correspondente a um objeto externo. Toda representação é uma re-apresentação da realidade externa à consciência, de sorte que a realidade  re-apresentada se torna um objeto da consciência. É o signo (a palavra) o elemento responsável por permitir a relação entre a consciência e o real na representação.
Volvendo olhares para a contribuição kantiana, encontramos na Crítica da Razão Pura (2013, p. 45), logo de início na Introdução,  o primeiro registro do interdiscurso, que se depreende da passagem em que Kant dá seu assentimento a um tese empirista, da qual Hume foi um representante que influenciou decisivamente o pensamento kantiano, tanto mais que o próprio Kant viu nele o filósofo responsável por tê-lo despertado de seu sono dogmático: “não há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa com a experiência”. Esse trecho se acompanha, no entanto, da observação do próprio Kant de que o conhecimento não se reduz à experiência. O conhecimento, portanto, começa com a experiência, no que está de acordo com a tese básica do empirismo, mas não se reduz a ela. Minha atenção recairá apenas sobre o fato de a experiência ser  o domínio responsável por dar início ao conhecimento, vale dizer, por torná-lo possível. Se o ponto de partida para o conhecimento é a experiência, pode-se dizer que, para Kant, o conhecimento tem como base a sensação. A sensação é a impressão produzida por um objeto na sensibilidade. Por meio da sensação, dá-se a intuição empírica. O objeto dessa intuição empírica é o fenômeno.
A experiência é um conhecimento real e empírico, que resulta da interação entre a sensibilidade e o entendimento. A experiência se constitui pela ligação de percepções, operada pelo entendimento, na forma de conceitos. A experiência envolve dados empíricos e elementos a priori. Segue-se daí que o conhecimento se realiza cabalmente no momento em que percepções e conceitos são relacionados sob a forma de um juízo. Só no nível do juízo é que se constituirão objetos, pois, antes do juízo, não há qualquer determinação.
Ao se ocupar da análise da sensibilidade e do entendimento, Kant se aproveitará da distinção escolástica entre forma e matéria. Destarte, com vistas a explicar de que modo operam a sensibilidade e o entendimento no conhecimento dos fenômenos, Kant propõe que pensemos tanto o fenômeno quanto o conhecimento como algo constituído de forma e matéria. A matéria do conhecimento depende do próprio objeto; a forma do conhecimento, por sua vez, depende do sujeito. O ato de conhecer é, portanto, o ato de dar forma a uma matéria dada. Todo conhecimento – eis um ponto importante – implica uma correlação entre um sujeito e um objeto. Os dados objetos são configurados pelo modo com que a sensibilidade e o entendimento os apreendem.
A matéria é a posteriori, isto é, depende da experiência. A matéria do conhecimento é variável de um objeto para outro, visto que dele depende. A forma, por outro lado, como seja imposta pelo sujeito ao objeto, será reencontrada invariavelmente por todos os sujeitos em todos os objetos.
Tanto a sensibilidade quanto o entendimento apresentam formas que lhes são próprias. As formas puras da sensibilidade são o espaço e o tempo. As formas se dizem puras porque estão a priori no espírito, isto é, não pertencem à sensação ou à experiência. As formas a priori do entendimento são os conceitos ou categorias do entendimento. Antes de apresentá-las, convém enfatizar que sensibilidade e entendimento são inseparáveis para atingirmos conhecimento: por um lado, o conhecimento requer que os conceitos (pensados pelo entendimento) se tornem sensíveis, caso em que a eles articulamos um objeto dado na intuição; por outro lado, as intuições só se tornam inteligíveis, quando se subordinam a conceitos. Não menos importante é enfatizar que as categorias do entendimento constituem as condições subjetivas do pensamento. Assim, ser-nos-ia impossível pensar, isto é, julgar, se não nos fosse possível submeter os dados da intuição sensível às formas a priori do entendimento. Kant distingue entre doze categorias, segundo quatro pontos de vista ou domínios: 1) no domínio da quantidade,  se acham a unidade, a pluralidade e a totalidade; 2) no domínio da qualidade, se topam a realidade, a negação  e a limitação; 3) no domínio da relação, situam-se a substância (e acidente), a causa (e efeito), a reciprocidade; 4) no domínio da modalidade, se encontram a possibilidade, a existência e a necessidade.
Retomemos as formas puras da sensibilidade, quais sejam, o espaço e o tempo, para observar que Kant as entendia unicamente dependentes da forma de nossa intuição, a saber, da constituição de nosso espírito. O espaço não é um ser real, um conceito empírico derivado de nossas experiências exteriores. Não há isto que chamamos "espaço" como  instância ontológica que nosso espírito apreende. Para Kant, o espaço é a priori, porque a sua representação constitui a condição de possibilidade dos fenômenos. Assim também, o tempo é um dado a priori; é a condição de todo vir-a-ser. O tempo não existe nas coisas, tampouco é uma coisa externa à nossa consciência. O tempo é a forma da intuição de nós mesmos e de nosso estado interior. O tempo é a condição formal a priori de todos os fenômenos. Não estando interessado em descer a pormenores sobre as formas da sensibilidade, cinjo-me a lembrar que a intuição só pode nos fornecer os fenômenos e jamais a coisa-em-si (númeno). Essa limitação do conhecimento aos fenômenos terá um impacto significativo na própria compreensão que o homem moderno terá de si mesmo: só posso conhecer quem sou conhecendo alguma coisa. Só podemos apreender nosso eu apenas como fenômeno e não como coisa em si. É a metafísica tradicional, com sua pretensão a fornecer algum conhecimento, que é rejeitada: não podemos conhecer coisa alguma para além da experiência. O homem só pode conhecer aquilo que lhe é dado na intuição.
A coisa-em-si ou o númeno é incognoscível. Portanto, só conhecemos o ser das coisas na medida em que elas nos são dadas enquanto fenômenos.

2.1.2. A Razão, segundo Kant

Para além da experiência, não há conhecimento possível. Com este postulado, Kant nega ser possível à razão demonstrar a imortalidade da alma, a liberdade do homem ou a existência de Deus. Ademais, para o filósofo de Königsberg, não se pode provar nem que a alma é mortal, nem que o homem não é livre, nem que Deus não existe. Para além da experiência – é preciso acrescentar -, não podemos conhecer a existência e a não-existência.
Kant reconhece que a razão tem uma tendência a ultrapassar os limites do conhecimento, já que tem em mira o incondicionado. Tal pretensão da razão leva-a a uma antinomia, isto é, a um modo de proceder no qual ela, a razão, instaura um conflito interno cuja solução se lhe torna impossível. A antinomia se estrutura pela articulação de uma tese com uma antítese. A tentativa de provar tanto um aspecto quanto outro é vã, porque os argumentos a que recorre para tanto são meramente especulativos e, portanto, incapazes de oferecer uma prova empírica.
Kant confere à razão, então duas novas funções. Ela não pode mais presumir a dedução da existência de objetos como Deus, alma, mundo, por si transcendentes, de simples ideias, de sorte a transformar a lógica formal em órgão de conhecimento. Uma vez consciente de seus próprios limites, a razão se torna crítica. Kant estava ciente de que a razão não cessaria de fracassar, caso continuasse a se aventurar em conhecer objetos que só pode conhecer por conceitos, os quais por si mesmos são insuficientes para determinar um objeto real correspondente. Ora, do que expusemos até aqui, é possível depreender que o conhecimento é produto da interação complexa entre duas faculdades; ele é o resultado de uma síntese operada pela sensibilidade e pelo entendimento. São as seguintes as novas funções que Kant fixou para a Razão: a) tornar as ideias especulativas instrumentos metodológicos que sevem à avaliação do progresso da experiência. Essas ideias foram chamadas de Ideias Regulativas; b) negar o caráter contraditório de ideias cosmológicas como a de liberdade e a de necessidade mediante a ressignificação do conceito de objeto, que passa a ser entendido como fenômeno e como coisa-em-si (númeno). Desse modo, as ideias de liberdade e necessidade tornam-se pressupostos da prática moral.
Não devemos perder de vista o fato de que, para Kant, Razão não é o mesmo que entendimento. A razão ultrapassa o entendimento. A razão é a faculdade responsável por operar uma síntese, dando aos conhecimentos múltiplos uma unidade a priori por meio de conceitos. Vale notar que o entendimento, assentado em conceitos, reduz à unidade a multiplicidade dada na intuição. O entendimento opera segundo certas regras. A razão, por sua vez, referindo-se ao entendimento, parte das regras para atingir uma unidade mais elevada, que é a unidade dos princípios.
A razão se diz pura, porque busca o incondicionado, que é a condição última de todas as condições. É no uso lógico da razão que melhor apreendemos essa busca da unidade mais elevada. Quando raciocinamos, compreendemos uma proposição particular sob uma condição geral que a contém, juntamente com outras condições.
Por fim, acrescente-se que o conceito é produto do entendimento; e a ideia é obra da razão. A Ideia ultrapassa a experiência fenomênica. Mas a ideia é um conceito necessário da razão, muito embora a ideia não encontre um objeto correspondente nos sentidos. A razão exige que se represente o universo como uma totalidade acabada.
Tendo revisitado brevemente a teoria do conhecimento kantiana, espero que se ilumine, doravante, a relevância da interdiscursividade como princípio metodológico à medida que eu for passando revista à compreensão schopenhaueriana do mundo como representação.

2.2. Schopenhauer: o mundo como representação

No limiar do livro 1 de O mundo como Vontade e Representação (2001), Schopenhauer aduz a tese em torno da qual desenvolverá sua teoria do conhecimento, a qual constitui uma etapa (a primeira) da sua compreensão totalizante do homem e do real. Antes de referir o passo em que destacarei em negrito, essa tese, cumpre dizer que Schopenhauer se notabilizou por seu espírito profundamente triste e pessimista, que foi empregado na produção de uma obra de cunho existencialista. A verdade pretendida por sua filosofia consiste em demonstrar ser a existência um mal, do qual só podemos escapar pela renúncia a ou pela negação da Vontade.
De minha parte, entendo que uma obra filosófica deve resultar de um esforço por dar testemunho de uma existência, de um temperamento. Isso, ao menos, parece ser verdade no caso de Schopenhauer. Sua existência amargurada, seu temperamento mórbido, sua solidão trágica constituem as forças produtoras de sua filosofia, que encontrou imensa repercussão na alma do homem contemporâneo. A par de Kierkegaard, Schopenhauer soube bem exprimir a sensação de angústia que encontra morada na alma humana.
Neste texto, no entanto, pretendo apenas pontuar em que medida a filosofia de Schopenhauer, particularmente na etapa em que ele propõe o primeiro ponto de vista sobre o mundo, é tributária do pensamento de Kant. Destarte, aceno para a necessidade de se debruçar sobre  toda produção filosófica tendo sempre em conta o princípio da interdiscursividade. Leia-se, então, o fragmento em que Schopenhauer expõe, logo de início, a primeira tese de seu tratado:

O mundo é minha representação – essa proposição é uma verdade para todo ser vivo e pensante, embora só no homem chegue a transformar-se em conhecimento abstrato e refletido. A partir do momento em que é capaz de o levar a este estado, pode dizer-se que nasceu nele o espírito filosófico (...)”. (2001, p. 9).

Consoante notei anteriormente, “o mundo como representação” é o primeiro ponto de vista sob o qual Schopenhauer considerará o mundo. O outro ponto de vista consiste em afirmar que “o mundo é a minha vontade”. Portanto, “o mundo como representação” e “o mundo como Vontade” são dois aspectos sob os quais Schopenhauer compreenderá o mundo. Estas minhas considerações se estenderão prioritariamente sobre o primeiro aspecto; todavia, não silenciarei sobre o segundo aspecto.
Desde já, observo que o nome de Kant é referido por Schopenhauer algumas vezes ao longo do texto, sinal suficiente para atestar que sua filosofia se constituiu em diálogo com o pensamento do filósofo de Königsberg. Devemos, no  entanto, acompanhar de que modo esse diálogo se desenvolveu, apontando as convergências e as divergências entre os dois pensamentos.
A tese “o mundo é minha representação” assenta sobre um postulado que já se encontra em Kant: o conhecimento supõe uma relação necessária entre o objeto e o sujeito cognoscente. Levando adiante as consequências do idealismo de Kant e recuperando explicitamente a fórmula de Berkeley que inaugura o idealismo propriamente dito – o mundo é minha representação -, Schopenhauer sustentará que o mundo só existe na sua relação com um ser que percebe, ser que é o próprio homem. Assim,

“Nenhuma verdade é, portanto, mais certa, mais absoluta, mais evidente do que esta: tudo o que existe, existe para o pensamento, isto é, o universo inteiro apenas é objeto em relação a um sujeito, percepção apenas, em relação a um espírito que percebe. Em uma palavra, é pura representação”. (ibid.id.).


Para Schopenhauer, tudo que há no mundo ou que pode haver está numa relação necessária com o sujeito “e apenas existe para o sujeito”. Não obstante ter sido um grande admirador de Kant, Schopenhauer não deixou de censurá-lo por não ter reconhecido aquela verdade que “constitui já a essência das considerações céticas de onde procede a filosofia de Descartes”.[8]
Deve-se frisar que, segundo Schopenhauer, o mundo existe absolutamente, segundo o primeiro ponto de vista, como representação; e, segundo o outro ponto de vista, como vontade. O mundo como Vontade (com maiúscula para precisar que não se trata da “vontade subjetiva”) é o mundo da coisa-em-si. A Vontade de Schopenhauer é correspondente à coisa-em-si kantiana, se bem que de modo ressignificado. Schopenhauer submeterá à reflexão justamente aquilo que Kant apenas postulou. Notável, para os meus propósitos, é assinalar a insatisfação schopenhaueriana com a forma como Kant introduziu em seu sistema a sua coisa-em-si. Para Schopenhauer, o mundo não se reduz nem à representação, nem à Vontade. A representação é um aspecto sob o qual o mundo existe; e a Vontade é o outro aspecto sob o qual o mundo existe. A Vontade, escreve Schopenhauer, “é um objeto em si” (p. 11). O em-si schopenhaueriano – a Vontade – é a essência do mundo, de sorte que esse “em-si”, sendo um princípio metafísico de explicação da configuração existencial do mundo, não deixa por isso – apesar de ser uma Vontade cega e sem propósito – de servir para demonstrar a ordem ou a natureza do mundo. O em-si kantiano, ao contrário, compreende, em sua teoria do conhecimento, o domínio do incognoscível, daquilo que é imperscrutável ao entendimento e a razão humanos. A Vontade pode ser conhecida pelo homem – levar o homem a se tornar consciente das maquinações da Vontade é o objetivo fundamental a que se destina a filosofia de Schopenhauer.
A problemática da coisa-em-si em Schopenhauer e em Kant não deve nos ocupar demais, por conseguinte passo a assinalar os momentos em que a teoria do conhecimento de Schopenhauer vai-se desenvolvendo em claro contraste com a de Kant.  No tocante à essência do sujeito, escreve Schopenhauer:

“Aquele que conhece o resto, sem ser ele mesmo conhecido, é o sujeito. Por conseguinte, o sujeito é o substractum do mundo, condição invariável, sempre subentendida de todo fenômeno, de todo objeto, visto que tudo o que existe, existe apenas para o sujeito”. (p. 11).


Ao nos determos no excerto acima, encontramos novamente o postulado básico segundo o qual “tudo o que existe, existe apenas para o sujeito”. Ora, afirmar que o mundo é representação é assumir que ele existe para o sujeito que conhece. Sem o sujeito, não há mundo. Por isso, o sujeito é o substractum (essência) do mundo como representação. É importante reter que, para Schopenhauer, o sujeito não é objeto de conhecimento. O sujeito em si não é uma representação; ele é seu pressuposto. Aqui é preciso reconhecer a divergência que há entre o projeto schopenhaueriano e o kantiano. Kant, ao se ocupar das condições de possibilidade do conhecimento e dos limites da razão, tomou para objeto de conhecimento o próprio sujeito em sua forma ideal. Para Schopenhauer, que está interessado em investigar a natureza do mundo, o sujeito é pensado como “princípio que conhece sem ser conhecido”. (ib.id.). De certo modo, o sujeito é incognoscível para si mesmo – “é ele que conhece em toda parte em que há conhecimento”.
Outra diferença notável em relação à abordagem de Kant consiste no fato de Schopenhauer pensar as formas do espaço e do tempo relativamente ao objeto, e não, como pensou Kant, ao sujeito. Para Schopenhauer, o sujeito é uno e indivisível, conforme lemos a seguir:

“O mundo, considerado como representação, único ponto de vista que aqui nos ocupa compreende duas metades essenciais, necessárias e inseparáveis. A primeira é o objeto que tem por forma o espaço e o tempo, e, por conseguinte, a pluralidade; a segunda é o sujeito que escapa à dupla lei do tempo e do espaço, sendo sempre uno e indivisível em cada ser que percebe”. (ib.id., grifos meus).


Afirma-se a idealidade radical do sujeito: ele escapa à lei do tempo e do espaço; não sofre as modificações do devir – é uno e indivisível. A condição para existir o mundo como representação é que haja um objeto e um sujeito que percebe. No entanto, se esse único sujeito desaparece, com ele desaparece o mundo concebido como representação. É necessário ponderar que Schopenhauer não rejeita a possibilidade de se deduzir do sujeito as formas essenciais a qualquer objeto – a saber, o tempo, o espaço e a causalidade. Essa possibilidade de dedução explica, segundo Schopenhauer, por que Kant as considerou formas a priori da consciência. Schopenhauer não deixa, contudo, de reconhecer o mérito de Kant: “De todos os serviços prestados por Kant à filosofia, o maior reside talvez nesta descoberta”. (p. 12).
No tangente à compreensão do estatuto da causalidade, Schopenhauer coloca-se em evidente oposição a Hume. Já que minha preocupação básica é demonstrar a verdade do princípio da discursividade como condição de todo discurso e de demonstrar sua pertinência à compreensão da história da filosofia, é oportuno recordar o modo como Hume pensava a causalidade. Para ele, a causalidade não é um princípio ontológico. Ela resulta de associações operadas pela mente humana por força do hábito. É porque na experiência percebemos, repetidas vezes, um objeto ser precedido de outro, que julgamos haver entre eles uma relação natural de causa e efeito.
Para Hume, nossos raciocínios de causa e efeito fundamentam-se na experiência e, todos os raciocínios experimentais se apoiam na suposição de que o curso da natureza permanecerá regular. Por isso, somos levados à conclusão de que as mesmas causas, em situações iguais, sempre produzirão os mesmos efeitos. É o espírito humano, pelo concurso da experiência, que concebe qualquer efeito como resultante de uma causa.
Lembra Hume Adão só poderia concluir que, dadas duas bolas, uma das quais lançada em direção a outra, que uma delas se movimentaria como efeito do choque da outra, se somente tivesse a experiência anterior do efeito que resulta do impulso daquelas duas bolas. Adão deveria ter visto vários casos anteriores em que uma bola chocou-se contra outra, fazendo esta se movimentar. Vendo um número suficiente de casos semelhantes, estaria certo de que a segunda bola se movimentaria todas as vezes que outra bola se chocasse contra ela. Para Hume, é a experiência que engendra a noção a noção de causa e efeito: é porque estamos habituados a ver um fenômeno Y seguir-se a um fenômeno X que temos a expectativa de que, ocorrendo X, seguir-se-á Y. Essa nossa expectativa, fundada no hábito, se traduz na fórmula: X é a causa de Y.
É justamente essa compreensão de causalidade que Schopenhauer rejeita. Schopenhauer considera a causalidade como um princípio da nossa experiência do real. Ora, na condição de princípio, a causalidade (ou lei da causalidade) é pressuposta no modo como o mundo se nos dá intuitivamente. Fique claro que Schopenhauer não está sustentando que a causalidade exista no mundo real independentemente do entendimento, o que o excerto abaixo é suficiente para rejeitar. O que Schopenhauer diz, contra Hume, é que a causalidade não é produto da força do hábito, mas uma lei que regula os fenômenos do mundo e que existe no e para o entendimento. Sem o entendimento, o mundo não seria nada, e lei alguma existiria.

“(...) o mundo percebido pela intuição no espaço e no tempo, o mundo que se nos revela na intuição como causalidade, é perfeitamente real e é absolutamente aquilo que parece ser; ora, aquilo que ele pretende ser inteiramente e sem reserva é representação, e representação regulada pela lei da causalidade. Nisso consiste a sua realidade empírica. Mas, por outro lado, só há causalidade no e para o entendimento; assim, o mundo real, isto é, ativo, é sempre, como tal, condicionado pelo entendimento, sem o qual ele não seria nada” ( grifo meu, p. 21).


Como se pode ver, no trecho acima, a causalidade não é um produto do hábito, como pensava Hume; para Schopenhauer, é um princípio que existe no mundo que é representação.
Com não estar eu preocupado em desenvolver uma análise exaustiva que ilumine as convergências e as divergências entre as teorias do conhecimento de Schopenhauer e de Kant, vou limitar-me a notar que por entendimento Schopenhauer não entende o mesmo que Kant, tanto mais que Schopenhauer diz o possuírem todos os animais, mesmo os mais imperfeitos. A razão por que Schopenhauer estende o entendimento aos animais é que o entendimento tem por essência o conhecimento pelas causas. Para Schopenhauer, o entendimento limita-se a ser uma faculdade responsável por ligar o efeito à causa ou a causa ao efeito. No entanto, no homem, a intensidade de ação e extensão de sua esfera é maior.
No que tange à razão, Schopenhauer atribui a ela apenas a propriedade de classificar, fixar e combinar os conhecimentos imediatos do entendimento, sem nunca produzir qualquer conhecimento. Nesse tocante, Schopenhauer não se afasta muito de Kant. Ele conserva a distinção kantiana entre razão e entendimento e destitui a razão do poder de lograr um conhecimento teórico. No entanto, ao contrário de Kant, Schopenhauer nega que a razão seja a faculdade do incondicionado. Para Schopenhauer, a razão tem seu alcance reduzido à exploração dos dados imediatos do entendimento, sem o qual ela permanece estéril. O entendimento, segundo essa perspectiva, é a faculdade da representação. Ele é estruturado pelo princípio da razão suficiente (espaço, tempo e causalidade). Kant, por sua vez, distingue entre intuição, com suas formas a priori (espaço e tempo) e entendimento, com suas doze categorias. Schopenhauer, por seu turno, as funde numa única faculdade, a qual chama alternadamente de entendimento, intelecto ou intuição. A intuição, para Schopenhauer – no que discorda de Kant – não é puramente sensível, mas intelectual. O que vimos a respeito de Kant patenteia que, para ele, a intuição é sempre sensível. Acerca da intuição, escreve Schopenhauer:

“(...) a intuição não é de ordem puramente sensível, mas intelectual; pode-se dizer, em outras palavras, que ela consiste no conhecimento da causa pelo efeito, por meio do entendimento: pressupõe, pois, a lei da causalidade.” (p. 19).


Finalmente, reitere-se que a lei da causalidade é condição de possibilidade para qualquer intuição. Nisso Schopenhauer discorda de Hume, que pretendia deduzi-la da experiência por força do hábito. Para Schopenhauer, a lei da causalidade é condição de possibilidade para qualquer experiência.

Considerações finais

Como espero tenha ficado claro, nenhum discurso vem ao mundo como criação de um sujeito que está na origem do dizer. Todo discurso está calcado sobre discursos que o precedem, ao mesmo tempo que projeta espaços de possibilidade de outras enunciações. O interdiscurso é o já-dito que se situa em outro lugar; é pré-condição para todo dizer, é a memória discursiva. Numa perspectiva bakhtiniana, devemos reconhecer que o dialogismo está no cerne do funcionamento da linguagem, visto que todos os enunciados se constituem a partir de outros. Quando os comentadores nos ensinam sobre as influências sofridas por um filósofo, como a que sofreu Schopenhauer de Kant, como a que Kant sofreu de Hume, por exemplo, eles põem em evidência justamente o funcionamento do princípio de interdiscursividade, ainda que não haja preocupação explícita de teorizar sobre ele (tarefa esta que compete ao linguista, ao analista do discurso). Mas a importância de tal princípio é irrecusável para um estudo tanto mais profundo quanto satisfatório do pensamento filosófico em toda a sua complexidade e extensão. Assim é que se vai costurando o tecido discursivo: Santo Agostinho remete a Platão, que remete a Parmênides e a Heráclito, os quais dialogam com a tradição anterior, ao mesmo tempo em que abrem espaços enunciativos posteriores. Assim é que podemos ver um Marx retomar Hegel, para reinterpretá-lo, para contestá-lo, etc. É pela interdiscursividade que podemos melhor compreender as divergências que opõem, de um lado, racionalistas; de outro, empiristas;  é ela que nos permite, inclusive, pensar aquilo em razão do qual se opõem as duas formas de idealismo, como o de Kant e o de Descartes. Racionalismo e Empirismo; Idealismo e Realismo, etc. são designações que acenam para diferentes formações discursivas e ideológicas. Fica, então, estabelecido que o estudo da linguagem, mormente no que tem de contribuição para a compreensão do funcionamento textual e discurso, antes de subtrair-se ao estudo da filosofia, vem-lhe em socorro para torná-lo uma atividade ao longo da qual o agente vai-se transformando profundamente pelo aprofundamento de sua compreensão dialógica do pensamento que se põe sob foco de sua atenção por ocasião do estudo.




____________________________________
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERNANDES, Alves C. Análise do discurso: reflexões introdutórias. São Carlos: Clara Luz, 2007.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso. In: Orlandi, Eni P.; Rodrigues-Lagazzi, Suzy (orgs). Discurso e textualidade. São Paulo: Pontes, 2011, p. 13-31.
________ Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. São Paulo: Pontes, 2007.

PASCAL, Georges. Compreender Kant. Petrópolis, RJ: 2009.


SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como Vontade e Representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.






[1] Neste trabalho, a expressão Análise do Discurso recobrirá a orientação dos estudos discursivos levada a efeito pela escola francesa, da qual, no Brasil, sua mais notável representante é a linguista e analista do discurso Eni P. Orlandi.
[2] Segundo Maingueneau (1991), o arquivo reúne enunciados provenientes de um mesmo posicionamento e inseparáveis de uma memória e de instituições que lhe conferem legitimidade. Para Foucualt, o arquivo permite pensar as práticas discursivas de uma sociedade.
[3] A expressão interpretação ideológica designa o processo pelo qual a ideologia age e funciona de modo a ‘recrutar’ sujeitos entre os indivíduos. Trata-se de um processo que transforma indivíduos em sujeitos. Na condição de sujeitos, os indivíduos se submetem ao Sujeito (sujeito-Ideologia). A distinção entre sujeito e Sujeito (com “S”) serve para destacar o caráter sobredeterminante da ideologia sobre os indivíduos já interpelados. Assim, a ideologia ou o Sujeito tem o poder de interpelar os indivíduos como sujeitos e de submetê-los às suas orientações valorativas. Por exemplo, a ideologia jurídica reza o respeito às leis e interpela os indivíduos como sujeitos (agentes) que devem seguir essa determinação.
[4] A formação ideológica constitui um conjunto complexo de atividades e representações, que não são nem individuais nem universais, mas que estão ligadas às posições de classes em conflito (Pêcheux & Fuchs 1990, p. 166. apud. Fernandes, 2013, p. 65). Os sentidos dependem do modo como as posições de sujeitos se inscrevem nas formações ideológicas.
[5] REALE, Giovanni. Filosofias helenísticas e Epicurismo. São Paulo: Loyola, 2011.
[6] Deve-se frisar que essa acusação já se inscreve noutra formação discursiva, a qual é determinada por uma formação ideológica diversa.
[7] O pré-construído é a marca da presença, num enunciado, de um discurso anterior. Por isso, esse discurso se opõe ao enunciado que é construído no momento da enunciação. Esse discurso consiste no “já-dito” e por nosso esquecimento sobre quem foi seu enunciador.
[8] O caráter polifônico de todo discurso se deixa facilmente apreender quando, ao longo do texto, Schopenhauer evoca também o nome de Berkeley, a quem foi primeiro a formular aquela verdade.

sábado, 15 de março de 2014

"O tempo da escrita não se esgota" (BAR)

                                  

                             O homem medíocre

                                   Uma leitura


1. Notas introdutórias

A autoria nos blogs

Em comentário destinado a uma amiga, seguidora fiel de meu blog, observei-lhe que, segundo creio, o tempo dos blogs chegara ao fim. A razão por que creio que seja este o caso se deve à ausência de comentários que, outrora, eram fartos, em meu blog. Em momento algum, ocorreu-me que esse silêncio dos leitores talvez se devesse ao desinteresse deles por meus textos em função de sua baixa qualidade (dos textos). De certo modo, parece-me que eu mesmo tenho andado desestimulado com este gênero discursivo (o blog). Ainda que eu saiba que um ou outro blogueiro consiga prosperar no meio editorial, vindo a publicar livros graças à atividade como blogueiro, nunca aspirei, através do blog, a alguma projeção no mercado editorial. O meu blog veio à luz por uma razão bastante pessoal: eu necessitava exteriorizar-me. Não obstante, não pretendi jamais fazer dele uma espécie de diário (aliás, esta é a definição que lhe é atribuída – “diário eletrônico” – pelos especialistas nos estudos dos gêneros do discurso).
O que torna difícil a um blogueiro alcançar algum grau de notabilidade? Não está em questão (ainda que se pudesse aventá-la) o grau de competência do blogueiro como sujeito de escrita. Outra questão importante é saber por que os leitores tendem facilmente a silenciar sua presença como visitantes do blog. O caminho para responder a essas duas questões encontrei no livro de Dominique Maingueneau, Doze conceitos em análise do discurso (2010). Em um dos capítulos desse livro, o linguista e especialista em Análise do Discurso se dedica a discutir a questão da autoria; e uma das seções de seu texto é destinada ao tratamento do estatuto do autor em blogs. No que tange à influência do mídium sobre o estatuto do autor, observa Maingueneau:

“[o mídium] tem precisamente o efeito de minar certas condições de acesso ao estatuto de autor”.
(p. 39)


O primeiro problema relativo aos blogs, segundo o autor, diz respeito à sua proliferação. Veja-se o que ele nos diz sobre esse problema:

“Nada mais limita a produção, a não ser a boa vontade do blogueiro e, bem entendido, as restrições impostas pelo programa ou pelo servidor que o hospeda”.
(p. 40)


Na medida em que não há limites para a produção, exceto os relacionados ao programa, toda sorte de conteúdos pode ser divulgado, inclusive os mais triviais. A proliferação dos blogs torna a raridade uma qualidade difícil de ser atingida. Nota Maingueneau que a proliferação de produtores, bem como o desaparecimento dos responsáveis por filtrar os produtos disponibilizados ao público leitor, “tornam improvável o destaque de figuras proeminentes” (ib.id.). Os blogs favorecem uma confrontação direta entre “uma oferta virtual ilimitada e leitores aleatórios surgidos de uma multidão insondável”. Assim, por um lado, a proliferação de blogs, mediando a veiculação  dos temas ou conteúdos mais diversos, torna dificultosa a proeminência de blogueiros que exibem talento; por outro lado, uma vez aberto ao público em geral, o blog fica sujeito à leitura de uma grande quantidade indiferenciada de pessoas nem sempre qualificadas para avaliar as ideias do blogueiro. Além disso, pode-se esperar que blogs que encerrem textos cujos temas demandam um grau mais elevado de conhecimentos especializados possam desencorajar certo número de leitores ou provocar observações que não contribuem para a manutenção de um diálogo entre o produtor e o leitor. Uma das razões por que é difícil consagrar a qualidade de um texto é que seus leitores não são, muitas vezes, suficientemente especializados para avaliá-lo. No caso dos blogs, é comum que esses leitores façam parte de um “enxame de indivíduos pseudônimos que deixando “comentários” no site, se autodesignam avaliadores” (pp. 40-41). Isso, decerto, dificulta também a constituição de uma obra e, portanto, de uma imagem de autor consistente.
Maingueneau observa que a estabilidade dos textos não é segura e, por isso, torna-se incerta a construção de uma memória.

“A cada hora, a cada minuto, o texto colocado on-line pode ser modificado em seu conteúdo, em sua apresentação ou em sua posição na arquitetura do site; de modo que se torna impossível afirmar qual é a boa versão do texto”.
(p. 41)

No excerto acima, Maingueneau considera a questão da autoria relativamente ao problema de os blogs permitirem que os textos publicados sofram alterações segundo a vontade de seus produtores em curtos espaços de tempo. A construção de uma memória de autor depende de que seus textos não sofram grandes alterações ao longo do tempo. Diferentemente do que sucede com o texto tradicional, as modificações incessantes dos blogs se regulam por restrições de curtíssimo tempo: os blogs precisam ser renovados incessantemente, sob pena de seus seguidores se enfadarem de visitá-lo, o que os leva a passar para outros sites com um clique apenas.
Não pretendendo estender essa discussão para além dos limites dos propósitos a que ela se destina, refiro, sumariamente, o que torna difícil o reconhecimento dos blogueiros, consoante Maingueneau:

“O problema para os blogueiros que aspiram ao reconhecimento é se destacar da multidão de outros blogueiros”.
(p. 42).

A alusão ao problema da autoria no blog teve, unicamente, um propósito motivacional para o empreendimento que se seguirá. Minha escrita costuma ser autocrítica. Tenho por hábito colocar em questão meu próprio labor enquanto agente da escrita.

2. Uma proposta de leitura

Este edifício verbal se alicerça sobre um único objetivo estruturante: produzir uma leitura de uma seção dedicada ao tema do homem medíocre no capítulo cujo título é o próprio tema , na obra O homem medíocre (2011), de José Ingenieros. Minha leitura não pretende recobrir toda a extensão do capítulo, de modo que outras dimensões do homem medíocre, levadas em conta pelo autor, estarão de fora do escopo de minha leitura. Esse objetivo estruturante se orienta por outro objetivo, mais específico, que consiste em demonstrar de que modo esse tipo humano é socialmente produzido. A tese deste texto é que não basta apenas descrever esse tipo de homem; é preciso também – e principalmente – compreender como ele é produzido pela estrutura social. Não se tratará aqui de condenar a mediocridade, mas de compreender-lhe a gênese social. Que os medíocres existam é um fato que procura patentear Ingenieros; a mim caberá oferecer uma interpretação do modo como esse tipo humano, tal como é caracterizado pelo autor,  é socialmente produzido.

2. “No verdadeiro homem medíocre, a cabeça é um simples adorno”.

Começarei por apresentar como o homem medíocre é descrito por Ingenieros. O seguinte trecho, tomado ao autor, merece considerações. Nele me deterei a fim de interpretá-lo.

“Há certas horas em que o pastor ingênuo, fica assombrado ante a natureza que o envolve. A penumbra se espessa, a cor das coisas se concentra no cinza homogêneo das silhuetas; todas as ervas evaporam perfume com a primeira umidade crepuscular; aquieta-se o rebanho para deitar e dormir; o sino longínquo toca seu aviso vespertino. A impalpável claridade lunar se embranquece ao se derramar sobre as coisas, algumas estrelas inquietam com seu brilho trêmulo o firmamento e um rumor distante de riacho que brinca nos matagais parece conversa sobre misteriosos temas. Sentado sobre a pedra menos áspera que encontra à margem do caminho, o pastor contempla e emudece, convidado em vão a meditar pela convergência do lugar e da hora. Sua admiração primitiva é simples estupor. A poesia natural que o rodeia, ao se refletir na imaginação, não se transforma em poema. Ele é, somente, um objeto no quadro, uma pincelada, um acidente na penumbra. Para ele, todas as coisas sempre foram assim e continuarão sendo, desde a terra que pisa até o rebanho que conduz”.
(p. 37 – grifos meus)


Os fragmentos destacados, em negrito, servem de pistas para a interpretação que farei deste texto. Servem, de resto, para validar a minha interpretação. Ainda que assombrado com o mundo, o pastor ingênuo é aquele que não se questiona sobre a existência do mundo; o mundo, para ele, é algo dado; sua relação com o mundo é de passividade, ainda que as coisas do mundo, o real como presença pareçam convidá-lo à meditação. O pastor ingênuo é desprovido da admiração que alimenta o espírito filosófico. Sua admiração é um estupor. Ele permanece em estado de entorpecimento em face do mundo que o rodeia. A poesia do mundo não é traduzida em atividade criativa de sua inteligência, por isso o pastor não se interessa por explorar o significado das coisas que se põem diante de si. Ele é mero espectador. Ingenieros diz ser o pastor “mero objeto no quadro”, o que sugere a ideia de que ele, pastor, é só um ente entre os outros no cenário natural. É ainda um ente contingente como tudo o mais, que não dá à luz pensamentos reflexivos sobre o fato do Ser (do Real, de seu lugar no mundo). O pastor ingênuo é o típico conformista e conformado: ele está acomodado ao mundo e convencido da permanência de todas as coisas. Tudo que vê, que experimenta está disposto numa ordem imutável.

Acrescenta, a seguir, Ingenieros,

“A imensa maioria dos homens pensa com a cabeça desse ingênuo pastor”.
(p. 37)


Ingenieros nega ser possível a essa maioria de homens compreender uma linguagem que visasse a explicar “algum mistério do universo ou da vida”. Tampouco essa maioria está apta a compreender que tudo que existe e que conhecemos evolui eternamente (está em fluxo, em eterno devir, direi com base em Heráclito), que é possível ao homem aperfeiçoar-se “na contínua adaptação (...) à natureza”.
Sem certo nível ético e alguma educação intelectual – observa Ingenieros -, não são possíveis os ideais, senão os fanatismos e as superstições:

“Os que vivem debaixo desse nível [do nível ético] e não adquirem essa educação permanecem sujeitos a dogmas que os outros impõem, escravos de fórmulas paralisadas pela ferrugem do tempo”.
(ib.id.)

Aos que assim vivem, suas rotinas e seus preconceitos se lhe afiguram invariáveis. A mediocridade é definida por Ingenieros como a ausência de características pessoais que permitem ao indivíduo distinguir-se da coletividade social. O medíocre caracteriza um tipo de homem massificado, indistinto, absorvido pelos hábitos, pelos costumes da vida social. A sociedade, lembra Ingenieros – “oferece a todos o mesmo fardo de rotinas, preconceitos e domesticidade; basta reunir cem homens para coincidirem na impersonalidade” (p. 39). O homem medíocre é facilmente domesticado pela estrutura social. É aquele que, carecendo de características específicas, é produto do meio, das circunstâncias, da educação que herdou, das pessoas que lhe orientaram a vida: “a sociedade pensa e deseja por ele [sic.]”.
Ingenieros assume que a personalidade individual se forma no momento em que um indivíduo se diferencia dos demais; é, portanto, na relação com os outros, que desenvolvo minha personalidade. Essa personalidade é construída socialmente, ou seja, é construída na dialética da identificação-diferença. Para muitos homens, segundo Ingenieros, essa diferenciação permanece no imaginário.
O homem medíocre é alguém que

“Não tem voz, mas eco.” (p. 39)

É alguém cuja sombra “não há linhas definidas” (ib.id.). Os homens medíocres “atravessam o mundo às escondidas, temerosos de que alguém possa recriminar a ousadia de existir em vão, como contrabandista da vida” (p. 40).
É necessário fazer uma digressão, a fim de precisar o que o autor entende por ideal, visto que o conceito de ideal é a chave para a distinção entre os tipos de homem descritos pelo autor, entre os quais estão o homem medíocre, o idealista e o homem prático. No excerto abaixo, Ingenieros apresenta-nos o que chama de idealista perfeito:

“O idealista perfeito seria romântico aos vinte anos e estóico aos cinquenta; é tão anormal o estoicismo na juventude como o romantismo na idade madura. O que ao princípio acende sua paixão deve se cristalizar mais tarde em suprema dignidade: essa é a lógica de seu temperamento”.
(p. 25)


A forma como Ingenieros concebe o ideal, que tratarei de expor adiante, é também importante para distinguir entre os idealistas e o homem prático. No fragmento abaixo, o autor mantém que dos ideias depende o progresso (é interessante ver a influência da ideologia positivista sobre o pensamento do autor, ao dar um caráter eufórico à noção de progresso).

“Sem ideais seria inconcebível o progresso. O culto do “homem prático”, limitado às contingências do presente, implica em renunciar a toda imperfeição. O hábito organiza a rotina e não projeta nada para o futuro; só dos criativos a ciência espera suas hipóteses, a arte seu voo, a moral seus exemplos, a história suas páginas luminosas (...)”.
(p. 22)


Segundo Ingenieros, aos homens criativos devemos a vivacidade e a dinâmica da humanidade; os homens práticos não fazem outra coisa senão vegetar na sombra, se beneficiando dos esforços daqueles. Assim,

“Nada se pode esperar dos homens que iniciam a vida sem abraçar apaixonadamente um ideal: para os que nunca foram jovens todo sonho parece sem sentido. E não se nasce jovem: a juventude deve ser adquirida. E sem um ideal não se adquire”.
(p. 23)


Nesse trecho, cabe destacar o fato de Ingenieros não se referir à juventude como uma fase da existência humana, mas como uma qualidade daqueles que “abraçam um ideal apaixonadamente”. Segue-se daí que mesmo os que já não são mais jovens podem ser dotados de uma juventude que, de resto, é sinônimo de ideal. Creio necessário fazer outra digressão, a fim de que o sentido que produzo para esse fragmento de Ingenieros encontre apoio em certa compreensão teórica da linguagem. Dizendo muito brevemente – e correndo o risco de simplificar demais o que se segue – urge notar que ninguém diz ou escreve tudo que pretende dizer ou escrever. As palavras proferidas ou escritas estão cheias ou carregadas de silêncio. Nem a linguagem nem o silêncio são transparentes. O silêncio, porque atua no desvão entre pensamento-palavra-coisa, não se dá diretamente à observação. O silêncio não fala, mas significa. Ele é a realidade da significação; é o real do discurso (Orlandi, 2007, p. 29). Mas o silêncio de que falo não é o vazio; o silêncio está pleno de sentido. Ele não está disponível na superfície do texto; é fugaz; atravessa as palavras. O silêncio é o fundamento do sentido. A incompletude da linguagem é fundamental em todo discurso. Ao dizer, não dizemos tudo; temos a ilusão de dizê-lo. A incompletude é que torna possível o múltiplo, que é fundamento da polissemia.
Retomemos a interpretação do referido trecho de Ingenieros, com vistas a notar que todo idealista é jovem, ainda que tenha ele cinquenta anos. Trata-se de uma inferência que encontra apoio no texto, mas que não decorre de uma afirmação explícita do autor. Ela se baseia no silêncio (num deles) que escorre pelas palavras.
O que é, então, o ideal para o autor? Ingenieros não admite divórcio entre o ideal e a realidade. O ideal não é uma forma de mistificar o real ou de negá-lo, ou  mascará-lo. Veja-se o que escreve a esse respeito o autor, no trecho abaixo:

“Todo ideal é sempre relativo a uma realidade imperfeita. Não há ideais absolutos”.
(p. 19)

Além da relatividade dos ideais – ideia que está implícita -, o autor autoriza a construção da seguinte inferência: os ideais decorrem da própria imperfeição da realidade. Melhor dizer imperfectibilidade, a fim de evitar qualquer conotação valorativa. Toda realidade é imperfeita, porque inacabada. O inacabamento da realidade torna-a suscetível a ações transformadoras. Se a realidade fosse perfeita (acabada), os ideias não seriam necessários, como também desnecessário seria modificar-lhe a ordem.
Os ideais estão em permanente transformação (tal como a realidade) e buscam o aperfeiçoamento ilimitado. Cada época, observa Ingenieros, compreende certos ideais que assinalam melhor o futuro. E quando os ideais sucumbem, é porque não passaram de crenças falsas, “ilusões que o homem forja sobre si mesmo ou quimeras verbais que os ignorantes perseguem dando golpes na sombra” (p. 20).
Os ideais – parece claro – não são concebidos por Ingenieros como eflúvios da imaginação inoperantes no processo do real; ao contrário, escreve o autor: “sem ideais seria inexplicável a evolução humana” (ib.id.). Novamente, aqui o autor adere à crença positivista numa forma de progresso ou evolução da humanidade. Mas disso não me ocuparei. O que importa destacar, para os propósitos deste ensaio, é o fato de os ideias iluminarem nossas ações no mundo. Nossas ações são fatos do mundo tanto quanto o são os ideais relativamente ao processo histórico. Os ideais são como o motor do movimento do devir. Eles “vivem da verdade, que vai se forjando”, de modo que “nenhum ideal prosperará se não estiver de acordo com o seu tempo (p. 21).
Ideais são fontes de inquietude naqueles que os nutrem, por isso “os idealistas são obrigatoriamente inquietos” (p. 23).

2.1. Os medíocres e os idealistas

Considere-se, nesta seção, a oposição estabelecida pelo autor entre o tipo medíocre e o tipo idealista. Começarei pelo medíocre. Na verdade, retomo e desenvolvo as considerações anteriormente expostas sobre esse tipo de homem.
Os homens medíocres são desprovidos de personalidade (no sentido que lhe atribui Ingenieros). Eles vegetam no meio porque moldados por esse meio. Eles são homens domesticados, para os quais “tudo parece uma superfície quieta como no lamaçal”. Pela falta de personalidade, eles não são capazes de iniciativa e de resistência. Nada aprendem, nem ensinam. Vivem diluídos no tédio sem dele ocupar-se.
O homem medíocre, bem como a personalidade, em geral, só pode ser definido relativamente à sociedade em que vive; em outros termos, tendo em conta sua função social. Para Ingenieros, ao contrário do que acreditava Aristóteles e, mais tarde, Pascal, o homem normal não existe, nem pode existir, porque

“A humanidade, como todas as espécies viventes, evolui sem cessar. As mudanças operam-se de forma desigual em numerosos agregados sociais, diferentes entre si. O homem considerado normal numa sociedade não o é em outra [relativismo cultural]; o de mil anos atrás não seria o de hoje, nem o do futuro”.
(p. 43)


Ingenieros nos lembra a relatividade das normas, a relatividade dos padrões sociais de normalidade. Se o homem é uma espécie que evolui e, se é o homem que cria a norma, também esta muda conforme mudam as condições sócioeconômicas, culturais e políticas em que vivem os homens.
Ingenieros se apega a um ideal de perfeição humana, que seria atingido no término do processo evolutivo. O conceito de evolução é ambíguo: às vezes, parece recobrir a evolução darwiniana; outras, parece designar um processo de melhoria na vida social da humanidade. O homem medíocre é um meio entre o imbecil e o gênio, mas o é sem disso suspeitar.

“Sua característica peculiar, absolutamente inequívoca, é a sua deferência pela opinião dos outros. Nunca fala; sempre repete. Julga os homens como ouviu dos outros”.
(p. 45)


Numa passagem bastante interessante à compreensão do homem medíocre, Ingenieros escreve: “o homem é um valor social” (p. 46). Como valor social, o homem é sempre posicionado relativamente os demais homens na estrutura social. Como valor social, os indivíduos são definidos nas relações que estabelecem em si no interior da estrutura social.
O indivíduo, segundo Ingenieros, é produto da herança genética, a qual lhe fornece as faculdades mentais, e da educação, que compreende as influências do meio social do qual ele é um membro integrante. A ação educativa molda as tendências hereditárias à mentalidade coletiva de modo tal, que o indivíduo se aclimatiza na sociedade.
Três fatores definem a personalidade de um indivíduo: a) herança biológica; b) imitação social; c) variação individual. Consoante Ingenieros, a criança é um animal da espécie humana cujo desenvolvimento, na educação, é guiado pelos que a estão ao derredor. Ao longo do processo educativo, a criança aperfeiçoa a capacidade de distinguir entre as coisas inertes e os seres vivos, reconhecendo estes como seus semelhantes.
As influências do meio biossocial é decisiva em sua formação. Quando essa influência predomina na formação da personalidade da criança, ela se desenvolve (Ingenieros prefere a palavra “evoluir”) como um membro de sua sociedade. Como tal, a criança incorpora hábitos por imitação.
Com a maturidade, à medida que se desenvolvem e se enriquecem suas experiências individuais, o homem pode tornar-se uma pessoa distinta da massa indiferenciada que integra o tecido social. Ingenieros opõe a imitação, que desempenha um papel extremamente relevante na formação da personalidade, à invenção, responsável pela produção das características individuais. A imitação é sempre conservadora e a ela devemos a produção de hábitos; a invenção, por seu turno, possibilita o aperfeiçoamento individual e o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo mediante a imaginação.
É evidente que a vida em sociedade requer a adaptação do indivíduo à estrutura social; mas essa adaptação é variada e dependente do equilíbrio entre o que imita e o que inventa. O indivíduo pode imitar ou inventar conforme as disposições determinadas por sua herança genética. Também pode fazê-lo segundo as aptidões adquiridas graças à sua herança psicológica.
É a variação, segundo Ingenieros, que determina a originalidade. Para ele, “variar é ser alguém” (p. 47), diferenciar-se dos demais é afirmar um caráter próprio que nos liberta da condição de meros reflexos dos outros.


“A função capital do homem medíocre é a paciência imitadora; a do homem superior é a imaginação criadora”.
(p. 47).


Vê-se que Ingenieros estabelece uma relação hierárquica entre o homem medíocre (inferior) e o homem idealista (o superior). A persistência na imitação caracteriza a mediocridade num indivíduo, ao passo que uma imaginação criadora o liberta dessa condição. A que aspira o homem medíocre? Responde Ingenieros: “a se confundir entre os que o rodeiam” (ib.id.).
O homem original, ao contrário, tende a se diferenciar dos demais. Os homens medíocres são os que, submetidos a uma educação imitativa, copiam das pessoas que os cercam uma personalidade social perfeitamente adaptada.

“O homem medíocre é uma sombra projetada pela sociedade”(p. 48).


Sumariando o que se expôs até aqui, cumpre notar que o homem medíocre é aquele que:
a) sendo um imitador, está perfeitamente adaptado para viver em rebanho;
b) reflete as rotinas, os preconceitos e dogmatismos que servem à sua domesticidade;
c) herda “a alma da sociedade”.

Como os homens medíocres se caracterizam fundamentalmente pela imitação das características alheias, são eles desprovidos de ideais. A capacidade para imitar os padrões sociais é consequência do próprio processo de socialização, de modo que todos os homens, medíocres ou não, são imitadores da mentalidade social; no entanto, apenas os que não são medíocres exibem uma personalidade distinta, que é resultado de variações adquiridas no curso de suas experiências individuais.
Convém assinalar a semelhança entre o homem medíocre de Ingenieros e o filisteu de Schopenhauer. Em sua obra A sabedoria da vida (2012), o filósofo alemão identifica-o ao homem comum que vive ocupado com os prazeres sensuais (dos sentidos). O filisteu não tem gozos espirituais, não aspira a adquirir conhecimentos. Ele é caracterizado por uma apatia e lugubricidade que o privam de regozijar-se. Ele por nada se interessa. Os filisteus buscam relacionar-se com os que podem satisfazer as suas necessidades sensuais. Segundo Schopenhauer, o filisteu, “quando encontra-se com pessoas dotadas dessa riqueza interior [forças espirituais], acaba por se exceder em antipatia e até no ódio, porque sente em sua presença um sentimento importuno de inferioridade e uma inveja surda, secreta, que oculta com o maior cuidado, acumulando-a para que ela se converta em raiva muda” (p. 57).
Em Kirkegaard, o filisteu é o homem que se satisfaz tão-somente com as ofertas de entretenimento de sua sociedade. É o homem imerso e idiotamente feliz em suas rotinas. Tal como o homem medíocre, descrito por Ingenieros, o filisteu de Schopenhauer e de Kierkegaard experimenta a realidade em consonância com os limites estreitos fixados pelo meio que o circunda. Para um esclarecimento proveitoso sobre o filistenismo em Kierkegaard, remeto o leitor ao texto Kierkegaard e o filistenismo, publicado neste blog.
Em contraste com os homens medíocres, os idealistas tendem a se rebelar contra os dogmas sociais que os oprimem. Nota Ingenieros, no que toca ao comportamento desse tipo de homens, o que se segue:

“Resistem à tirania da engrenagem niveladora, rejeitam qualquer repressão, sentem o peso das honrarias com que tentam domesticá-los e tornam-se cúmplices dos interesses criados, dóceis, maleáveis, solidários e uniformes na mediocridade comum”.
(p. 24).


O tecido social se compõe de forças conservadoras, nem sempre perceptíveis, que massificam os indivíduos e repudiam as diferenças, condenando os que, resistindo às ondas da massificação, aos ventos robustos do conformismo esforçam-se por construir uma personalidade firme e distinta.
Os idealistas são individualistas, porquanto resistem às forças de massificação; o que não os impede de interessar-se pelo viver em comum, ou seja, pelo social. Segundo Ingenieros, “sua independência é uma ação hostil aos dogmáticos” (ib.id.). Ao contrário dos homens medíocres, os idealistas são conscientes do que são, por isso vivem animados pelo desejo de afirmar sua individualidade. Seus ideais podem tanto codificar a sua ventura suprema quanto acarretar uma eterna desventura. No tocante à noção e ao valor do individualismo, observa Ingenieros:

“Todo individualismo, como atitude, é uma revolta conta os dogmas e os falsos valores respeitados pelos medíocres; revela energias ansiosas por expansão, contidas por mil obstáculos opostos pelo espírito gregário. O temperamento idealista chega a negar o princípio de autoridade, foge dos preconceitos, destaca toda imposição, desdenha as hierarquias independentes do mérito”.
(pp. 30-31)


A individualização caracteriza o comportamento dos idealistas; por outro lado, a massificação molda o comportamento dos medíocres, que a ela aderem. Os ideais que tornam certo grupo de homens distinto contribuem para individualizar os seus membros. Os idealistas são indiferentes aos partidos, às seitas; e, se não encontram neles ideais que se afinam com os seus, conservam sua indiferença indefinidamente. Também não se admiram das leis cujos ditames não se refletem nos costumes; e resistem a mudar de opinião sobre os que as apóiam, tampouco são condescendentes com o sofrimento dos que as toleram.
Tendo apresentado a caracterização do homem medíocre feita por Ingenieros e tendo estabelecido a oposição entre esse tipo de homem e o tipo idealista, destino as próximas seções e subseções ao tratamento do modo como a sociedade fabrica os homens medíocres. Trata-se, conforme notei no início deste texto, de tentar fazer uma gênese desse tipo humano.

3. A fabricação do homem medíocre

3.1. O papel da socialização

Em A construção social da realidade (2007), Berger e Luckmann desenvolvem o conceito de socialização, distinguindo entre socialização primária e socialização secundária. Os autores observam, inicialmente, que a sociedade é uma realidade, ao mesmo tempo, objetiva e subjetiva. O fenômeno social se estrutura em três momentos, quais sejam: a exteriorização, a objetivação e a interiorização.
Todo membro individual de uma sociedade exterioriza seu próprio ser no universo social e interioriza esse universo como realidade objetiva. Os autores notam que “o indivíduo não nasce membro da sociedade, mas “nasce com a predisposição para a sociabilidade” e, consequentemente, para “tornar-se membro da sociedade” (p. 173).
Viver em sociedade significa tomar parte da dialética social. Em outras palavras, significa viver segundo os modos de exteriorização, interiorização e objetivação, que são momentos da socialização.
A fase inicial do processo da dialética social é a interiorização. Nessa fase, a criança apreende ou interpreta de modo imediato um acontecimento objetivo como acontecimento dotado de sentido. Em outras palavras, ela percebe esse acontecimento como resultado de processos subjetivos dos outros. Nesse momento, esse acontecimento torna-se significativo para ela.
A dialética entre os domínios objetivo e subjetivo da interiorização se esclarece quando entendemos que

“(...) a subjetividade dele é (...) objetivamente acessível a mim e torna-se dotado de sentido para mim, quer haja ou não congruência entre os processos subjetivos dele [outro] e os meus”.
(p. 174)


Portanto, a interiorização está na base da compreensão dos outros indivíduos com os quais nos relacionamos e da apreensão do mundo como realidade social dotada de significado. A interiorização é o processo pelo qual não só compreendo os processos subjetivos momentâneos do outro, mas também compreendo o mundo deles e me aproprio desse mundo, tornando-o o meu mundo também. No momento em que assumimos o mundo dos outros como nosso também, estabelecemos uma contínua identificação com esse outro. Agora, participamos cada qual um do ser do outro.
Quando esse grau de interiorização é atingido, tem início a socialização. A socialização é o processo de inserção ampla e consistente, contínuo e ininterrupto do indivíduo no mundo objetivo da sociedade ou de um setor dela (p. 175).
A socialização pode-se apresentar sob duas formas: a socialização primária e a socialização secundária.
A socialização primária é a forma de socialização que o indivíduo experiencia na infância, em decorrência da qual se torna um membro da sociedade. Essa socialização cumpre um papel, em geral, mais importante para o indivíduo e serve de base para toda a socialização secundária. A socialização secundária, a seu turno, recobre qualquer processo subsequente que insere o indivíduo em novos setores do mundo objetivo da sociedade. Essa socialização opera sobre indivíduos já socializados.
Quando nasce, a criança já encontra um mundo social objetivo organizado, no interior do qual ela será situada e no qual se dará seu desenvolvimento humano (psicossocial, cognitivo, emocional, etc.), por força do trabalho disciplinador, socializante levado a efeito pelos outros significativos (pais, avós, professores, etc.). O papel desempenhado por esses outros significativos merece aqui destaque. Em primeiro lugar, eles se impõem ao indivíduo em processo de socialização desde a infância. Em segundo lugar, as definições que eles fazem da situação desse indivíduo (por exemplo, “você ainda é uma criança”, “você ainda é incapaz de compreender isso”, “crianças levadas não ganham presente”, etc.) apresentam-se a ele como realidade objetiva.
No processo de socialização primária, a criança identifica-se com os outros significativos por diversos modos emocionais. Ela absorve os papeis e as atitudes dos outros significativos, ou seja, interioriza-os, assumindo-os como os seus.
Devemos salientar que é através dessa identificação que a criança construirá sua personalidade. A personalidade, socialmente construída, é produto de um processo dialético que envolve identificação e diferenciação, mas que, inicialmente, reflete as atitudes tomadas pelos outros significativos em relação ao indivíduo. Assim, a criança torna-se o que é mediante a ação dos outros significativos para ela.
O desenvolvimento da personalidade constitui um processo dialético no curso do qual a identificação que se dá pela ação dos outros coexiste com a autoidentificação. Também a identidade, objetivamente atribuída, se relaciona à identidade subjetivamente construída. Notam Beger & Luckmann que

“De fato, a identidade é objetivamente definida como localização em um certo mundo e só pode ser subjetivamente apropriada juntamente com este mundo”.
(p. 177 – grifo meu)


Finalmente, não custa lembrar que a linguagem constitui o mais importante veículo da socialização. Ora, a sociedade, a identidade e a realidade se cristalizam no sujeito através do processo de interiorização, e essa cristalização se dá concomitantemente com a aquisição da linguagem.
Espero que o que vim desenvolvendo acerca do fenômeno da socialização não deixe escapar à consciência do leitor a conclusão de que a constituição de uma mentalidade ou comportamento medíocre – o que seria o mesmo que dizer a constituição do homem medíocre – dependerá da forma como se desenvolve a socialização da criança, especialmente em sua modalidade primária. Se, ao longo desse processo, teve peso maior a identificação acrítica com os outros significativos, se o grau de domesticação do indivíduo excedeu o grau de diferenciação, é muito provável que viva entorpecidamente amalgamado com o entorno social.
A socialização é o processo geral de desenvolvimento do indivíduo humano. Há aspectos implicados nesse processo que me parecem ser determinantes na produção de homens medíocres. As próximas subseções serão destinadas à consideração desses aspectos.

3.2. O lugar das representações sociais

Na sociologia, Durkheim denominou a representação social de representação coletiva. O conceito de representação social recobre a relação entre significação, realidade e imagem. Na filosofia, esse conceito se situa no confronto entre dois pontos de vista: um à luz do qual uma realidade ontológica é encoberta por falsas aparências do mundo sensível (platonismo); outro à luz do qual haveria entre a realidade ontológica e o sujeito uma espécie de “tela de construção do real”, a qual seria a significação do mundo construída pelo sujeito.
Esse segundo ponto de vista, sustentado por Wittgenstein, entre outros, mantém que as representações não testemunham o mundo, mas são o próprio mundo. Assim, o conhecimento da realidade não se daria senão na forma de representações construídas pelo sujeito.
O que é, pois, uma representação social? Na psicologia social, as representações sociais supõem as faculdades humanas de simbolização e de atribuição de significados nas relações que os homens mantêm com a realidade. Essas representações são, portanto, definidas como conjuntos de crenças, conhecimentos e opiniões que os indivíduos, pertencentes a um dado grupo social, produzem e compartilham acerca de objetos sociais.
Durkheim as via como um dos principais tipos de “fatos sociais”. Para ele, as representações sociais são crenças, ideias, valores, símbolos que dão forma a modos de pensamento e sentimento, que são gerais e permanentes numa sociedade ou grupo social particular e que são compartilhados pelos membros dessa sociedade ou grupo como propriedade coletiva.
Convém destacar dois aspectos das representações sociais que, uma vez compreendidos, iluminam sua relação com o conceito de homem medíocre.
O primeiro aspecto tange ao fato, notado por Giddens, de que as representações sociais são dotadas de uma existência “virtual” fora das mentes individuais. Assim, essas representações se tornam apreensíveis quando tomam forma material em cartas, livros, jornais, documentos oficiais, etc., ou seja, em gêneros discursivos ou formas de linguagem. Esses gêneros ou materiais simbólicos codificam e indicam as representações sociais. São também os principais canais pelos quais elas são comunicadas no interior de uma sociedade.
O segundo aspecto é atinente ao fato de as instituições sociais serem construídas com base nas representações sociais. Importante é notar que as instituições sociais são responsáveis por cristalizar as relações sociais em padrões distintos e recorrentes, de modo que elas podem tomar a forma de costumes e, num nível mais formal, serem práticas juridicamente sancionadas.
A comunicação das representações sociais de um indivíduo a outro é a atividade básica nos modos como as pessoas se socializam tomando parte das representações compartilhadas em sua sociedade ou grupo social.
Portanto, a interação e a associação entre os indivíduos são intimamente dependentes da comunicação das representações sociais, em virtude da qual é possível manter a circulação das representações numa sociedade.
Tome-se, doravante, a relação entre linguagem e representações sociais. De imediato, um pressuposto se nos impõe: o homem, ao usar a linguagem, transforma o outro e, ao fazê-lo, é transformado pelos efeitos de sua fala.
A linguagem, sendo um produto da atividade social, sendo forma de ação social, reproduz, mediante os significados de suas expressões, os conhecimentos e os valores sociais cristalizados. Dito de outro modo, a linguagem reproduz uma dada visão de mundo, a qual é produto das relações desenvolvidas nas esferas de produção da vida material, a fim de garantir a sobrevivência do grupo social.
Durante o processo de aquisição de sua língua materna, a criança vai-se inserindo na história de sua sociedade. Essa inserção, que se vai tornando, ao longo do seu desenvolvimento psicossocial e cognitivo, cada vez mais consistente, leva-a a reproduzir o processo de hominização através do qual os homens se produziram. É assim que ela torna-se, ao mesmo tempo, produto e produtora da história do seu grupo social.
O processo de reprodução das relações sociais, que tem seu início na infância, encontra raízes no modo como a criança, ao usar a linguagem, constrói as representações sociais, as quais se definem como rede de relações que ela, criança, estabelece entre significados e situações vivenciadas e importantes para a sua sobrevivência. Evidentemente, a criança constrói essa rede de relações a partir da situação social a que está vinculada.
Assinale-se, ainda, o fato de que as representações sociais se produzem no discurso, ou seja, nas práticas sociocomunicativas, historicamente determinadas, nas quais o sujeito avalia a posição de seus interactantes – também sujeitos sociais - , tendo em vista o controle e coordenação de seus comportamentos. É nesse momento que o sujeito busca construir um personalização. Assim, a representação social se estrutura com base nos objetivos da ação do sujeito social e também com base nos elementos que parecem favoráveis ou desfavoráveis às posições que ele assume.

3.3. Linguagem e ideologia
3.3.1. Notas elementares sobre o materialismo histórico

Quem quer que pretenda considerar seriamente o fenômeno da ideologia não pode escusar a menção à contribuição de Marx. Nesta subseção, farei alguns apontamentos sobre o método designado de materialismo histórico. Explicitarei alguns pressupostos relevantes ao desenvolvimento do que se seguirá. Não pretendo ser exaustivo. Direi, inicialmente, que a interpretação histórica proposta por Marx toma os acontecimentos históricos como fundados em fatores econômico-sociais, quais sejam, técnicas de trabalho e de produção, relações de trabalho e de produção). Marx, com a contribuição de Engels, sustentava que as formas históricas assumidas pelas sociedades humanas dependem das relações econômicas que predominam durante as fases que conformam o seu processo de desenvolvimento.
O materialismo marxista é um materialismo da práxis. A práxis é a relação dialética entre homem-trabalho-natureza: para satisfazer suas necessidades, os homens constroem os meios necessários para tanto; quando atingem seu fim, os homens modificam a própria natureza. Ao modificarem a natureza pelo trabalho, os homens modificam a si mesmos. A noção de prática recobre a atividade concebida como fenômeno determinado por condições materiais independentes dela e, no entanto, modificáveis por ela. Só relativamente, entretanto, as condições materiais são determinantes, porque elas próprias são produto da ação histórica. Também só são materiais em um sentido muito relativo, porque a prática que as modifica na história é condicionada não só pela base material da sociedade, mas igualmente por fatores ideais.
Embora a infra-estrutura econômica (base econômica da sociedade) determine, em última instância, os fenômenos da superestrutura (fenômenos intelectuais, artísticos, políticos, jurídicos – domínio das instituições e das ideologias), não se segue daí que o domínio econômico seja o único fator determinante. A produção das ideias e das representações incide sobre a atividade material do homem, e os fatores superestruturais podem tornar-se determinantes da forma das lutas históricas.
Definirei, brevemente, os conceitos de classe social, ideologia e alienação, do ponto de vista marxista, visto que eles são importantes para compreender de que modo o homem medíocre é socialmente produzido. Quando consideramos a formação das classes sociais, devemos levar em conta que elas se constituem de indivíduos que se veem obrigados a sustentar uma luta contra outra classe. Assim, uma classe só se forma a partir dessa luta; do contrário, eles continuariam em confronto uns com os outros a fim de se determinarem como mais competentes. As classes sociais não são nem ideias nem coisas, mas relações sociais determinadas pelo modo como os homens se dividem no trabalho, na produção de suas condições materiais de existência, de modo a instaurar formas determinadas da propriedade, pelo modo como eles reproduzem e legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio das instituições sociais e políticas; e também pelo modo como representam para si mesmos o significado dessas instituições através de sistemas determinados de ideias que exprimem e escondem o significado real de suas relações (o que se chama ideologias).
Tomada em sua acepção geral, a ideologia é parte integrante da cultura de todos os sistemas sociais e, como tal, serve para explicar e justificar a existência de um sistema. Por exemplo, na família, a ideologia pode servir para definir a natureza e a finalidade da vida familiar; na religião, pode servir para manter um sistema de comportamentos em relação a forças sagradas.
Ademais, uma ideologia pode servir de plataforma para movimentos sociais e/ou  políticos que visam à transformação da sociedade. Nesse sentido, movimentos feministas, por exemplo, podem se servir de um conjunto de ideias que explicam e justificam suas ações e os objetivos pretendidos.
Não obstante o potencial revolucionário que pode assumir a ideologia, o conceito, em Marx, está intimamente ligado às condições de dominação de uma classe sobre a outra. Em Marx, a ideologia é uma ilusão necessária à dominação de classe. É o modo ilusório (ou seja, abstrato e invertido) pelo qual os homens representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Em consonância com Marx, poder-se-ia definir a ideologia como um conjunto sistemático de crenças, valores e atitudes que, refletindo os interesses de grupos dominantes, serve para perpetuar sua dominação e seus privilégios.
Mais adiante, retomarei o conceito de ideologia, com vistas a compreender sua relação com a consciência, momento em que trarei à cena a contribuição de Reich, à luz da qual podemos compreender, com mais clareza, de que modo a ideologia molda o ser mesmo do homem e, particularmente, do homem medíocre.
Alienação é um conceito, tomado a Hegel, e desenvolvido por Marx, no paradigma de seu materialismo histórico, para caracterizar a condição em que se encontram tanto os trabalhadores quanto a própria atividade de trabalho, no modo de produção capitalista, quando eles vendem sua força de trabalho e quando se dá a separação entre eles, trabalhadores, e o produto do seu trabalho.
A alienação é, para Marx, uma forma de relação historicamente determinada, ou seja, típica da relação capital-trabalho assalariado. Na alienação, o trabalho torna-se trabalho forçado, o homem, a natureza se separam completamente, e os trabalhadores não se reconhecem mais no produto de seu trabalho. O trabalho alienado é um trabalho exterior ao trabalhador, ou seja, um trabalho que não pertence à essência do trabalhador. O trabalhador não se afirma em seu trabalho, mas nega-se. Essa é a condição do trabalhador alienado: a de um trabalhador que, negando-se no trabalho, sente-se insatisfeito, infeliz e mortificado.
Por conseguinte, tudo que, na verdade, constitui condição e resultado da natureza interior do homem (a criatividade, o trabalho) aparece, na sociedade burguesa e na sua economia, como esvaziamento e alienação. Em suma, o trabalho alienado é aquele no qual o produtor não se reconhece no produto de seu trabalho, porque as condições desse trabalho, suas finalidades e seu valor não dependem do próprio trabalhador, mas do proprietário das condições do trabalho.
O conceito de alienação também será retomado, quando considerarei a relação entre a linguagem, o pensamento e a ação. Atendo-me à relação entre ideologia e linguagem, tópico desta seção, é importante dizer, de início, com base em Bakhtin, que toda palavra é constituída de fios ideológicos. De acordo com essa perspectiva, a linguagem é o lugar privilegiado da produção e reprodução da ideologia, particularmente da ideologia da classe dominante, que detém o poder econômico, político e o poder de pensar e “conhecer” a realidade. Esse poder torna-a portadora de “verdades” inquestionáveis e de valores absolutos. A realidade passa a ser compreendida, experienciada pelo resto da sociedade a partir dessas “verdades” e valores dominantes. As classes oprimidas e excluídas dessa esfera de poder já não percebem mais os antagonismos gerados pela dominação e vividos no cotidiano. Esses antagonismos são escamoteados e aparecem, por força das explicações ideológicas, como “naturais” ou “universais”.
A criança, portanto, ao falar, reproduz a visão de mundo do seu grupo social, as ideologias que enformam e cvonservam as relações sociais desse grupo, e é conduzida de modo que aja sem perturbar ou questionar a ordem vigente.
Esse processo de domesticação do indivíduo no processo social produz também rotulações que servem para posicionar os sujeitos como “anormais” ou “marginais”, caso se demonstrem resistentes ao processo de domesticação – e “normais” ou “bem adaptados”, sempre que se demonstram resignados a ele.
A ideologia determina e é determinada pelos comportamentos sociais dos indivíduos, bem como pela rede de relações sociais que constituem o próprio indivíduo. O homem constitui, pelo uso da linguagem, nas relações com o outro, o seu eu e o eu-do-outro e, por esse eu é constituído. Ou seja, o eu e o eu-do-outro se constituem reciprocamente nas relações que estabelecem entre si pelo uso da língua.
Retomando a noção de classes sociais, cumpre dizer que elas se definem como relações sociais na esfera de produção da vida material da sociedade (Marx). A relação de dominação que uma classe exerce sobre outra se reproduz por meio da superestrutura (ideologia e instituições). As instituições são responsáveis por determinar os papéis sociais e as relações sociais de cada indivíduo.
A seção seguinte será destinada à discussão sobre o conceito de consciência e sua relação com a ideologia. Nela, também me ocuparei da relação entre alienação, linguagem, pensamento e ação, visto que a consciência deve ser vista tanto relativamente à alienação quanto à linguagem, pensamento e ação.
Lançando as sementes dessa problemática, termino esta subseção notando que a forma primeira assumida pela consciência é a alienação, uma vez que os homens não se percebem como produtores da sociedade e como transformadores da natureza. Em A ideologia alemã, a consciência está intrinsecamente ligada às condições materiais da produção da existência, das formas de intercâmbio e cooperação, e as ideias originam-se da atividade material. Os homens, assim, por força da ideologia, não representam nessas ideias a realidade de suas condições materiais, mas o modo como essa realidade aparece na experiência imediata deles. Assim é que as ideias tendem a ser uma representação invertida do real, de modo que o que é origem se representa como consequência, e vice-versa.

4. Consciência e ideologia
4.1. Consciência social/ consciência de classe e consciência de si

A consciência não é mero fenômeno psíquico, mas um fenômeno de base material; ela é produto socioideológico. Ela se constrói nas relações sociais por meio das trocas linguísticas. Sua realidade é o signo (Bakhtin). É, portanto, pelo uso da palavra, que se constitui a consciência; é por meio da palavra, que se dá o contato da consciência com o mundo exterior a ela.
Tomada em sua relação com a consciência de classe, a consciência social é mais abrangente. Aquela é um processo em cujo cerne se acha o grupo a que um indivíduo pertence. Quando ele se percebe como um sujeito submetido às mesmas condições de opressão e exclusão de outros membros da mesma classe, ele, então, desenvolve a consciência de que essas condições são produzidas nas relações de produção que caracterizam a totalidade social num dado contexto histórico.
O desenvolvimento de uma consciência de si supõe a percepção pelo indivíduo do pertencimento a um grupo cujas condições sociais não foram escolhidas pelos membros desse grupo. O pertencimento a um grupo, cujas ações expressam uma consciência social pode contribuir decisivamente para o desenvolvimento pelo indivíduo de uma consciência de si.
Assim, o indivíduo consciente de si é necessariamente consciente de que é membro de uma classe social. Esta consciência é indispensável à transformação quer de suas ações individuais, quer de si mesmo, enquanto indivíduo.
Pelo exposto, não é difícil concluir que o homem medíocre não chega a desenvolver, em sentido rigoroso, uma consciência de si como sujeito social participante da dinâmica social. Sequer se percebe como um sujeito cujas condições reais de existência são as condições sociais de sua classe social – condições determinadas pelo modo de produção da vida material. Isso parece estar relacionado ao grau do modo como a estrutura social se encarna em seu ser, a intensidade com que a ideologia determina a estrutura de sua consciência.
Retomemos a lição de Marx sobre a ideologia, a fim de evidenciar como ele entende a consciência. Marx assentou suas teorias sobre a ideologia numa concepção materialista de consciência. À luz dessa concepção, a consciência é indissociável da matéria social – matéria que é as relações sociais, entendidas como relações de produção (em Marx, matéria também recobre o modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições materiais de existência e o modo como pensam e interpretam essas relações); a consciência  é um reflexo propriamente humano das condições materiais de existência.
Todas as ideias produzidas pelos homens – vale reiterar – estão intimamente vinculadas com o mundo material, ou seja, em última instância, com o modo de produção material de sua existência. Assim, uma consciência que se mantenha estritamente vinculada ao real produzirá ideias reais; por outro lado, uma consciência que se vai distanciando da realidade concreta (tome-se a consciência religiosa como exemplo) – por força do processo histórico-social da alienação do trabalho – tenderá a produzir ideias irreais, reflexos invertidos do real, embora permaneça vinculada ao mundo concreto, se bem que se torne um reflexo invertido dele, uma imagem distorcida dele.
Encerrarei este texto com a lição de Reich sobre o modo como a ideologia determina a consciência, dá forma a uma estrutura psíquica que, produzida por condições materiais da vida social, se adapta consistentemente a elas, reproduzindo-as. Antes, porém, retomo, conforme mencionado anteriormente, a questão da alienação e a relacionarei aos domínios da linguagem, do pensamento e da ação.

4.2.  A alienação: uma cisão no interior do próprio indivíduo

A constituição das classes sociais, a instituição da propriedade privada e a realização da divisão do trabalho produzem contradições permanentes entre os indivíduos. Um estado, portanto, cuja institucionalização se assenta sobre um conflito entre os interesses dos indivíduos, perturbando-lhe o sentimento de autodefesa individual produz condições nas quais o indivíduo, dependente da coletividade, é incapaz de defender seu interesse próprio senão dificultando a satisfação dos interesses dos outros indivíduos que compõem a sociedade.
Essa contradição permanente se enraíza na vida dos indivíduos, lançando-os uns contra os outros, dividindo-os em proprietários e não-proprietários. Um abismo entre o indivíduo e a espécie humana se deixa ver quando do distanciamento do homem de sua condição animal;  livre do jugo dos instintos naturais, o homem, pelo trabalho, começa a gozar de certa autonomia e, assim, a dominar a natureza. Nesse momento, o instinto dá lugar às formas especificamente humanas da consciência.
Sucede, contudo, que esse processo de humanização do homem não se dá sem a instituição de uma divisão entre os indivíduos. Assim, cria-se uma cisão entre o indivíduo e a espécie, e essa cisão assume a forma de uma separação entre a vida privada e a vida pública do homem.
A cisão entre o indivíduo e a espécie no interior dos indivíduos leva-os a terem de si mesmos uma visão fraturada, porque não se reconhecem como integrados numa espécie. A unidade do gênero humano é seriamente afetada pela divisão do trabalho e pela propriedade privada.
Os indivíduos se veem privados das condições que lhes permitem compreender claramente o que eles possuem em comum uns com os outros. Disso resulta que as diferenciações individuais são concebidas como independentes da história concreta e das condições materiais de vida dos homens.
Os próprios tipos humanos são produtos de condições socioeconômicas nas quais os indivíduos experimentam em si mesmos uma cisão entre o indivíduo e a espécie. Os medíocres são tipos individuais profundamente cindidos e absorvidos em estruturas socioeconômicas e ideológicas que lhes estorvam a percepção de si mesmos como agentes sociais capazes de atuar no sentido da transformação social. A alienação, portanto, produz as condições que conduzem os medíocres a adaptar-se resignadamente ao status quo, que não cessam de reproduzir, em virtude da assimilação das ideologias dominantes e dos padrões sociais a elas associados. 

4.3. Alienação e a relação entre linguagem, pensamento e ação

No domínio individual, a consciência deve ser pensada como um processo de que participam, necessariamente, o pensamento, a ação, mediados pela linguagem. O homem age no mundo, produzindo-o e transformando-o, e seu agir supõe a atividade de pensamento e planejamento. O homem pensa e planeja suas ações, e estas, depois de realizadas, são pensadas e avaliadas. Esse processo de avaliação e reflexão sobre as ações levado a efeito vai determinar o curso das ações subsequentes. Evidentemente, o pensar as ações que se executam só é possível por meio dos significados produzidos por uma língua.
O pensar é uma atividade fundamental nas ações individuais. Toda ação implica um não-agir. Se ajo de modo X, deixo de agir de modo Y. No entanto, ação e não-ação coexistem no pensamento para o indivíduo. Ou o indivíduo age ou não age, ou age de um modo tal, e não agirá de outro modo. O pensar ajuda-o a prever as consequências de suas ações e o leva a tomar uma decisão entre agir ou não agir.
Pensar a contradição entre ação e não-ação serve para justificar a decisão tomada. Pode dar-se o caso de a justificativa – que se constitui pela linguagem – ser produto subjetivo que reproduz a ideologia dominante. Isso é possível porque a linguagem, que constitui e estrutura o pensamento, é produto sócio-histórico, ao mesmo tempo em que constrói as relações sociais. Por isso, pensar uma ação pode, por vezes, servir à reprodução da ideologia dominante e, portanto, dos interesses da classe dominante.
No entanto, é também pelo pensamento, que jamais pode divorciar-se da ação, que se confrontam possíveis consequências, quer imediatas, quer mediatas. Pelo pensamento, o indivíduo pode recuperar experiências anteriores, identificando as circunstâncias nas quais as ações transformam um dado estado-de-coisas e as circunstâncias em que elas conservam o estatus quo.
Em suma, importa reter o seguinte: não é pelo pensamento que se transformam as reais condições de existência dos indivíduos ou grupos sociais – o que, de resto, seria aderir a uma forma ideológica de ver a relação do homem com o mundo. É na práxis que se podem modificar aquelas condições. Os antagonismos só se superam pelas ações de homens que, organizados em grupos, sindicatos, conscientes das causas reais de suas reais condições sociais de existência, são capazes empreender movimentos políticos revolucionários, manifestações que visam a subverter a ordem estabelecida, questionando as estruturas de dominação, pressionando as autoridades políticas, reivindicando melhores condições de vida, etc. Assim, todo o processo de transformação de uma dada ordem social supõe a ação refletida, teoricamente orientada por homens capazes de pensar as contradições no curso mesmo em que agem a fim de transformá-las.
No cotidiano, entretanto, os indivíduos agem por força dos hábitos. Essas ações habituais dispensam o pensar, e porque o dispensam, acabam por reproduzir os valores e as ideologias dominantes. Nesse sentido, elas servem à manutenção das relações sociais existentes marcadas pela opressão de uma minoria sobre uma maioria de indivíduos. Elas não transformam as condições sociais existentes, reproduzindo estruturas de consciência alienada.

4.4. O modo de ser da consciência

A ideologia não é o conteúdo da consciência, mas seu modo de ser. A ideologia não se compõe apenas de palavras, mas principalmente de atitudes e se constitui em práticas cotidianas, por vezes, permeadas pelo discurso.
Nessa seção última, considero o modo como Reich pensa a relação entre ideologia e consciência e define o conceito de caráter. Procuro mostrar que a contribuição de Reich contribui significativamente para pensarmos como o homem medíocre é produto de condições sociais determinadas.
Reich assume o postulado segundo o qual o homem não pode ser devidamente compreendido senão como totalidade, que reúne corpo e consciência. Destarte, o que quer que ocorra na consciência, racional ou instintivamente, também acontece no nível corporal.
Não se deve distinguir, por exemplo, em consonância com essa visão, uma doença somática de uma doença psíquica. Toda e qualquer doença – e tudo o mais que toca à realidade humana – deve ser pensada relativamente ao todo orgânico que é o homem.
Segundo Reich, tudo aquilo que o homem apreende em sua relação com o mundo é não só racionalmente analisado pela consciência, mas também é assimilado pelo domínio corporal, de modo que a estrutura fisiológica do homem se amolda às situações experienciadas por ele no meio biossocial.
A noção de caráter toma forma e consistência a partir do desenvolvimento dessa compreensão do homem como totalidade constituída por corpo e consciência interligados. Por caráter, Reich entende a maneira estereotipada de um indivíduo agir e reagir. Assim, o caráter não é um fenômeno ético-psicológico do indivíduo, mas uma realidade corporal e psicologicamente constituída.
Nossas escolhas e certas atitudes que tomamos têm a forma que têm em função das reações de nosso corpo. A consciência, a percepção e as decisões racionais ancoradas nelas estão intimamente ligadas ao corpo da pessoa.
O caráter não é o que a pessoa pensa ser, mas aquilo que ela é de fato. É, assim, o modo como ela vivencia o mundo, como ela se sente, como ela reage às vivências e às sensações no mundo.
Se, de uma perspectiva existencialista, que remonta a Sartre, admitirmos que o ser do homem é o nada, que o homem não se define por essência alguma, que é um projeto para o qual todas as possibilidades estão abertas, como explicar que todas as pessoas reajam de forma bastante padronizada? Como explicar a padronização de suas reações?
Nesse caso, é necessário admitir que a padronização dos comportamentos e das atitudes humanas é determinada de fora. Isso nos leva de volta à questão da ideologia.
A ideologia é um fenômeno eminentemente social; é uma prática de massas. Por outro lado, a sociedade se compõe de indivíduos e, a fim de que uma ideologia se torne expressão de um grupo social, necessário é que ela seja encarnada por cada indivíduo do grupo. Mas, como fenômeno individual, ela deixa de existir. Ainda assim, ela precisa ser interiorizada por cada indivíduo, para, somente então, assumir seu status de fenômeno social.
Ora, se é a ideologia que orienta e normatiza o pensamento e as práticas dos indivíduos, somente ela pode tornar as reações dos indivíduos ao mundo estereotipadas. Desse modo, a padronização das sensações e das reações humanas são explicadas: ela é essencialmente um fenômeno ideológico.
A concepção fenomenológica de ideologia, inspirada em Reich, consiste em tomar a ideologia  como um domínio material do processo social. A ideologia materializa-se – e só por isso é que existe concretamente –, na medida em que se encarna no ser do homem, ou seja, quando participa da estrutura de sua consciência.
O “nascimento” de uma ideologia é um processo através do qual uma dada estrutura social é interiorizada no homem, tornando-se ela mesma a estrutura psíquica do indivíduo.
O que Reich chama de caráter é, portanto, essa estrutura psíquica que se torna expressão da ideologia social. Noto, a título de acréscimo, que a estrutura psíquica do homem é, na realidade, segundo Reich, a estrutura dos instintos, na qual a libido desempenha um papel fundamental. Desse modo, a interiorização da ideologia social no indivíduo é realizada basicamente através da sexualidade, pois é o instinto sexual responsável por distribuir os fluxos de energia por todo o corpo.
A sexualidade, como objetive a satisfação, é, por natureza, libertária. Mas, uma sociedade cujos grupos vivessem apenas segundo o imperativo da libido não exibiria, de modo algum, os mesmos objetivos e características das sociedades que conhecemos. Freud negava que uma sociedade sob a regência da libido fosse possível; só pode haver vida social pela repressão, em algum grau, dos instintos, principalmente, da sexualidade. Se, em Freud, a sexualidade é reprimida em favor da cultura ou da civilização; em Reich, essa repressão se dá em nome da dominação – que, em última instância, é econômica.
Para concluir, é necessário fazer ver que o poder de domínio e fascinação da ideologia se deve ao fato de ela agir diretamente sobre a libido – a energia vital e fundamental do ser humano. Operando sobre os instintos, a ideologia é uma atitude pré-racional. A razão mesma só existe por um ato ideológico.
Assim, a estrutura de uma sociedade deve sua perpetuação aos modos como organiza os homens, cuidando para que eles sejam incapazes, pelos modos mesmos como estão organizados, de se rebelarem contra a ordem vigente.
É assim que as crianças passam a interiorizar ou introjetar as práticas sociais, de sorte que se habituam a responder de modo previsível aos estímulos do mundo e da sociedade. A introjeção dessas práticas, acrescida da repressão da sexualidade livre e dinâmica, acarreta as reações estereotipadas que se sedimentam no corpo, constituindo o que Reich chama de couraça muscular. Essa couraça é a própria encarnação no indivíduo da estrutura de caráter, que exprime a ideologia social dominante que reproduz cotidianamente o status quo.
De tudo que foi exposto, parece evidente que o homem medíocre, de cuja descrição nos dá testemunho Ingenieros, é produto de condições sócio-históricas nas quais a reprodução ideológica das estruturas de dominação e a influência incisiva da alienação no ser do homem constituem processos determinantes da constituição de consciências conformadas à estrutura social que elas encarnam.