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terça-feira, 17 de janeiro de 2012

"A vida intelectual pede uma dose de solidão" (João Batista Libânio)

                           


                                     Para uma vida intelectual

Este texto tinha de ser escrito ontem, no instante em que experienciei aquela satisfação que me abarrotou a alma. Não era bem uma satisfação; era um regozijo. Um regozijo desencadeado pela leitura de um capítulo do livro Introdução à vida intelectual (2006), de João Batista Libano, um teólogo que, mesmo citando uma ou outra passagem bíblica em que se ensina sobre o valor do estudo e do conhecimento, preocupou-se em escrever seu livro com o propósito de iniciar seu leitor nas lides intelectuais. É preciso aprender a pensar e o autor se propõe ensinar-nos a trilhar os caminhos da atividade intelectual.
Não intento discorrer sobre o capítulo em cuja leitura me detive, mas quero citar algumas passagens em cujas linhas depreendem-se ideias que me interessarão para efeito de desenvolvimento deste texto. São ideias basilares.
No primeiro capítulo, Libano tratará da vocação intelectual, que será contraposta à profissão. Segue-se, na íntegra, o excerto em que Libano nos diz da vocação intelectual:

A vocação intelectual envolve o homem todo. Pede-lhe atitudes básicas. Muitas são comuns a toda vocação, mas adquirem uma feição própria no mister intelectual. Cultivá-las ao longo da vida torna-se a garantia de sua autenticidade. Preferimos trabalhar um número restrito de atitudes, que julgamos mais importantes. Veio-nos em socorro o provérbio latino: Non multa, sed multum – não a quantidade, mas a qualidade. (...) Passeamos pelo mundo da gratuidade, da realização humana profunda. Pretendemos superar o espaço da produtividade, da pura necessidade. Inserimo-nos na tradição que chama de humanidades um tipo de saber, uma qualidade de pensar que parte da experiência primigênia da admiração. Buscamos responder ao chamado interior que habita todo ser”

(p. 23)
(grifo meu)

O autor contrapõe o universo do trabalho, que se prende às esferas da produtividade e às necessidades básicas do ser humano, ao universo do cultivo intelectual, cuja recompensa consiste na “realização profunda” do homem. O exercício do pensamento reflexivo, ou seja, do pensamento que se volta sobre o já pensado, depende da atitude de admiração, gérmen da filosofia. A atividade intelectual é a forma de que os homens se valem para tornar o real um dado de sua consciência, ou seja, uma forma de conhecimento. Não basta viver numa relação imediata com o real, é preciso se distanciar para apreendê-lo. Pensar o real é descobrir-lhe o significado mais profundo.
Segundo Libano,

“Uma vida intelectual seria pobre se se restringisse unicamente a um saber preocupado com a utilidade imediata, com a análise dos objetos. Ela pergunta pelo significado da realidade. (...) A vocação intelectual pretende superar o mundo do dia de trabalho, marcado pela utilidade, oportunismo, produtividade, exercício de uma função. Este confina-se ao campo das necessidades, do produto, da fome, do modo de saciá-la. É dominado pelo objeto: comida, vestuário, habitação, estudos, trabalho; e finalmente gira em torno da atividade útil, utilidade comum. Tudo isso é parte essencial do bem comum. A atividade intelectual, sem negar nada disso, aponta para um bem comum mas amplo que a utilidade, antes à ligado à inútil vida da contemplação, da arte gratuita”.
(p. 30)

Importa ver que, nas sociedades modernas de hoje, marcadas pela técnica, pelo utilitarismo e pelo consumo de massa, não nos surpreendemos com a crença generalizada de que uma vida dedicada ao exercício da reflexão, ao cultivo do intelecto, ao desenvolvimento do senso crítico, etapas indispensáveis a todo processo de tornar-se intelectual, seja uma vida enfadonha. E não nos surpreendemos com a crença em que toda forma de conhecimento tem de ter uma utilidade prática. Como Libano nos ensina, à atividade intelectual basta a contemplação, a gratuidade.
Uma vez defendendo a ideia de que a vocação intelectual não se alimenta de algum propósito voltado para a aplicação, Libano lembra-nos as exigências dessa vocação. É preciso enfrentar um desafio: fazer ver aos indivíduos (estudantes, principalmente) que há prazer no exercício do pensamento; que há prazer em cultivar o intelecto; que há prazer na concentração, no convívio com os livros e na solidão indispensável a essas práticas.

“Há palavras que os ouvidos da pós-modernidade detestam: austeridade, renúncia, sacrifício. Pelo contrário, vive-se embalado pela palavra maior: prazer. O desafio da vida intelectual é saber mostrar que há um prazer que está no fim e não no início. É o prazer intelectual. Implica, porém, um caminho de disciplina, de responsabilidade, de horas e horas de estudo, de tenacidade, de vigílias, de trabalho, de aplicação. (...)
A vida intelectual pede uma dose de solidão, que não significa nem isolamento nem alienação, mas concentração, convívio com o mistério.  (...) A solidão é lugar de descanso, de repouso, de economia de energias, de tal modo que a atividade intelectual se torna mais operosa, intensa, profunda. Solidão casa-se com silêncio, recolhimento. A natureza recolhe suas energias à noite para no dia seguinte despertar radiosa pela manhã. A noite é propícia à solidão. No entanto, hoje torna-se cada vez mais difícil cultivá-la, já que o barulho do som e das imagens, das emoções  e paixões, entra pelos programas e filmes de TV, vídeo e Internet. (...) Só o amor à solidão permite que a inteligência depois se embriague no vinho da verdade e da beleza!

(p. 32)
(grifos no original)

Aprendemos, na Análise do Discurso, que, sendo a construção do sentido resultado de processos sócio-históricos, as palavras mudam de sentido conforme a formação discursiva em que apareçam. É interessante ver que a palavra solidão aparece no discurso de Libano designando uma experiência positiva, apreciável, desejável, muito diferente do modo como ela aparece no discurso, por exemplo, de nossos jovens adolescentes e das pessoas que, como aqueles, vivem voltadas para o exterior. Diga-se de passagem, que é uma tendência de nossa pós-modernidade o existir que busca continuamente se exteriorizar, negligenciado a interiorização, o autoconhecimento, o recolhimento. As pessoas vivem envolvidas pelos ruídos diversos provindos do exterior, buscam êxtases, prazeres fugazes nos lugares de agitações e movimentos incessantes e se sentem, em geral, entediadas sempre que precisam concentrar seus espíritos em atividades que demandam solidão. Para elas, isso é um sacrifício.
Há, pois, dois desafios para a vocação intelectual: reconhecer a relação entre dedicação ao cultivo do intelecto e prazer, de um lado; e, de outro, fazer ver a solidão como uma experiência necessária àquela atividade, mas também apaziguante. A solidão apazigua e a serenidade então alcançada é indispensável ao exercício do pensamento reflexivo.
Enquanto me ocupava com a leitura do referido livro, meus familiares estavam todos assistindo ao programa Big Brother Brasil; e, não para a minha surpresa, despertou-lhes a atenção o caso de um estupro de que teria sido vítima uma das participantes. A curiosidade, comum a todo ser humano, levou um deles ao computador, a fim de rever a cena em que, num quarto escuro e debaixo de lençóis, se podia ver a atividade sexual (que, em sendo um estupro, não fora consentida por um dos parceiros). Evidentemente, mantive-me envolvido em minha leitura, pois minha curiosidade está ligada a descobertas mais elevadas (ver alguém fazendo sexo ou insinuando a atividade sexual na televisão não me interessa nem um pouco). Mas isso interessa a muitas pessoas. E o programa Big Brother Brasil é um prato cheio para o empobrecimento intelectual. A sexualidade, de fato, me interessa, mas como um fenômeno humano. Leio sobre a história da sexualidade, que foi traçada pelo predomínio do masculino e submissão do feminino. Mas a mim não interessa o sexo gratuito banqueteado na televisão, tampouco a exposição de bundas avantajadas das mulheres fruta, como há em programas como Pânico na Tv.
Pessoas que, como eu, se dedicam tenazmente à prática intelectual; pessoas que, como eu, vivem segundo um imperativo mais elevado, a saber, a busca pelo conhecimento edificante, se incomodam com a influência nociva da televisão na vida do homem pós-moderno. Pessoas assim buscarão conhecer como se dá essa influência e quais suas consequências sociais, culturais, históricas.
É provável que a grande maioria de pessoas não vejam como negativo dedicar um espaço de tempo diário para assistir ao Big Brother. Para essas pessoas, trata-se de uma atividade de entretenimento. Elas buscam diversão, distrair-se. Há algum problema nisso? Afinal, o lazer não é indispensável na vida do homem comum? Certamente, não vivemos só para trabalhar (supondo-se, com o senso-comum, que quase toda forma de trabalho é penosa e enfadonha). O divertimento, para ser bem avaliado em termos de seu proveito, deve ser relacionado ao domínio da lógica da produção numa sociedade capitalista. Franco, em A televisão segundo Adorno: o planejamento industrial do “espírito objetivo”, artigo que consta do livro A Indústria Cultural hoje (2008), traz luzes  não só sobre o lugar da televisão hoje, mas também sobre sua relação com o entretenimento. Leiamos com atenção:

“A configuração do alcance e da natureza social da televisão adquire, dessa maneira, contornos nítidos. Ela se insere no universo da diversão e, nessa medida, parece se oferecer ao espectador com a promessa de que irá arrancá-lo do sofrimento imposto diariamente pelas exigências do processo de trabalho, quer sejam físicas ou psicofísicas. Essa oferta ilusória, segundo o autor, além de reforçar a tendência antiintelectualista da sociedade, de fato ludibria as expectativas de quem busca a diversão, já que objetivamente a televisão oferece o repouso físico e psíquico necessário para a recuperação da força de trabalho. A diversão, sustenta Adorno, implica resignação”.
(p. 113)

Aqui está a ideia-chave: a diversão implica resignação. Essa ideia abre uma porta, pois que nos permite pensar a diversão como uma etapa necessária ao melhor aproveitamento do indivíduo no processo de trabalho. A diversão, nesse sentido, é uma aliada do capitalista. A televisão, ao prometer diversão, é o espaço institucional que realimenta a vida psicofísica do trabalhador, permitindo-lhe que esteja no dia seguinte revigorado para o exercício de seu trabalho alienante. A força de trabalho, uma vez consumida num dia, é renovada diante da televisão, para ser novamente empregada no dia seguinte. Eis a lógica da produção, a que me referi.
Ainda segundo Franco, na mesma página

“Talvez fosse possível fazer uma ponderação a respeito desse raciocínio: tanto o processo de trabalho mecânico nas linhas de produção fordista quanto à diversão – extensão do tempo de produção – não requerem a atividade do pensamento. Ambos podem ser considerados modos interligados da moderna destruição da experiência. A televisão, nessa perspectiva, antes de reprimir a atividade do pensamento, simplesmente não o exige. De qualquer forma, Adorno extrai da tese acima consequência bastante esclarecedora: trabalho e diversão se articulam em processo extremamente dinâmico, o qual poderia ser denominado dialético.”

(grifo meu)

Vale notar que o processo dialético a que se referia Adorno diz respeito ao fato de a diversão preparar o indivíduo para a adaptação ao trabalho. É claro que essa adaptação nunca é total, tende a flutuar, sempre há espaço para o exercício da liberdade, da criatividade e da resistência; mas também cabe notar que a televisão, atenta a essa flutuação, buscará recursos para reforçar o condicionamento.
Se, no longo processo de nossa evolução enquanto espécie, a seleção natural legou-nos genes que nos dispuseram para adaptação eficiente às condições de existência e se disso pudermos concluir pela nossa suscetibilidade ao conformismo, à resignação, parece possível dizer que devemos a ela também um cérebro que, mesmo sob a influência de dispositivos de adaptação, pode, pelas práticas de aprendizagem, conseguir superá-los, ir além e resistir.
Um caminho sólido que deve ser trilhado na tentativa de escapar ao conformismo ou à resignação provocada e reforçada pelas promessas da televisão é, segundo Adorno, alcançar uma formação cultural mais ampla, pelo estudo da filosofia. Disso não se segue que devemos ser todos filósofos profissionais e saber de cor as filosofias dos mais diversos pensadores; significa dizer que devemos estimular o espírito de contemplação, de admiração latente em nós. A formação cultural a que se refere Adorno depende do desenvolvimento da consciência crítica, da capacidade de nos distanciar das vivências, da realidade mesma para olhá-la de fora. Depende ainda de uma incursão mais profunda na cultura letrada. Essa incursão nos leva ao convívio aturado com livros que nos edifiquem intelectualmente, que nos inquietem, nos estimulem, nos tragam mais do que respostas, tragam-nos inúmeras questões para reflexão continuada.
O tempo que se consome assistindo a programas como Big Brother, que não oferecem senão baixarias, vulgaridade, patuscadas, submissão de pessoas a situações de esgotamento, em troca de um prêmio milionário (num claro reforço da ideologia que entende a felicidade como consequência necessária do acúmulo de dinheiro e riqueza, e da conquista da fama, mesmo que efêmera, como tudo na (hiper)modernidade do eterno presente), poderia ser empregado em práticas que demandem alguma ginástica intelectual;  ler, por exemplo.
Libânio, no livro aqui citado, pergunta-nos sobre quanto tempo dedicamos à televisão ou à internet, e também sobre nossos hábitos de leitura. Ele nos pergunta ainda sobre nosso interesse por conversas sobre temas culturais; pergunta-nos se estamos atentos a lançamentos de livros que despertem nosso interesse. Disso tudo depende o grau de nossa vocação intelectual.
Embora me agrade ficar na internet e aprecie certos programas de humor na televisão (Chaves está entre eles), a leitura é uma atividade que preenche maior parte de tempo em minha vida cotidiana. O exercício intelectual é, para mim, uma necessidade e, ao mesmo tempo, uma forma de eu experienciar um prazer perene e profundo.
Uma vida dedicada ao exercício intelectual não dispensa formas de atividade que visam a entreter; não impede que saiamos com os amigos, que gozemos das festas, das conversas também sobre temas triviais; mas esta vida confere aquele exercício um lugar de maior destaque e importância; a ele está associada a felicidade de homens que não se contentam apenas em viver na realidade, mas precisam entendê-la.