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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

"Uma coisa que convence, nem por isso é mais verdadeira: é somente convincente" (Nietzsche)

                   
                     


                                Pré-disposições filosóficas
                                                    O contrário de um ressentido


Que me censurem os que, por ventura, dentre meus familiares e amigos próximos que me são, de resto, distantes, venham a se ocupar com a leitura deste texto; que me repreendam de devassar regiões tão íntimas que, se vistas à luz do senso comum, deveriam permanecer encobertas. Que me censurem, pois; mas que não deixem de compreender-me a partir de um lugar que é próprio da filosofia, onde a liberdade de pensar com profundidade a vida, o mundo, em sua universalidade, deve suplantar qualquer gesto de censura ou medo do preconceito.
Em Ecce Homo, Nietzsche escrevera: “Eu mesmo não sou ainda atual; alguns nascem póstumos”. Com essa fórmula, ele reconhecia, em seu tempo, que muitos o ignoravam ou não o compreendiam. Mas ele vaticinou o surgimento, no futuro, de institutos que se destinariam a estudar a sua obra. E hoje, em diversos meios do mundo acadêmico, sente-se fortemente a atualidade de Nietzsche.
Que alternativa resta para quem, desde o nascimento, foi cinzelado pelo sofrimento que, cirurgicamente lembrado no corpo, moldaria indelevelmente sua personalidade e caráter? Uma observação se impõe urgente aqui: o caráter, em psicologia, embora seja compreendido como sinônimo de personalidade, dela se distingue por encerrar um significado mais restrito. Destarte, o caráter recobre apenas aqueles aspectos da personalidade que constituem o ego e que, quando manifestos, distinguem uma pessoa da outra. A personalidade, por seu turno, recobre a totalidade dos impulsos, afetos, talentos, comportamento social e reações, tomados em sua organização global. Como sejam inúmeras as definições propostas para o termo personalidade, na literatura especializada, considere-se suficiente, para fins desta exposição, a definição que dela nos dá Freud: a personalidade é a integração do id, ego e superego. Em face do caráter, conceito mais restrito, a personalidade é um conceito mais lato, porquanto abriga também os fenômenos que são comuns a todas as pessoas.
Que resta a esta pessoa, familiarizada com o transtorno depressivo que lhe enraizou no espírito tristeza, desânimo e pessimismo, os quais oscilam, de tempo em tempo, em termos de intensidade e persistência e cuja dinâmica parece prender-se a conteúdos recalcados? Que lhe resta, finalmente, quando descobre, contando vinte e sete anos, que as agruras da primeira infância lhe legaram um mal insidioso? Diria até que terrível, àquela altura, não tanto por seus impactos fisiológicos danosos (reversíveis com o tratamento atual); mas por seus efeitos psíquicos perturbadores. O sangue de um desgraçado que, talvez, jaza sob a terra, possibilitando-me a sobrevida, fez-me engrossar a fileira dos “condenados”, à época; e promoveu-me, enfim, a hospedeiro de dois males: de um dos quais me curei, não pela vontade de algum deus, segundo ainda creem meus familiares – crença, aliás, que me é afrontosa e indecente- mas pelos esforços do homem, único ser capaz de combater as forças destrutivas da ordem natural.
Quando se me revelou a verdade desta que seria minha dificultosa condição, desde então, eu fora tragado por uma depressão da qual viria a emergir não sem o amor de meus pais, irmão e madrinha, em especial, que foram sobremaneira diligentes, não sem o apoio de meus familiares, não sem a competência de minha psiquiatra, não sem as doses diárias do antidepressivo, que se faziam acompanhar das doses, também diárias, dos anti-retrorivais, não sem o aturado exercício da leitura e da escrita, e não sem a continuada dedicação aos estudos, àquela altura, de doutoramento.
Felizmente, o destino me poupou de um fardo igualmente terrível: não leguei a ninguém o meu infortúnio, pois que não conhecia ainda as venturas e desventuras da experiência sexual. Os ares atuais são mais frescos; mais amenos, e minha condição clínica reconduziu-me a vida à normalidade. Ostento saúde e força ativa. É necessário, então, avançar e ultrapassar essa atmosfera depressiva, decadente, que pode parece solicitar comiseração, circunstância esta aviltante e adversa à proposta deste texto.
A leitura filosófica já estava entre as atividades que preenchiam a agenda de meu cotidiano; e o que eu chamo de libertação do flagelo da fé e do despotismo da tradição judaico-cristã, que concorreu com meu interesse pela doutrina budista, cujo caráter realista, quando confrontado com a indecente mentalidade religiosa com a qual me familiarizei desde a infância, foi logo reconhecido por mim: no budismo, o reconhecimento do vínculo inerente entre viver e sofrer não se dobra a qualquer tentativa de justificar o sofrimento.
A ruptura com a tradição religiosa do cristianismo se deu sem resistências, pois que a leitura filosófica lhe ia iluminando o caminho. As circunstâncias que, em parte, explicam a ruptura lhe conferiram uma virulenta expressão discursiva, em seus inícios. Nada mais natural quando se sente a necessidade de instaurar um lugar de oposição a uma velha concepção de mundo e afirmação de uma forma outra de sentir e ver (pensar) o mundo. Escusa dizer que, àquela altura, participavam de minhas relações sociais pessoas que supunham estava eu navegando por mares de rebeldia, em meio a tempestades tenebrosas, de resto, passageiras; para essas pessoas, tratava-se de uma fase de rebeldia típica de quem não foi suficientemente forte para continuar crendo no “amor divino” mesmo em face das aflições e do absurdo que as acompanha.
Para a mentalidade que se forma pelo insistente trabalho das forças doutrinárias religiosas, os fortes são aqueles que perseveram na fé, apesar das intempéries, dos cataclismos da existência. O que estava em jogo, em última análise, é a determinação do significado de “força” e de “ser forte”. De minha perspectiva, ia-se tornando evidente que permanecer preso aos grilhões da fé não era sinal de força, mas de fraqueza (e veremos a razão disso).
Dois filósofos, cujo pensamento já estava acostumado a frequentar, antes mesmo de dar-se a fatídica descoberta e a alegre ruptura, contribuíram decisivamente para que eu suplantasse as tentações do ressentimento e não me desviasse para o caminho dos decadentes – ressentimento e decadência deverão ser bem entendidos à luz da crítica demolidora à tradição socrático-platônica e cristã que Nietzsche levaria a efeito.

1. Sobre o sofrimento do mundo

Que o leitor, desde já, seja prevenido contra uma má e deturpada interpretação: de minha inclinação à filosofia pessimista de Schopenhauer não se segue que do meu horizonte existencial estejam definitivamente excluídas as possibilidades de experiência de alegria e satisfação momentâneas. Igualmente importante é preveni-lo, leitor incauto, contra a crença de que a adoção da perspectiva schopenhauriana da existência conduz, necessariamente, ao desespero, se por desespero entendermos um mal-estar profundo decorrente de nossa consciência de que se destruíram as fundações que mantinham sólida a existência.
Não estou interessado em me deter muito na filosofia de Schopenhauer, já que o grande salto de que se deve dar aqui um testemunho verdadeiro é o que a filosofia de Nietzsche me permitiu dar. Todavia, alguns trechos de Schopenhauer servirão aqui não só para pavimentar o terreno pelo qual transitei até fazer o referido salto, mas também para assinalar alguns pontos da doutrina schopenhaueriana que são como tijolos da edificação de uma visão de mundo que, afinando-se com a minha intuição primaveril segundo a qual o sofrimento tece as malhas da existência, dispensa as exigências para justificá-la . Começarei por referir alguns trechos de Schopenhauer, colhidos da obra Parerga e Paralipomena, que se topam no capítulo destinado à exposição de sua doutrina do sofrimento do mundo:

“O sentido mais próximo e imediato de nossa vida é o sofrimento, e se não fosse assim, nossa existência seria o maior dos contra-sensos, pois é um absurdo imaginar que a dor infinita, que nasce da necessidade essencial à vida, da qual o mundo está pleno, é meramente acidental e sem sentido. Nossa receptividade para a dor é quase infinita, mas o mesmo não ocorre com nossa receptividade para o prazer, que tem limites estreitos. É a infelicidade em geral que é a regra, embora a infelicidade individual apareça como exceção” (p.113)



Escuso-me de fazer uma análise cuidadosa do referido trecho. Bastar-me-á notar as seguintes ideias articuladas por Schopenhauer: a) a existência tende (dirige-se, encaminha-se) para o sofrimento; b) a dor é infinita e nasce da necessidade essencial à vida, de modo que a essência da vida é dor; c) antecipando uma tese que viria a ser endossada e desenvolvida por Freud, Schopenhauer afirma que somos suscetíveis mais à dor e poucas são as possibilidades de experiência de prazer, o qual, poderíamos acrescentar, é sempre fugidio; d) a infelicidade em geral é a norma da vida. Nesse elenco de ideias, já se deixam ver, pelo menos para os já iniciados, os rastros da influência budista no pensamento schopenhaueriano. Atentemos para o trecho seguinte:

“A história mostra-nos que a vida dos povos, e ali encontra apenas guerras e rebeliões para nos narrar, os anos de paz nos parecem tão-somente breves pausas, entre atos, aqui e ali. Igualmente a vida do indivíduo é uma luta contínua com a necessidade e o tédio, e não apenas no sentido metafórico. Por toda parte, o homem encontra oposição, vive continuamente em luta, e morre segurando suas armas” (p. 114)


Esse trecho, somado ao anterior, já nos permite compor a afinação do tom pessimista de que se impregna a filosofia schopenhauriana. Devemos, no entanto, nos prevenir contra a conclusão de que não há espaço, na sua cosmovisão, para um mundo onde seja possível a experiência de felicidade. Schopenhauer admite sê-lo, se bem que a felicidade de que nos fala será sempre uma felicidade negativa que se expressa na tentativa de evitar a dor, no que ele acompanha de perto a tradição ética que remonta a Aristóteles passando pelo epicurismo.
O próximo passo patenteia-nos um momento de sua crítica à visão de mundo cristã.

“Suponhamos que o ato da procriação não fosse uma necessidade e nem viesse junto com prazer, mas fosse um assunto de pura reflexão racional: será que nesse caso a humanidade continuaria a existir? Ou, pelo contrário, cada um teria a compaixão suficiente para não impor, com tanta frieza, o fardo da existência a geração seguinte? Pois o mundo constitui o inferno, e os homens dividem-se em dois grupos: de um lado ficam os atormentados, e de outro os demônios. Neste ponto, só porque exprimo as coisas tais como elas são, terei de ouvir de novo que minha filosofia é desesperadora, preferindo, as pessoas, que eu dissesse que Deus fez tudo segundo o melhor. Que essas pessoas, então, se dirijam à igreja, e deixem os filósofos em paz. Ou, pelo menos, que não exijam que os filósofos disponham suas doutrinas de forma a corresponder aos seus anseios. Isso quem faz são os filosofastros e os trapaceiros, aos quais podem-se encomendar doutrinas conforme ao gosto” (p.122).



Particularmente importante é a sua objeção à pretensa teodiceia de Leibniz:

“Ainda que a demonstração feita por Leibniz de que, de todos os mundos possíveis, este é o melhor, fosse correta, ela não forneceria uma teodiceia. O criador não criou apenas o mundo, mas também a própria possibilidade: dessa forma, deveria ter disposto essa possibilidade de maneira a permitir um mundo melhor” (p.123)


Schopenhauer ilustra bem o que, na opinião de Luc Ferry, é uma adequada definição de filosofia: “uma doutrina de salvação sem Deus”. Em Vencer os medos (2008), o autor observa que, embora a filosofia incorpore a reflexão e a argumentação como momentos de sua atividade, ela não se reduz a esses momentos, que são seus meios de realização e não seus fins. Ferry, nesse livro, proporá e desenvolverá a definição de filosofia como doutrina de salvação sem Deus – definição que diz ser extensiva a toda a filosofia. Consoante defende o autor, “[a filosofia] é a grande concorrente das religiões – aliás, é a única atividade do espírito que cumpre esse papel” (p. 125).
Antes de prosseguir, parece-me necessário esclarecer em que medida podemos deixar as páginas de Schopenhauer sem experimentar um amargo sentimento de desespero. Desde que reconheçamos que, ao fim e ao cabo, não é razoável atribuir a causa do desespero à filosofia de Schopenhauer, que segundo ele mesmo mantém, não faz senão desvelar o mundo tal como é essencialmente, devemos, pois,  encontrá-la na inconsistência entre nosso desejo e o modo como o mundo é verdadeiramente . Em outros termos, o desespero é, na verdade, consequência do fato de que a verdade a respeito do mundo contraria o modo como nos habituamos a desejar que ele fosse. O desespero resulta do peso destrutivo que a verdade desvelada sobre o mundo tem sobre nossa crença ilusória a respeito dele.

2. O meu encontro com a filosofia de Nietzsche

Se meu encontro com o pensamento de Schopenhauer animou-me algumas de minhas convicções viscerais sobre a essência da vida, elas mesmas gestadas em minhas experiências sensível-corporais com o meu sofrimento próprio e dos outros, tão cedo acostumados a frequentar as salas de cirurgia em hospital, meu encontro com a filosofia de Nietzsche pôs-me no curso contrário ao de um ressentido e decadente – curso este a que a filosofia de Schopenhauer nos encaminha, segundo a interpretação do próprio Nietzsche.
É verdade que Nietzsche é tributário da filosofia schopenhaueriana, mas igualmente é verdade que Nietzsche viu em Schopenhauer um continuador de uma tradição niilista que remonta ao teísmo cristão. Em que sentido é o que devemo-nos esforçar por compreender.
Em primeiro lugar, Nietzsche notou que o fato de filósofos como Schopenhauer afirmarem filosoficamente seu ateísmo não significou, contudo, que eles renunciassem ao ideal dos valores superiores. Nietzsche notou também que os últimos metafísicos, entre os quais está Schopenhauer, em especial, continuaram a procurar no ideal a “realidade” verdadeira, a coisa-em-si kantiana, em face da qual o resto é reduzido à aparência.
Nietzsche, não sem razão, denuncia em Schopenhauer a preservação do dogma segundo o qual o nosso mundo das aparências, por não expressar claramente aquele ideal, não poderia ser verdadeiro. No curso de uma tradição metafísica socrático-platônica, Schopenhauer foi acusado de ter endossado a opinião de que o mundo das aparências tem como causa o mundo metafísico. Há, no entanto, - Nietzsche não deixará de perceber, o que nem por isso livra Schopenhauer da co-responsabilidade por dar continuidade àquela tradição metafísica, - uma especificidade na doutrina metafísica de Schopenhauer. Ele imaginou o fundo metafísico como uma “vontade má e cega”, antítese do ideal, que é como ele se manifesta no mundo das aparências.
Se investigada até suas últimas consequências, a doutrina de Schopenhauer acarretaria um enfraquecimento da vida, que se expressa na forma de desespero e ódio à própria vida. Contra essa tradição que congregou forças reativas que, enfraquecendo a vida, conduzem consequentemente ao desespero e ao ódio a ela, Nietzsche desenvolverá seu princípio da Vontade de Potência e, de modo geral, um pensamento obstinadamente afirmativo da vida. Em linhas gerais, a fim de atender os propósitos desta exposição, vou apresentar a crítica à qual Nietzsche submeteu o cristianismo.
Devo especialmente a essa crítica de Nietzsche o não ter sucumbido à condição de ressentido e a possibilidade de, em que pese as intempéries da sorte, animarem em mim os instintos afirmadores da existência, o que me permitiu reconciliar-me com o mundo em tudo que nele há de dor e sofrimento injustificável.
Nietzsche afirmou que “a vida acaba onde o reino de Deus começa”. Assim, o filósofo alemão expôs a negação de que é expressão a ilusão religiosa. Para ele, a religião é uma espécie de revolta contra a natureza, e o sobrenatural, não sendo um além do natural, é, pelo contrário, sua negação e a destruição dos melhores instintos.
Ser cristão é, para Nietzsche, o mesmo que ser niilista, já que, ao atribuir ao mundo imaginário o valor de verdade, o cristão retira do verdadeiro mundo que habitamos o seu valor. Na medida em que ele, cristão, se torna um amigo de Deus, torna-se, consequentemente, um inimigo do mundo. Mas só é inimigo do mundo no sentido de que, ao afirmar a Deus, nega o verdadeiro mundo em proveito de um mundo imaginário situado no horizonte da transcendência.
Nietzsche vê, portanto, como vingança a promessa cristã de uma vida de delícias no reino dos céus. O cristão estaria, desse modo, se contentando com fantasmagorias e, por conseguinte, desprezando e aviltando o mundo tal como existe de fato.
A ilusão cristã se torna, na crítica nietzschiana, patente: toma-se como verdadeiro o mundo ilusório e considera-se como aparente o único mundo que existe. A “morte de Deus” se situa, pois, nesse contexto, sendo então um momento singular da história do homem, em que aquilo que se mantinha encoberto pela máscara do niilismo religioso tornou-se abruptamente manifesto.
O homem sadio, em seus instintos mais profundos, é aquele que nega o mundo de suas venerações e deixa fluir os instintos fortes. Tal é então o modo como se aceita a vida como ela é e como ela é afirmada, a despeito de suas contrariedades, segundo se nos relevam à luz de um exame racional.
O homem sadio, reconciliado com o mundo, é aquele que não busca um sentido além do próprio ato imanente de viver. A questão que nos propõe Nietzsche é, então, o que faremos diante do vazio deixado pela demolição do significado transcendente de que se revestia a existência: ou nos acovardamos e nos satisfazemos com esperanças vãs, ou, autenticamente, escolhemos viver a vida em toda a sua plenitude, empregando, para tanto, toda a saúde do espírito e as forças ativas instintutivas.
O que há de problemático na religião, segundo a interpretação nietzschiana, é menos o fato de sua visão de mundo assentar em ficções do que o tipo de ficções que dá sustentabilidade ao seu edifício metafísico.
O discurso religioso é o único que reivindica uma origem além-mundo. A investigação genealógica desenvolvida por Nietzsche não cessará de criticar, em seu caminho, as ilusões religiosas. Na mira dessa crítica, que visava, fundamentalmente, a transvalorar todos os valores em que se fundamenta o mundo ocidental, está a estrutura ficcional em que se baseia o conhecimento humano.
Cumpre considerar, brevemente, o conceito de vontade de potência, a fim de elucidá-lo, visto que ele constitui o cerne da filosofia nietzschiana afirmadora da vida. A vontade de potência não se reduz à vontade de dominar. É ela vontade de posse total da existência e de si mesmo. É esforço por vencer a fatalidade, o aniquilamento, que se expressa, em última instância, na morte. É vontade de mais, pois que cria o possível.
Para Nietzsche, não há nada de substancial: nem eu, nem consciência psicológica e moral, nem objeto, nem verdade. O instante é inteiramente o que é: potência.
E assim se me abriu a possibilidade de escapar ao desespero, de não ceder ao peso do ressentimento, de não me deixar seduzir pelas tendências que enfraquecem a vida, tomando, ao contrário, um curso outro, que, sem me desviar da universalidade do sofrimento, que constitui a essência da vida, levou-me a aquiescer a ela e a aceitar minha co-presença com o único mundo verdadeiramente existente.
Ponho termo a este texto, com o seguinte excerto do comentador Mario Ferreira dos Santos, extraído de Vontade de Potência (2011).  A filosofia de Nietzsche reconduz o homem à terra. É uma filosofia da terra, do mundo que, através dela, se afirma como mundo heraclitiano, estruturado pela luta dos contrários. É nesse mundo que deve surgir o homem forte, regenerado, revigorado, o além-do-homem, o homem livre e senhor de sua vontade.



“(...) Um mundo de perfeições não conhece vitórias. Um mundo de perfeições não conhece felicidade. O homem, em vez de queixar-se, de amaldiçoar a vida, de pregar que esta terra é um vale de lágrimas, deveria, primeiramente, aprender a amá-la. Amor fati, sua fórmula para os homens. Amor do destino, seja qualquer for. Amar o mundo, a “terra dos homens”, porque os homens sempre a amaram. Nunca a terra criou “o amargo desespero de viver”. Mas as crenças religiosas ensinaram o homem a amaldiçoar a terra. A religião não deve afastar o homem do mundo. Este é a terra dos homens. A religião deve ensinar-lhes o aceno de amor. E para amar o mundo é preciso amar o destino. E por amor ao destino é preciso vencer a si mesmo. Vencer cada uma de suas batalhas e cada uma de suas derrotas, com um gesto de desdém e de maldade. Maldade e não malignidade, porque esta é atributo dos “bons”, porque quase sempre os bons são malignos. O homem deve conhecer a maldade daquele que se obstina, daquele que quer, daquele que tem de vencer. E grande é o gesto do vitorioso que poupa o vencido. Isso é nietzschiano. O homem deve vencer cada uma de suas derrotas e suplantar os empecilhos e os obstáculos. E somente nessa hora os homens poderão contemplar o mundo com um olhar gotheano cheio de amor e boa vontade para com seus semelhantes, porque nossa hora já não mais se conhecerá o domínio dos ressentimentos” (p. 72-73).





quarta-feira, 22 de outubro de 2014

"Sofri uma fratura da qual jamais me recuperei" (BAR)

                   


                             Um instante radiográfico


Que me conta a radiografia de minha vida nestes últimos dez anos? Abalos, explosões, êxodos, sismos, cataclismos. Sofri uma fratura da qual jamais me recuperei. Na alma, carrego cicatrizes que me doem mais porque não se pode tocá-las, porque não se estampam. Por vezes – muitas vezes -, ao acordar, fico imobilizado por um debilitante sentimento de abismo. Tantos pensamentos embaraçados e indiscerníveis me assaltam o espírito. Quedo na cama. Fico a sentir as explosões de minhas guerras – as guerras que hospedo em minha alma, em meu corpo. Delas um dia fui prisioneiro; hoje, tornei-me um comandante suspeito, suspeitoso.
A poesia de outrora, que tantas noites embalavam, caducou. A filosofia promitente é mal compreendida; e ensiná-la parece-me uma desnecessidade. O público se ausenta com frequência. Não se é filósofo com frases feitas, de efeito. Acho graça de quem supõe que é assim que se fazem os filósofos. Aliás, filósofos não se fazem; eles acontecem. Também os poetas não se formam; eles nascem. A filosofia não é democrática; tampouco o é a arte. A poesia é um privilégio; a filosofia, ou é uma necessidade, para a qual a vida nos lança (por isso, ninguém escolhe ser filósofo), ou não é nada mais que uma dimensão da cultura, que se reúne a outras tantas formas de sua manifestação (a música, a pintura, a literatura, o cinema..), numa nota de rodapé.
Toda a humanidade pode se dividir em dois grupos, e apenas nestes: o grupo dos que marcham em direção à morte inevitável; e o grupo dos que marcham em direção à morte inevitável com alguma inquietude intelectual a respeito do SER. Para os que compõem este último grupo, o fato de haver mundo é extremamente espantoso. O fato de sermos-no-mundo com os outros é causa de profunda inquietação. No mais, os integrantes de ambos os grupos não se distinguem fundamentalmente. O cotidiano os homogeneíza na engrenagem do viver segundo hábitos fixados por uma ordem que os transcende. No cotidiano, o viver é banal, é medíocre. É o cotidiano o habitat do homem medíocre. Nesse domínio, todos são como todos, e ninguém é em si mesmo.
O que, no homem, é causa de comiseração não é tanto a facilidade com que se ilude. Não se vive sem ilusões. O mal do homem está em iludir-se sobre suas ilusões. Este homem é suscetível de nossa comiseração. Há, portanto, os que sabem que alimentam ilusões e os que, iludidos, têm ilusões sobre suas ilusões. Se não é possível viver sem ilusões, é possível pensar sem mistificações. Ora, desmitificar-se não é livrar-se das ilusões, mas reconhecê-las como tais, como ilusões.

Desmitificar-se tem sido para mim o inequívoco grandioso projeto a que me tenho lançado. Por isso, a obstinação nos livros; por isso, a dedicação à filosofia. Não se segue daí que a filosofia seja, para mim, apenas um meio de desmitificação. Ela é um exercício de existência, um exercício de ultrapassamento, um trabalho de preparação para a morte. É preciso aprender a viver e é preciso aprender a morrer. 

sábado, 20 de setembro de 2014

Bem-aventurados os que amam sem medo

                                     
                                       

                                                   Da experiência de sofrer

Há algo no Cristianismo e em alguns cristãos que eu admiro: o reconhecimento de que a experiência do sofrimento e da dor é intrínseca à existência. E meu respeito e admiração são ainda maiores aos que vivem em consonância com esse reconhecimento, sem fugas e com uma força afirmativa da vida, que, com muita frequência, nos expõe à sua fragilidade inerente. Apenas me incomodo quando eles se valem de suas teodiceias para justificar a imensa quantidade de sofrimento gratuito que há no mundo. Mas isso é outra história e ela não vem a propósito neste comentário.
O que me motivou a escrever este pequeno texto foi uma experiência familiar. Há pouco, em vista de uma moléstia – felizmente tratável e sem gravidade – que acomete meu cachorrinho, meu pai disse não querer mais ter cachorro por receio de sofrer. Pode parecer estranho – ou mesmo contraproducente – vindo de uma pessoa que acredita na existência do Deus cristão, que crê na divindade de Jesus Cristo – ainda que isso dispense interesse por elucubrações teológicas -, e de quem se espera  saiba algo sobre a história que nos contam os evangelhos. Mas casos como esse são, não obstante, comuns. Preferir privar-se da experiência do amor por receio do sofrimento é a própria antípoda da experiência cristã. Os cristãos habituados a frequentar as letras da doutrina não me deixam mentir e, provavelmente, me darão razão.
Disse a meu pai que já ouvi dele, outras tantas vezes, a mesma coisa e acrescentei que viver é sofrer (Schopenhauer já o reconhecia, e Buda, que grande influência exerceu sobre seu pensamento, o ensinara), que o sofrimento é uma experiência intrínseca à vida, e que não escapamos a ela, quer nas ocasiões em que adoecem nossos animais de estimação, quer nas circunstâncias em que adoecem nossos entes queridos. Mas ele, relutante, insistiu que o peso do sofrimento é maior do que a recompensa da alegria do amor, da companhia dessas criaturas por cuja vida e bem-estar assumimos responsabilidade. Não quis estender-me numa discussão filosófica (embora ache que a filosofia faz muita falta, em casos como este). Então, preferi me calar.
Meu cachorrinho acaba de ganhar um osso e está feliz... Estou a pensar agora que, se acolhêssemos essa postura covarde em face da vida, então deveríamos não mais ter nossos filhos, pois que dar à luz uma criança é lançá-la às vicissitudes da sorte, é lançá-la num mundo onde ela conhecerá, cedo ou tarde, sofrimento, dor e, necessariamente, a morte. É preciso que se reconheça que fazer nascer  uma criança é condená-la à morte. Os pais, que se alegram com seus filhos, que tanto se orgulham deles, devem estar cientes disso. No momento do nascimento, eles, pais, os condenaram à morte, não sem a possibilidade da experiência de sofrimentos, cuja medida de gravidade está distribuída indiscriminadamente entre os seres humanos (e outras espécies de animais de consciência superior). Mas é preciso ver também o sofrimento como uma dimensão inerente à sua condição de seres biológicos, o que o torna, muitas vezes, inevitável, embora jamais negligenciável.
Respeito nos cristãos a compreensão de que as experiências do amor e do sofrimento são indissociáveis, andam juntas. Vivendo no século I d.C., o filósofo estoico Sêneca, em várias de suas cartas, escritas entre 63 e 65 d.C., se ocupou, com notável e sumária sabedoria, de temas como o da brevidade da vida, o da morte e o da experiência do amor. Em uma de suas cartas, que trata do pesar pelos amigos falecidos, ele nos aconselha, dirigindo-se ao amigo Lucílio, o seguinte:

“Quem amavas morreu, procura outro para amar. É melhor recuperar um amigo do que chorar. Sei que isso que vou acrescentar é dito e repetido, mas não vou omitir porque já foi comentado por todos: o fim à dor – se a vontade não o por -, o tempo porá. Mas é muito torpe para um homem prudente que o remédio da dor seja o cansaço da dor. É melhor que tu abandones a dor do que ela te abandone; desiste disso, porque mesmo que queiras, não poderás fazê-lo por muito tempo”.


É de Sêneca também (se não me engano) outra passagem em que – malgrado meu esforço por encontrá-la, não a encontrei – nos lembra que a mãe que abraça a seu filho com o apego próprio de quem ama profundamente deve saber e aceitar que a quem está abraçando deve, necessariamente, morrer. O que Sêneca nos ensina, a par da necessidade de moderação do amor (o que, para nós que somos tão profundamente marcados pela tradição cristã e romântica, é uma lição difícil de acolher), é que amamos entes perecíveis, amamos entes que devem morrer e nada há que possamos fazer para evitá-lo. O amor não nos salva da morte e nem salva a quem amamos.
É claro que o cristão instruído poderá objetar-me. Se a experiência do amor é indissociável da experiência do sofrimento (quem ama está vulnerável a sofrer, ou melhor, prefere a vulnerabilidade ao sofrimento à privação de amar) e da morte (amamos apesar de saber que a quem amamos deverá morrer), para o cristão sinceramente devoto, aqueles a quem amamos nunca morrerão verdadeiramente. A perda dos entes queridos é temporária. A mensagem dos evangelhos, atribuída a Jesus, pode ser resumida no enunciado: o amor vence a morte. Ao contrário do que ensinava Sêneca (e toda uma tradição com ele), o cristianismo ensinará que podemos nos apegar e amar demasiadamente aos que sabemos que morrerão, na confiança em que os reencontraremos em outro mundo. Cabe, nesse caso, a cada um escolher e adotar uma ou outra visão de mundo. Mas é necessário assumi-la nas vivências ordinárias com fidelidade, o que significa não iludir-se quanto à possibilidade de esquivar-se de sofrer. Não estou a sugerir, portanto, que cristãos não deveriam chorar a morte dos seus (ao contrário, devem chorar porque amam com paixão (digo com sofrimento que há em toda experiência de amor verdadeiro – é isto o que significa a Paixão de Cristo).
Creio em que não alcançou a maturidade do amor quem ainda não compreendeu que temer o sofrimento é privar-se da fruição do amor. O amor é gratuidade; o sofrimento, um custo necessariamente implicado na experiência de existir.


Bem-aventurados os que amam sem medo e se permitem ser amados, alegremente conciliados com a fragilidade e transitoriedade do viver.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

"Deus é um conceito pelo qual medimos o nosso sofrimento." (John Lennon)






A tábua do sofrimento
Um caminho de retorno a Deus



Por que escrevo? Porque preciso pôr alguma ordem às ideias, porque preciso disciplinar o pensamento. Para que escrevo? Para me entreter. Escrever é entreter-me. Nada espero de minha escrita. Sou apenas mais um numa multidão de blogueiros. Não sou um autor; sou apenas o agente de minha escrita, mas não o senhor dela; há um Outro que fala através de mim, que escreve comigo. Sou um sujeito e, como tal, constituído pela ideologia.
Do exposto, é forçoso depreender-se que não levo a sério este trabalho com as palavras. Mas, ao dizê-lo, talvez, eu minta. É verdade, no entanto, que pouco ambiciono. Não suponho haver qualquer sentido transformador em minha escrita. Ela é egocêntrica; só satisfaz a mim mesmo, ou se esforça para tanto.
Neste texto, lançarei olhares sobre a questão do sofrimento no sistema doutrinário cristão. Estou, particularmente, interessado na investigação do papel desempenhado pelo sofrimento na ideologia cristã. Assumo, desde já, que, em meu empreendimento analítico, o sofrimento será tomado como signo, e é justamente seu papel simbólico (no sentido lato da palavra) no interior da ideologia cristã que tratarei de examinar. É mister fazer algumas considerações preliminares.
A fim de investigar o papel simbólico desempenhado pelo sofrimento no cristianismo, necessário é definir o símbolo. Nesse momento, faço a distinção tradicional entre símbolo e signo. O símbolo é um objeto concreto ou físico a que se associam diversos significados. O símbolo é sempre um objeto físico ou uma coisa que representa ideias abstratas. Por exemplo, o círculo pode simbolizar o absoluto, a unidade ou a perfeição; a balança é símbolo da justiça, e assim por diante. O signo, a seu turno, é uma entidade linguística, constituída dicotomicamente de um significante (imagem acústica) e de um significado (conceito). Embora o signo não se cinja ao domínio da palavra (um morfema é um signo, uma frase é um signo e mesmo um texto é um signo complexo), para os meus propósitos, basta entender que signo será aqui tomado como sinônimo de palavra. Mas voltemos ao símbolo.
No cristianismo, sabe-se que a cruz simboliza o sofrimento. Um cristão católico poderia objetar que, na realidade, a cruz para a Igreja católica apostólica romana, é símbolo da salvação. Todavia, é preciso dizer que todo símbolo é polissêmico (o mesmo vale para o signo, evidentemente). O significado ‘sofrimento’ atribuído à cruz coexiste com o significado de ‘triunfo’, que já se situa no campo semântico de ‘salvação’. Mas, no mundo antigo, entre os judeus, a cruz era um escândalo, era sinal de suplício e, portanto, algo extremamente indecoroso. Ao que parece, foi na iconografia cristã, que se estabeleceu a transposição do significado original ‘sofrimento’ para o significado ‘salvação’ ou ‘superação da morte’. Atualmente, para os cristãos, a cruz de Cristo, de onde brotam flores e folhas, simboliza a superação da morte e a salvação.
Essa consideração sobre o simbolismo da cruz servirá de ponto de partida para que compreendamos como o sofrimento, enquanto signo, passou a receber entonações ou valores positivos. A cruz, originalmente, símbolo de sofrimento e suplício, foi reinterpretada pelos cristãos proto-ortodoxos no longo desenvolvimento do movimento cristão, como símbolo da salvação. Pelo sofrimento e morte na cruz, Cristo salvou a humanidade. Não surpreende que o sofrimento passe a ser valorado como um caminho para um bem maior.
Convém também considerar que não estou negando a realidade subjetiva do sofrimento. O sofrimento é uma evidência irrecusável. Assim, entendo o sofrimento como uma perturbação violenta, quer de ordem física, quer psíquica, experimentada por uma pessoa. O sofrimento é uma realidade constitutiva da condição humana. O ser humano não só sofre, mas sabe que sofre. Embora possível em psicanálise, não faço distinção entre dor e sofrimento. Portanto, sofrimento envolve dor. O texto do Catecismo da Igreja Católica (2000) reconhece a indissociabilidade entre o sofrimento e a condição humana:

“A enfermidade e o sofrimento sempre estiveram entre os problemas mais graves da vida humana. Na doença, o homem experimenta sua impotência, seus limites e sua finitude. Toda doença pode fazer-nos entrever a morte”.
(p. 412)


O texto se refere também à causa do sofrimento: a enfermidade, a doença. Diz-nos que esses fatos nos avivam a consciência de nossa impotência e finitude. E acrescenta, a seguir, que a enfermidade pode levar uma pessoa à angústia e à revolta contra Deus – atitude esta natural e esperada. Por outro lado, o próprio Catecismo observa que a doença pode tornar a pessoa mais madura, ajudando-a a discernir, em sua vida, entre o que é essencial e o que não é essencial, de modo a conduzi-la às coisas essenciais. Não é custoso inferir que, entre as coisas essenciais, está, evidentemente, Deus. O sofrimento (doença, enfermidade) provoca no sofredor um anseio por buscar a Deus, por retornar a ele. Há também um sentido moral no sofrimento, porquanto é graças a ele que o homem orienta sua vida pelo discernimento entre as boas e más paixões, entre o que é essencial e o que é supérfluo. No sofrimento e através dele, o homem revê, repensa seus valores, aperfeiçoa-se moralmente.
Até aqui, vim procurando descrever como o sofrimento, enquanto signo, se articula à lógica doutrinária cristã. Antes, entretanto, de avançar, preciso dizer algumas palavras sobre os conceitos de valor e virtude. Em primeiro lugar, situando-me no âmbito filosófico, noto que o valor se relaciona ao que é bom, ao que é útil e positivo. Num sentido prescritivo, o valor é algo que deve ser realizado. No domínio da ética, por valores entende-se os fundamentos da moral, das normas, das regras. Assim, são os valores que alicerçam nossos modos de conduta, de comportamento. Não ignoro haver uma perene discussão sobre o conceito de valor. Para alguns filósofos, o valor é tudo que visa à felicidade; para outros, o valor deve ser definido segundo os fins a que servem, de modo que há bons e maus valores.
Assumirei, desde já, que o sofrimento, no interior do sistema ideológico cristão (discutirei a questão da ideologia mais adiante), é um valor, no primeiro sentido exposto. Ou seja, o sofrimento é, no cristianismo, um valor porque é útil, porque serve a um bem, a um propósito benéfico.
No tangente à noção de virtude, atendo-me ao âmbito filosófico, originalmente, a virtude é a qualidade ou a potência que está na natureza de algo. Do ponto de vista ético, recobre a qualidade positiva de um indivíduo que o leva a praticar o bem a si mesmo e aos demais. Em Platão, a virtude era considerada uma qualidade inata; em Aristóteles, ao contrário, podia ser ensinada e resultava do hábito. Para o filósofo estagirita, a virtude é uma disposição que o homem adquire por vontade e que se define pela razão. Um homem virtuoso age refletidamente buscando um meio-termo, uma medida justa entre o excesso e a falta.
A teologia cristã, que se moldou, em parte, pela filosofia aristotélica, conceberá a virtude como “uma disposição habitual e firme para fazer o bem” (CIC, 2000, p. 485). A pessoa virtuosa se inclina ao bem, busca praticar atos bons. O cristianismo católico distingue entre quatro virtudes cardeais, quais sejam, a justiça, a prudência, a temperança e a fortaleza. Esta última nos interessa aqui. A fortaleza é a virtude cardeal que dá segurança ao homem nas dificuldades, que o mantêm firme nas tribulações. Ela o capacita a vencer os medos, inclusive o da morte, a perseverar em face das provações e também o ajuda na aceitação do sofrimento e na renúncia a algum meio de resistência a ele. O homem dotado dessa virtude crê que seu sofrimento é necessário para o alcance de um bem; ele sofre tendo em vista um bem, se sacrifica por uma causa justa.
Em vista do exposto, assumirei que, para o cristão, resignar-se ao sofrimento, é virtuoso. O cristão sofredor, que compreende ser seu sofrimento necessário para o atingimento de um bem, é um homem dotado de virtude.
O tema do sofrimento é constante na Bíblia, muito embora as respostas oferecidas pelos diversos autores bíblicos à questão de “por que existe sofrimento num mundo criado por um Deus bom? sejam insatisfatórias (veja-se a esse propósito Ehrman, Bart D. O problema com Deus). Os homens do Antigo Testamento experimentavam o sofrimento em face de Deus. Eles se queixavam de seu sofrimento a Deus. Imploravam a cura a ele.
Uma ideia basilar, inferida, sem muitas dificuldades, após examinar a problemática do sofrimento na doutrina teológica cristã, é que a enfermidade, a dor, o sofrimento tornam-se um caminho para a conversão.
O Problema do Mal é, sem dúvida, o problema mais espinhoso e dramático para a fé cristã. E o é porque essa fé supõe a existência de um Deus todo-poderoso e moralmente bom e perfeito. O grande desafio é responder à questão: Por que um Deus todo-poderoso e perfeitamente bom permite a existência do mal e do sofrimento no mundo? Essa questão global suscita outras, tais como “por que esse Deus permite que pessoas justas e inocentes, crianças, inclusive, sofram, padeçam de dores atrozes e morram?” A fé em tal Deus não se sustenta em face da evidência inegável do mal e do sofrimento no mundo. Embora seja absurdo atribuir a maldade à natureza (a natureza não pode ser avaliada segundo nosso senso de moralidade, ela é indiferente, é amoral), é inegável que ela é fonte de sofrimento para os seres humanos e para os animais de consciência superior.
Leio sobre um tornado que devastou o estado de Oklahoma, nos Estados Unidos, matando 51 pessoas, dentre as quais crianças. Das 60 pessoas que ficaram feridas, 12 são crianças. Em face de acontecimentos como este – por sinal tão comuns, tão frequentes, como é possível, ainda assim, manter a crença na existência de uma Providência, de um Deus criador, todo-poderoso e bom?
Vimos que o Catecismo reconhece ser o sofrimento uma realidade intrinsecamente ligada à condição humana. Mas é preciso dizer que também os animais de consciência superior e dotados de um sistema nervoso central (mamíferos, aves, incluindo polvos, etc.) sofrem. Reconhecer simplesmente o sofrimento um mal a que está fadado o ser humano é insuficiente para conferir à doutrina cristã alguma validade. Ao contrário, só o reconhecimento acarretaria graves problemas para as suas alegações. É bem verdade que os problemas persistem, embora tenham sido ardilosamente disfarçados pelos floreios da casuística cristã.
Se um Deus bom criou um mundo bom, como, então, foi possível o sofrimento penetrar o mundo? A resposta da teologia das religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo) é fornecida pela doutrina da Queda do Homem. O sofrimento e o mal no mundo decorrem do pecado original cometido por Eva, do qual tomou parte Adão, inocentemente. Por essa razão, todas as gerações posteriores carregam o estigma do pecado e cada bebê que nasce precisa ser batizado para depurar-se dessa mácula. Ignoremos o absurdo dessa esdrúxula doutrina, qual seja, a culpa estendida a toda uma geração de inocentes pelo erro cometido por seus antepassados.
O pecado é uma ofensa a Deus. Sinaliza o afastamento do homem em relação a Deus. O pecado original, cometido por Eva, caracterizou-se pela desobediência a Deus. Reza a doutrina da Queda que o homem pretendeu ser como deuses, tornando-se conhecedor do bem e do mal. O pecado recobre a vaidade humana, o seu brio. Peca o homem que tem orgulho de si, que exalta a si mesmo e despreza a Deus.
No cristianismo, o homem tem de ser rebaixado e humilhado para só, então, arrependendo-se dos seus pecados, alcançar a redenção. Em seu livro Um rosto para Deus (2005), Maria Clara Bingemer, também reconhece que a experiência do sofrimento era comum aos antigos israelitas:

“(...) a presença de Deus é percebida pelo povo [de Israel] no meio de acontecimentos, como guerra, a vitória e a derrota, a passagem do Mar vermelho e a liberação do Egito e o exílio. Ou melhor: onde outros viam a guerra, a vitória, a derrota, um acaso ou uma fatalidade, o povo de Israel via a presença de seu Deus à frente e por dentro de todos estes fatos”.
(p. 44)

Esse trecho é ilustrativo do fato de que a questão da ideologia, tal como a abordarei aqui, com base em Bakhtim e Althusser, se insinua. O trecho nos ensina que a experiência da dor, do sofrimento, dos fracassos, mas também do sucesso e da vitória era vivida e ancorada sobre a crença numa participação direta de Deus nos acontecimentos. É nesse cenário histórico que se forja a crença, entre os antigos hebreus, segundo a qual Deus se revela também na história. O que, para nós, céticos e ateus, soa como uma impostura que ganhou, entre os judeus e cristãos, status de verdade inquestionável.

De que Deus se trata?

Usei até aqui, sem escrúpulos filosóficos, a palavra Deus, supondo, evidentemente, que o leitor sabe a que Deus me refiro. No entanto, o Deus criador da Bíblia hebraica e o Deus de amor (embora disposto a lançar ao inferno os transgressores) do Novo Testamento não é o único deus produzido pelo espírito humano. Por conseguinte, quando uso a palavra Deus, quero referir-me a um Ser criador e pessoal, onipotente, onisciente, dotado de perfeição moral, demasiado interessado na vida humana e que funda uma relação para com o homem no mandamento do amor. Esse Deus foi forjado pela fé de homens que viveram no antigo Oriente Próximo há aproximadamente 2.000 a.C. Essa estimativa remonta à tradição judaica. O Deus a que me refiro tem suas raízes na tradição judaico-cristã. É, portanto, o Deus de Israel, de Abraão, de Moisés, de Isaías, de Jacó, mas também de Jesus Cristo e do apóstolo Paulo. É um Deus que, embora tenha desenvolvido uma personalidade que se inclina a um relacionamento mais próximo e exclusivista com o povo eleito (o povo de Israel), demonstrou um potencial para universalizar-se e estender sua soberania sobre os recantos mais longínquos do mundo. É o Deus a quem os antigos hebreus se socorriam para lutar contra o jugo, a dominação, a escravidão mantida pelos povos conquistadores. É o Deus que estabeleceu uma aliança com seu povo e que a reforça prometendo bem-aventurança em troca de obediência e fé.
Com o advento do cristianismo (I d.C.), esse Deus é rebaixado à condição humana, é instado a manter um relacionamento pessoal e paternal com o homem. Esse Deus se encarna em Cristo, se identifica com Cristo. Cristo passa, então, a reunir em si as naturezas humana e divina. Cristo é o próprio Deus. A esse respeito, não poderia deixar de notar que essa foi a visão vitoriosa, a visão dos grupos proto-ortodoxos. Outros grupos cristãos primitivos dos séculos II e III d.C tinham uma visão diferente. A bem da verdade, a visão proto-ortodoxa, de que Justino foi um representante e defensor ferrenho, afirma que Jesus era plenamente humano e plenamente divino, o que não deixa de ser um absurdo. Não só porque humano e divino pertencem a ordens incomensuráveis, mas porque a ideia de plenitude não pode ser atribuída separadamente a duas naturezas num mesmo ser: ou ele era plenamente humano e, portanto, não tinha nada de divino, ou, ao contrário, era plenamente divino, e não tinha nada de humano. Ou a qualidade divino totaliza seu ser ou a qualidade humano o totaliza. É, logicamente, impossível que seja, em si mesmo, inteiramente humano e inteiramente divino. Para mim, esse é um caso bastante emblemático do abuso da lógica, da inconsistência do sistema de pensamento religioso. A lógica cristã ignora os limites do bom-senso ou os subverte.

Como entender Deus em nossa análise?

Agora, peço ao leitor que me acompanhe nas considerações que farei sobre como se deverá entender Deus neste trabalho. A operação mental que se deve fazer, doravante, consiste na transposição da categoria de Ser para a de signo. Deus não será considerado um Ser transcendente cuja existência é inquestionável. Para efeito de análise, considero Deus um signo linguístico que expressa a autoridade máxima, atemporal e transcendente ao mundo e que cumula as entonações ideológicas de comunidades cristãs (sacerdotes, teólogos, filósofos, leigos). Considero-o um signo através do qual a hierarquia sacerdotal expressa sua autoridade na história. Deus é um signo ideológico. Veremos, com Bakhtin, que todo signo é signo ideológico.

Deus como signo ideológico

Todo signo verbal é dotado de uma dupla materialidade: é uma entidade linguística, ao mesmo tempo, físico-material e sócio-histórica. Chamo atenção para a influência marxista nessa concepção do signo verbal. Ela foi desenvolvida por Bakhtim. A influência a que me refiro diz respeito ao materialismo histórico (Karl Marx), o qual designa os processos de transformação social que se dão por meio do conflito entre os interesses das diferentes classes sociais.
Os signos têm a propriedade de perpassar todas as esferas sociais. A eles é associado um ponto de vista. Através deles, a realidade é representada a partir de um lugar valorativo (verdadeira, falsa, boa, má, positiva, negativa, etc.). O ponto de vista, o lugar valorativo, bem como a situação são sempre determinados sócio-historicamente. O discurso é o palco onde eles se constituem e se materializam.
Signo e palavra serão usados aqui indiscriminadamente. Portanto, é preciso entender o seguinte. Para Bakhtin, todo signo é signo ideológico. Como signo ideológico, a palavra reúne as entonações dos diálogos vivos aos valores sociais, incorporando em seu cerne as modificações ocorridas na infra-estrutura (base econômica, material de uma sociedade), mas também, ao mesmo tempo, pressionando uma mudança nas estruturas sociais.
Não se pode ignorar, segundo Bakhtin, a importância da comunicação na vida cotidiana e seu vínculo com os processos de produção material da sociedade. Para ele, é nos encontros casuais e corriqueiros do cotidiano que a ideologia encontrará seu cimento. Esses encontros vão povoando o universo de signos, e cada signo vai-se tornando parte da unidade da consciência, que é verbalmente constituída. A consciência, em Bakhtim, é um fenômeno socioideológico. A realidade da consciência é o signo. A consciência do sujeito, constituída de signos, pode, através da palavra, entrar em contato com o mundo exterior, também construído e povoado de palavras. Assim, o sujeito compreende o mundo no confronto entre as palavras da sua consciência e as palavras circulantes na realidade.
Bakhtim nos ensina que as menores mudanças sociais repercutem imediatamente na língua. Os sujeitos inscrevem nas palavras, nos acentos apreciativos, nas entonações, na escala de valores, nos comportamentos ético-sociais, as mudanças sociais. As palavras funcionam, assim, como agente e memória social, visto que uma mesma palavra figura em contextos diferentes e variados. Toda palavra é entretecida de inúmeros fios ideológicos, contraditórios entre si, uma vez que se construíram e freqüentaram todos os campos de relações e conflitos sociais. Vejam-se, por exemplo, palavras como Deus, Jesus, democracia, sem-terra, etc. Vimos um exemplo disso quando mencionei a disputa entre grupos cristãos chamados de heréticos e os proto-ortodoxos em torno da natureza de Jesus. As entonações do grupo vitorioso (dos proto-ortodoxos) prevaleceram. Os significados produzidos por eles e associados à palavra Jesus tornaram-se parte do cânone da Igreja cristã.
Um fato importante precisa ser enunciado: todo signo verbal ou toda palavra compõe-se de múltiplos sentidos. Todo signo possui muitos acentos ideológicos, uma vez que não consegue eliminar totalmente outros concorrentes ideológicos.
Uma propriedade fundamental da palavra consiste na sua capacidade de participar de todo ato consciente. A palavra opera tanto nos processos internos da consciência, mediante a compreensão e interpretação do mundo pelo sujeito, quanto nos processos externos de circulação das palavras nas esferas socioideológicas.

O que é ideologia para Bakhtin?

Um dos méritos de Bakhtim, no tocante à questão da ideologia, foi ter insistido que não há ideologia fora da linguagem. Ele mostrou que tudo que é ideológico é signo, que o discurso é o lugar próprio onde se constitui a ideologia. Para o filosofo e linguista russo, a linguagem é sempre uma realidade social. Nela, o sujeito se constitui na relação com o outro. Fora da linguagem, não há sujeitos.
Mas qual é a concepção de Bakhtin de ideologia? Em primeiro lugar, Bakhtim, embora assuma, como ponto de partida, a perspectiva marxista de ideologia como “falsa consciência”, ocultamento da realidade social, obscurecimento das contradições da existência, não o faz completamente. Na verdade, ele procurará reelaborá-la ou reconstruí-la, evocando a necessidade de considerar, ao lado da ideologia oficial, uma ideologia do cotidiano. Essa reelaboração redundará em que, para Bakhtin, não faz sentido definir a ideologia como falsa consciência. Para ele, a ideologia expressará uma tomada de posição determinada sócio-historicamente. O sentido pejorativo do termo, que constitui herança do marxismo, se esvaece ou, ao menos, não é imanente ao termo. O que se deve destacar é a função da ideologia. A ideologia pode funcionar para legitimar relações de dominação de uma classe sobre outra. Pode servir para justificar condições de opressão e desigualdades entre as classes sociais. A ideologia pode servir para manter e reproduzir o status quo. Mas – convém insistir - em Bakhtim, ela é um sistema de representação de mundo e da sociedade, que se constrói nas interações entre os indivíduos organizados em grupos sociais, por meio do discurso. É graças a esse sistema de representação e interpretação do mundo que se pode falar em um modo de pensar e de ser de um dado indivíduo ou grupo social. A ideologia expressa a orientação social ou a linha tomada socialmente por um indivíduo ou grupo.
Precisamos retomar aqui a natureza do signo ou palavra, com vistas a chamar atenção para um aspecto importante da relação entre o signo e a ideologia. Bakhtim ensina que a palavra apresenta a propriedade de neutralidade. Isso não quer dizer que ela seja neutra em relação à ideologia, mas que ela pode assumir qualquer função ideológica. Em outras palavras, o signo é sempre passível de receber uma carga significativa ou valorativa. Um mesmo signo, aliás, pode comportar acentos ideológicos contraditórios. Tendo isso em mente, Bakhtim mostrará que a superestrutura só existe na relação constante com a infra-estrutura, mediante os signos. Vimos que os signos podem fazer-se presentes em todas as relações sociais. Por isso, eles têm a capacidade de relacionar a superestrutura com a infra-estrutura. Segundo Bakhtim, a ideologia serve à expressão, organização e regulação das relações sociais entre os sujeitos.
Como a ideologia se estabiliza? Disse que Bakhtim reconheceu que, a par da ideologia oficial, deve-se considerar uma ideologia do cotidiano. Disso se segue que são as interações entre os sujeitos no cotidiano o nascedouro da ideologia; é nessas circunstâncias que a ideologia começa a tomar forma, a se constituir. No momento em que a ideologia do cotidiano, então constituída nas interações sociais, se organiza em um sistema superior, em interações já mais bem definidas e estáveis, dá-se a estabilização da ideologia. Nessas circunstâncias, padrões mínimos de sentidos postos em circulação vão se estabelecendo. É o caso em que a ideologia do cotidiano é reelaborada ou assume uma forma mais padronizada em grupos sociais organizados, tais como sindicalistas, profissionais liberais, estudantes, grupos religiosos, grupos não-governamentais, etc. A estabilização da ideologia se dá à medida que penetra instituições tais como imprensa, ciência, literatura, religião, leis, etc.
Uma operação básica na ideologia é o que se pode chamar de refração. Para Bakhtim, a ideologia refrata a realidade social, no sentido de que uma classe dominante confere ao signo ideológico um caráter intangível, imutável, atemporal, a-histórico, transcendente às próprias classes sociais. Disso se segue, então, o abafamento ou o ocultamento da luta dos índices sociais de valor, de modo a se propagar um discurso monovalente e monossêmico. A fim de ilustrar essa concepção e, assim, contribuir para o entendimento do leitor, retomo a questão em torno da qual grupos de cristãos primitivos disputaram o sentido verdadeiro ou correto. Essa luta por estabelecer a crença correta, a perspectiva certa foi uma luta, ao mesmo tempo, política, teológica e ideológica. Precisarei discorrer brevemente sobre os acontecimentos implicados aí. Nos séculos II e III da era cristã, havia muitas formas de cristianismos, muitos grupos cristãos que disputavam entre si para determinar quem estava de posse da fé correta. Entre esses grupos havia o dos cristãos docetas. O termo tem origem no grego DOKEO, que significa “dar a impressão de”. Os cristãos docetas defendiam que Jesus não era um ser humano, mas que era completamente divino. Jesus era Deus; apenas parecia ser homem. Marcião se destaca dentre os cristãos docetas dos primeiros séculos do cristianismo. A ele se opuseram dois padres proto-ortodoxos chamados Irineu e Tertuliano. Estes consideravam a crença de Marcião uma verdadeira ameaça à fé cristã. Só havia uma fé correta e esta era a defendida por Irineu e Tertuliano. Mas qual era a visão de Marcião? Para Marcião, Paulo era o verdadeiro seguidor de Jesus. Com base na observação de que, em algumas de suas cartas, Paulo distingue entre a lei (de Moisés) e o evangelho, concluiu Marcião que a salvação só viria com a fé em Jesus Cristo e não na obediência à Lei de Moisés. A oposição entre a lei judaica e o evangelho era tão clara e forte, que Marcião sustentou que o Deus do Antigo Testamento, que estabeleceu a lei e a delegou a Moisés não poderia ser o mesmo Deus de que nos falou Jesus. O Deus do Antigo Testamento era o Deus criador, o Deus do povo de Israel. Mas, segundo Marcião, Jesus originou-se de um Deus grandioso, distinto, que o enviou à Terra para salvar os homens do terrível Deus judaico. Disso concluiu Marcião que, não provindo Jesus do Deus criador do mundo, não poderia o Messias ser um homem de carne e osso. Jesus não pertencia a esse mundo. Marcião levou às ultimas consequências suas especulações: sustentou que Jesus, na verdade, não tinha sequer um corpo físico, que não tinha nascido, que não derramou sangue algum e que não morreu de verdade. Para Marcião, isso era apenas aparência.
Tertuliano não ficou satisfeito com essa interpretação e se dedicou ferrenhamente a bani-la da história cristã. Ele argumentou que, se Jesus não fosse humano, não poderia salvar a humanidade, que, se não tivesse derramado seu sangue, nunca teria trazido a salvação, que, se não tivesse de fato morrido, sua morte “aparente” não redundaria em benefício algum. Tertuliano e outros assumiram, portanto, a crença tenaz de que Jesus era divino e plenamente humano. Ele realmente derramou sangue, sofreu com as dores do martírio, foi crucificado e morreu; ressuscitou dos mortos e, fisicamente, ascendeu aos céus onde está sentado à direita de Deus Pai Todo-poderoso. Essa crença também incluía a expectativa de seu retorno iminente.
Como compreender esse acontecimento à luz do conceito de refração próprio da ideologia, segundo Bakhtim? O que se verifica nessa luta política, teológica e ideológica em torno da natureza de Jesus é que as entonações ideológicas dos docetas foram ocultadas. Prevaleceram os valores, as ‘vozes’ dos cristãos proto-ortodoxos. É a memória social desses grupos que a palavra Jesus, passou, ao longo da história, a conservar. Cada grupo de cristãos primitivos eram portadores de índices sociais de valor e eles se esforçaram por incorporar esses valores no signo Jesus. Mas, na luta desses índices, saíram vitoriosos os valores dos grupos proto-ortodoxos, de que Tertuliano e Irineu foram eminentes representantes.
A condição para que seja conservada a divisão social e que se perpetue a hegemonia da classe dominante é que os sinais contraditórios ocultos em todo signo ideológico sejam mantidos apagados. E foi justamente o que aconteceu ao longo do desenvolvimento da história do cristianismo. Havia sinais de contradição entre a visão dos docetas e a dos proto-ortodoxos. Como esses cristãos gozavam de maior poder sócio-político, teológico e ideológico, eles conseguiram apagar os valores dos cristãos docetas, permitindo assim que o signo ideológico Jesus passasse a significar aquilo que eles queriam que significasse. Instaurou-se por força dessa vitória proto-ortodoxa (o grupo dominante) a monovalência ou monossemia do signo “Jesus”.
Contrariamente à crença judaico-cristã, não é Deus que faz ou intervém na história; como se pode ver, são os homens os verdadeiros agentes dos processos históricos (que são sociais, políticos, econômicos, culturais e ideológicos).
Encerrando esta seção, gostaria de acrescentar que os signos comportam uma ambivalência, porquanto não só refletem a realidade, como também a refratam. Nesse sentido, podem permitir que a apreensão dela seja feita com fidelidade ou com distorção. Ponderemos sobre este passo de Leandro Konder, em A Questão da ideologia (2002), em que o autor nos lembra duas coisas importantes: a primeira é que os signos se constituem sempre numa organização social; a segunda é que a consciência dos indivíduos, bem como seus sentimentos, emoções, personalidade são formados em processos socioideológicos em uma dada organização social de que eles fazem parte.

“Por mais diferentes que sejam, entretanto, os signos têm em comum o fato de só poderem se constituir como sistema a partir de alguma forma de organização social. O social, portanto, precede o individual. A própria complexidade do mundo interior dos indivíduos depende da complexidade da organização social no interior da qual eles existem”.
(p. 115)


A ideologia em Louis Althusser


Diferentemente de Bakhtim, que se preocupou em varrer para fora do domínio semântico do termo ideologia qualquer sentido pejorativo, Althusser, de certo modo, o conserva. Para este filósofo, “a ideologia é uma representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (2007, p. 85). Para ele, a ideologia não corresponde à realidade.

“Nas ideologias, os homens representam-se, de forma imaginária, suas condições reais de existência”.
(p. 86)


Mais adiante, em seu trabalho, Althusser refinará essa definição, de sorte a fazer ver ao seu leitor que o que os homens representam, de forma imaginária, na ideologia não são suas reais condições de existência, mas as relações que eles estabelecem com essas condições. Consoante entende Althusser, é nessa relação com as condições reais de existência que se acha a causa da deformação imaginária na representação ideológica do mundo real.
Antes de atacar o modo como Althusser compreende, especificamente, a ideologia religiosa cristã, não posso deixar de referir sua contribuição para o entendimento da natureza do sujeito. Começo, então, notando que, para Althusser, só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito. O sujeito é uma categoria constitutiva de toda ideologia. A ideologia interpela os indivíduos em sujeito. Por exemplo, autor e leitor são sujeitos que se constituem no interior de formações ideológicas que se materializam nos discursos. Disso se segue também que Deus é um Sujeito, pois que construído na ideologia religiosa.
Atendo-se à ideologia religiosa, Althusser escreverá o que ela, segundo ele, nos diz:

“Ela diz: Dirijo-me a ti, indivíduo humano chamado Pedro (todo indivíduo é chamado por seu nome no sentido passivo, não é nunca ele que se dá um nome), para dizer que Deus existe e que tu deves lhe prestar contas. Ela acrescenta: É Deus quem se dirige a ti pela minha voz (tendo a Escritura recolhido a Palavra de Deus, a Tradição a transmitido, a Infalibilidade Pontifícia a fixado para sempre quanto às questões “delicadas”). Ela diz: Eis quem tu és: Tu és Pedro! Eis a tua origem, tu foste criado pelo Deus de toda eternidade, embora tenha nascido em 1920 depois de Cristo! Eis o teu lugar no mundo! Eis o que tu deves fazer! Se o fizeres, observando o “mandamento do amor”, tu serás salvo, tu Pedro, e farás, parte do Glorioso Corpo de Cristo, etc.”.
(pp. 99-100)


Eis aí um fragmento do pensamento de Althusser importante e que nos demanda uma análise cuidadosa. Pedro, que pode ser qualquer cristão, é interpelado em sujeito. Essa interpelação lhe veda qualquer autonomia. Não é ele quem se nomeia; ele é nomeado. É-lhe fixada uma identidade (um nome, uma origem, um Pai criador). É-lhe determinado um lugar na sociedade, no mundo, no universo. Também ele é posicionado em relação a Deus (ele precisa prestar-lhe contas, obedecer-lhe ao mandamento). É-lhe determinado um modo de conduta, calcado sobre o mandamento do amor. Particularmente interessante é ver aí que o amor cristão precisa ser balizado por um mandamento. Deus ordena amar acima de tudo a ele mesmo e depois ao próximo. Isso lança suspeitas sobre a genuinidade do amor cristão. Por ser um amor, cuja manifestação, é pré-determinada por Deus, na forma de mandamento, redunda daí sua opacidade, sua vocação para um dever, no entanto, interesseiro. Ora, tenho de amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo para ganhar prestígio aos olhos de Deus.
Mas é possível ver a questão sob outra perspectiva. Uma vez assumindo ser Deus um signo ideológico que não é outra coisa senão o reflexo de uma autoridade eclesiástica e terrena, embora apareça à consciência coletiva, como um Ser transcendente, uma autoridade sobre-humana, o mandamento do amor, ao qual devemos acrescentar o temor a Deus, configura uma típica situação de relação desigual entre subalternos e seu líder. Um líder que queira expandir sua soberania e conservá-la, sem que os dominados se revoltem contra essa condição, precisará combinar o amor e o temor. Em outras palavras, precisará infundi-lhes amor e temor. A figura de Deus é representada como um ser que deve ser amado e, ao mesmo tempo, temido. Como Deus não é senão um signo ideológico, ele é o meio verbal pelo qual a Igreja decreta o amor e infunde o temor ou o medo. É provável que esse medo tenha sido mais forte no passado, ou melhor, tenha assumido outra forma, tenha servido a outros propósitos. No entanto, o medo de que o abandono da fé, a prática da heresia, ou de que a vida não tenha sentido transcendente algum ainda persiste, mesmo que num nível subconsciente nas grandes massas religiosas. É preciso frisar: os religiosos – assim creio – não amarão e temerão as suas igrejas, embora até possam nutrir tais sentimentos em relação às figuras carismáticas como padres, bispos, pastores e o papa. O amor e o temor é, em primeiro lugar, a Deus, mas entendendo Deus como um mero mecanismo ideológico mediante o qual a Igreja conserva e alimenta esses sentimentos nos indivíduos.
Sem pretender me delongar sobre este tópico, vale atentar para o que nos ensina Freud, em O Mal-estar na cultura (2010), sobre a ineficiência do mandamento “amarás o teu próximo como a ti mesmo”:

“(...) O mandamento “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” é a defesa mais forte contra a agressão humana, e um exemplo excelente do procedimento nada psicológico do supereu cultural. O mandamento é impossível de ser cumprido; uma inflação tão grandiosa do amor apenas para diminuir o seu valor, sem resolver o problema. A cultura negligencia tudo isso; ela apenas admoesta que quanto mais difícil for obedecer ao preceito, tanto maior o mérito em obedecê-lo”.
(p. 180)


Basta entender que religião e Igreja são instituições culturais, que não será custoso concluir que “o amar a Deus sobre todas as coisas” e “o amar o próximo como a si mesmo” são exigências que extrapolam às inclinações humanas. O que nos martela a religião e a Igreja é que “quanto mais difícil for obedecer ao preceito, tanto maior o mérito em obedecê-lo”.
Voltando, contudo, ao sujeito Pedro, em Althusser, e lançando mão do conceito lacaniano de Outro, é interessante ver que o sujeito Pedro é submetido a toda uma comunidade de valores, crenças, dogmas, discursos materializada na forma de Escrituras Sagradas, de uma tradição teológico-doutrinária. Quem lhe fala é essa comunidade representada no signo Deus. Também lhe é determinada uma condição para a sua Salvação, bem como um destino. Obedecendo ao mandamento e vivendo segundo o que lhe foi determinado (entre outras coisas, que Deus é quem o criou; portanto, saiba-se uma criatura!; que Jesus é seu único salvador; portanto, reconheça-se como pecador!, etc.), ele participará da majestosa Família de Deus (o Corpo de Cristo, a comunidade cristã, composta pelos eleitos e acolhidos no amor de Deus).
De tudo que foi dito, devemos concluir o que se segue. Ao contrário de Bakhtim, Althusser entende a ideologia como um sistema de representação que deforma a realidade. Não é que essa visão esteja de todo excluída da abordagem do filósofo russo, mas, decerto, sua perspectiva é mais alargada. Para ele, todo signo é signo ideológico e a ideologia é um sistema de representação e interpretação da realidade social e do mundo. Todo discurso, em Bakhtim, é constituído do que poderíamos chamar de formação ideológica (embora esse termo não tenha sido cunhado por ele). Não há discurso sem ideologia, na visão de Bakhtim.
Para examinar como o sofrimento, enquanto signo ideológico, entra a fazer parte da constituição de uma trama ideológico-doutrinária sobre a qual se calcarão teologias cristãs, assumirei a visão de Althusser sobre ideologia, sem deixar de articular a ela a perspectiva de Bakhtim sobre a natureza ideológica de todo signo.

O sofrimento: uma escada que leva a Deus

Vimos que o sofrimento é consequência da Queda; mas também é o meio pelo qual o homem se redime perante Deus.
O sofrimento, sempre entendido como signo ideológico, se articulará à ideia de que a vida terrena é um vale de lágrimas. Nela, o ser humano deverá se esforçar por reparar seu erro que o maculou desde o nascimento.
No entanto, o sofrimento tem o potencial de alavancar uma verdadeira transformação. O fracasso que ele nos lega nos conduz à vitória. Ele instaura uma lógica, quase nunca percebida, segundo a qual, aviltando o pecador, amaldiçoando-o, Deus o concede a salvação. Pascal Bruckner, em seu livro A euforia perpétua – ensaio sobre o dever de felicidade (2010), oferece-nos uma preciosa constatação:

“Não basta, pois, experimentar o sofrimento, é preciso amá-lo”.
(p. 32)


A doutrina cristã prescreve: “É preciso sofrer!” “Resigne-se ao sofrimento e cairá nas graças de Deus!”. Mas o cristão não está sozinho em seu sacrifício, em seu culto ao sofrimento. Cristo lhe serve de modelo de sofrimento; o fiel cristão se "inspira" na Paixão de Cristo quando se vê à volta com a dor do sofrimento. No cristianismo, a morte do Cristo-Deus, em agonia, na cruz, é o cerne de seu ritual. Jesus se torna proprietário da morte. Ele afirma e nos lembra o trágico da condição humana, mas também confirma a promessa de sua superação, mediante a ascensão à condição sobre-humana na ordem da esperança (que assim seja!) e do amor (infinito e elevado!).
Para o cristão que padece, Jesus é um irmão de sofrimento. O cristão, mesmo aviltado, sobrepujado pelo sofrimento, pela culpa do pecado deve ver em Jesus um amigo e um guia em seu calvário pessoal. “Deus dá a cruz segundo nossa capacidade para carregá-la”, diz o senso-comum fundado na ideologia cristã.
O sofrimento sujeita o homem à condição de impotência, arranca-lhe as forças, condena-o à resignação. O homem não pode salvar-se por si mesmo. A salvação é uma graça de Deus. À salvação precede a humilhação, o aviltamento do homem.
É do fundo do seu sofrimento atroz que o homem ascende a Deus. O sofrimento é uma escada que o leva até ele. O signo do sofrimento instaura uma dependência do homem a Deus. Ela não seria possível sem o imperativo do sofrimento, o qual reaviva na consciência do homem sua condição de criatura mortal e inferior. Simone Weil escreveu: “só o sofrimento salva a existência”. Sofrimento e salvação são indissociáveis, de tal modo que se pressupõem reciprocamente. Não haveria sentido, no cristianismo, proclamar a salvação, sem a introdução na doutrina da crença em que o sofrimento faz sentido, já que constitui o caminho que conduz à salvação. Salvação da morte, salvação do mundo onde grassa o pecado. Salvação do próprio sofrimento. Novamente, Simone Weil dá-nos testemunho dessa lógica viciosa cristã: o sofrimento “é tão melhor quanto mais for injusto”. Eis aqui um dito moralmente inaceitável. Uma clara aceitação do sofrimento gratuito de inocentes. Para Simone Weil, só o sofrimento injusto pode nos conduzir à sabedoria e ao colo de Deus. Eis uma prova do abandono da atitude filosófica, e mesmo a rejeição a qualquer tentativa séria de refletir sobre o problema do sofrimento à luz de uma teodiceia, mesmo que ela seja pouco convicente.
Em relação ao cristianismo, escreverá Bruckner, “poucas religiões insistiram como esta no lixo humano ou manifestaram esse “sadismo de piedade” (p. 34). E, mais adiante, acrescenta: “o sofrimento é a norma... É preciso amar o homem, mas primeiro humilhá-lo, rebaixá-lo (ib.id.)”.
Que outros índices de valores se acumularam na palavra sofrimento? Vemos nele também a ideia de progresso espiritual. Na medida em que nos leva a aproximarmo-nos de Deus, o sofrimento é interpretado como um progresso. Esse deslize semântico, operado pelo sistema ideológico religioso, da “estagnação”, do “mal” para o “progresso”, para o “bem maior” leva a que o sofrimento não seja mais visto como uma condição contra a qual devemos mobilizar esforços para lutar. O cristianismo nos diz: “resta sofrer junto de Cristo aceitando-o como um amigo de sofrimento”. A miséria traz a paz interior; traz a alegria espiritual. O cristão que sofre, experimenta, paradoxalmente, a alegria quando crer-se unido a Cristo em sofrimento, quando, comparando seu sofrimento ao de Cristo, pune-se por qualquer pensamento queixoso que se lhe assome à consciência. Consciente de que seu sofrimento não se compara ao de Cristo em intensidade e profundidade, o Cristão sofre resignado, não sem evocar a Cristo para que o conforte e o vele em seu sofrimento. Novamente, Bruckner nos lembra “com a religião, o sofrimento torna-se um mistério que não deciframos, a não ser sofrendo” (p. 35). O cristão, no momento em que sofre, crê haver um sentido em seu sofrimento, mesmo que não lhe seja imediatamente transparente ou acessível. E não nos surpreendamos que, após cessada a tempestade de dor, ele se regozije com a descoberta do sentido, que tardou, mas se lhe revelou cristalino. Bruckner faz uma breve referência ao trabalho ardiloso de teólogos na produção de teodiceias:

“E os teólogos irão desenvolver tesouros de casuística e de sutileza para legitimar a existência do mal sem atentar à bondade de Deus”.
(p. 35)


E diga-se, de passagem, que a própria concepção de sofrimento como uma forma de progresso, como um meio de retorno a Deus é já fruto de uma teodiceia denominada na tradição de pedagógica.
Vimos, no limiar deste texto, que no Catecismo, o sofrimento nos aviva a consciência de que somos seres destinados à morte. Que relação pode-se estabelecer entre o sofrimento e a morte, no interior da doutrina cristã? Se o sofrimento é uma escada que nos conduz a Deus, a morte é um passaporte para a verdadeira vida. A morte nos liberta das tentações mundanas, dos pecados deste mundo. O mundo não é nada mais do que um lugar de exílio, onde grassam a dor e o sofrimento.
Não exageramos ao notar que, na história cristã, propôs-se aceitar voluntariamente sofrer e renunciar a toda e qualquer medida contra a dor. É preciso participar da Paixão de Cristo. Bruckner nos fala de “eloqüência da cruz”, com que se busca justificar a imobilidade de esforços de piedosos na tentativa de melhorar as condições de existência humana neste mundo. A felicidade não pertence a esse mundo, mas ao outro mundo que está por vir. A eloqüência da cruz desencoraja os mais interessados em amenizar a dor dos desgraçados.

Palavras finais

Ainda que a concepção mais bem intencionada sobre a natureza de Deus não se sustente à luz da evidência das formas como o sofrimento se manifesta neste mundo, continua ela a ser uma representação consoladora e acalentadora da crença em que a existência humana seja portadora de um sentido transcendente. O sofrimento é o cabresto que prende os fiéis a Deus (Igreja). É a chave para a compreensão do maquinário ideológico cristão, que constitui o sistema de representação, de forma imaginária, das relações dos homens com suas reais condições de existência. Nessas relações, os homens se vêem, ou melhor, se representam, na imaginação, como criaturas de Deus.
O cristianismo é uma religião que se aproveitou do sofrimento como fato irrecusável, transformando-o, pela ideologia (na representação imaginária) em gatilho de toda teia de ideias e dogmas de que se forma sua doutrina. O sofrimento, antes de constituir um obstáculo à fé em Deus, a reforça, a torna mais intensa, mais viva. O homem que sofre é aquele que espera em Deus, que espera obter uma recompensa por ter-se obstinado na condição de sofredor resignado.