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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

O que ama o amor - Um estudo sobre FEDRO

                        

Este texto constitui parte do trabalho final desenvolvido como requisito para a aprovação na disciplina Filosofia Antiga IV do curso de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro




O discurso de Lísias e o mito da Parelha Alada: uma análise de Eros e do Belo



1. O discurso de Lísias: a psicologia subjacente ao amor-paixão


Principiamos esta subseção destinada à análise do discurso de Lísias sobre o amor, lembrando o que, no início deste trabalho, procuramos sublinhar: para Platão, o discurso de Lísias não foi produzido por um verdadeiro filósofo. O amor de que fala Lísias está longe de ser o amor a que aspira o verdadeiro filósofo e ao qual devemos a força da verdadeira filosofia. Não obstante, Lísias não deixa de nos ensinar muito sobre a experiência amorosa humana, sobre o modo como o amor nos afeta, de tal sorte que podemos dizer que Lísias nos oferece uma psicologia subjacente à experiência do amor, mais precisamente do amor-paixão. Tal nos parece irrecusável a evidência dessa psicologia, que o discurso de Lísias sobre o amor encerra um ensinamento atemporal, de cuja ressonância nos dão testemunho pensadores como Lucrécio, Ovídio, Schopenhauer, Proust, Freud e Sartre que, em comum, cada qual à sua maneira, são céticos quanto às tendências do imaginário coletivo ocidental, devedor, nesse tocante, da tradição platônico-cristã, de fazer do amor uma fonte de felicidade plena e de realização humana.[1] De passagem, cabe dizer que a concepção moderna de amor romântico e do sujeito amoroso devemos a três matrizes históricas: 1) a mística cristã e o lirismo trovadoresco da Idade Média, no século XII; 2) a subjetivação como resultado de práticas do convívio interpessoal das Sociedades de Corte; 3) as ideologias que se formariam com as revoluções econômico-políticas e culturais nos séculos XVI e XVII, as quais, por sua vez, culminariam com a ascensão do capitalismo impulsionada pela Revolução Industrial ocorrida a partir do século XVIII. (Costa, 1998).
 Acresce-se que o discurso de Lísias, na medida em que busca oferecer uma psicologia inerente ao amor-paixão não deixa de fazer eco à nossa época, especialmente marcada pela liquidez dos relacionamentos humanos[2] - época nossa em que o amor atrai cada vez mais o interesse científico, tanto o das ciências humanas quanto o das ciências naturais.[3]
Nossa interpretação do discurso de Lísias sobre o amor não pretende sugerir que Lísias tenha-nos legado alguma “novidade” ao tratar do tema (em se tratando de um tema universal como este, há muito pouco de “novo” a ser dito). Interessa-nos é mostrar que o discurso de Lísias inscreve-se numa tradição discursiva sobre o amor que se desenvolveu como contribuição desmitificadora.
Comecemos por referir a tese de seu discurso. A tese nos parece ser a seguinte:

(...) de regra, os amantes se arrependem do bem que tenham feito, tão logo se extinga neles o desejo, ao passo que os outros, nunca lhes chega o tempo do arrependimento, pois não é sob a pressão de alguma necessidade, senão de deliberação refletida e pelo estudo de sua situação que promovem o bem do amigo no que neles estiver.[4]


Lendo, com acuro, a tese, percebemos que Lísias a constrói com base na oposição entre os amantes e os outros (que, adiante, se nos revelarão tratar-se dos que não amam). Os amantes constituem o objeto-de-discurso marcado pela qualificação semântica /euforia/, de sorte que diremos ser esse referente o termo /eufórico/; por outro lado, os não amantes são marcados pela qualificação semântica /disforia/ e dele diremos ser o termo /disfórico/[5]. Essa oposição marcada pelas categorias /euforia/ e /disforia/ é extensiva aos pares “amor” (amor-paixão) e afeição recíproca (philia). O amor-paixão é marcado pela qualificação semântica /disforia/ - é o termo disfórico -; e a “afeição recíproca” é marcada pela qualificação semântica /euforia/ - é o termo eufórico, conforme se pode ler em: “Os que não amam, ninguém pensa em censurá-los por tais encontros, pois todos sabem muito bem que semelhantes colóquios terão de ser fruto de afeição recíproca ou da necessidade de espairecer”.[6] Essa passagem contrasta com a que a precede, na qual Lísias exprime sua crença de que os amantes costumam ser mal vistos quando surpreendidos sozinhos com seus amados, pois que, nessa circunstância, parece aos outros que eles “acabaram de satisfazer seus apetites ou se acham em caminho disso mesmo”. (v. nota 42).
Antes de avançarmos na discussão sobre a psicologia do amor-paixão, convém atentar para a tese anteriormente referida, a fim de que nos lembremos de que o amor, para Lísias, é desejo. A questão que, inicialmente, fica em aberto no discurso de Lísias é justamente: desejo de quê? Conquanto a resposta pudesse ser deduzida da apreensão dos traços psicológicos do amante e da natureza do amor-paixão, os quais se deixam ver ao longo do discurso de Lísias, podemos inferi-la da seguinte passagem:(...) é comum entre os amantes cobiçarem apenas o corpo dos mancebos, sem lhes conhecer o caráter e os hábitos, de forma que não se pode ter certeza de que semelhante ligação sobreviva ao desejo”.[7] Ora, a visão de Lísias de amor – parece claro – é o antípoda da visão platônica do amor. O amor, em Lísias, é desejo de prazer sensível, desejo de posse do corpo do amado, com claro desinteresse pelos atributos de sua alma.
É importante dizer que o desenvolvimento do discurso de Lísias tem como focalização a figura do amante, a qual constitui o termo de valor negativo. O lugar do amado na relação amorosa é simplesmente negligenciado. Lísias está preocupado em mostrar quão perturbador e infeliz é o destino dos amantes e o fará com o propósito de convencer Fedro de que é melhor não se deixar apanhar pela armadilha do amor-paixão. Ao descrever o amor-paixão, Lísias fornece-nos uma descrição dos traços psicológicos típicos dos amantes.
Devemos notar, em primeiro lugar, que o amor-paixão é, para o amante, uma experiência de perda de si. Sob a pressão da paixão, o amante é incapaz de dominar a si mesmo; além disso, tende a ponderar os “prejuízos materiais que lhes possam ter causado sua paixão”[8] e a considerar todo o empenho dispensado na insistência com que procurou agradar ao amado, acabando por satisfazer-se na ideia de que nada mais de gratidão deve a ele. Em segundo lugar, os apaixonados se tornam mais suscetíveis a mágoas e a aborrecimentos:

Para eles, tudo é pretexto de se sentirem magoados, pois acham sempre que todos só pensam em prejudicá-los. Daí lhes nasce procurarem de toda a forma impedir que seus amados se aproximem de outras pessoas, de medo que os ricos os sobrepujam com o dinheiro, e com sua inteligência façam os instruídos melhor figura do que eles, com o que se põem de sobreaviso contra quem revela alguma superioridade a seu respeito.[9]


Sob o efeito do delírio[10] do amor-paixão, o amante se vê presa fácil das garras do ciúme. Porque dominado pela paixão do ciúme, o amante fará de tudo para afastar o amado de possíveis pretendentes, não sem um alto custo: ver-se destinado à solidão. Triste é, assim, o destino do amante: dominado pela paixão, cobiçoso do corpo do amado, nunca certo de que seu relacionamento subsista ao arrefecimento do desejo e não podendo evitar que outros o sobrepujem com suas riquezas materiais e seus dotes naturais, torna-se vulnerável ao ciúme. Ademais, porque movido pelo desejo, porque submetido às solicitações do amor-paixão, o amante experiencia um desequilíbrio interior - a harmonia de sua alma é rompida. O amante torna-se incapaz de julgamentos corretos. O excerto abaixo, em que Lísias nos mostra de que forma se manifesta o amor e busca convencer Fedro de que procederá de modo diverso ao modo como se comportam os amantes, a fim de obter a amizade dele, permite-nos entrever uma preocupação que é grega, por excelência: a censura da hýbris.

(...) o amor se manifesta do seguinte modo: o menor contratempo, que para muita gente nem seria digno de menção, aos olhos do amante infeliz é desgraça inominável, como, por outro lado, força os amantes venturosos a gastar elogios com o que não tem valor. Donde se colhe que os amantes são mais dignos de piedade do que de inveja. Por isso, se me escutares, em primeiro lugar não só não procurarei ao teu lado apenas o prazer transitório, como cuidarei dos teus futuros interesses. Sem deixar-me dirigir pelo amor, porém sabendo dominar-me, não suscitarei discórdias por motivos fúteis, e até em casos de maior gravidade, com relutância e muito pela rama manifestarei meu desagrado; desculparei as faltas involuntárias, como procurarei impedir as voluntárias. Dize: não são esses os sinais de uma amizade fadada a durar sempre? E se porventura imaginares que não pode haver amizade firme sem amor verdadeiro, reflete que nesse caso nunca faríamos conta dos filhos nem dos pais nem das mães, como também não teríamos bons amigos, pois nenhum dessas ligações se origina do amor, senão de sentimento de outra natureza. Mais, ainda: se for preciso conceder seus favores aos insistentes em suas solicitações, será mais razoável, acima de tudo, não entregar-se ninguém aos que tiverem maior merecimento, porém aos mais necessitados: quanto maiores forem os males de que os aliviares, tanto mais reconhecidos se mostrarão. Em tuas festas íntimas, também, não convides amigos, porém mendigos e famintos; serão sempre os mais atenciosos, acompanhar-te-ão por toda a parte, não sairão de tua porta; são esses os que mais se alegram e sabem ser reconhecidos, além de toda hora formularem votos para a tua felicidade. Sim, porém decerto o aconselhável não será favorecer os mais importunos, senão somente os mais capazes de demonstrar gratidão; não apenas os apaixonados, mas os merecedores de tão grande favor; não os que se propõem a gozar os encantos de tua mocidade, mas os que na tua velhice dividirão contigo seus haveres; não os que depois de alcançarem o que almejam, não falam noutra coisa, mas os que, de puro envergonhados, sabem calar na frente de terceiros; não os de afeição efêmera, mas os de amizade sempre igual a vida inteira; não os que, acalmado o desejo, só procuram pretexto para romper contigo, porém os que depois de perderem o viço, passam a dar provas de sua virtude muito própria. Guarda bem minhas palavras e considera que os amantes ouvem sempre dos amigos que sua paixão é viciosa, ao passo que os não apaixonados nunca foram acusados pelos parentes, por motivo dessas relações, de conduzirem mal os seus negócios.[11] (ênfases nossas).


Nesse momento de seu discurso, Lísias se propõe, de início, mostrar a influência negativa que sobre os amantes exerce o amor. O amor-paixão exaspera as emoções do amante infeliz em face do menor contratempo. Como torne seu julgamento distorcido, o amor-paixão leva o amante a importar-se com inconvenientes que, em condições outras, não seriam graves. O amante venturoso, por sua vez, também sofre da mesma tendência a exceder-se no modo de reagir. No seu caso, o excesso torna-o um adulador. Em qualquer um dos casos, vemos que o amor-paixão é desmesura (hýbris).
Lísias prossegue argumentando que, ao requestar a amizade de Fedro, agirá não com o intento apenas de usufruir o prazer transitório, caso em que se tornaria suscetível de hýbris, mas procederia segundo sophrosýne, isto é, de modo moderado, contendo seus impulsos e desejos. O que o discurso de Lísias parece encenar é a luta entre hýbris e sophrosýne, cujas contrapartes são, respectivamente, o amor-paixão e philia. Não estando sob o domínio do amor-paixão, aquele que não ama reage aos contratempos e manifesta algum desagrado moderadamente. Porque sua alma conserva-se em equilíbrio, está sempre disposto a desculpar as faltas involuntárias, como também estará apto para “evitar as involuntárias”. Quem assim procede, quem evita entregar-se às solicitações do amor está mais bem preparado para garantir uma amizade duradoura. Lísias é bastante claro ao sugerir que a amizade sólida pode realizar-se sem “amor verdadeiro”.
Tendo demonstrado a necessidade de evitar o apaixonamento, Lísias listará várias recomendações a Fedro, que devem ser seguidas caso não seja possível evitar atender aos apelos de alguns pretendentes. Ao fazê-lo, Lísias acena ao “agir razoável”. Esse agir razoável consiste em: 1) favorecer os mais necessitados e nunca aqueles que ostentam merecimento; 2) favorecer os que são capazes de demonstrar gratidão; 3) os merecedores dos favores concedidos; 4) os que continuarão companheiros na velhice; 5) os que são generosos; 6) os que são reservados; 7) os que conservam a amizade a vida inteira; 8) os que conservam a amizade após satisfazer seu desejo; 9) os que permanecem fieis à amizade, mesmo depois que o amigo perde a exuberância, a beleza. Ora, vê-se que essa conduta razoável de quem está sendo requestado supõe a capacidade de discernimento, que só pode ser conservada com a condição de nunca deixar-se dominar pelo amor-paixão.
Para terminar, gostaríamos de sublinhar que, no discurso de Lísias, o amor não tem qualquer vínculo com a vida virtuosa; ao contrário, o amante está sujeito a toda sorte de excessos e sua paixão é considerada viciosa. Se há – como acreditamos haver – alguma preocupação em oferecer uma orientação ética, Lísias o faz com base na contraposição entre amor e philia, de sorte que torna a philia a condição para o agir razoável. Porque tem em vista o estabelecimento de uma amizade verdadeira, o indivíduo deve proceder de modo tal, que possa dominar a si mesmo, evitando, assim, ceder às pressões do desejo.


1.2. O mito da Parelha Alada e seu complemento[12]: a filosofia como vida virtuosa


Ao nos debruçarmos sobre o mito da Parelha Alada, estaremos interessados, sobretudo, em patentear de que modo Platão maximiza a figura do filósofo e a importância da filosofia. Explicitar essa maximização, tendo sido, inicialmente, o objetivo fixado por nós para o desenvolvimento desta exposição, permite-nos também perceber o estabelecimento por Platão da unidade entre conhecimento, psicologia e ética. No mito da Parelha Alada, essa unidade torna-se ainda mais clara. A fim de que realizemos nosso intento, discriminamos os temas que demandarão nossa atenção especial: 1) quem é o amante; 2) o Belo em si; 3) o valor da vida dedicada à filosofia.
Tão logo terminado o relato do discurso de Lísias, Sócrates manifesta seu primeiro desacordo. Sócrates pensa que Lísias parece ter-se enganado ao sugerir que aquele que não corresponde ao amor de outrem não ama. Para Sócrates, é possível que ame alguma outra coisa. Ao contrário do que pensa Lísias, talvez haja várias espécies de amor. O segundo desacordo de Sócrates consiste em fazer notar a Fedro que Lísias supôs haver uma espécie apenas de delírio - uma espécie má. Ora, Sócrates mostra que os antepassados associavam ao delírio os maiores bens; ademais, o delírio, sempre que decorre de inspiração divina, é considerado algo belo. Sendo de origem divina e, portanto, belo, o delírio foi ligado a mais nobre das artes – manikê (mania). Essa arte permite-nos predizer o futuro.  Sócrates diz que há várias espécies de delírios. Entre essas espécies de delírios, está o delírio profético, inspirado por Apolo Delfo, o qual “ultrapassa em perfeição e dignidade a [arte humana] dos augúrios”[13]; o delírio purificador, inspirado por Dionisos, o qual “preservou seus participantes de calamidades presentes e futuras”, ensinando “ao homem verdadeiramente inspirado e possuído a maneira de libertar-se dos males do momento”[14]; o delírio poético, que provém das Musas “quando se apodera de uma alma delicada e sem mácula, desperta-a, deixa-a delirante e lhe inspira odes e outras modalidades de poesia (...)”[15]; e há o delírio erótico, inspirado por Eros e enviado pelos deuses “para a nossa maior felicidade”.[16]
Está claro, portanto, que nem todo delírio é um mal e que o amor, na medida em que é uma forma de delírio – o delírio erótico – e tendo sido enviado pelos deuses, não pode ser fonte de males, como pensara Lísias. Deve-se dizer, a esta altura, que Sócrates, ao contrário de Lísias, restituirá ao amado o valor que tem na relação amorosa. O amor não é destinado à satisfação egoísta do amante, mas à satisfação do amado, que agora encontra seu importante lugar na convivência com o amante. Na convivência que torna possível o amor, amante e amado se dedicarão ao benefício mútuo. O amor não leva os que dele são possuídos a desejar apenas a beleza do corpo um do outro, mas os faz tomar a beleza corpórea e aparente como sinal da beleza de suas almas.  
No excerto que se seguirá, colhido do mito da Parelha Alada, Sócrates dá-nos a conhecer quem é o amante e alude à teoria da reminiscência. Deve-se notar que, nesse trecho, o conhecimento se articula à virtude, isto é, o ter vivido virtuosamente é condição para que a alma consiga recordar-se do que viu quando vivia em companhia dos deuses.

Quando, à vista da beleza terrena e, despertada a lembrança da verdadeira beleza, a alma readquire asas e, novamente alada, debalde tenta voar, à maneira dos pássaros dirige o olhar para o céu, sem atentar absolutamente nas coisas cá de baixo, do que lhe vem ser acoimada de maníaca. Porém, o que eu digo é que essa é a melhor modalidade de possessão, a de mais nobre origem, tanto em quem se manifesta como em quem dele a receber. O indivíduo atacado de semelhante delírio, sempre que apaixonado das coisas belas, é denominado amante. Conforme disse há pouco, toda alma de homem já contemplou naturalmente a verdadeira realidade, sem o que não teria nunca adquirido essa forma; porém, não é igualmente fácil para todas, à vista das coisas terrenas, recordar-se das celestes, o que se dá tanto com as que as percebem de corrida como com as que tiveram a infelicidade de cometer alguma injustiça por influência de más companhias e de esquecer os mistérios sagrados contemplados naquela ocasião. Assim, são bem poucas as que conservam a lembrança do que viram. Sempre que essas poucas percebem alguma imagem das coisas lá do alto, ficam tomadas de entusiasmo e perdem o domínio de si mesmas. Porém não sabem o que se passa com elas, por carecerem de percepções suficientemente claras, pois em relação à justiça, à temperança e tudo o mais que a alma tem em grande estima, as imagens terrenas são de todo em todo privadas de brilho; com órgãos turvos e, por isso mesmo, com assaz dificuldade, é que as poucas pessoas que se aproximam das imagens conseguem reconhecer nelas o gênero do modelo original. Porém a Beleza era muito fácil de ver por causa do brilho peculiar, quando, no séquito de Zeus, tomando parte no coro dos bem-aventurados e os demais no de outra divindade, gozávamos do espetáculo dessa visão admirável e, iniciados nesse mistério que, com toda a justiça, pode ser denominado sacratíssimo, e que celebrávamos na plenitude da perfeição e livres dos males que nos alcançam no futuro, fomos admitidos a contemplar sob a luz mais pura aparições perfeitas, simples, imutáveis, puros também e libertos deste cárcere de morte que com o nome de corpo carregamos conosco e no qual estamos aprisionados como a ostra em sua casca.[17] (ênfase nossa).


Dizer que o viver segundo a virtude é uma condição para que a alma consiga recordar-se do que viu no séquito de Zeus não significa que essa condição lhe seja bastante, porque a recordação do modelo original encontra no próprio corpo em que reside a alma um obstáculo. Novamente, a imagem do corpo como cárcere, que vimos no Fédon, aparece aqui. O corpo, mesmo para as almas que não tenham cometido alguma injustiça, constitui um obstáculo para a recordação do modelo original a partir das imagens terrenas. Ademais, estas, como sejam cópias do modelo original, carecem da qualidade necessária que torne possível a recordação desse modelo (elas são “privadas totalmente de brilho”). A descrição do que sucede com as poucas almas que conseguem perceber alguma imagem do que contemplou outrora é análoga à experiência do prisioneiro que deixa a caverna para assomar à verdadeira realidade iluminada pela luz do Sol. A estrutura imagético-dialética é bem parecida: a queda num corpo é o aprisionamento na caverna. A vida terrena é a vida na caverna. Tal como o prisioneiro, que no mito da Caverna, consegue, libertando-se, contemplar, num movimento ascensional, a verdadeira realidade, a alma, presa no corpo, pode ter vislumbres das coisas celestiais. No entanto, ao contrário do prisioneiro que, depois de um instante de ofuscação, acostuma-se com a luz da verdadeira realidade, a alma, entusiasmando-se com a recordação do que contemplou, “perde o domínio de si mesma” e ignora o que se passa com ela. Essa perda de si e ignorância são consequência de seu estado atual, a saber, do fato de estar ela presa no corpo. A filosofia, nesse momento, ainda não despontou como o horizonte de possibilidade de purificação e ascensão ao Belo em si.
Retome-se, a fim de que possamos compreender a função da filosofia e qual é o estatuto do filósofo na narrativa do Fedro, a figura do amante e sua relação com o amado. O amante, segundo lemos no trecho acima citado, é um apaixonado das coisas belas, é aquele tomado de delírio erótico. Já vimos, ao apresentar a escalada do Belo no Fédon, que Eros é desejo do Belo e do Bem em si. O amante, em Platão, não quer apenas a satisfação dos belos corpos. É na beleza das almas que o amante e o amado descobrem o sinal da causa que as faz belas e boas. Assim, eles se descobrem almas imortais e aparentadas ao divino e à verdade.
Eros ou o delírio erótico é o conhecimento que os amantes alcançam da natureza imortal e da excelência (virtude) da alma dos amados. Atingindo esse conhecimento, eles são conduzidos ascensionalmente à origem dessa excelência. Destarte, eles são beneficiados com o saber através do qual descobrem que a alma bela e boa é aquela que já contemplou a Verdade em outra vida – na vida outrora vivida na companhia dos deuses. É por já ter contemplado a Verdade, que a alma é capaz de lembrar-se dela, e dela se lembrando, aspira a contemplá-la novamente.
Dissemos que, no mito da Parelha Alada, Platão articula, numa unidade, de modo mais claro, conhecimento, ética e psicologia. O primeiro elemento dessa unidade – o conhecimento – deixa-se entrever na caracterização socrática de Eros como força que impulsiona as almas à contemplação da Verdade. É sob o efeito do delírio erótico que elas são capazes de recordar a Verdade. Uma vez que amante e amado sejam imortais e perfeitos, amarão um no outro a verdadeira sabedoria. Assim, o amor que os move é a própria filosofia. Em outros termos, Eros, agora, é filósofo.
O mito da Parelha Alada, conduzindo-nos ao Princípio, narrando a origem das almas, a vida que viviam no séquito de Zeus, ajuda-nos a entender como é  possível a elas distinguir um desejo e amor virtuosos de um desejo e amor que não são senão doença ou vício. Lembremos que a Alma do Mundo, ou psykhé universal, sendo princípio de movimento – portanto, de vida – é responsável por governar a ordem universal. Quando perde suas asas, alguns fragmentos que se desprendem encontram morada em corpos que habitam a terra. Nossa alma nasce, pois, da perda das asas da Alma do Mundo; por isso, são capazes de recordar aquilo que outrora viram. Com o auxílio de Eros, que restitui às nossas almas as asas perdidas, conduz a nós, seres mortais, a retornar às alturas onde está a Verdade. Graças a Eros, a melhor parte da alma – a parte racional – conserva sua imortalidade.
Já vimos também que a alma humana se apresenta, para Platão, tripartida em alma apetitiva, alma irascível e alma racional. No mito da Parelha Alada, o cocheiro representa a parte racional da alma e está encarregado, por isso, de conduzir toda a alma ao seu destino, domando os impulsos danosos da parte concupiscente. O cocheiro – a parte racional da alma -, tendo visto o objeto amável, sente-se atraído para ele. Nessa ocasião, recorda-lhe a essência da Beleza e do Bem. Inicialmente, o cocheiro recua assustado; mas, sendo auxiliado pelo cavalo bom, é forçado a reter a lembrança do amado. Assim, imbuído de coragem, controla o carro, açoitando o cavalo de raça má para que obedeça.
A articulação da ética com a filosofia se faz pelo amor ao Belo em si. O amante, sendo a alma, pode fundir-se ao amado (o belo), alcançando, assim, a felicidade perfeita, porque, por força da influência de Eros, é capaz de recordar o Belo em si outrora visto. O amante é agora filósofo, aquele que reconhece, nas coisas belas, na multiplicidade do sensível, a unidade perfeita das Ideias. À medida que se vai lembrando do Belo em si, as asas de sua alma vão crescendo. Eros ou a filosofia restitui à alma as suas asas. A filosofia é, assim, delírio erótico, é delírio de inspiração divina, visto que ela, fazendo crescer o amante em sabedoria e em virtude, torna sua alma novamente alada.
Sendo alada, a alma pode, elevando-se, participar da natureza imortal do divino (é este seu desejo). Mas, como ainda está presa num corpo e, por isso, impedida de voar, ela deve voltar-se para a filosofia, exercitar-se nela, tomá-la como caminho que lhe permitirá a tão desejada ascensão. Pela ascensão, a visão da alma se desvia dos assuntos humanos e se dirige para as coisas celestes, mais elevadas.
No Fedro, é o Belo que permite a articulação entre psicologia e ética. Ora, a parte concupiscente da alma deseja as coisas perecíveis. Seu desejo é desejo de possuir unicamente. A parte concupiscente, possuindo o que deseja, nunca está saciada e, em pouco tempo, torna-se possuída por aquilo que então desejava possuir. A parte irascível, por sua vez, deseja também as coisas perecíveis, como a fama e a glória. Se ela mover-se para essas coisas sem comedimento, pode arruinar-se. Demais, seu modo de desejar é desejo de obter boa reputação a partir das opiniões favoráveis dos outros. O risco que se acha nesse anelo é que, sendo bem reputada segundo as opiniões alheias, incorra na desonra ou na vanglória. Somente a parte racional deseja os bens imperecíveis, quais sejam, a Verdade e o Bem em si. Ela não se move pelo desejo de possuir o que é mutável e imperfeito; não deseja obter boa reputação a partir da opinião alheia. Ela se move pelo desejo de participar da essência da Verdade e do Bem. É por isso mesmo que ela está apta para determinar a medida segundo a qual os desejos das outras partes da alma devem-se conduzir. Ela impõe limites ao modo de desejar das partes concupiscente e irascível da alma. Assim, pode torná-las virtuosas.
Eros é, portanto, a força que faz mover a alma, quer sua parte apetitiva, quer sua parte irascível, quer sua parte racional. A virtude, por seu turno, é determinada pela qualidade do objeto para cuja obtenção o amor impulsiona a alma. Sob o governo da parte racional, então, entregue ao exercício da filosofia, a alma torna-se capaz de fazer sempre uma escolha entre os objetos perecíveis da paixão e os imperecíveis da razão. A autarquia do indivíduo repousa no poder da parte racional ou da razão de governar as paixões, fixando para cada uma das outras partes da alma bons objetos e desejos.
Finalmente, a areté só pode ser conquistada pela luta entre desejos irracionais e desejos racionais. A virtude não pode ser alcançada sem que haja uma harmonia entre as partes da alma. Essa harmonia é garantida pelo governo da parte racional sobre as outras partes irracionais. Por conseguinte, a virtude, para Platão, é inseparável do conhecimento e da vida filosófica – que é a vida virtuosa. Levamos a cabo este trabalho, referindo um trecho emblemático da oposição socrática ao discurso de Lísias. O trecho se segue ao momento do discurso em que Sócrates compara o destino das almas que viveram afastadas da filosofia com o das almas que viveram “uma vida ordeira e dedicada à filosofia”[18].

São essas, jovem, as grandes e divinas bênçãos que te ensejará a amizade do teu apaixonado. Quanto à intimidade com quem não ama, aguada com a sabedoria mortal que se ocupa de interesses perecíveis e de nenhum valor, só gerará na alma do amado a mesquinhez que as multidões exalçam como virtude e que será causa de ela vir rolar durante nove mil anos em torno da terra, para acabar embaixo da terra como sombra privada de razão.[19]





[1] Muito embora o cristianismo tenha condenado os traços mundanos do amor romântico, cremos que os traços idealizadores que caracterizam essa forma de amor, tão profundamente marcante da cultura ocidental, podem ser rastreados numa longa tradição que, remontando a Platão, encontra no cristianismo fonte de longevidade. Se Platão concebeu o amor como caminho para aspirar ao que é puro e eterno, o cristianismo, dando continuidade a uma tendência que já se verificava em Platão, viria a maximizar a transcendência de Eros tornando-o a virtude suprema do mundo ocidental, encarnada na pessoa de Jesus. Com o cristianismo, o amor deve possibilitar a conquista da intimidade com a mais elevada bondade, beleza e verdade, que é o próprio Deus. (May, 2012).
[2] Veja-se, a propósito: Bauman, Zigmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Joge Zahar, 2004.
[3] Um exemplo disso é a possibilidade de o amor ser estudado tendo em vista a determinação da química do cérebro apaixonado. Ademais, não só neurocientistas se demonstram mais interessados em estudar a natureza bioquímica do amor, como biólogos e psicólogos evolucionistas tratarão de investigar a presença do amor na história evolutiva das espécies, buscando compreender o porquê de nós, seres humanos, amarmos. (Fisher, 2004).
[4] Fedro, 231a.
[5] As categorias /euforia/ e /disforia/ são categorias semânticas que estão na base da construção de um texto. Uma categoria semântica assenta-se sempre numa oposição. Cremos ser elas úteis para tornar nossa proposta de leitura do discurso de Lísias tanto mais clara quanto consistente com o objetivo por nós perseguido demarcar duas visões contrárias sobre Eros, a de Lísias e a de Sócrates. A categoria /euforia/ é um valor positivo que marca o modo como um determinado referente se inscreve ou é considerado (pelo autor) no texto, independentemente do sistema axiológico do leitor; por outro lado, a categoria /disforia/ é um valor negativo que marca o modo como um determinado referente se inscreve ou é considerado (pelo autor) no texto.  (Fiorin, 2005).
[6] Ib.id., 232b.
[7] Ib.id., 232e.
[8] Ib.Id., 231a.
[9] Ib.Id. 232c.
[10] Pode-se dizer que o amor tematizado por Lísias é uma forma de delírio negativo, concepção esta a que Sócrates irá se opor, conforme veremos.
[11] Ib.Id.233b-234b.
[12] Referimo-nos ao discurso de Sócrates que, retomando pontos essenciais do mito da Parelha Alada, mais claramente expressa a sua oposição ao discurso de Lísias.
[13] Ib.Id. 244d.
[14] Ib.Id. 244e.
[15] Ib.Id. 245a.
[16] Ib.Id. 245c.
[17] Ib.Id. 249e-250c.
[18] Ib.Id. 256a.
[19] Ib.Id. 257a.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

"Se queres a verdadeira liberdade, deves fazer-te servo da filosofia." (Epicuro)

              
              

           A questão de Deus: uma questão filosófica
                Um manifesto contra a imperícia intelectual


“A metafísica é platônica de cima a baixo” (Heidegger)


No bojo da tessitura argumentativa deste texto, situam-se dois objetivos basilares que devem ser considerados necessariamente articulados. O primeiro objetivo consiste em replicar aos que supõem a questão de Deus deve ser colocada à margem dos debates filosóficos “sérios” que essa questão perpassa, ainda que de modo extremamente complexo e mesmo que seja para rejeitá-la enquanto tal, toda a história da filosofia. O segundo objetivo toca à tentativa de demonstrar as significações atribuídas a ela pelos filósofos gregos, em particular pelos filósofos pré-socráticos, por Platão e Aristóteles. Como sejam muitos os filósofos chamados “pré-socráticos” e como eu não possa dar a conhecer o que cada um deles nos legou a respeito da questão de Deus, o tratamento dispensado por esses filósofos à questão de Deus será apresentado de modo bastante esquemático. O esquematismo com que apresento a problemática se faz necessário em função da natureza deste texto e do tempo de que disponho para produzi-lo; mas esse esquematismo não acarretará qualquer prejuízo para o plano global suposto pela produção deste trabalho, qual seja, o de aclarar o lugar que a questão de Deus ocupa na história da filosofia. Ademais, tal esquematismo não me impedirá de tomar como arquétipo do pensamento grego arcaico sobre Deus a doutrina do apeíron de Anaximandro. A escolha por apresentá-la reside nas consequências que acarretou na história do pensamento e, de modo especial, ao desenvolvimento de uma teologia negativa que influenciou significativamente o pensamento cristão.
A ideia de que a questão de Deus está na raiz das especulações filosóficas, desenvolvidas ao longo de toda a sua história, é atestada na apresentação do livro Os filósofos e a questão de Deus (2006), onde lemos o que se segue:

“Este livro tem por objeto inaugurar uma interrogação sobre o lugar da questão de Deus na história da filosofia. Não se trata, portanto, de enfrentar diretamente a questão de Deus ou do divino, mas de elucidar as significações que a filosofia, em sua história antiga, medieval, moderna e contemporânea, atribui a essa questão. Essa interrogação não é exclusivamente histórica, é também filosófica: desde sua origem, a filosofia teve que determinar sua relação com um discurso sobre o divino, a teologia. Durante todo um período de sua história, ela chegou a considerar a teologia a parte mais elevada de seu saber. O exame da reação dos filósofos à questão de Deus envolve, por conseguinte, a própria significação da filosofia. Entre a afirmação e a negação de Deus, sua determinação como transcendente ou como imanente, sua cognoscibilidade ou não, decide-se uma orientação que abrange a gnosiologia e a ontologia, assim como a moral e a política. Nossa época é a da morte filosófica de Deus? De qualquer modo, é certo que essa questão, como quer que se responda a ela, é decisiva para toda a filosofia contemporânea (grifo meu, p. 9).



O percurso de minha investigação compreende as seguintes etapas: 1) recuperarei a relação da filosofia, quando de seu surgimento, com a religião e com o mito; 2) assinalarei o escopo da investigação pré-socrática e, de modo esquemático, esclarecerei a compreensão pré-socrática de Deus; 3) darei a conhecer como o divino ou Deus foi pensado por Platão e por Aristóteles.
Ao cabo de meu empreendimento analítico, espero tornar convincente a tese de que constitui miopia filosófica pretender rechaçar a questão de Deus do domínio da discussão filosófica.


1. A origem da filosofia: sua relação com o mito e a religião

Se podemos hesitar entre acolher a posição de Hegel, segundo a qual a filosofia grega surge em ruptura com a religião, e acolher a posição do helenista Conford, para quem a ideia de ruptura com a religião não se sustenta, não devemos hesitar sobre o fato de que ao desenvolvimento da filosofia precederam as explicações mítico-religiosas sobre a origem e a ordem do mundo com base na ação de um deus ou de um rei mago
Todavia, afinal, o que é o mito? Essa é a primeira questão que gostaria de esclarecer, em linhas gerais. O mito é uma narrativa mágica ou maravilhosa da origem das coisas a partir da ação ordenadora de um Deus. A estrutura narrativa do mito encerra analogias, metáforas e parábolas. O mito cumpre funções sociais. Ele busca resolver, no âmbito imaginário, os conflitos e antagonismos que permeiam a estrutura social. A solução oferecida pelo mito é sempre imaginária e atende à necessidade de preservar a vida em comum.
Por seu turno, a filosofia nasce como uma racionalização e laicização da narrativa mítica. A filosofia retoma as questões colocadas pelo mito e as retrabalha numa linguagem racional, isto é, confere uma explicação racional à origem e à ordem do mundo. Destarte, a origem e a ordem do mundo passam a ser encaradas como naturais. Se, no mito, elas eram seres divinos (Urano, Gaia, Oceano); no tratamento filosófico, tornam-se realidades materiais e naturais: o céu, a terra e o mar.
É preciso ter em mente, no entanto, que os elementos naturais continuam a ser vistos como divinos, na filosofia nascente. Eles não são antropomórficos, mas são divinos, na medida em que são superiores à natureza gerada por eles e superiores aos homens que os conhecem através da razão. São, ademais, divinos porque eternos ou imortais, e também porque dotados de poder absoluto de gerar e regular toda a natureza.
Os mitos afirmam uma cosmogonia, a qual se esteia na questão: como do caos surgiu o mundo ordenado, isto é, o cosmo? As cosmogonias procuram responder a essa pergunta mediante a genealogia dos seres. Na cosmogonia, os elementos naturais são personificados e a origem de todas as coisas e da ordem do mundo se explica por referência às relações sexuais entre esses elementos personificados. A cosmogonia se difere da teogonia, porque esta narra, através das relações sexuais entre os deuses, o nascimento de todos os deuses, heróis, homens e coisas do mundo natural.
 Os primeiros filósofos não fazem cosmogonia, mas cosmologia. Portanto, a filosofia nascente assume a forma de uma cosmologia. Os primeiros filósofos despersonalizaram os elementos naturais, deixaram de pensá-los como deuses individualizados, para tratá-los como forças impessoais, naturais, ativas, animadas, imperecíveis, ainda que divinas. O que é, então, cosmologia? Por cosmologia entende-se a explicação da ordem do mundo, do universo com base num princípio originário determinante e racional, o qual é a origem e a causa das coisas e de sua ordenação.
Para os antigos, essa ordem, ou seja, o cosmo, era chamado de “divino”. Mas aqui cabe advertir que esse divino em nada se assemelha com o Deus pessoal judaico-cristão. O divino se confunde com a própria ordem do mundo, é imanente ao mundo, ao cosmo. Pela theoria, pode-se, como acreditavam os estóicos, contemplar o que é divino no universo. Por isso, a tarefa primeira da filosofia é ver o essencial do mundo, o que nele é mais importante, mais significativo.
Os antigos estavam convencidos de que, quando estudamos a física, a astronomia, a biologia, nos damos conta de que a totalidade do universo é “benfeita”. Assim, o cosmo é justo e belo. Dizer que a estrutura do cosmo é divina significa dizer também que é perfeita e racional, ou seja, conforme o lógos. O divino de que nos falam os estóicos, por exemplo, é imanente ao mundo, ou seja, não é outra coisa senão a estrutura harmoniosa do cosmo. É justamente porque a natureza é completamente harmoniosa que ela vai servir, em alguma medida, de modelo para a conduta dos homens. Será preciso, portanto, imitá-la em tudo. Esse preceito se estenderá do plano estético, passando pela arte, ao plano da moral e ao da política. Aos olhos dos estóicos, a justiça dependia do ajustar-se ao cosmos; juntar-se ao cosmos era a palavra de ordem de toda ação justa, o princípio da moral e da política. Ora, justiça é fundamentalmente justeza, donde a necessidade de ajustar-se à ordem harmoniosa e boa que a theoria acaba por revelar.
A filosofia, portanto, ao nascer como cosmologia, se pretende uma explicação racional, fundamentada no discurso e no pensamento que buscam explicar a origem e a ordem do mundo, a saber, da totalidade da realidade, do ser.
A partir do século VIII a.C., a fé religiosa desenvolve-se na Grécia arcaica por intermédio dos cantores rapsodos. No período homérico, havia uma família olímpica de deuses que se apresentava em forma antropomórfica. Esses deuses eram representados com características humanas, eram dotados de virtudes e vícios; eram ciumentos, invejosos e habituados a contendas. As epopeias homéricas contribuíram decisivamente para a construção da unidade cultural e religiosa dos gregos. Todavia, também produziram um efeito adverso, na medida em que tornaram o céu olímpico dos deuses questionável para a própria crença religiosa e fizeram despertar o questionamento filosófico.
Por volta dessa mesma época, desenvolveu-se a literatura mitológica que narra a procedência dos deuses e do devir do mundo. Nesse período, destaca-se Hesíodo (700 a.C.), um dos poetas mais antigos da Grécia, a quem coube reunir antigos mitos sobre a genealogia dos deuses, os quais se apresentavam de modo antropomórfico, à semelhança do que ocorria em Homero.
Com o século VI a.C., permearam a Grécia formas de culto órficas, dionisíacas e outras, oriundas do norte da Trácia. A essas formas de culto, acrescentem-se as doutrinas secretas de origem oriental. A poesia órfica, em particular, gozou de grande prestígio e se propagou facilmente, muitas vezes, de forma anônima. Essas doutrinas teogônico-cosmogônicas foram, parcialmente, fundidas e fantasticamente ampliadas numa literatura mitológica ostentosa, cujo representante principal foi Ferécides de Siros (VI a.C).


2. Os primeiros filósofos e a questão de Deus

Os primeiros filósofos, conhecidos na historiografia filosófica, como pré-socráticos, estavam interessados na determinação da arkhé, o primeiro princípio absoluto de tudo que existe. A arkhé vem e está antes de tudo, no começo e no fim de tudo. É ela o fundo imortal e imutável da ordem do mundo; ela faz surgir todas as coisas e as governa.
Os primeiros filósofos, chamados também de naturalistas, se admiravam da perpétua instabilidade das coisas, bem como de sua aparição, desaparição, nascimento, geração e corrupção. Eles estavam, sobremaneira, interessados em investigar a totalidade que compreende tudo que é, ou seja, a phýsis. São muito variados os significados do conceito de phýsis; mas, para o que se seguirá, basta compreender a phýsis como o fundo originário de todas as coisas, ou como a força que as faz nascer, desenvolver-se e renovar-se incessantemente. A phýsis torna visível a arkhé invisível.
O período pré-socrático, que caracteriza o nascimento da filosofia, se estende do século VI a.C ao início do século IV a.C.
Passarei a enquadrar a questão de Deus nesse período de modo resumido. Posteriormente, tomo para caso ilustrativo da concepção de deus no interior da filosofia nascente o legado de Anaximandro.

2.1. A questão de Deus para os pré-socráticos

Havia, entre os primeiros filósofos, um interesse contínuo por ultrapassar a crença primitiva nos deuses. Segue-se daí o desenvolvimento de um conceito de deus mais elevado. Por exemplo, em Xenófanes, encontramos a concepção de deus como um e todo, um deus que é inteiramente visão, inteiramente pensamento. O princípio originário seria, pois, esse deus. Esse deus é imóvel, embora capaz de mover o universo por meio da força de seu espírito. Isso aludi ao Primeiro Motor Imóvel, do qual tratarei mais adiante, que Aristóteles identifica com deus.
Pensando a oposição imanência/transcendência, os primeiros filósofos conceberam um deus do mundo, um poder divino mais alto que governa esse mundo. Esse deus domina o mundo e dota de sentido o acontecimento do mundo. Não se trata – é preciso frisar – de um deus rigorosamente transcendente; trata-se de um deus cósmico. Insistirei nesse ponto ao longo do texto.
Na medida em que estou interessado em objetar àqueles que acreditam ser a questão de Deus marginal comparativamente às demais questões de que se ocupa a filosofia, procurarei articular os seguintes conjuntos de ideias, os quais apontam para a conclusão em sentido contrário.
O primeiro conjunto se identifica pela expressão um deus do mundo. Ora, a investigação da natureza, levada a efeito pelos filósofos pré-socráticos, carreia em seu bojo a questão de um princípio divino. Mas esse deus se situa no quadro de uma explicação da ordem natural. Esse deus é um deus do cosmos, um deus que atua ordenando e constituindo o mundo.
Do primeiro conjunto passa-se para o segundo conjunto, que toca à concepção de um deus do pensamento. Esse deus já não é mais o deus do mito, mas um deus do pensamento racional. Sua existência, no entanto, não tem de ser provada. Esta impõe-se ao pensamento. A questão que decorre daí diz respeito ao como se deve pensar o divino. Esse deus do pensamento é também, conforme se pode inferir do que já se expôs no parágrafo anterior, um deus do mundo.
O terceiro conjunto patenteia que esse deus não é autor de mandamentos, se bem que o homem esteja intimamente vinculado à ordem divina (ordem natural). O dever moral não provém de um deus transcendente, mas é lei natural. Tampouco se trata de um deus para o qual se dirigem orações (esse deus não é passível de adoração religiosa). Novamente, trata-se de um deus do pensamento filosófico, que não substituiu os deuses da crença religiosa.
O quarto conjunto de ideias se assenta na não-sepração entre sujeito e objeto. Na Grécia arcaica, sujeito e objeto ainda não estavam separados, de modo que esse deus não é um deus da interioridade subjetiva. O homem está vinculado a essa ordem divina, como disse, e seu pensamento participa da razão (lógos) do mundo, razão esta que ele experiencia como poder divino.
É somente com a sofística, culminando com Sócrates, que se desenvolverá uma reflexão sobre o pensamento e a vontade próprios. Com Sócrates, surge uma nova concepção de divino (daimon), que se lhe dirige para a interioridade e lhe dá recomendações.

2.2. O apeiron: o divino em Anaximandro

Anaximandro de Mileto (610-545 a.C.) teria sido, provavelmente, preceptor de Tales. A Anaximandro se atribui o primeiro escrito filosófico, intitulado de Sobre a Natureza. Dessa obra restou um único enunciado, que se traduz como se segue:

“O princípio originário das coisas existentes é ilimitado (apeiron). De onde, porém, consiste a geração dos seres, é também para onde ocorre a corrupção segundo a obrigação; pois eles pagam uns aos outros castigos justos e penitências por suas injustiças segundo a ordenação do tempo”.

Também a Anaximandro se atribui o mérito de ter sido o primeiro a, explicitamente, perguntar sobre o princípio originário (arkhé), não só como começo temporal, mas sobretudo como princípio a partir do qual tudo é gerado e ao qual tudo retorna, quando se corrompe, ou seja, princípio ontologicamente subjacente e sustentador.
Esse princípio é o princípio de tudo que é, princípio, portanto, dos entes. Anaximandro o chama apeiron, que significa o ilimitado. Também encontramos para esse termo os significados correlatos o indefinido, o indeterminado. Destarte, esse princípio de todas as coisas não é nem a água (Tales) nem qualquer outro elemento que se nomeia, mas um ilimitado, que difere, em essência, de qualquer outro elemento, e que gera todos os céus e mundos nele contidos. Esse princípio originário não pode ser um elemento determinado, mas deve ser anterior a todas as coisas e a todos os elementos determinados. Ele tem de ser plenamente indeterminado e ilimitado.
Não constitui tarefa fácil saber se Anaximandro consideraria o apeiron um deus ou divino. Para os meus propósitos, o que é mais importante é assinalar o modo como se deu a recepção da doutrina de Anaximandro. Considere-se, a seguir, a influência dessa doutrina na história do pensamento.


2.3. A recepção da doutrina de Anaximandro

A doutrina de Anaximandro suscita questões que não poderiam e não foram ignoradas pela posteridade. Uma delas consiste em nos convidar a pensar no fato de que os filósofos gregos do período arcaico relutavam em denominar “deus” (ho theos) o princípio originário supremo.
No mundo imaginário, deus reúne-se a outros deuses, ainda que se tratasse do deus supremo. Esse deus continuava submetido à pluralidade e à imanência. Por conseguinte, os primeiros filósofos preferiram caracterizar como princípio primeiro o “divino”. Esse princípio é a quintessência do divino. Destarte, o apeiron, enquanto divino mesmo, deve ser concebido como acima da pluralidade dos deuses singulares da religião.
Mais tarde, Heráclito, assim como Platão, seguido por Aristóteles, chamará esse princípio primeiro de o único deus. Esse deus será pensado como distinto da pluralidade dos deuses e como a divindade verdadeira.
O apeiron de Anaximandro exerceu grande influência na história do pensamento. Os Padres da Igreja cristã, indiferentes ao que realmente significava o termo na filosofia de Anaximandro, não hesitaram em lhe conferir o significado de infinito. Esses Pais da Igreja declararam ser Deus a infinidade absoluta e verdadeira; em outros termos, identificou Deus com o apeiron.
Anaximandro também influenciou, com sua doutrina do ilimitado, a ideia de Deus como o inominável e o inefável. Chamo a atenção do leitor para o fato de que a teologia cristã é demasiado devedora do contato com a produção filosófica grega. Na teologia negativa, que caracterizou o pensamento neoplatônico de Plotino, de Proclo e de outros, a influência de Anaximandro é notável. Destarte, nunca se pode dizer, no quadro dessa teologia negativa, de Deus o que ele é; somente o que ele não é, dado que ele está além de tudo que se pode dizer dele.
A teologia negativa influenciará, sobremaneira, o pensamento cristão e levará à constituição da doutrina clássica da analogia (de que São Tomás é um representante notável). Mas essa doutrina jamais conseguirá suprimir o elemento negativo do inefável e do incompreensível herdado da teologia negativa. Também a teologia mística será influenciada pela teologia negativa.
Em suma, encontramos já em Anaximandro a consideração de problemas fundamentais, tais como a) a questão do primeiro princípio de todo ser; b) a questão da geração e corrupção; c) da unidade e pluralidade; d) da culpa e da expiação; e) do mistério infinito e impronunciável de Deus. Esses problemas carrearão consequências para toda a história do pensamento e sinalizarão a pergunta sobre Deus.


3. A questão de Deus em Platão

A ideia de deus aparece em vários momentos ao longo da obra de Platão. No livro 10 da República, deus é a origem de todas as Ideias. Deus é concebido como o escultor originário, ou o formador do mundo (demiurgo). De sua atuação surgem as outras Ideias.
Também a Ideia do Bem foi chamada de Deus. Assim, Platão enuncia a alteridade do ser inteligível em face das coisas materiais e sensíveis e a alteridade do primeiro fundamento do ser em face de todo singular concreto.
No Timeu, deus se apresenta como aquele que dotou o mundo de alma, de modo a torná-lo “um ser animado e dotado de razão”.
Voltando à República, Platão se refere a uma figura demiúrgica purificada, o Phytourgos, que identifica com o autor da natureza. Ele é o autor último, fabricante da Natureza. Se o Demiurgo é um intelecto que contempla o modelo fornecido pelas Formas, o Phytourgos, por seu turno, nada contempla, apenas confere o ser, que será, posteriormente, reproduzido na cópia sensível e imperfeita.
A teologia platônica fornece exemplos de figuras mitológicas purificadas. Quer consideremos o Intelecto real do Filebo, quer consideremos o Demiurgo do Timeu, o Artesão do Sofista, todas essas figuras dão forma a sua doutrina da eficiência e servem para identificar o “deus” com a força que produz a phýsis.
Para os fins a cuja satisfação me proponho, é importante patentear o modo como a teologia platônica foi recebida pela tradição.
Lembremos, para tanto, que, segundo a interpretação tradicionalmente dominante, as Ideias existem enquanto essências em si mesmas. Donde se segue a questão: essas Ideias já não seriam concebidas como pensamento de um espírito pensante, ou seja, de um deus mesmo? Tal é a interpretação predominante no neoplatonismo e que encontraria abrigo cedo na Academia platônica.
Plotino, por exemplo, veria as Ideias como pensamento da razão (nous), mas não do uno originário divino. Elas são pensamento da primeira emanação do princípio originário divino. No pensamento neoplatônico cristão de Santo Agostinho, as Ideias também se tornam pensamento, mas agora pensamento de Deus mesmo. Para Agostinho, as Ideias são Ideias eternas no espírito de Deus. É desse modo que a doutrina das Ideias de Platão será interpretada pelo pensamento cristão e o moldará.
No começo da Idade Moderna, elas se tornarão ideias inatas do espírito humano, com Descartes, e continuarão a servir de modelo para as Ideias da razão pura de Kant.
No tocante à doutrina de deus em Platão, sem embargo de sua problematicidade, ela encerra a concepção de um ser supremo que é a plenitude do verdadeiro, do Bem e do Belo, a quintessência de toda perfeição. Ademais, é dessa plenitude que deriva toda a ordem e toda a beleza do mundo, bem como todas as normas da ação humana boa.
Esse deus é um ser espiritual e racionalmente atuante. Mas ele não é o criador do mundo, somente seu ordenador e condutor (demiurgo). É preciso enfatizar que esse deus é objeto de desejo e de todo amor ao supremo e ao belo. É assim que o pensamento platônico determinará a busca e o anseio por deus, até mesmo a união mística com ele, em todos os tempos na história humana.

4. A questão de Deus em Aristóteles

Conquanto a metafísica não seja um termo aristotélico, foi Aristóteles quem nos deu a saber quatro definições de metafísica. Antes, porém, de enunciá-las, preciso notar que ele usou a expressão filosofia primeira e teologia em oposição à filosofia segunda ou a física.
A metafísica aristotélica é a ciência que se ocupa com as realidades que estão além das físicas; ela se ocupa das realidades suprafísicas e se opõe à física.
O estagirita define como se segue o escopo da metafísica: 1) a metafísica indaga-se sobre as causas e os princípios primeiros ou supremos; 2) indaga-se sobre o ser enquanto ser; c) indaga-se sobre a substância; d) indaga-se sobre Deus e a substância supra-sensível.
Para Aristóteles, a metafísica é a ciência livre por excelência, porquanto tem em si mesma o seu fim. Ainda que a questão de Deus figure na sua ética, é no interior da metafísica que ela reivindica a atenção especulativa do filósofo. Para o estagirita, o homem que se dedica à metafísica aproxima-se de Deus e nisso reside a máxima felicidade do homem.
Em Aristóteles, Deus é pensado como o Primeiro Motor Imóvel. Aqui já se nota um monoteísmo que se expressa na separação nítida do Primeiro Motor de outros moventes. Esse Primeiro Motor Imóvel se situa num plano totalmente diverso, de modo que de sua unicidade se deduz a unicidade do mundo.
No entanto, o monoteísmo parece superar-se quando Aristóteles admite que as cinquenta e cinco substâncias motoras (as esferas celestes individuais) são também substâncias imateriais eternas que independem do Primeiro Motor. O Deus de Aristóteles não é o criador das cinquenta e cinco inteligências motoras.

4.1. Deus e o mundo

Deus, ou o Primeiro Motor Imóvel, pensa e contempla a si mesmo. Entanto, esse deus, certamente, não tem conhecimento da existência do mundo e dos princípios universais do mundo. Aristóteles sustenta que ele é o princípio supremo; é objeto de amor e de atração de todo o universo. Mas esse deus não ama. Os indivíduos não são objeto de amor desse Deus. Deus não se ocupa de cada indivíduo. Aristóteles pensa que cada um dos homens, cada uma das coisas tende para Deus de modos vários, mas Deus, porque não pode conhecer, também não pode amar nenhum homem individualmente.
Deus pensa o que há de mais excelente; mas, como o que há de mais excelso é o próprio Deus, segue-se daí que Deus pensa a si mesmo. Para Aristóteles, o Primeiro Motor Imóvel é também atividade contemplativa de si mesmo; é pensamento de pensamento.

5. Conclusões

Em toda a filosofia grega pré-cristã, deus nunca é reconhecido como o criador do mundo. Ele tão-somente é concebido como ordenador e formador do mundo. É a razão do mundo, o demiurgo. Os gregos desconheciam o conceito de Criação ex nihilode sorte que deus forma um mundo a partir de uma matéria já existente.
Esse deus não é também o fundamento único e absoluto, uma vez que existe a matéria como outro princípio necessário do mundo. É tão-só no neoplatonismo que a matéria se tornará elemento que emana de um princípio divino (Plotino). No entanto, ainda não haverá aqui um ato livre de criação; a matéria é produto de uma emanação necessária.
O pensamento grego não formulou o conceito de deus como pessoa. Aliás, o conceito de pessoa, tal como nós o entendemos, era desconhecido dos gregos. Há, decerto, esboços que nos permitem entender Deus como ser racional, como subjetivamente pensante, por exemplo, em Platão e em Aristóteles. Todavia, não há sequer alusão a um ser dotado de vontade e ação livres. Berti (2006), em um texto que se topa no livro Os filósofos e a questão de Deus, é uma voz divergente, nesse tocante. Para ele, se o deus de Aristóteles é um ser vivo eterno e feliz, no sentido grego da palavra theos, então ele será um deus dotado de intelecto e vontade, muito embora, reconhece o intérprete, que esse deus não é o Deus criador e providente da Bíblia.
Esse deus do pensamento filosófico não é um deus passível de adoração religiosa. Ele é um deus do mundo, e não um deus do homem. Decerto, há um esforço orientado para a união com Deus (Plotino), mas esse deus não é uma pessoa a quem se pode rogar auxílio e a quem se pode adorar.
Os gregos rezavam para os antigos deuses de seu panteão, os quais não foram substituídos pelo deus único da razão filosófica. O deus de Platão  e de Aristóteles, bem como os de seus predecessores, não é um deus pessoal, tal como o Deus da tradição judaico-cristã, em virtude de não ser passível de relação afetiva com o homem. Não é um Deus pessoal também porque não é capaz de despertar confiança e bem-querer. Não é o Criador todo-poderoso e Pai de amor.


Que não reste dúvida sobre a importância da questão de Deus desde os primórdios da filosofia e sobre o interesse filosófico que ela suscita até os nossos dias . Essa questão se impunha aos primeiros filósofos em decorrência de sua investigação sobre o primeiro princípio ou causa primeira do ser. Deus, enquanto questão para o homem, se coloca, portanto, como o mais eminente e originário desafio filosófico.