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domingo, 17 de fevereiro de 2019

"Por mais que haja o amor perfeito e desinteressado a alguém, o supremo fim é a geração de um novo ser" (Schopenhauer)


                                      Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.... Frase de Machado de Assis.



                                   Eros e a afirmação da vontade de viver
                                             O amor segundo Schopenhauer

Convém não perder de vista que é a insignificância radical do indivíduo que está sob foco de nossas considerações. A mais enérgica, imperiosa e irresistível forma pela qual o homem e o animal afirmam a vontade de viver repousa na satisfação do instinto sexual. A compreensão da maneira como funciona esse instinto desvela, mais uma vez, a insignificância radical do indivíduo.
Partindo-se da premissa segundo a qual a natureza tem por essência a vontade de viver (e considerando-se que o homem é um ser integrante da natureza), segue-se que o objetivo primeiro do homem é a sua conservação. É importante que não percamos de vista essa inclinação premente da Vontade em Schopenhauer, já que se trata de uma característica que não encontrará acolhida na concepção nietzschiana de “vontade de poder”: a vontade no homem e nos animais não humanos é esforço para a conservação.  Segundo Schopenhauer, uma vez que o homem tenha garantido sua subsistência, sua conservação, ele quererá apenas garantir a propagação da espécie. Deve-se, no entanto, fazer aqui uma ressalva: na verdade, não é o homem que quer conscientemente a conservação da espécie, mas a vontade nele que a quer. Portanto, escreve Schopenhauer “(...) a natureza, que tem por essência a vontade de viver, impulsiona com todas as suas forças quer o animal, quer o homem a perpetuarem-se”. (ibid., p. 346).
Reencontramos expressa aí a insignificância radical do indivíduo: este não é mais do que um meio a serviço da Vontade para a satisfação de seu desígnio. A Vontade é completamente indiferente ao indivíduo.

Portanto, a natureza que tem por essência a vontade de viver, impulsiona com todas as suas forças quer o animal quer o homem a perpetuarem-se. Feito isso, ela tirou do indivíduo o que queria e fica bastante indiferente a sua morte, visto que para ela – que, semelhante à vontade de viver, apenas se ocupa com a conservação da espécie – o indivíduo é como nada. (ibid.).


Para Schopenhauer, os órgãos sexuais são a verdadeira sede da vontade de viver; nenhum outro órgão está tão submetido ao império da Vontade. Essa submissão à Vontade exclui toda a influência da inteligência. Por isso, os órgãos sexuais

(...) são o verdadeiro foco da vontade, o polo oposto ao cérebro, que representa a inteligência, a outra face do mundo, o mundo como representação. Eles são o princípio conservador da vida e que lhe assegura a infinitude do tempo; é por causa desta propriedade que eles eram adorados pelos gregos no falo, e pelos hindus na linga: símbolo duplo da afirmação da vontade, vemo-lo agora. Pelo contrário, a inteligência torna possível a supressão da vontade, a salvação pela liberdade, o triunfo sobre o mundo, o aniquilamento universal. (ibid., p. 346-347).



Schopenhauer atribui à inteligência um papel fundamental na libertação do homem da tirania do querer viver. Devemos, no entanto, protelar a consideração desse aspecto da doutrina schopenhaueriana, que será examinado quando nos ocuparmos da negação da vontade de viver.
A sexualidade é vista por Schopenhauer como uma ilusão vital, tese esta longamente desenvolvida em sua Metafísica do Amor. Ela é uma ilusão vital porque procura ardentemente, à revelia dos amantes, os atributos físicos indispensáveis à geração da criança, a qual deve reproduzir o modelo de espécie mais resistente e adequado à perpetuação da Vontade. Em outras palavras, os amantes creem que escolhem cuidadosamente seu amado, que é o amor apaixonado, desinteressado que os impulsiona nessa busca, mas, na verdade, Eros está a serviço da Vontade; é uma espécie de ardil desta, pelo qual ela quer realizar, através dos amantes, seu desígnio, qual seja, a perpetuação da espécie. Assim, para Schopenhauer, o homem é essencialmente instinto sexual que, tomando corpo, se esforçará, movido pelo apetite sexual, que é a própria essência do homem, para conservar a espécie.
O profundo pessimismo do qual a filosofia schopenhaueriana é um sintoma vigoroso calca-se sobre a convicção de que a essência íntima do universo é uma Vontade cega, absurda e irracional de viver, vontade esta que impulsiona todo o mundo e cada ser vivo a desejar incessantemente a vida. A vida do ser humano, especialmente, é um contínuo e incessante movimento de alternância de desejos que jamais logram satisfação plena e duradoura, do que resulta que a vida seja experienciada pelo homem como uma trama marcada por luta sem trégua, esforços inúteis, dores intermináveis, pálidas satisfações intermitentes e tédio profundo.
À tirania da Vontade, impulso cego sempre diligente em perpetuar a vida, nem mesmo Eros escapa. O amor é, para Schopenhauer, portanto, essencialmente instinto sexual, e dele a Vontade se serve como um estratagema para perpetuar a si própria (já que a Vontade é vontade de viver). Os protagonistas da relação amorosa acreditam estar vivendo livremente essa relação, à qual eles associam toda sorte de significados, anseios, valores, sem saberem que a natureza os usa como meros instrumentos para atingir seu fim fundamental: a conservação da espécie pela reprodução. Assim, o amor, tanto quanto o casamento, é um simples artifício empregado para um fim. Nem um nem outro comporta qualquer valor sagrado. Que o amor esteja submetido à Vontade cega, absurda e irracional o prova a loucura de que está impregnada a experiência amorosa. Assim, Schopenhauer manterá que o amor é realmente poderoso e astuto, pois sabe iludir o ser humano com promessa de felicidade duradoura, que jamais pode ser realizada.
O próprio prazer sexual é efêmero e insatisfatório, porquanto a união sexual não visa nunca a tornar felizes os amantes, mas tão só a possibilitar a geração de novas vidas, e com esta geração garantir a preservação da espécie. Schopenhauer, portanto, opera uma radical desmitificação do amor. Toda pessoa apaixonada é vítima de uma ilusão, por mais que creia no caráter sublime, etéreo, celeste, transcendente do amor, vive-o na ignorância a respeito de sua realidade: ele é instinto sexual a serviço da perpetuação da espécie. É através dele que se afirma de maneira mais enérgica e imperiosa a vontade de viver. Quando um indivíduo é tomado do instinto amoroso, é a vontade que expressa ardentemente seu desejo de se perpetuar num ser novo e distinto. Em A Vontade de Amar (2008, p. 16-17), assinala Schopenhauer:

O instinto do amor é meramente subjetivo, mas sabe iludi-los, ocultando-se sob a máscara de uma admiração objetiva. Por mais que haja o amor perfeito e desinteressado a alguém, o supremo fim é a geração de um novo ser. É prova disso não se satisfazer o amor com sua reciprocidade sentimental, mas ter necessidade da posse do gozo físico.


Conclui, pois, o filósofo  de modo severo e desalentado:


As almas nobres, os espíritos sentimentais, ternamente apaixonados, protestarão em vão contra o realismo rude de minha teoria; seus protestos carecem de razão. A constituição e o caráter da geração futura é uma finalidade do amor muito mais elevada que os sentimentos fantásticos e seus sonhos de idealismo. (ibid., p. 17, grifo nosso).


O frenesi de que é tomado um homem que encontra numa mulher o modelo vivo de seu ideal de beleza é tão só a forma pela qual se agita a índole da espécie, sempre ávida de perpetuar-se. Eis então, no excerto seguinte, como se nos apresenta outro aspecto da constante e insuperável ilusão a que estão destinados os amantes. Note-se que o amante nutre a crença ilusória de que a natureza trabalha para preservar a união dele com o/a amado/a; mas, na verdade, não é isso que acontece, segundo Schopenhauer:

É também uma ilusão a sua crença [do homem apaixonado] de que unicamente a posse de uma mulher, entre todas do mundo, lhe assegura uma ventura infinita. Entretanto, imaginando embora que seus esforços e trabalhos visam apenas lograr um gozo, na realidade trabalha só para perpetuar o tipo integral da espécie, criando um indivíduo determinado, que carece dessa união para existir. (ibid., 2008, p. 21).


O exame levado a efeito por Schopenhauer sobre a natureza do amor se inscreve num horizonte de desconstrução do ideal do amor romântico, ideal cujas raízes remontam ao cristianismo. Há, na crítica schopenhaueriana do amor, um verdadeiro desencantamento de Eros. Esse desencantamento pode ser interpretado como uma verdadeira dessacralização do amor, cujo resultado é devolver a Eros sua natureza instintiva, grosseira, que, ao longo de dois mil anos, foi encoberta por ideais que o imaginário coletivo não fez mais do que reproduzir. Mas, na verdade, a experiência não cansa de nos mostrar que tais ideais, que foram decisivos na construção imaginária do amor ocidental, são incompatíveis com a sua verdadeira natureza: a de ser instinto de reprodução, de procriação, e nada mais.
No passo a seguir, Schopenhauer nos faz ver que o destino de todo amante é a decepção, o desencanto. O amante se engana ao pretender colher do gozo amoroso as mais excelsas alegrias.


Todo amante experimenta, uma vez satisfeito o desejo, uma decepção singular. Surpreende-se de que sua paixão só lhe proporciona um prazer efêmero seguido de um rápido desencanto. (...) [Ele] não tem consciência de que a espécie é quem unicamente lucra com a satisfação de seu desejo; todos os sacrifícios que realizou voluntariamente, impelido pelo gênio da espécie, serviram para obter uma finalidade que não era sua. (ibid., p. 22).


Se nos for permitido empregar um vocábulo que, embora estranho ao pensamento schopenhaueriano, caracteriza bem a condição do amante, esse vocábulo é o adjetivo “alienado”. O amante, ao viver seu amor, o vive na inconsciência de ser um alienado, isto é, na ignorância do fato de que jamais é ele quem se realiza no amor, de que não é ele, amante, que realmente se beneficia do amor. Todo amante é, portanto, um ser alienado na medida em que não tem consciência de que não é sobre ele que recai a vantagem do amor, mas sobre a espécie, que garante, no ato da reprodução, sua perenidade.