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sexta-feira, 12 de junho de 2015

"A verdade última é desvelada lentamente por meio do desenrolar evolutivo da história das ideias" (Hegel)

                        
                                            
                                                 


                               A dialética hegeliana
                                e a crítica marxista

Neste texto, tenciono oferecer um recorte da dialética hegeliana, destacando suas propriedades, pressupostos e estrutura. Como seja meu objetivo oferecer um recorte, não estou interessado num exame exaustivo do tema, tampouco descerei a pormenores sobre o sistema hegeliano. A última seção deste texto é dedicada à contribuição da dialética marxista, que deve sua constituição e importância à dialética hegeliana.

1. Introdução

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um filósofo idealista alemão, nascido em Stuttgart, que elaborou um grande sistema metafísico que pretendia dar conta da lacuna entre aparência e realidade, negligenciada pelo idealismo transcendental de Kant. Hegel começa, portanto, de onde Kant parou.
Lembremos que, na metafísica de Kant, visto que a razão impõe certas categorias a priori à experiência, tudo que ela pode obter é um conhecimento sistemático dos fenômenos. A realidade por trás das aparências (do mundo fenomênico), que Kant denominou númeno, permanece incognoscível. Hegel, por seu turno, não aceitou o resultado a que chegou Kant. Para Hegel, é possível atingir a verdade absoluta, a qual se desvela lentamente no desenvolvimento evolutivo da história das ideias. Essa verdade absoluta é conceitual e não proposicional.
Hegel sustentou que a razão opera segundo um princípio fundamental que consiste em considerar falsas as contradições. Quando a razão está em face de uma ideia que envolve uma contradição, ela precisa levar adiante uma nova etapa no desenvolvimento do pensamento. A esse processo Hegel chamou dialética. Antes, porém, de atacarmos o tema da dialética hegeliana, considerem-se alguns aspectos do empreendimento filosófico de Hegel.
 A obra de Hegel é fortemente sistemática. Ela inclui, em um sistema integrado, todos os grandes temas e questões da tradição filosófica: ética, metafísica, filosofia da natureza, filosofia do direito, estética, etc. Para Hegel, atingir o saber absoluto é o objetivo final do desdobramento do espírito. A consciência crítica deve, pois, se auto-refletir, reconstruindo seu processo de formação.
Para Hegel, a reflexão filosófica deve começar pelo exame do processo de formação da consciência. Através da consciência crítica, de nossa situação histórica, podemos entender o próprio processo histórico, as leis da história, seu sentido e sua direção. Explicar a história é explicar o processo de desenvolvimento do Espírito. O Espírito é reflexão. O sujeito da história é o Espírito e seu objeto é também o Espírito. A cultura são as obras do Espírito, as quais, embora apareçam como coisas e fatos, são, na verdade, ideias, já que um Espírito produz ideias e não coisas.
Hegel entendia faltar ao sujeito kantiano uma imersão na história. O desdobramento do Espírito no mundo compõe a história. Hegel rejeita a visão dualista que assenta na oposição entre o fenômeno e o númeno. Nada deveria ficar de fora do escopo da atividade espiritual. Não se pode admitir a existência de algo externo ao Espírito. Hegel, portanto, rechaçou a noção de númeno e reelaborou a noção de fenômeno.
A Fenomenologia do Espírito tem como objetivo traçar a história do espírito humano, a elevação da consciência do conhecimento sensível ao saber absoluto.No Espírito Absoluto, o Espírito percebe-se idêntico a todo ser e qualquer realidade. Ele contempla-se a si mesmo. Fenomenologia, em Hegel, recobre o desenvolvimento do Espírito nas fases de produção do saber.
O espírito subjetivo é o espírito humano encerrado na subjetividade, a psicologia humana. O espírito objetivo exterioriza as categorias subjetivas. Dessa exteriorização resulta o mundo da moral, do direito, da história, da política, etc.
Para Hegel, o progresso da consciência é um produto da evolução histórica, cujo sentido só será conhecido no fim da história pelo filósofo que interioriza esse devir em seu pensamento.
Tudo é da ordem do Espírito: “o real é racional e o racional é real”, o que significa dizer que o real pertence ao domínio do Espírito, e o Espírito é a realidade. O Espírito, na medida em que se põe a conhecer as coisas, está construindo tudo o que existe; e, tomando consciência disso, reconhece-se como construtor de tudo, chegando a identificar-se com o próprio mundo. Esse é o saber absoluto. O saber absoluto é atingido quando o Espírito alcança o saber máximo de si mesmo. O conhecimento absoluto, segundo Hegel, é o “Espírito conhecendo-se a si próprio, sob a forma de Espírito”.
Em filosofia, o idealismo, movimento de que é representante Hegel, funda-se nas seguintes teses:

1a tese: Real é só o que tem um ser independente de qualquer outro;
2a tese: Aparência é  ser que depende de outro ser;
3a tese: Existência é o que pode ser imediatamente apresentado à consciência. Está no tempo e no espaço, se é físico; e , no tempo, se é psíquico;
4a tese: O real é somente o universal;
5a tese: O real não tem existência. O real é o universal e, portanto, um ser lógico;
6a tese: Existência é aparência;
7a tese: O real, sendo universal, é também pensamento, mente, inteligência, razão. Mas essa mente, pensamento, inteligência e razão é objetiva e abstrata; não existe na subjetividade;
8a tese: Este real é o ser último, princípio e fonte de todos os seres, o Absoluto, do qual o universo procede e pelo qual se explica;
9a tese: O real é o primeiro princípio como prioridade lógica e não cronológica.

Por fim, para Hegel, o ser é ser puro, é nenhuma determinação. O ser é idêntico a si mesmo. É imediatez indeterminada. O ser é a indeterminação pura e o vazio puro. O ser é o nada, nem mais nem menos que nada. A Ideia, por seu turno, é uma mente absoluta; é Deus em si mesmo. Essa mente absoluta preexiste ao universo. É Deus antes de se manifestar, aparecer. Sua manifestação é a Natureza, a antítese da Ideia. A Ideia é real, mas não existe. A Ideia precisa manifestar-se como Natureza para ter existência.
No Espírito, a Ideia não será apenas em si, mas também para si. O Homem é o elemento do Espírito; é ele que existe na natureza e, ao mesmo tempo, é um ser espiritual.

2. A lógica na filosofia de Hegel

Antes de nos debruçarmos sobre a dialética de Hegel, é indispensável compreender o que é a lógica para Hegel. Para ele, lógica é ontologia. É a ciência da ideia pura. Seu objeto é o pensar, mas o pensar como expressão da verdade. A lógica é o método próprio da filosofia. Ela não se ocupa de formas vazias, mas de conceitos densos e complexos. A lógica para Hegel é a ciência pura e ela tem como pressuposto a ciência do espírito desvelada, ou seja, a fenomenologia. Esta é responsável pela identidade entre pensar e ser.
A lógica hegeliana é uma lógica dialética alicerçada sobre a negação. A negação é tomada como positiva, no sentido de que ela não redunda numa nulidade, no nada abstrato. Essa negação não é negação absoluta, mas a negação de um conteúdo determinado por meio da afirmação de outro conteúdo determinado. A negação se resolve num resultado. Esse resultado é um conceito, mais rico do que o negado e do que aquele que lhe foi contraposto, visto que ele é a unidade das determinações (síntese) que se acham em um e outro, ou seja, no resultado e no conceito negado.
No início da lógica, o ser e o nada compõem uma unidade dialética. Nessa unidade, está a origem de todo o movimento que progride até seu ponto final, a saber, a Ideia Absoluta. A lógica assume como ponto de partida o puro ser, que é o conceito mais abrangente e mais abstrato, também mais vazio. O ser é completamente indeterminado e coincide com o nada. O ser e o nada é o mesmo. Na origem, a lógica encerra tanto o ser quanto o nada; mas o nada não é puro nada, é uma região do ser, um outro ser, portanto, o nada é.

3. A dialética hegeliana

A dialética de Hegel inicia-se com uma tese, que se toma, inicialmente, por verdadeira. A reflexão revela que há um ponto de vista, com igual pretensão de legitimidade, que se impõe como uma contradição da tese. Essa contradição é a antítese. Esses dois pontos de vista incompatíveis – tese e antítese – produzem uma nova posição conciliatória, chamada síntese. A síntese torna-se, então, tese, em face da qual, mais tarde, aparecerá uma antítese, à qual se seguirá uma nova síntese, e assim sucessivamente.
Esse processo gradual e necessário do pensamento é uma progressão em direção à verdade absoluta; no domínio da realidade, esse processo conduz ao Espírito Absoluto. O processo dialético de Hegel conclui-se com uma grandiosa concepção metafísica da mente universal.
Crítico da separação entre forma e conteúdo operada pela lógica clássica, Hegel defende que não há realidade objetiva independente do pensamento. Acrescenta que o pensamento é a realidade objetiva, e a realidade objetiva é o pensamento. Disso se depreende, com Hegel, que a lógica, sendo o estudo do pensamento, deve ocupar-se da realidade, mas não da realidade do mundo natural. Seu idealismo absoluto assenta na proposição de que a realidade se encontra no pensamento racional. A mente ou o pensamento racional é a realidade última. Portanto, a lógica é o estudo dessa realidade última em sua forma pura, a saber, abstraída das formas particulares que ela assume nas mentes finitas dos seres humanos ou no mundo natural.
Outro postulado do idealismo absoluto hegeliano, que têm importantes consequências para a lógica, consiste na assunção de que a razão molda o mundo, de sorte que o estudo do pensamento racional revelará, forçosamente, os princípios segundo os quais o mundo foi moldado.
A dialética hegeliana se apresenta sob seis formas:

1) dialética do ser: afirma-se a identidade entre o ser e o nada. O ser e o nada é o mesmo. Ser e nada é um;

2) dialética da essência: a essência é o ser enquanto aparecer indeterminado em si mesmo;
3) dialética do conceito: o conceito é a unidade dialética de ser e essência;

4) dialética da relação entre ser, essência e conceito: a essência nega o ser, o qual se torna aparência. O conceito é a negação da primeira negação; nesse sentido, é o ser recuperado, enquanto mediação e negatividade infinitas do mesmo em si próprio.

5) dialética do ser, da essência e do movimento do conceito:  o processo dialético do transformar-se em outro situa-se na esfera do ser e o aparecer em outro é o processo dialético na esfera da essência.O movimento do conceito é desenvolvimento, mediante o qual ele se torna aquilo que já está contido em si próprio.

6) dialética da ideia absoluta: a lógica representa o movimento próprio da ideia absoluta e lhe serve de expressão. A Ideia existe no pensamento puro, no qual a diferença é e permanece completamente transparente. Como expressão, a lógica é exterior à ideia e, por ser exterior, ela desaparece como expressão.

3.1.  A dialética do senhor e do escravo

A dialética serve a Hegel como método pelo qual ele lê e interpreta a história e explica a Modernidade como período em que a Europa conhece o avanço industrial, ao longo do qual se institui o poder republicano. Hegel se notabilizou também como o inventor da dialética e como filósofo que seria tanto influente no desenvolvimento do pensamento de Marx quanto “superado” pelo próprio Marx.
A fenomenologia deve mostrar que o desdobramento das formas da consciência de liberdade redunda no conhecimento real do que verdadeiramente é, ou seja, do Absoluto. A fenomenologia significa o aparecimento do espírito que percorre o mesmo caminho percorrido pela consciência do indivíduo, transitando do orgânico para o cultural. Quando o espírito se determina, surge a consciência de algo, consciência que é relação com algo. No momento em que o indivíduo se torna autoconsciente, toma consciência do outro. Esse momento é ilustrado pela dialética do senhor e do escravo.
O senhor, que dominou o escravo, acaba por se tornar ele mesmo escravo, porquanto, por ter-se acostumado a ser servido, é incapaz de fazer por si mesmo qualquer coisa. O senhor não se realiza como autoconsciente, porque necessita do outro, que é também autoconsciente, e, como o escravo, na relação com o senhor, se reduziu à coisa, a objeto, não é reconhecido pelo senhor como consciência. Hegel acredita que, através do trabalho, o escravo chega a formar consciência de si, tornando-se capaz de atribuir a si mesmo um significado.
Importa entender que a dialética do senhor e do escravo termina em frustração, uma vez que o senhor, tornando o escravo o seu objeto, perde aquilo de que precisa para continuar a se afirmar. Ele não poderia mais afirmar-se diante de um objeto que, como tal, é incapaz de reconhecer essa afirmação. Da perspectiva do escravo, que foi reduzido a objeto, o processo também se frustra; pois, na verdade, ele não se realiza completamente. O escravo sabe não ser completamente um objeto. Conquanto esteja alienado de sua atividade e do produto dela, visto que tudo se destina ao senhor, ele ainda se percebe como um espírito. Ora, é o escravo quem trabalha e quem transforma a natureza.
Para Hegel, liberdade é conhecimento de si pelo Espírito. Liberdade não é possibilidade de fazer o que se quer. A liberdade é liberdade da consciência, do Espírito. E o Espírito é tanto mais livre quanto alcança um alto nível de conhecimento de si. Ele é tanto mais livre quanto mais consciente está do fato de que suas decisões são as que estão em consonância com a razão – que é uma força necessária e universal. A própria consciência se vê como necessária e universal.

3.2. Demonstração do método dialético na história universal

Nesta seção, cumprir-me-á elucidar como o método dialético interpreta a história universal. Na obra Filosofia da História, Hegel demonstra que um imenso movimento dialético domina a história universal desde o mundo grego até o presente.
A Grécia era uma comunidade assentada sobre a moral tradicional; era uma sociedade harmoniosa na qual os cidadãos se identificavam com a comunidade e não pensavam em agir contrariamente a ela. Essa comunidade tradicional constitui o ponto de partida do movimento dialético, a saber, a tese.
O próximo movimento é o da revelação da inadequação da tese. Na Grécia antiga, é o questionamento de Sócrates que põe a nu tal inadequação. Os gregos apreciavam o pensamento independente; todavia, quem pensa de modo independente da comunidade é inimigo mortal da moral tradicional. Doravante, a comunidade baseada no costume entra em crise, em face do princípio do pensamento independente. Não resta senão o desenvolvimento desse princípio, para o que o surgimento do cristianismo foi determinante.
A Reforma acarreta o reconhecimento do direito supremo à consciência individual. A harmonia da sociedade grega é extinta em proveito da liberdade. Esse é o segundo momento do pensamento dialético. É o oposto ou a negação do primeiro. Trata-se da antítese.
Sucede que o segundo momento também se revela inadequado. Afinal, a liberdade é demasiado abstrata e estéril para servir de base para uma sociedade. O exercício dessa liberdade culminaria com o terror da Revolução Francesa. Nem a harmonia tradicional nem a liberdade abstrata do indivíduo são satisfatórias para o bem-estar social. Disso resulta o terceiro momento da dialética, que consiste na síntese.
Na visão de Hegel, em Filosofia da História, a síntese, no movimento dialético total, é a sociedade alemã de sua época. Hegel via essa sociedade como harmoniosa, porque era uma comunidade orgânica, sem deixar de preservar a liberdade individual; e a preservava, porque era uma sociedade que exibia uma organização racional.
Todo movimento dialético termina com uma síntese, mas nem toda síntese representa o fim do movimento dialético, tal como o pretendido por Hegel. A síntese, certamente, reconcilia tese e antítese, mas pode revelar-se unilateral em algum outro aspecto. Por isso, a síntese se tornará tese de um novo movimento dialético.
Cumpre ainda ilustrar o movimento da dialética hegeliana no âmbito do pensamento. Na obra intitulada de Lógica, o método dialético é aplicado às categorias abstratas com as quais pensamos. Hegel principia com o conceito mais indeterminado e vazio: o ser, ou a simples existência. O puro ser carece de objeto que o torne apreensível pelo pensamento. O ser, diz Hegel, é pura indeterminação e vacuidade. É inteiramente vazio. O ser, de fato, não é nada.
A primeira tese é, portanto, o ser. O ser se transforma em sua antítese, que é o nada. O ser e o nada são ambos opostos e o mesmo; sua verdade reside nesse movimento de atração e repulsão entre os dois. Esse movimento é o devir. Acompanhando o que se disse acerca da dialética hegeliana, até aqui, não será custoso concluir que o devir é a síntese.


4. O trabalho dialético: a contribuição marxista

A Hegel devemos a afirmação: “A verdade é o todo”. O que significa dizer que a verdade é o todo? Significa que, se nós não virmos a totalidade, incorreremos no descuido de atribuir um valor exagerado a uma verdade limitada. Isso estorvaria nossa compreensão de uma verdade mais geral.
A dialética marxista está assentada no pressuposto segundo o qual o conhecimento é totalidade; e a atividade humana em geral é um processo de totalização, que jamais atinge uma etapa definitiva.
Embora tenha sido influenciado pela filosofia de Hegel, Marx deve muito aos materialistas Epicuro e Demócrito. O materialismo clássico exerceu uma significativa influência no desenvolvimento de sua crítica ao pensamento de Hegel. Marx se propôs revisar a filosofia idealista de Hegel. Em vez de assumir que o Espírito é responsável pelo mundo, Marx sustentou que o que é determinante de cada época da história são os modos de produção. O modo de produção é a forma como o homem organiza o trabalho. A história, no quadro do materialismo histórico, é estudada tendo em conta a relação do homem com a necessidade de organizar o trabalho.
O modo de produção passa a ocupar o lugar do Espírito. Marx não se ocupou com o desdobramento da filosofia; preferiu mostrar o desenvolvimento da sociedade e da economia. A tese básica do materialismo histórico consiste em que as ideias são produto de mecanismos materiais. As ideias, as concepções, a filosofia, a religião, não passam de manifestações mentais dos homens, ligadas ao modo como eles organizaram a maneira de produzir e reproduzir a sociedade e suas vidas individuais. Marx acreditava que uma vida ética só poderia ser alcançada pela supressão, na vida social, da ideologia.
Volvendo nossa atenção para a contribuição marxista no domínio da dialética, é necessário ter em mente o fato de que o ser humano percebe ou cria objetos que são partes de uma totalidade. Em cada ação levada a efeito, o homem lida, inevitavelmente, com problemas interligados. Por conseguinte, a fim de resolvê-los, ele precisa formar certa visão de conjunto deles: é com base nessa visão de conjunto que podemos avaliar a dimensão de cada elemento do estado-estado-de-coisas sobre o qual nos debruçamos.
É evidente que a visão de conjunto é sempre provisória e nunca pode pretender esgotar a realidade a que se refere. A realidade é sempre mais complexa do que o conhecimento que dela podemos ter. Há sempre alguma coisa que escapa às nossas sínteses.
A síntese é, portanto, a visão de conjunto que permite ao ser humano descobrir a estrutura significativa da realidade com a qual se defronta, numa dada situação. A totalidade é essa estrutura significativa desvelada pela visão de conjunto.
No entanto, a totalidade é mais do que as partes que a compõem. A totalidade tira sua razão de ser do modo como estão articulados os seus elementos. Esse modo de articulação lhes dota de características que não possuiriam isoladamente. Não menos importante é reter que há totalidades mais abrangentes e totalidades menos abrangentes. Estas, evidentemente, integram-se às primeiras.
Do que precede, infere-se que trabalhar dialeticamente com o conceito de totalidade supõe sempre a necessidade de determinação do nível de totalização exigido pelo conjunto de problemas com os quais lidamos. Outrossim, é impreterível não esquecer que a totalidade é apenas um momento de um processo de totalização.
A dialética se define, assim, como uma maneira de pensar que se elabora em função da necessidade de reconhecimento da constante emergência do novo na realidade humana. A dialética nunca pode deixar de rever suas sínteses, sob pena de negar a si mesma.
Sem pretensão à exaustão, cumpre, no entanto, frisar que a modificação do todo é mais complicada que a modificação de cada uma das partes. Cada totalidade muda de um modo que lhe é específico. As condições de mudança variam em consonância com o caráter da totalidade e do processo específico do qual ela é um momento.
Veja-se um exemplo de como podemos operar com totalizações. Se eu estou interessado em estudar a realidade política atual do Brasil, o nível de totalização exigido nessa tarefa implicará a visão de conjunto da sociedade brasileira, à luz da qual se discriminam a sua economia, a sua história e as contradições atuais. Se, por outro lado, estou interessado em aprofundar minha análise, com vistas a compreender a situação do Brasil no âmbito mundial, necessitarei de um nível de totalização mais abrangente. Esse nível deverá encerrar uma visão de conjunto do capitalismo, da sua gênese, da sua evolução, dos seus conflitos no mundo contemporâneo, etc. Do que se expôs, segue-se que o conhecimento, nessa perspectiva dialética marxista, é sempre totalizante e que a atividade humana é um processo de totalização.
A dialética hegeliana (que, em grego, é diálogo, é pensamento e palavra (lógos) divididos em polos contraditórios) trata a história como processo temporal movido internamente por divisões e contradições, cujo sujeito é o Espírito como reflexão. A dialética hegeliana – insistimos – é idealista, porque seu sujeito é o Espírito, e seu objeto também é o Espírito. As obras do Espírito (a cultura),embora apareçam como fatos e coisas, são ideias. Um espírito produz ideias e não coisas.
O idealismo hegeliano assenta na proposição segundo a qual a história é o movimento de oposição, negação e conservação das ideias, e essas ideias são a unidade do sujeito e do objeto da história, que é o Espírito.

Marx, posto que conserve o conceito de dialética como movimento interno de produção da realidade, cujo motor é a contradição, legado por Hegel, demonstra que a contradição não é a do Espírito consigo,não é a de sua face subjetiva com sua face objetiva, não é a de sua exteriorização em obras e sua interiorização em ideias. Para Marx, a contradição se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais e essa contradição chama-se luta de classes.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

"A história de todas as sociedades que existiram até hoje é a história de lutas de classes" (Karl Marx )

                           
                         

                                                                                      


                                   Uma filosofia da práxis
                             Marxismo e materialismo histórico


1. Karl Marx


Karl Marx (1818-1883) foi um filósofo alemão, nascido em Trier, proveniente de uma família judia convertida ao protestantismo. Sua obra exerceu grande influência em sua época e um significativo impacto na formação do pensamento social e político contemporâneo. Seu pensamento se desenvolveu quando da ocasião em que entrou em contato com a obra dos economistas ingleses Adam Smith e David Ricardo e rompeu com o hegelismo e com a tradição idealista da filosofia alemã. Malgrado essa ruptura, o pensamento de Marx deve muito à filosofia de Hegel e ao materialismo de Feuerbach no qual foi buscar o conceito de alienação. Marx reconheceu em Feuerbach o mérito de ter superado a dialética idealista de Hegel, mas lhe censurou a incapacidade de analisar adequadamente a autoconsciência e suas projeções religiosas num quadro de referência que abrigasse a influência determinante de forças econômicas e sociais fundamentais. Para Marx, todo o materialismo ao longo da história do pensamento, inclusive o de Feuerbach, apresenta um problema básico: apreende a realidade, a sensibilidade sob a forma de intuição e não como atividade humana sensível, isto é, como práxis. O que Marx censurou propriamente em Feuerbach foi o não ter este apreendido a própria atividade humana como atividade objetiva. Segundo Marx, o materialismo de Feuerbach descuidou de considerar a práxis. Feuerbach fez abstração do curso da história, o que o levou a pensar tanto o sentimento religioso como algo em si ( e não como produto social, produto de condições históricas, materiais concretas) quanto a tomar o indivíduo humano de modo abstrato. Seu materialismo – tendo em conta a crítica que lhe desfere Marx -, é um materialismo intuitivo, porquanto não teria chegado a apreender a sensibilidade como atividade prática.
De Hegel Marx tomou emprestado o conceito de dialética; no entanto, censurou seu idealismo e sua noção de verdade cujo desdobramento culminaria com a assunção do Absoluto. Ao idealismo de Hegel, à luz do qual o sujeito da história é o Espírito que toma posse de si mesmo ao cabo de um processo que é a história de suas realizações, Marx opôs seu materialismo dialético, que assenta na proposição segundo a qual a contradição que move a história não é a contradição do Espírito com ele mesmo, não é a contradição de sua face subjetiva com sua face objetiva, mas a contradição que se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais. Essa contradição, de acordo com Marx, tem um nome. Chama-se luta de classes.  Os indivíduos só formam uma classe porque se veem obrigados a sustentar uma luta contra outra classe; do contrário, eles continuariam a se enfrentar uns aos outros com hostilidade em termos de competência. O sujeito da história não é o Espírito, consoante pensava Hegel, mas as classes sociais em luta. A história passa, então, a ser concebida não mais como história das realizações do Espírito, mas a história do modo como os homens reais produzem suas condições reais de existência.
Foi, portanto, a partir tanto da ruptura com a tradição idealista hegeliana, na esteira da qual o real era compreendido a partir da ideia, quanto da revisão crítica do materialismo intuitivo de Feuerbach, cujo problema fundamental foi não considerar a práxis histórica, que se desenvolveu o chamado materialismo histórico, termo de que fez uso Engels (posteriormente Lênin) para designar o método de interpretação histórica proposto por Marx. Antes de considerar, em linhas gerais, esse método, cumpre dar a conhecer quem foi Friedrich Engels, principal colaborador e amigo íntimo de Marx.


2. Friedrich Engels

Engels (1820-1895) também era alemão e também sofreu influência do hegelismo. Tendo estudado na Universidade de Berlim, lá conheceu o trabalho dos “jovens hegelianos”. Engels não foi só um colaborador teórico de Marx, mas também seu amigo mais íntimo, tendo-o assistido, inclusive, financeiramente. Ambos escreveram quase sempre juntos, o que torna difícil distinguir, entre as principais teses do marxismo, quais são as ideias de Marx e quais são as de Engels.
Admite-se, contudo, que o materialismo histórico é um produto típico da pena de Engels, muito embora tenha grande importância no desenvolvimento da filosofia marxista.


3. Materialismo histórico

Impõe-se-me esclarecer agora o materialismo histórico. Esse método recobre a interpretação dos acontecimentos históricos como fundados em fatores econômico-sociais (técnicas de trabalho e de produção, relações de trabalho e de produção). O materialismo histórico, endossando a perspectiva antropológica à luz da qual a natureza humana é constituída por relações de trabalho e de produção, estabelecidas pelos homens entre si com vistas à satisfação de suas necessidades, está calcado sobre a tese de que as formas históricas assumidas pelas sociedades humanas dependem das relações econômicas que predominam durante as fases que conformam seu processo de desenvolvimento.
A dimensão histórica do materialismo repousa, portanto, sobre o fato de ele assumir a perspectiva  segundo a qual a produção historicamente diversa da vida material condiciona, em última instância, a produção da vida social, política e espiritual. É preciso, no entanto, salientar que só relativamente as condições materiais são determinantes, porque elas próprias são produtos da ação histórica. Também só são materiais em um sentido muito relativo, porque a prática que as modifica na história é condicionada não só pela base material da sociedade, mas também por fatores ideais.
O materialismo histórico se opõe a toda forma idealista de pensamento, ou seja, a toda forma de pensamento que pretende dar primado teórico ao “Pensamento”, à “Razão”, ao “Espírito”, tomados esses conceitos como realidade primeira, em detrimento das relações sociais, particularmente as relações sociais de produção. À luz desse método de análise e de interpretação do real, a natureza humana e as formas históricas das sociedades são consideradas relativamente às relações de trabalho concretas, diversas e mutáveis. Por conseguinte, não admite que o “Espírito” possa ser pensado como o “Sujeito” da história ou o princípio organizador da totalidade social.
A dimensão histórica do materialismo repousa sobre a assunção de que a produção historicamente diversa da vida material condiciona, em última instância, a produção da vida social, política e espiritual. O materialismo histórico vê a História à luz da articulação de duas dimensões, a saber, a da superestrutura e a da infraestrutura, uma das quais condiciona a outra. A superestrutura compreende o domínio dos fenômenos intelectuais, artísticos, políticos e jurídicos. Nela devemos situar a ideologia. A infraestrutura é a base econômica da sociedade. O materialismo histórico preconiza, portanto, que a superestrutura é determinada, em última instância, pela infraestrutura. Assim, os fatores econômicos constituem a realidade primeira. A ideia de materialismo, neste quadro de referência, sublinha o fato de se conceber a infraestrutura, a dimensão material, como o fundamento. Ele é histórico, porque entende que a formação da infraestrutura e do modo de produção é historicamente determinada. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual em geral.
Não obstante, é sempre importante ter em conta o fato de que a infraestrutura, embora determine, em última instância, a superestrutura, não é o domínio exclusivamente determinante. Destarte, a produção das ideias e das representações incide sobre a atividade material do homem, e os fatores superestruturais podem tornar-se determinantes da forma das lutas históricas.


4.  Marxismo

Entende-se por marxismo o conjunto de ideias, de conceitos, de teses, de propostas de metodologia científica e de estratégia política e, de modo geral, a concepção de mundo, da vida social e política, considerada como um corpo homogêneo de proposições que viriam a constituir uma verdadeira e autêntica “doutrina”, que se pode deduzir das obras de Karl Marx e Friedrich Engels.
O próprio termo marxismo, assim compreendido, dá margem à tendência de distinguir o pensamento de Marx do pensamento de seu amigo e colaborador Engels. É possível também identificar diversas formas de marxismo, seja em razão das diferentes interpretações do pensamento desses autores, seja em razão de juízos de valor com base nos quais haveria um marxismo que se deve aceitar e outro que se deve rejeitar.

Doravante, descerei a pormenores sobre os conceitos da doutrina marxista. Começarei por esclarecer o método dialético de Marx; em seguida, apresentarei e definirei os conceitos de modo de produção e meios de produção; posteriormente, serão contemplados, nesta ordem, os conceitos de ideologia, trabalho e valor, mercadoria, mais-valia, fetichismo de mercadoria, alienação  e práxis. Na sexta seção deste trabalho, vou apresentar, em linhas gerais, a visão de Engels sobre o Estado, situando-a no lugar de confronto com a visão hegeliana de Estado. Na sétima e última seção, apresento, também em linhas gerais, a dialética de Hegel, tendo em vista sua influência no pensamento de Marx.


5.  A dialética marxista

5.1. Modo de produção e meios de produção

Desde já, urge frisar que a dialética de Marx é a antítese da dialética de Hegel. A dialética de Marx se pretende crítica e revolucionária; ela se apresenta numa forma “racional” e não, como a de Hegel, mistificada. A dialética marxista está calcada sobre concepção de realidade como uma totalidade complexa e marcada por contradições. Ela rejeita as abstrações dos economistas clássicos, que, conquanto acreditassem haver uma oposição fundamental entre o consumo e a produção, não se aperceberam de que essa oposição era apenas aparente e de que, em essência, o consumo e a produção são indissociáveis.
Se, por um lado, Hegel transformou em sujeito autônomo a ideia, entendida como o demiurgo do real, o qual se reduziu a uma manifestação daquela; por outro lado, para Marx, a ideia ou o ideal não é nada mais que o material transposto e traduzido na consciência do homem. Por conseguinte, o motor da dialética materialista é a forma determinada das condições de produção e reprodução da existência social dos homens, forma que é sempre determinada por uma contradição interna, isto é, pela luta de classes ou pelo antagonismo entre proprietários das condições de trabalho e não-proprietários (trabalhadores assalariados, escravos, etc.).
A matéria de que fala Marx é, portanto, a matéria social, ou seja, as relações sociais entendidas como relações de produção, o modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições materiais de existência e o modo como eles pensam e interpretam essas relações. A matéria do materialismo histórico-dialético são os homens produzindo, em condições determinadas, seu modo de se reproduzirem como homens e de organizarem suas vidas como homens.
De acordo com essa perspectiva, o sujeito da história não é o Espírito (Hegel), mas as classes sociais em luta. As classes sociais não são ideias, mas relações sociais determinadas pelo modo como os homens, na produção de suas condições materiais de existência, se dividem no trabalho, instauram formas determinadas de propriedade, reproduzem e legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio das instituições sociais e políticas. As classes sociais também são determinadas pelo modo como os homens, em suas condições materiais de existência, representam para si mesmos o significado daquelas instituições, mediante sistemas determinados de ideias que exprimem e escondem o significado real de suas relações. Esses sistemas de ideias cuja função é mascarar o significado real de suas relações sociais materialmente determinadas são chamados de ideologia. Antes de considerar o conceito de ideologia, necessário é dar a conhecer o significado dos conceitos de modo de produção e meios de produção.
Modo de produção designa a relação determinada que as forças produtivas e as relações sociais mantêm entre si. As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas. No momento em que desenvolvem novas forças produtivas, os homens mudam seu modo de produção, e, mudando seu modo de produção, a maneira de ganhar a vida, eles mudam também todas as relações sociais. O modo de produção, portanto, na visão histórica da dialética marxista, determina a forma das relações sociais. Os meios de produção, a seu turno, recobrem o conjunto de ferramentas, instrumentos, terra, maquinaria indispensáveis ao processo de trabalho e que constitui a propriedade do capitalista.
Na dialética materialista, a produção é imediatamente consumo; e o consumo, imediatamente produção. Um é imediatamente o oposto do outro.


5.2. Ideologia

Em Marx, a ideologia é uma ilusão necessária à dominação de classe. Por ilusão, deve-se entender abstração e inversão. A abstração é o conhecimento de uma realidade tal como se oferece à nossa experiência imediata, como algo dado, feito e acabado, que se presta à classificação, à ordenação, sem que nunca nos indaguemos como tal realidade foi concretamente produzida. Uma realidade é concreta porque mediata, ou seja, porque produzida por um sistema determinado de condições que se articulam internamente de maneira necessária. Por inversão deve-se entender o fato de se tomar o resultado de um processo como se fosse o seu começo, de se tomar os efeitos pelas causas, as consequências pelas premissas, o determinado pelo determinante. Assim, a ideologia, porque é abstração e inversão, permanece sempre no plano imediato do aparecer. Em suma, a ideologia, segundo Marx, é o modo ilusório (ou seja, abstrato e invertido) pelo qual os homens representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Por influência da ideologia, a relação entre o real e a ideia aparece para a consciência de modo invertido: não mais o real justifica a ideia, mas, ao contrário, a ideia é que explica o real.


5.3.  Trabalho e valor

A condição sine qua non da história é a satisfação das necessidades. Para satisfazê-las, os homens constroem os meios necessários. Atingindo o seu fim, os homens modificam a própria natureza. Ao modificar a natureza pelo trabalho, os homens modificam, pelo trabalho, a si mesmos. Numa primeira aproximação, o conceito de práxis, no interior da teoria marxista, recobre a relação dialética entre o homem, o trabalho e a natureza. Retomarei esse conceito na seção seguinte. Por ora, descerei a considerações sobre os conceitos de trabalho e valor.
Todo processo de trabalho produz um valor, que é, inicialmente, um valor de uso, ou seja, algo útil à vida humana, passível de ser trocado por outro valor de uso (por exemplo, uma camisa por um sapato). Assim, a utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. O valor de troca é, por seu turno, uma forma que a mercadoria assume enquanto relação quantitativa, isto é, enquanto proporção na qual se dá a troca entre os valores de uso. Ele surge com a divisão social do trabalho e como tal tende a eliminar a dimensão de utilidade do produto do trabalho e a reduzir o próprio trabalho a uma dimensão abstrata, indiferenciada.
O valor de troca do produto do trabalho não reside no objeto produzido, tampouco na sua utilidade. Na relação de troca, esse valor aparece como independente do valor de uso. O que torna possível a troca não é a utilidade, mas o fato de os objetos serem produtos do trabalho. A fim de dilucidar a distinção entre esses dois conceitos, é imperioso considerar a gênese da mercadoria.
O que é a mercadoria? A mercadoria não é a coisa em si, mas um valor. Como valor de uso, vale por sua utilidade; como valor de troca, vale pelo preço no mercado. O valor de troca comanda o valor de uso.
Acontece que o valor de troca não é determinado pelo preço como aparece à primeira vista. O valor da mercadoria não é fixado no momento em que ela entra em circulação no mercado e é consumida. Seu valor é produzido em outro momento e se forma pela quantidade de tempo de trabalho necessário para produzi-la. Esse tempo inclui não só o tempo gasto diretamente na fabricação da mercadoria, mas inclui também o tempo para produzir as máquinas, o tempo para extrair e transportar a matéria-prima, etc. Esses tempos são tempos de trabalho da sociedade.
O preço da mercadoria também encerra o salário pago pelo tempo de trabalho do trabalhador que fabrica essa mercadoria, pagamento que é chamado de custo de produção e que é o suficientemente necessário para que ele se alimente, se aloje, se vista, se transporte e se reproduza, gerando filhos para o mesmo trabalho de produzir mercadorias. A mercadoria é, portanto, trabalho social concentrado e não uma coisa.
A mercadoria, enquanto problema teórico, demanda um pouco mais de atenção. Situando-a no modo de produção capitalista, deve-se dizer que o dinheiro também é uma mercadoria. Cada modo de produção (antigo, escravagista, asiático, feudal e capitalista) é constituído pelas forças produtivas e pelas relações sociais de produção a elas relacionadas e cujo epicentro é um determinado tipo de propriedade dos meios de produção. O modo de produção capitalista se caracteriza pela separação entre o trabalho livre e a propriedade dos meios de produção, separação que se acompanha da produção da mais-valia (conceito a que destinarei uma seção mais adiante) e da formação do próprio capital. Nesse contexto, surgem as novas classes sociais e as formas de relação entre elas: o proletariado, expropriado dos meios de produção (inclusive da terra) que, para viver, precisa vender sua força de trabalho, que não é senão uma mercadoria; e o capitalista, proprietário dos meios de produção e dono do capital. Retomarei o tema da mercadoria, quando me debruçar sobre o conceito de fetichismo da mercadoria.
Convém, agora, definir o termo capital. O capital se constitui com a condição de o possuidor do dinheiro poder trocá-lo pela capacidade de trabalho de outrem, que é mercadoria. Portanto, é necessário que a capacidade de trabalho seja colocada à venda, como mercadoria, no processo de circulação, para que o dinheiro se transforme em capital.
Para sobreviver, o proletário precisa vender sua força de trabalho, a qual passa a ser encarada, na relação antagônica e desigual entre proletariado e burguesia, um valor de troca, uma mercadoria. No domínio do aparecer social, o salário do trabalhador se apresenta como valor de seu trabalho, isto é, como uma certa quantia de dinheiro paga por uma quantidade de trabalho equivalente. Deveras, o que se dá não é isso; e para entendermos o que se passa nessa relação – que, conforme veremos, é de expropriação do proletário pelo capitalista- , devemos compreender o conceito de mais-valia, tema de nossa próxima subseção.


5.4. Mais-valia

No circuito capitalista do dinheiro, cuja configuração supõe a relação dinheiro-mercadoria-dinheiro, a mercadoria comprada é a força de trabalho, a única mercadoria cujo consumo produz um outro valor de uso (o produto do trabalho). A diferença entre o valor da força de trabalho e o valor do produto do trabalho constitui a mais-valia, sem a qual não existiria o capitalismo.
A mais-valia corresponde a uma certa quantidade de trabalho excedente não-pago. A mais-valia é o lucro do capitalista. Para os trabalhadores, essa quantidade de trabalho não remunerado apresenta-se como o mais-trabalho que suplanta a quantidade de trabalho imediatamente necessária à manutenção da condição vital deles. A acumulação da mais-valia está na origem do capital. Graças à mais-valia, a mercadoria não é um valor de uso ou um valor de troca qualquer, mas um valor capitalista (eis a síntese dialética). Dialeticamente, o valor de uso se apresenta como a tese, o valor de troca como a antítese e, finalmente, o valor capitalista é a síntese.


5.5.  Fetichismo da mercadoria

O conceito de fetichismo da mercadoria prende-se intimamente ao conceito de alienação; mas desses conceitos tratarei em seções separadas.
Em vez de a mercadoria aparecer como resultado de relações sociais enquanto relações de produção, ela aparece como um bem que se compra e se consome. Aparece como valendo por si mesma e em si mesma, como se derivasse de um dom natural das coisas. As coisas-mercadoria começam, pois, a se relacionar umas com as outras como se fossem sujeitos sociais dotados de vida própria. A mercadoria passa a ter vida própria, indo da fábrica à loja, da loja a casa, como se caminhasse sozinha.
O fetichismo da mercadoria desdobra-se, por conseguinte, em dois momentos. O primeiro momento do fetichismo é o fato de a mercadoria ser um fetiche, uma coisa que existe em si e por si mesma. O segundo momento diz respeito ao fato de a mercadoria, à semelhança do fetiche religioso, exercer poder sobre seus crentes ou adoradores, dominando-os como uma força estranha. O mundo transforma-se numa grande fantasmagoria.


5.6. Alienação

Retomando-se a ideia de que a mercadoria exerce um poder sobre os homens e os domina como uma força estranha, tornar-se-á mais fácil compreender o conceito de alienação. A alienação é a condição em que se encontram tanto os trabalhadores como a própria atividade de trabalho, no modo de produção capitalista, quando eles vendem sua força de trabalho e quando se dá a separação entre eles, trabalhadores,  e o produto do seu trabalho. O trabalho, no modo de produção capitalista, é trabalho alienado. Vejamos o porquê.
A alienação é, segundo Marx, uma forma de relação historicamente determinada, ou seja, típica da relação capital-trabalho assalariado. Na alienação, o trabalho torna-se trabalho forçado, o homem e a natureza se separam completamente, e os trabalhadores não se reconhecem mais no produto de seu trabalho. É preciso sublinhar este fato, que caracteriza fundamentalmente a condição de alienação: o trabalhador não se reconhece mais no produto de seu trabalho. Segundo Marx, porém, a alienação não aparece apenas no resultado, mas também no interior da própria atividade produtiva. Assim, o trabalho é exterior ao trabalhador, ou seja, ele não pertence à sua essência. O trabalhador não se afirma em seu trabalha, mas nega-se. Essa é a condição do trabalhador alienado: a de um trabalhador que, negando-se no trabalho, sente-se insatisfeito, infeliz, mortificado. Tudo o que, na verdade, constitui condição e resultado da natureza interior do homem (a criatividade, o trabalho) aparece na sociedade burguesa e na sua economia como esvaziamento e alienação.
No contexto da luta de classes, as ideologias funcionam como o cimento da sociedade, na medida em que produzem um senso comum que serve para mascarar a luta de classes. A classe que exerce o poder material ou o domínio material numa dada época também exerce o domínio espiritual. As ideologias, forjadas pelas classes dominantes, têm como função básica ocultar as condições de dominação vigente, mas também podem servir como um conjunto de referências para a tomada de consciência. A produção das ideologias é indissociável do processo de vida real, ou seja, do processo de produção material da vida real. A produção das ideias, das representações, da consciência está, em primeiro lugar, entrelaçada com a atividade material e com as relações dos homens.
O trabalho alienado é aquele no qual o produtor não se reconhece no produto de seu trabalho, porque as condições desse trabalho, suas finalidades reais e seu valor não dependem do próprio trabalho, mas do proprietário das condições do trabalho. Constituem três os fatores que tornam as atividades humanas acontecimentos independentes dos homens: alienação, reificação e fetichismo. Esses fatores estão na base de um processo fantástico pelo qual as atividades humanas começam a realizar-se como se fossem autônomas ou independentes dos homens, passando, assim, a dirigir e comandar suas vidas, sem que eles possam exercer sobre elas controle.
Por fim, cumpre dizer que as ideias originam-se da atividade material, mas essas ideias representam o modo como a realidade das condições materiais aparece na experiência imediata dos homens.


5.7. Práxis

Vimos que a práxis pode ser definida, num primeiro momento, como a relação dialética entre homem, trabalho e natureza. Na práxis, o homem modifica a natureza por meio do trabalho e, no trabalho, modifica a si mesmo. Há, contudo, outro significado de práxis cuja elucidação se faz necessária. Quando consideramos a práxis na sua relação com a filosofia marxista, isto é, quando a situamos no interior do quadro teórico-metodológico do marxismo, a práxis é uma compreensão teórica da realidade, é sua explicação e transformação. A práxis constitui, portanto, o elemento vital da constituição do marxismo. Apresenta-se como núcleo do pensamento de Marx.
Relembremos aqui a famosa passagem de Marx – “O que os filósofos fizeram até o momento foi interpretar o mundo; o que interessa, porém, é transformá-lo”, a fim de que entendamos a práxis como crítica e a filosofia que subjaz a ela como crítica do real. A filosofia não tem em si o poder de transformar o real; por isso, precisa realizar-se por meio da práxis. A passagem da crítica ao real, ou seja, do plano teórico ao prático, é a revolução. A práxis é uma atividade transformadora e emancipadora. Nesse sentido, o marxismo se apresenta como uma filosofia da ação, uma filosofia da práxis.


6. O Estado

Segundo Engels, o Estado constitui o primeiro poder ideológico. No capitalismo, ele cumpre funções que garantem o bom funcionamento da economia e que atendam aos interesses da classe dominante. O Estado destina-se, especialmente, a defender a propriedade privada.
Na visão de Engels, o Estado, criado para defender os interesses comuns a toda a sociedade, tornou-se independente dela, tanto mais se foi convertendo em um instrumento de poder de uma determinada classe sobre outra. O Estado está a serviço das classes dominantes, na medida em que lhes serve de instrumento para o estabelecimento e legitimação de sua dominação. As classes dominantes se servem dos aparelhos do Estado para instaurar sua dominação e para garantir seus privilégios.


7. A dialética de Hegel: um diálogo entre Hegel e Marx

Sem perder de vista a questão da concepção do Estado à luz do marxismo, tema que continuo a desenvolver nesta última seção, trago à baila como a dialética se desenvolveu no pensamento de Hegel, tendo sempre em vista o confronto com a dialética marxista.
Começo por notar que o termo dialética (diálogo, em grego, ou o pensamento e a palavra (logos) divididos em polos contraditórios), em Hegel, consiste num método de interpretação da História, à luz do qual ela é um processo temporal movido internamente pelas divisões ou negações (contradições), cujo sujeito é o Espírito como reflexão.
A dialética hegeliana é, portanto, uma dialética idealista porque seu sujeito é o Espírito e seu objeto também é o Espírito. As obras do Espírito (a cultura), embora apareçam como fatos e coisas, são ideias, pois um espírito não produz coisas nem é coisa, mas produz ideias e é ideia.
O idealismo hegeliano assenta na proposição segundo a qual a história é o movimento de oposição, negação e conservação das ideias, e essas ideias são a unidade do sujeito e do objeto da história, que é Espírito. O Espírito é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da história.
O que é o Estado, para Hegel? O Estado sintetiza, numa realidade coletiva, a totalidade dos interesses individuais, familiares, sociais, privados e públicos. Segundo Hegel, somente no Estado o cidadão torna-se verdadeiramente real e somente nele define-se a existência social e moral dos homens. O Estado torna-se, assim, o Espírito Objetivo.
No idealismo hegeliano, o Estado é uma comunidade, mas difere da família e das classes sociais, porque não possui aparentemente nenhum interesse particular, mas, ao contrário, representa apenas os interesses comuns a todos. O Estado não é um dado imediato da vida social, mas um produto da sociedade concebida como Espírito Subjetivo que busca tornar-se Espírito Objetivo. O Estado é a Ideia política, por excelência, uma das mais altas sínteses do Espírito.
Engels, naturalmente, discordará de Hegel, sobretudo no tangente à ideia de que o Estado não tem interesse particular. E Marx, embora conserve o conceito de dialética, legado de Hegel, como movimento interno de produção da realidade cujo motor é a contradição, rompe com o pensamento de Hegel, ao demonstrar que a contradição não é a do Espírito com ele mesmo, não é a contradição de sua face subjetiva com sua face objetiva, não é a contradição de sua exteriorização em obras com sua interiorização em ideias. Para Marx, a contradição se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais, e essa contradição – reitero – chama-se luta de classes.

Hegel concebia a história como o processo pelo qual o Espírito toma posse de si mesmo, como história das realizações do Espírito; Marx, ao contrário, rejeita essa visão idealista, insistindo em que a história é a história do modo como os homens reais produzem suas condições reais de existência.