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segunda-feira, 17 de novembro de 2014

"A história de todas as sociedades que existiram até hoje é a história de lutas de classes" (Karl Marx )

                           
                         

                                                                                      


                                   Uma filosofia da práxis
                             Marxismo e materialismo histórico


1. Karl Marx


Karl Marx (1818-1883) foi um filósofo alemão, nascido em Trier, proveniente de uma família judia convertida ao protestantismo. Sua obra exerceu grande influência em sua época e um significativo impacto na formação do pensamento social e político contemporâneo. Seu pensamento se desenvolveu quando da ocasião em que entrou em contato com a obra dos economistas ingleses Adam Smith e David Ricardo e rompeu com o hegelismo e com a tradição idealista da filosofia alemã. Malgrado essa ruptura, o pensamento de Marx deve muito à filosofia de Hegel e ao materialismo de Feuerbach no qual foi buscar o conceito de alienação. Marx reconheceu em Feuerbach o mérito de ter superado a dialética idealista de Hegel, mas lhe censurou a incapacidade de analisar adequadamente a autoconsciência e suas projeções religiosas num quadro de referência que abrigasse a influência determinante de forças econômicas e sociais fundamentais. Para Marx, todo o materialismo ao longo da história do pensamento, inclusive o de Feuerbach, apresenta um problema básico: apreende a realidade, a sensibilidade sob a forma de intuição e não como atividade humana sensível, isto é, como práxis. O que Marx censurou propriamente em Feuerbach foi o não ter este apreendido a própria atividade humana como atividade objetiva. Segundo Marx, o materialismo de Feuerbach descuidou de considerar a práxis. Feuerbach fez abstração do curso da história, o que o levou a pensar tanto o sentimento religioso como algo em si ( e não como produto social, produto de condições históricas, materiais concretas) quanto a tomar o indivíduo humano de modo abstrato. Seu materialismo – tendo em conta a crítica que lhe desfere Marx -, é um materialismo intuitivo, porquanto não teria chegado a apreender a sensibilidade como atividade prática.
De Hegel Marx tomou emprestado o conceito de dialética; no entanto, censurou seu idealismo e sua noção de verdade cujo desdobramento culminaria com a assunção do Absoluto. Ao idealismo de Hegel, à luz do qual o sujeito da história é o Espírito que toma posse de si mesmo ao cabo de um processo que é a história de suas realizações, Marx opôs seu materialismo dialético, que assenta na proposição segundo a qual a contradição que move a história não é a contradição do Espírito com ele mesmo, não é a contradição de sua face subjetiva com sua face objetiva, mas a contradição que se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais. Essa contradição, de acordo com Marx, tem um nome. Chama-se luta de classes.  Os indivíduos só formam uma classe porque se veem obrigados a sustentar uma luta contra outra classe; do contrário, eles continuariam a se enfrentar uns aos outros com hostilidade em termos de competência. O sujeito da história não é o Espírito, consoante pensava Hegel, mas as classes sociais em luta. A história passa, então, a ser concebida não mais como história das realizações do Espírito, mas a história do modo como os homens reais produzem suas condições reais de existência.
Foi, portanto, a partir tanto da ruptura com a tradição idealista hegeliana, na esteira da qual o real era compreendido a partir da ideia, quanto da revisão crítica do materialismo intuitivo de Feuerbach, cujo problema fundamental foi não considerar a práxis histórica, que se desenvolveu o chamado materialismo histórico, termo de que fez uso Engels (posteriormente Lênin) para designar o método de interpretação histórica proposto por Marx. Antes de considerar, em linhas gerais, esse método, cumpre dar a conhecer quem foi Friedrich Engels, principal colaborador e amigo íntimo de Marx.


2. Friedrich Engels

Engels (1820-1895) também era alemão e também sofreu influência do hegelismo. Tendo estudado na Universidade de Berlim, lá conheceu o trabalho dos “jovens hegelianos”. Engels não foi só um colaborador teórico de Marx, mas também seu amigo mais íntimo, tendo-o assistido, inclusive, financeiramente. Ambos escreveram quase sempre juntos, o que torna difícil distinguir, entre as principais teses do marxismo, quais são as ideias de Marx e quais são as de Engels.
Admite-se, contudo, que o materialismo histórico é um produto típico da pena de Engels, muito embora tenha grande importância no desenvolvimento da filosofia marxista.


3. Materialismo histórico

Impõe-se-me esclarecer agora o materialismo histórico. Esse método recobre a interpretação dos acontecimentos históricos como fundados em fatores econômico-sociais (técnicas de trabalho e de produção, relações de trabalho e de produção). O materialismo histórico, endossando a perspectiva antropológica à luz da qual a natureza humana é constituída por relações de trabalho e de produção, estabelecidas pelos homens entre si com vistas à satisfação de suas necessidades, está calcado sobre a tese de que as formas históricas assumidas pelas sociedades humanas dependem das relações econômicas que predominam durante as fases que conformam seu processo de desenvolvimento.
A dimensão histórica do materialismo repousa, portanto, sobre o fato de ele assumir a perspectiva  segundo a qual a produção historicamente diversa da vida material condiciona, em última instância, a produção da vida social, política e espiritual. É preciso, no entanto, salientar que só relativamente as condições materiais são determinantes, porque elas próprias são produtos da ação histórica. Também só são materiais em um sentido muito relativo, porque a prática que as modifica na história é condicionada não só pela base material da sociedade, mas também por fatores ideais.
O materialismo histórico se opõe a toda forma idealista de pensamento, ou seja, a toda forma de pensamento que pretende dar primado teórico ao “Pensamento”, à “Razão”, ao “Espírito”, tomados esses conceitos como realidade primeira, em detrimento das relações sociais, particularmente as relações sociais de produção. À luz desse método de análise e de interpretação do real, a natureza humana e as formas históricas das sociedades são consideradas relativamente às relações de trabalho concretas, diversas e mutáveis. Por conseguinte, não admite que o “Espírito” possa ser pensado como o “Sujeito” da história ou o princípio organizador da totalidade social.
A dimensão histórica do materialismo repousa sobre a assunção de que a produção historicamente diversa da vida material condiciona, em última instância, a produção da vida social, política e espiritual. O materialismo histórico vê a História à luz da articulação de duas dimensões, a saber, a da superestrutura e a da infraestrutura, uma das quais condiciona a outra. A superestrutura compreende o domínio dos fenômenos intelectuais, artísticos, políticos e jurídicos. Nela devemos situar a ideologia. A infraestrutura é a base econômica da sociedade. O materialismo histórico preconiza, portanto, que a superestrutura é determinada, em última instância, pela infraestrutura. Assim, os fatores econômicos constituem a realidade primeira. A ideia de materialismo, neste quadro de referência, sublinha o fato de se conceber a infraestrutura, a dimensão material, como o fundamento. Ele é histórico, porque entende que a formação da infraestrutura e do modo de produção é historicamente determinada. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual em geral.
Não obstante, é sempre importante ter em conta o fato de que a infraestrutura, embora determine, em última instância, a superestrutura, não é o domínio exclusivamente determinante. Destarte, a produção das ideias e das representações incide sobre a atividade material do homem, e os fatores superestruturais podem tornar-se determinantes da forma das lutas históricas.


4.  Marxismo

Entende-se por marxismo o conjunto de ideias, de conceitos, de teses, de propostas de metodologia científica e de estratégia política e, de modo geral, a concepção de mundo, da vida social e política, considerada como um corpo homogêneo de proposições que viriam a constituir uma verdadeira e autêntica “doutrina”, que se pode deduzir das obras de Karl Marx e Friedrich Engels.
O próprio termo marxismo, assim compreendido, dá margem à tendência de distinguir o pensamento de Marx do pensamento de seu amigo e colaborador Engels. É possível também identificar diversas formas de marxismo, seja em razão das diferentes interpretações do pensamento desses autores, seja em razão de juízos de valor com base nos quais haveria um marxismo que se deve aceitar e outro que se deve rejeitar.

Doravante, descerei a pormenores sobre os conceitos da doutrina marxista. Começarei por esclarecer o método dialético de Marx; em seguida, apresentarei e definirei os conceitos de modo de produção e meios de produção; posteriormente, serão contemplados, nesta ordem, os conceitos de ideologia, trabalho e valor, mercadoria, mais-valia, fetichismo de mercadoria, alienação  e práxis. Na sexta seção deste trabalho, vou apresentar, em linhas gerais, a visão de Engels sobre o Estado, situando-a no lugar de confronto com a visão hegeliana de Estado. Na sétima e última seção, apresento, também em linhas gerais, a dialética de Hegel, tendo em vista sua influência no pensamento de Marx.


5.  A dialética marxista

5.1. Modo de produção e meios de produção

Desde já, urge frisar que a dialética de Marx é a antítese da dialética de Hegel. A dialética de Marx se pretende crítica e revolucionária; ela se apresenta numa forma “racional” e não, como a de Hegel, mistificada. A dialética marxista está calcada sobre concepção de realidade como uma totalidade complexa e marcada por contradições. Ela rejeita as abstrações dos economistas clássicos, que, conquanto acreditassem haver uma oposição fundamental entre o consumo e a produção, não se aperceberam de que essa oposição era apenas aparente e de que, em essência, o consumo e a produção são indissociáveis.
Se, por um lado, Hegel transformou em sujeito autônomo a ideia, entendida como o demiurgo do real, o qual se reduziu a uma manifestação daquela; por outro lado, para Marx, a ideia ou o ideal não é nada mais que o material transposto e traduzido na consciência do homem. Por conseguinte, o motor da dialética materialista é a forma determinada das condições de produção e reprodução da existência social dos homens, forma que é sempre determinada por uma contradição interna, isto é, pela luta de classes ou pelo antagonismo entre proprietários das condições de trabalho e não-proprietários (trabalhadores assalariados, escravos, etc.).
A matéria de que fala Marx é, portanto, a matéria social, ou seja, as relações sociais entendidas como relações de produção, o modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições materiais de existência e o modo como eles pensam e interpretam essas relações. A matéria do materialismo histórico-dialético são os homens produzindo, em condições determinadas, seu modo de se reproduzirem como homens e de organizarem suas vidas como homens.
De acordo com essa perspectiva, o sujeito da história não é o Espírito (Hegel), mas as classes sociais em luta. As classes sociais não são ideias, mas relações sociais determinadas pelo modo como os homens, na produção de suas condições materiais de existência, se dividem no trabalho, instauram formas determinadas de propriedade, reproduzem e legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio das instituições sociais e políticas. As classes sociais também são determinadas pelo modo como os homens, em suas condições materiais de existência, representam para si mesmos o significado daquelas instituições, mediante sistemas determinados de ideias que exprimem e escondem o significado real de suas relações. Esses sistemas de ideias cuja função é mascarar o significado real de suas relações sociais materialmente determinadas são chamados de ideologia. Antes de considerar o conceito de ideologia, necessário é dar a conhecer o significado dos conceitos de modo de produção e meios de produção.
Modo de produção designa a relação determinada que as forças produtivas e as relações sociais mantêm entre si. As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas. No momento em que desenvolvem novas forças produtivas, os homens mudam seu modo de produção, e, mudando seu modo de produção, a maneira de ganhar a vida, eles mudam também todas as relações sociais. O modo de produção, portanto, na visão histórica da dialética marxista, determina a forma das relações sociais. Os meios de produção, a seu turno, recobrem o conjunto de ferramentas, instrumentos, terra, maquinaria indispensáveis ao processo de trabalho e que constitui a propriedade do capitalista.
Na dialética materialista, a produção é imediatamente consumo; e o consumo, imediatamente produção. Um é imediatamente o oposto do outro.


5.2. Ideologia

Em Marx, a ideologia é uma ilusão necessária à dominação de classe. Por ilusão, deve-se entender abstração e inversão. A abstração é o conhecimento de uma realidade tal como se oferece à nossa experiência imediata, como algo dado, feito e acabado, que se presta à classificação, à ordenação, sem que nunca nos indaguemos como tal realidade foi concretamente produzida. Uma realidade é concreta porque mediata, ou seja, porque produzida por um sistema determinado de condições que se articulam internamente de maneira necessária. Por inversão deve-se entender o fato de se tomar o resultado de um processo como se fosse o seu começo, de se tomar os efeitos pelas causas, as consequências pelas premissas, o determinado pelo determinante. Assim, a ideologia, porque é abstração e inversão, permanece sempre no plano imediato do aparecer. Em suma, a ideologia, segundo Marx, é o modo ilusório (ou seja, abstrato e invertido) pelo qual os homens representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Por influência da ideologia, a relação entre o real e a ideia aparece para a consciência de modo invertido: não mais o real justifica a ideia, mas, ao contrário, a ideia é que explica o real.


5.3.  Trabalho e valor

A condição sine qua non da história é a satisfação das necessidades. Para satisfazê-las, os homens constroem os meios necessários. Atingindo o seu fim, os homens modificam a própria natureza. Ao modificar a natureza pelo trabalho, os homens modificam, pelo trabalho, a si mesmos. Numa primeira aproximação, o conceito de práxis, no interior da teoria marxista, recobre a relação dialética entre o homem, o trabalho e a natureza. Retomarei esse conceito na seção seguinte. Por ora, descerei a considerações sobre os conceitos de trabalho e valor.
Todo processo de trabalho produz um valor, que é, inicialmente, um valor de uso, ou seja, algo útil à vida humana, passível de ser trocado por outro valor de uso (por exemplo, uma camisa por um sapato). Assim, a utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. O valor de troca é, por seu turno, uma forma que a mercadoria assume enquanto relação quantitativa, isto é, enquanto proporção na qual se dá a troca entre os valores de uso. Ele surge com a divisão social do trabalho e como tal tende a eliminar a dimensão de utilidade do produto do trabalho e a reduzir o próprio trabalho a uma dimensão abstrata, indiferenciada.
O valor de troca do produto do trabalho não reside no objeto produzido, tampouco na sua utilidade. Na relação de troca, esse valor aparece como independente do valor de uso. O que torna possível a troca não é a utilidade, mas o fato de os objetos serem produtos do trabalho. A fim de dilucidar a distinção entre esses dois conceitos, é imperioso considerar a gênese da mercadoria.
O que é a mercadoria? A mercadoria não é a coisa em si, mas um valor. Como valor de uso, vale por sua utilidade; como valor de troca, vale pelo preço no mercado. O valor de troca comanda o valor de uso.
Acontece que o valor de troca não é determinado pelo preço como aparece à primeira vista. O valor da mercadoria não é fixado no momento em que ela entra em circulação no mercado e é consumida. Seu valor é produzido em outro momento e se forma pela quantidade de tempo de trabalho necessário para produzi-la. Esse tempo inclui não só o tempo gasto diretamente na fabricação da mercadoria, mas inclui também o tempo para produzir as máquinas, o tempo para extrair e transportar a matéria-prima, etc. Esses tempos são tempos de trabalho da sociedade.
O preço da mercadoria também encerra o salário pago pelo tempo de trabalho do trabalhador que fabrica essa mercadoria, pagamento que é chamado de custo de produção e que é o suficientemente necessário para que ele se alimente, se aloje, se vista, se transporte e se reproduza, gerando filhos para o mesmo trabalho de produzir mercadorias. A mercadoria é, portanto, trabalho social concentrado e não uma coisa.
A mercadoria, enquanto problema teórico, demanda um pouco mais de atenção. Situando-a no modo de produção capitalista, deve-se dizer que o dinheiro também é uma mercadoria. Cada modo de produção (antigo, escravagista, asiático, feudal e capitalista) é constituído pelas forças produtivas e pelas relações sociais de produção a elas relacionadas e cujo epicentro é um determinado tipo de propriedade dos meios de produção. O modo de produção capitalista se caracteriza pela separação entre o trabalho livre e a propriedade dos meios de produção, separação que se acompanha da produção da mais-valia (conceito a que destinarei uma seção mais adiante) e da formação do próprio capital. Nesse contexto, surgem as novas classes sociais e as formas de relação entre elas: o proletariado, expropriado dos meios de produção (inclusive da terra) que, para viver, precisa vender sua força de trabalho, que não é senão uma mercadoria; e o capitalista, proprietário dos meios de produção e dono do capital. Retomarei o tema da mercadoria, quando me debruçar sobre o conceito de fetichismo da mercadoria.
Convém, agora, definir o termo capital. O capital se constitui com a condição de o possuidor do dinheiro poder trocá-lo pela capacidade de trabalho de outrem, que é mercadoria. Portanto, é necessário que a capacidade de trabalho seja colocada à venda, como mercadoria, no processo de circulação, para que o dinheiro se transforme em capital.
Para sobreviver, o proletário precisa vender sua força de trabalho, a qual passa a ser encarada, na relação antagônica e desigual entre proletariado e burguesia, um valor de troca, uma mercadoria. No domínio do aparecer social, o salário do trabalhador se apresenta como valor de seu trabalho, isto é, como uma certa quantia de dinheiro paga por uma quantidade de trabalho equivalente. Deveras, o que se dá não é isso; e para entendermos o que se passa nessa relação – que, conforme veremos, é de expropriação do proletário pelo capitalista- , devemos compreender o conceito de mais-valia, tema de nossa próxima subseção.


5.4. Mais-valia

No circuito capitalista do dinheiro, cuja configuração supõe a relação dinheiro-mercadoria-dinheiro, a mercadoria comprada é a força de trabalho, a única mercadoria cujo consumo produz um outro valor de uso (o produto do trabalho). A diferença entre o valor da força de trabalho e o valor do produto do trabalho constitui a mais-valia, sem a qual não existiria o capitalismo.
A mais-valia corresponde a uma certa quantidade de trabalho excedente não-pago. A mais-valia é o lucro do capitalista. Para os trabalhadores, essa quantidade de trabalho não remunerado apresenta-se como o mais-trabalho que suplanta a quantidade de trabalho imediatamente necessária à manutenção da condição vital deles. A acumulação da mais-valia está na origem do capital. Graças à mais-valia, a mercadoria não é um valor de uso ou um valor de troca qualquer, mas um valor capitalista (eis a síntese dialética). Dialeticamente, o valor de uso se apresenta como a tese, o valor de troca como a antítese e, finalmente, o valor capitalista é a síntese.


5.5.  Fetichismo da mercadoria

O conceito de fetichismo da mercadoria prende-se intimamente ao conceito de alienação; mas desses conceitos tratarei em seções separadas.
Em vez de a mercadoria aparecer como resultado de relações sociais enquanto relações de produção, ela aparece como um bem que se compra e se consome. Aparece como valendo por si mesma e em si mesma, como se derivasse de um dom natural das coisas. As coisas-mercadoria começam, pois, a se relacionar umas com as outras como se fossem sujeitos sociais dotados de vida própria. A mercadoria passa a ter vida própria, indo da fábrica à loja, da loja a casa, como se caminhasse sozinha.
O fetichismo da mercadoria desdobra-se, por conseguinte, em dois momentos. O primeiro momento do fetichismo é o fato de a mercadoria ser um fetiche, uma coisa que existe em si e por si mesma. O segundo momento diz respeito ao fato de a mercadoria, à semelhança do fetiche religioso, exercer poder sobre seus crentes ou adoradores, dominando-os como uma força estranha. O mundo transforma-se numa grande fantasmagoria.


5.6. Alienação

Retomando-se a ideia de que a mercadoria exerce um poder sobre os homens e os domina como uma força estranha, tornar-se-á mais fácil compreender o conceito de alienação. A alienação é a condição em que se encontram tanto os trabalhadores como a própria atividade de trabalho, no modo de produção capitalista, quando eles vendem sua força de trabalho e quando se dá a separação entre eles, trabalhadores,  e o produto do seu trabalho. O trabalho, no modo de produção capitalista, é trabalho alienado. Vejamos o porquê.
A alienação é, segundo Marx, uma forma de relação historicamente determinada, ou seja, típica da relação capital-trabalho assalariado. Na alienação, o trabalho torna-se trabalho forçado, o homem e a natureza se separam completamente, e os trabalhadores não se reconhecem mais no produto de seu trabalho. É preciso sublinhar este fato, que caracteriza fundamentalmente a condição de alienação: o trabalhador não se reconhece mais no produto de seu trabalho. Segundo Marx, porém, a alienação não aparece apenas no resultado, mas também no interior da própria atividade produtiva. Assim, o trabalho é exterior ao trabalhador, ou seja, ele não pertence à sua essência. O trabalhador não se afirma em seu trabalha, mas nega-se. Essa é a condição do trabalhador alienado: a de um trabalhador que, negando-se no trabalho, sente-se insatisfeito, infeliz, mortificado. Tudo o que, na verdade, constitui condição e resultado da natureza interior do homem (a criatividade, o trabalho) aparece na sociedade burguesa e na sua economia como esvaziamento e alienação.
No contexto da luta de classes, as ideologias funcionam como o cimento da sociedade, na medida em que produzem um senso comum que serve para mascarar a luta de classes. A classe que exerce o poder material ou o domínio material numa dada época também exerce o domínio espiritual. As ideologias, forjadas pelas classes dominantes, têm como função básica ocultar as condições de dominação vigente, mas também podem servir como um conjunto de referências para a tomada de consciência. A produção das ideologias é indissociável do processo de vida real, ou seja, do processo de produção material da vida real. A produção das ideias, das representações, da consciência está, em primeiro lugar, entrelaçada com a atividade material e com as relações dos homens.
O trabalho alienado é aquele no qual o produtor não se reconhece no produto de seu trabalho, porque as condições desse trabalho, suas finalidades reais e seu valor não dependem do próprio trabalho, mas do proprietário das condições do trabalho. Constituem três os fatores que tornam as atividades humanas acontecimentos independentes dos homens: alienação, reificação e fetichismo. Esses fatores estão na base de um processo fantástico pelo qual as atividades humanas começam a realizar-se como se fossem autônomas ou independentes dos homens, passando, assim, a dirigir e comandar suas vidas, sem que eles possam exercer sobre elas controle.
Por fim, cumpre dizer que as ideias originam-se da atividade material, mas essas ideias representam o modo como a realidade das condições materiais aparece na experiência imediata dos homens.


5.7. Práxis

Vimos que a práxis pode ser definida, num primeiro momento, como a relação dialética entre homem, trabalho e natureza. Na práxis, o homem modifica a natureza por meio do trabalho e, no trabalho, modifica a si mesmo. Há, contudo, outro significado de práxis cuja elucidação se faz necessária. Quando consideramos a práxis na sua relação com a filosofia marxista, isto é, quando a situamos no interior do quadro teórico-metodológico do marxismo, a práxis é uma compreensão teórica da realidade, é sua explicação e transformação. A práxis constitui, portanto, o elemento vital da constituição do marxismo. Apresenta-se como núcleo do pensamento de Marx.
Relembremos aqui a famosa passagem de Marx – “O que os filósofos fizeram até o momento foi interpretar o mundo; o que interessa, porém, é transformá-lo”, a fim de que entendamos a práxis como crítica e a filosofia que subjaz a ela como crítica do real. A filosofia não tem em si o poder de transformar o real; por isso, precisa realizar-se por meio da práxis. A passagem da crítica ao real, ou seja, do plano teórico ao prático, é a revolução. A práxis é uma atividade transformadora e emancipadora. Nesse sentido, o marxismo se apresenta como uma filosofia da ação, uma filosofia da práxis.


6. O Estado

Segundo Engels, o Estado constitui o primeiro poder ideológico. No capitalismo, ele cumpre funções que garantem o bom funcionamento da economia e que atendam aos interesses da classe dominante. O Estado destina-se, especialmente, a defender a propriedade privada.
Na visão de Engels, o Estado, criado para defender os interesses comuns a toda a sociedade, tornou-se independente dela, tanto mais se foi convertendo em um instrumento de poder de uma determinada classe sobre outra. O Estado está a serviço das classes dominantes, na medida em que lhes serve de instrumento para o estabelecimento e legitimação de sua dominação. As classes dominantes se servem dos aparelhos do Estado para instaurar sua dominação e para garantir seus privilégios.


7. A dialética de Hegel: um diálogo entre Hegel e Marx

Sem perder de vista a questão da concepção do Estado à luz do marxismo, tema que continuo a desenvolver nesta última seção, trago à baila como a dialética se desenvolveu no pensamento de Hegel, tendo sempre em vista o confronto com a dialética marxista.
Começo por notar que o termo dialética (diálogo, em grego, ou o pensamento e a palavra (logos) divididos em polos contraditórios), em Hegel, consiste num método de interpretação da História, à luz do qual ela é um processo temporal movido internamente pelas divisões ou negações (contradições), cujo sujeito é o Espírito como reflexão.
A dialética hegeliana é, portanto, uma dialética idealista porque seu sujeito é o Espírito e seu objeto também é o Espírito. As obras do Espírito (a cultura), embora apareçam como fatos e coisas, são ideias, pois um espírito não produz coisas nem é coisa, mas produz ideias e é ideia.
O idealismo hegeliano assenta na proposição segundo a qual a história é o movimento de oposição, negação e conservação das ideias, e essas ideias são a unidade do sujeito e do objeto da história, que é Espírito. O Espírito é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da história.
O que é o Estado, para Hegel? O Estado sintetiza, numa realidade coletiva, a totalidade dos interesses individuais, familiares, sociais, privados e públicos. Segundo Hegel, somente no Estado o cidadão torna-se verdadeiramente real e somente nele define-se a existência social e moral dos homens. O Estado torna-se, assim, o Espírito Objetivo.
No idealismo hegeliano, o Estado é uma comunidade, mas difere da família e das classes sociais, porque não possui aparentemente nenhum interesse particular, mas, ao contrário, representa apenas os interesses comuns a todos. O Estado não é um dado imediato da vida social, mas um produto da sociedade concebida como Espírito Subjetivo que busca tornar-se Espírito Objetivo. O Estado é a Ideia política, por excelência, uma das mais altas sínteses do Espírito.
Engels, naturalmente, discordará de Hegel, sobretudo no tangente à ideia de que o Estado não tem interesse particular. E Marx, embora conserve o conceito de dialética, legado de Hegel, como movimento interno de produção da realidade cujo motor é a contradição, rompe com o pensamento de Hegel, ao demonstrar que a contradição não é a do Espírito com ele mesmo, não é a contradição de sua face subjetiva com sua face objetiva, não é a contradição de sua exteriorização em obras com sua interiorização em ideias. Para Marx, a contradição se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais, e essa contradição – reitero – chama-se luta de classes.

Hegel concebia a história como o processo pelo qual o Espírito toma posse de si mesmo, como história das realizações do Espírito; Marx, ao contrário, rejeita essa visão idealista, insistindo em que a história é a história do modo como os homens reais produzem suas condições reais de existência.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

"Conta-me a tua história e te direi quem tu és" (BAR)

                                            
                          

                             Retorno às origens históricas
                                     A atuação dos profetas




Intróito

Por volta de 2.000 a.C, quando a Babilônia ascendeu ao poder na Mesopotâmia, Marduque era o deus mais importante da região. O maior templo babilônico fora erigido para a adoração dele. Seus adoradores chamavam-no o grande  Senhor, o senhor do céu e da terra, e acreditavam que seu poder repousava sobre sua sabedoria, com a qual governava o povo da terra, assistia os bons e punia os maus.
Entre os hindus, Visnu é uma divindade muito popular, considerada como o protetor ou sustentador do universo. Ela dá vida ao criador, Brama. Visnu se completa com o deus Xiva, chamado “o destruidor”. Xiva recria o que destrói. Reúne em si oposições tais como vida e morte; tempo e eternidade, etc. Brama, Visnu e Xiva têm cada qual uma esposa. Essas esposas são também deusas e se apresentam com nomes diversos, muito embora possam ser sintetizadas na forma de uma Grande Deusa, chamada Mahadevi.
Huitzilopochitli era a deusa da guerra e do sol nascente entre os astecas; a ela eram ofertados sacrifícios humanos com o objetivo de obter vitória na guerra e de garantir o contínuo reaparecimento do Sol para iluminar a civilização.
Os gregos e romanos também tinham seus deuses. Afrodite (nome grego) e Vênus (nome romano) eram deusas do amor; Hera (nome grego) e Juno (nome romano) eram rainhas dos deuses. A lista de deuses e deusas poderia ser estendida indefinidamente. Decerto, o número de deuses fabricados pela existência humana ao longo da história é incalculável. Dado esse inegável espectro de deuses, cuja enumeração resultaria num esforço pouco recompensador a quem quer que se atrevesse a fazê-la, persiste a questão: por que se deveria acreditar que o único deus existente é o Deus legado a uma grande parte do mundo pela tradição monoteísta desenvolvida às margens do Crescente Fértil, há 14.000 a.C? Que evidências há que sustentem a crença de que apenas o Deus judaico-cristão é candidato ao Absoluto? Por que razões os adeptos dos três grandes monoteísmos (judaísmo, islamismo e cristianismo) devem desqualificar como irreais um Visnu, um Xiva ou um Marduque?
Em meu país, diariamente, as pessoas falam em Deus, proferem essa palavra para designar o Ser Único Pessoal, Criador e Providente que, embora atemporal e transcendente, existe (sem se aperceberem de que o conceito de existência implica a noção de espaço e tempo). Não é, contudo, de problemas lógicos de que me ocuparei. Quero dizer que essas pessoas falam num Deus que tem uma materialidade histórica. Toda vez em que elas pronunciam a palavra Deus, elas silenciam, sem que o saibam, os demais deuses, ou seja, relegam-nos ao abismo silencioso da imaginação ou da ficção, de modo que afirmar “Deus existe” é assumir que “Visnu não existe”, “Marduque não existe”, e assim por diante. Toda enunciação é um acontecimento sócio-histórico e seus protagonistas são sujeitos sociais, que dizem de um dado lugar socioideológico (histórico). Todo aquele que, por exemplo, no Brasil, professa sua crença em Deus ou declara sua fé na Bíblia, faz ecoar uma longa e densa espessura socio-histórico e discursiva cujas vozes ganham acentos mais ou menos nítidos em sua fala. A palavra Deus é atravessada por muitas vozes e seu proferimento, a cada vez, é uma via por onde se deixam ouvir essas vozes, ainda que para a maioria dos crentes elas sejam como brumas numa longa estrada que se lhes estende interminável.
Há muito, como ateu e filósofo, penso os deuses como entidades históricas; e creio em que todas as tentativas de negar-lhes esse estatuto são tendenciosamente ideológicas. Pensar os deuses como entidades históricas não é, de modo algum, negar-lhes o estatuto de objetos da imaginação ou da razão, visto que tanto a imaginação quanto a razão se produzem e se desenvolvem historicamente. Ora, quem imagina e quem raciocina é o homem; e o homem é um ser histórico. Logo, a imaginação e a razão só existem como produtos de processos históricos.
Não se deve, contudo, tomar por sinônimos os dois modos de compreender os deuses, quais sejam, “deuses como entidades imaginárias” e “deuses como entidades históricas”. O problema em reduzir os deuses a entidades imaginárias é supor que eles sejam criados por um devaneio, por uma fantasia humana desvinculados das necessidades, dos anseios, das condições sócio-históricas. A fim de evitar essa suposição equivocada e simplista, penso ser mais acertado pensá-los como entidades históricas, por razões que tratarei de desenvolver neste texto. Pensá-los como entidades históricas não exclui o pensá-los como produtos da imaginação ou da razão humana. A qualificação histórico não só é mais abrangente, como também mais complexa, pois que deve recobrir a dimensão da práxis. É Marx quem nos ensina sobre ela, mas deixarei para mais adiante a consideração do pensamento marxista no que tem de relevante ao desenvolvimento deste texto.
Necessário é explicitar um pressuposto, de cuja aceitação dependerá não só o interesse do leitor por esse texto, mas também a compreensão do projeto argumentativo de que ele, texto, é uma realização verbal. O pressuposto tem a seguinte forma: a palavra Deus não designa uma espécie de ser sobrenatural, mas tão-só uma Ideia (no sentido de Kant). Vou começar esclarecendo o que Kant entendia por Ideia (com maiúscula, por sua semelhança com as Ideias platônicas), numa seção primeira. Antes de fazê-lo, porém, preciso trazer à cena a maneira como Locke compreende as afirmações do teísmo. Marx, Kant e Locke (aos quais poderia reunir Feuerbach) são pensadores representativos da concepção moderna de Deus. Devo lembrar, no entanto, que, enquanto Marx e Feuerbach eram ateus, Kant e Locke não o eram. Locke tentou argumentar em favor da existência de Deus postulando para ela uma base empírica. O próprio conceito de Deus deve ser desenvolvido num enquadramento empírico, o que significa dizer que os predicados atribuídos a Deus devem resultar de ideias provindas da Sensação e da Reflexão. Mas essas ideias, acrescenta Locke, devem ser projetadas ao infinito, a fim de que venham a constituir um conceito de Deus que responda aos requisitos que o argumento cosmológico exige. As consequências da compressão de Kant e de Locke não tardaram a ser sentidas: ela dava uma grande margem ao ataque de duas frentes ateológicas ou ateístas: o racionalismo e o empirismo. Desse tema não posso, contudo, me ocupar aqui.


1. Kant e as Ideias da Razão

No esforço de fixar os limites da razão e de estabelecer as condições de possibilidade do conhecimento, Kant observou que a razão humana tende, naturalmente, a ultrapassar o domínio da experiência sensível e se deter em conhecer objetos, que só são conhecidos, na verdade, como conceitos, os quais, por si mesmos, são insuficientes para determinar um objeto real correspondente. Assim são os conceitos de alma, Deus, mundo, eternidade, etc. Para Kant, a razão presume deduzir a existência de tais objetos, que são transcendentes, de simples ideias. O criticismo kantiano consistia, em grande medida, em tornar a razão consciente de seus próprios limites.
Aqueles conceitos, aos quais falta um objeto real correspondente, Kant chamou ideias, porquanto se assemelham às Ideias platônicas e porquanto se constituem em representações globais ou incondicionadas de entidades apenas logicamente pensadas, supostas como existentes enquanto númeno (coisa-em-si) e como fundamento das aparências sensíveis.
Sem pretender pormenorizar o valor que o conceito de Ideia tem no sistema de Kant, cinjo-me a notar que, consoante se pode depreender do que se expôs até aqui, para Kant, Deus não é objeto de conhecimento, embora possa ser para o pensamento. Deus pode ser pensado, mas não conhecido. Em outras palavras, Kant nega à razão a possibilidade de alcançar um conhecimento de Deus. O Ser Supremo que chamamos de Deus é, na visão de Kant, apenas um ser da razão. Kant pôde, assim, desferir duros golpes aos argumentos físico-teológico, que deduz a existência de Deus da existência deste mundo tal como o conhecemos; cosmológico, que conclui de uma existência qualquer a existência de Deus; e o ontológico que, fazendo abstração da experiência, deduz a existência de Deus de meros conceitos.
Em Kant, a ideia está para a razão assim como o conceito está para o entendimento. O entendimento é a faculdade do conhecimento, que opera com base em conceitos. Conhecer é ligar conceitos, para Kant. O que se une em conceitos é a diversidade do sensível dada pela faculdade da sensibilidade. As ideias, que são propriedades da razão, não são destituídas de valor. Kant atribui à razão duas funções: a de tornar as ideias especulativas instrumentos metodológicos através dos quais se avalia o progresso da experiência; e a de negar o caráter contraditório de ideias cosmológicas como liberdade e necessidade, reinterpretando o conceito de objeto, que é, ao mesmo tempo, fenômeno e coisa-em-si (númeno). As ideias de liberdade e necessidade podiam, assim, ser aplicadas à prática moral. Não se trata de tomá-las como objeto de conhecimento, mas como condições para prática moral.
Por fim – mesmo ciente de que muitas lacunas ficaram por ser preenchidas -, parece-me importante observar que Kant entendia o conhecimento como uma ação teórica complexa de identificação objetiva que atribui ao sujeito um papel agentivo na elaboração do material do conhecimento, segundo certas condições subjetivas a priori que são as faculdades e suas respectivas formas. Assim, pela sensibilidade, o objeto do conhecimento é dado ao entendimento. A sensibilidade é a faculdade das intuições. As intuições puras são o espaço e o tempo. Intuição, em Kant, nada tem que ver, portanto, com pressentimento; em Kant, intuições são as formas como os objetos afetam nosso espírito. Só há intuições exteriores. A intuição pura é uma forma a priori  da sensibilidade, que permite unificar o sensível e a recepção das percepções. Ou seja, todo objeto passível de conhecimento tem de se dar na forma de intuições puras (o tempo e o espaço são internos à consciência humana, em Kant). Espaço e tempo dependem unicamente da forma de nossa intuição, da constituição subjetiva de nosso espírito. Nem o espaço nem o tempo são conceitos empíricos derivados de experiências exteriores. O espaço é a priori; sua representação é a condição mesma da possibilidade de fenômenos. O espaço é uma intuição pura; é uma forma a priori da sensibilidade. O tempo também é uma intuição pura; ele não existe nas coisas; mas é a condição formal a priori de todos os fenômenos. Para Kant, a única realidade do tempo é ele ser uma condição subjetiva da percepção dos fenômenos. Claro está que Kant não pensa o espaço e o tempo como realidades objetivas.
Duas implicações serão retidas aqui, com base na compreensão kantiana de Deus como ideia da razão: a primeira é que Deus não pode ser objeto de conhecimento; a segunda é que, como ideia, o signo Deus não tem um referente real identificável. Como ideia, a razão pode pensá-lo, pode especular sobre ele, mas não pode determinar-lhe a natureza e não pode assegurar sua existência.
Pode-se, agora, estender a compreensão de Ideia de Kant acrescentando-lhe o ingrediente histórico: a ideia, tal como a entende Kant -  uma entidade da razão -  é dotada de uma materialidade histórica. É sobre essa materialidade histórica que esse texto versa. É chegado o momento em que o materialismo marxista deve ser trazido ao itinerário discursivo.


2. O materialismo de Marx: um breve recorte


Apresentarei, em linhas gerais, o materialismo histórico Posteriormente, assinalarei a ideia central desse materialismo, sobre a qual farei repousar o que se seguirá na seção posterior.
O pensamento de Marx se nos apresenta como um “novo” materialismo. Esse materialismo é um materialismo da práxis. A práxis é relação dialética homem-trabalho-natureza. Na práxis, o homo faber, modificando a natureza no processo de trabalho, modifica a si mesmo. Materialismo histórico é o termo que Engels empregou (posteriormente, Lênin) para designar o método de interpretação histórica proposto por Karl Marx, segundo o qual os acontecimentos históricos devem ser fundados em fatores socio-econômicos (técnicas de trabalho e de produção; relações de trabalho e produção). O materialismo histórico está fundado na perspectiva antropológica, à luz da qual o homem ou a natureza humana é constituída por relações de trabalho e de produção, estabelecidas pelo próprio homem com vistas à satisfação de suas necessidades. O materialismo histórico é um materialismo da práxis. A noção de prática recobre a atividade determinada por condições materiais independentes dela; no entanto, modificáveis por ela.
O materialismo de Marx é devedor do Idealismo de Hegel, ainda que se tenha desenvolvido em reação a ele. Do idealismo, o materialismo marxista herdou a tese de que é a atividade humana que produz as condições sociais de existência; e do materialismo antigo, a tese de que as condições e as circunstâncias cumprem um papel determinante. No materialismo marxista, a noção de prática recobre a atividade como uma dimensão fundamental da existência humana. Marx concebe a história como uma ciência autêntica e pretende que ela seja estudada do ponto de vista de uma “concepção materialista da história” (Ideologia Alemã, pp. 38-42). O materialismo marxista foi mais um projeto do que uma doutrina. Como materialismo histórico, advogava que a história deve ser estudada relativamente à sua base real, qual seja, econômica. Assim, evitava-se concebê-la como um processo de desenvolvimento de ideias abstratas.
Duas ideias precisam ser esclarecidas, a esta altura. A primeira diz respeito à dimensão histórica do materialismo. Ele é histórico porque a produção historicamente diversa da vida material condiciona, em última instância, a produção da vida social, política e espiritual. A tese central do materialismo histórico é, pois, a seguinte: as condições materiais da prática são determinantes das formas de manifestação da consciência. Mas o caráter determinante das condições materiais não é absoluto, visto que as próprias condições são produzidas pela práxis, que é ação histórica. Só são materiais também relativamente, porque a prática que as modifica na história não só é condicionada pela base material, como também por fatores ideais. Contrariamente ao idealismo, o materialismo histórico assume que a natureza humana e as formas históricas das sociedades são determinadas pelas relações concretas de trabalho, diversas e mutáveis. Esse materialismo rejeita a crença de que o “Espírito” seja o Sujeito da história, ou o princípio organizador da totalidade social.
A ideia de materialismo sublinha o fato de que a infra-estrutura (a base econômica), a dimensão material determina os fenômenos da superestrutura (a qual recobre as manifestações intelectuais, artísticas, políticas e jurídicas). O materialismo é histórico porque a formação da infra-estrutura e do modo de produção são historicamente determinados, ou seja, determinados pela práxis.
Marx, todavia, não sustentava que a infra-estrutura fosse o único domínio determinante dos fenômenos da superestrutura, do aparecer social. Se, por um lado, a base econômica determina a produção das ideias e das representações, essa produção incide sobre a atividade material do homem, e os fatores da superestrutura podem tornar-se determinantes das lutas históricas.
No manuscrito de 44, Marx defende que, se a história é o próprio ato gerador consciente do homem, e, embora seu nascimento se dê conscientemente, ela tende a se suprimir como ato gerador. Isso significa reconhecer que os indivíduos não mais percebem suas ideias, concepções, crenças inscritos numa história. Destaco esta passagem a fim de que o leitor infira dela a tese fulcral que procuro desenvolver neste texto: os indivíduos, em todas as épocas, que disseminam sua crença em Deus não mais reconhecem que essa crença se inscreve historicamente e se lhes foi incutida no intercurso de práticas históricas (basicamente, pelas práticas socioeducativas diversas).
Creio necessário depreender do que expus nesta seção as implicações necessárias ao que se seguirá. Mas, antes, vale dizer que a matéria de que fala Marx é a matéria social, ou seja, as relações sociais entendidas como relações de produção, o modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições materiais de existência e o modo como pensam e interpretam essas relações. A matéria do materialismo histórico-dialético é, portanto, os homens produzindo, em condições determinadas, seu modo de se reproduzirem como homens e de organizarem suas vidas como homens. Cumpre notar, de passagem, que a produção é imediatamente consumo, e o consumo é imediatamente produção. Cada um é imediatamente o seu oposto.
Considerem-se as implicações do materialismo marxista para a discussão que se desenvolverá, adiante, sobre a materialidade histórica da Ideia de Deus.

1a) Se as ideias, concepções, crenças, representações, a própria consciência são produtos das práticas socioeconômicas, são produzidas nas relações de produção historicamente determinadas, segue-se daí que a Ideia de Deus é também reflexo de condições socio-históricas determinadas;

2a) Se, como sustentava Marx, os indivíduos não percebem que suas ideias, crenças e concepções têm uma inscrição em processos históricos determinados, segue-se daí o fato de eles conceberem Deus como um Ser a-histórico, atemporal, transcendente, cujo conhecimento (eles creem) lhes é dado naturalmente;

3a) Com Marx, podemos dizer que Deus é um fato histórico marcante das sociedades ocidentais, na medida em que foi fabricado e é reproduzido por uma instituição ideológica.


Preciso insistir em que o conhecimento a que me refiro, em 2), não é o conhecimento de Deus como fenômeno, como objeto de experiência; trata-se do conhecimento de Deus como Ideia. Eles facilmente podem ser levados a crer que a própria Ideia de Deus se lhes afiguram por pré-disposições de sua constituição humana psico-neurológica.
Embora não me seja possível deter-me a discorrer sobre o conceito marxista de ideologia, necessário é destacar-lhe dois aspectos: a abstração, a saber, o conhecimento de uma realidade tal como se oferece à nossa experiência imediata, como algo dado, feito e acabado, que apenas classificamos, ordenamos, sem nunca nos perguntar como tal realidade foi concretamente produzida; e a inversão, que consiste em tomar o resultado de um processo como se fosse seu começo, em tomar o efeito pelas causas, as consequências pelas premissas, o determinado pelo determinante. Para Marx, sendo abstração e inversão, a ideologia situa-se e permanece vinculada ao plano do aparecer social.


3. De volta às raízes históricas: O papel dos profetas

A noção de materialidade histórica da Ideia de Deus recobre as condições sociais, ideológicas, culturais e econômicas que configuravam o Antigo Oriente Próximo há 14.000 a.C., condições nas quais a ideia de Deus foi surgindo aos poucos.

Em Uma história de Deus (2008), Karen Armstrong oferece-nos passos que ilustram a noção de materialidade histórica da Ideia de Deus. Vejamos dois deles:

Parece que a ideia de Deus guarda extraordinária semelhança com ideias de religiões que se desenvolveram de maneira independente. Quaisquer que sejam nossas conclusões sobre a realidade de Deus, a história dessa ideia deve dizer-nos alguma coisa importante sobre a mente humana e a natureza de nossa aspiração”.
(p. 12)

“Apesar do teor secular de grande parte da sociedade ocidental, a ideia de Deus ainda afeta a vida de milhões de pessoas. Pesquisas recentes mostram que 99% dos americanos dizem acreditar em Deus: resta saber a qual “Deus” se referem, entre muitos em oferta”.
(ib.id.)



Os seguintes excertos ilustram a noção de materialidade histórica da ideia de Deus:

1)       Sua filiação com ideias de religiões que se desenvolveram de modo independente;
2)       Sua relação com a mente humana e com as aspirações da natureza humana;
3)       A diversidade de deuses em oferta.


A materialidade histórica da ideia de Deus abriga a visão de que essa ideia surgiu e se desenvolveu gradativamente em condições sócio-históricas determinadas. É um Deus cuja história se inicia e se desenvolve no deserto, um Deus que era sentido como uma dor física; um Deus que infundia cólera e euforia em profetas; um Deus que supostamente “falava” do cume de montanhas. A história desse Deus está impregnada de trevas, de desolação, crucificação e terror: “a experiência ocidental de Deus parece particularmente traumática” (Armstrong, p. 12).
Como se verá, em tempo, o Deus em cuja existência mais de dois bilhões de pessoas no mundo acreditam (http://www.origemedestino.org.br/blog/johannesjanzen/?post=54) é imanente à história. Somente no nível ideológico ele pode ser concebido como ser absoluto e transcendente.
Antes de discutir o papel desempenhado por alguns profetas para o desenvolvimento da ideia de Deus, convém fazer ver o que nos ensina o filósofo Régis Debray, em seu Deus: um itinerário (2004). Debray destaca a importância da invenção do alfabeto ou da escrita para a perpetuação da ideia de Deus. Assim, escreve o autor:

“(...) sem o alfabeto, bomba metafísica com efeitos retardados, nada de Deus”.
(p. 97)

Deus e a escrita se desenvolveram juntos. No Crescente Fértil, ao longo de dois milênios antes de Cristo, sucederam muitas migrações, invasões, mudanças de dinastia, que punham em movimento a limpeza étnica. O povo hebreu foi o único que, pelo uso da escrita, “transformou a desgraça em valor” (p. 97)
Ora, a invenção da escrita e o seu uso são um fato constitutivo da materialidade histórica da ideia de Deus. A escrita contribuiu significativamente para que o Deus dos hebreus sobrepujasse seus concorrentes, Marduque e Amon Rá (deus egípcio), que, consoante nota Debray, se acham, hoje, exibidos como peças de museus de arte. À vitória sobre os deuses vizinhos se seguiu a adesão cada vez mais ampla a Javé: o Deus de Abraão, de Isac e Jacó “continua a por em movimento, nas ruas, milhões de crentes” (p. 96).
A atemporalidade de Deus, a instituição de sua soberania, o sentido mesmo de universalidade que carregava se deveram à possibilidade de a memória interior poder externar-se em rolos e caracteres.

“A presença de Deus – a saber, as Escrituras – não existiria como um sensível não-sensível (...), sem a operação que consiste em por o interior para fora e em espacializar emissões  vocais para lhes conferir atemporalidade”.
(p. 96)


Assim, conclui Debray que a história de Deus é história escrita.

Passo, agora, a considerar a emergência do Deus hebreu num contexto físico-geográfico e no modo de subsistência nômade. Começo notando que o Deus Único “fala” no deserto, se “manifesta” aos errantes, aos pastores. O deserto é um lugar em que os que lá habitam e vagam vivem à volta com tentações, vivem entregues à glória do Deus imortal.
O profeta exalta a ascese. Cada povo fabrica deuses à própria imagem (Debray, p. 73). Destarte, um povo de pastores cria um grande pastor celeste com vistas a conferir coesão e independência à comunidade, pastor que é representado, no plano terrestre, por profetas ou monarcas, por um Moisés e um Davi. Debray nota que era muito comum metaforizar os poderes pastoris, nas sociedades antigas da região do Egito e da Assíria (p. 75). O povo hebreu parece ter se utilizado do sistema de metáfora, adequando-o à experiência de pastores de pequeno rebanho. Por isso, “Deus é o pastor do seu povo” (p. 73)
A esta altura, necessário se faz chamar a atenção do leitor para a relação determinista entre as condições sócio-econômicas e o desenvolvimento da ideia de Deus. A concepção de Deus se desenvolve em condições de vida baseadas no modelo pastoril, no cuidado com o rebanho, fonte de alimentação para o povo. Deus, à semelhança do pastor, tem por missão reunir o gado, impedindo que ele se disperse (p. 73).

“Ele [Deus] prometeu uma pastagem às suas ovelhas – a Terra Santa -, mas o curral vem depois do rebanho, que primeiramente deve guiar e salvar, cuidando da sua alimentação e da sua segurança com atenta compaixão”. (p. 73)

Jeová é para o homem aquilo que o homem é para os animais de cuja criação se ocupa: um pastor cuja forma de dominação é benevolente, de modo que “apesar de deter toda a autoridade, não deve abusar dela”. (ib.id.)
O deus pastoril é um deus-movimento, um deus para o qual o deslocamento é uma necessidade (p. 75). O ambiente torna-se uma personagem santa. É nesse sentido que o deserto é também um componente da materialidade histórica da ideia de Deus. Somente quando o deserto deixa de ser apenas um espaço geográfico para ser interpretado pelo povo como um ambiente revestido de uma significação especial é que se pode considerá-lo um aspecto da materialidade histórica da ideia de Deus. Jesus, decerto, é uma personagem dessa história, considerada a vida e a via; seu adepto sempre um estrangeiro em marcha (Santo Agostinho) e Deus “um caminho a viver, interminável”(p. 75).
Expansionismo e monoteísmo estão afinados. O nomadismo pastoril prossegue ofensivamente. As conquistas históricas, no primeiro milênio, são marcadas pelo avanço anônimo e permanente de cavaleiros nômades sobre a planície de agricultores. Todos os avanços monoteístas se deram por meio de agitações de populações no Crescente Fértil. Dessa expansão fizeram parte invasões de bárbaros, deslocamento de tribos e deportações.
Conforme veremos, quando considerarmos a atuação de alguns profetas na história do desenvolvimento da ideia de Deus, a intolerância para com a adoração de outros deuses marcou significativamente a atuação de alguns deles. Essa intolerância concorreu para o estabelecimento da fé num único deus verdadeiro. Ela foi indispensável à conquista da soberania de Javé. Dois eminentes arqueólogos em atividade – Finkelstein e Silberman -  patenteiam, em A Bíblia não tinha razão (2003), os esforços despendidos por representantes da elite religiosa do século VII na tentativa de consolidar a soberania de Javé. Deve-se lembrar que todo soberano necessita de um lugar para reinar e esse lugar era o Templo de Jerusalém. Atentemos para as palavras dos autores:

“Em reação ao ritmo e ao alcance das mudanças levadas a Judá do exterior, os líderes do século VII, em Jerusalém, governados pelo rei Josias – décima sexta geração de descendentes do rei Davi – declararam que todos os traços de adoração estrangeira eram um anátema e, na verdade, a causa das desgraças que ocorriam em Judá. Eles iniciaram uma campanha enérgica de purificação religiosa no território do reino e ordenaram a destruição dos santuários rurais, declarando-os fontes do mal. Dali em diante, o Templo de Jerusalém, com seu santuário, o altar e os pátios internos que circundavam no alto da cidade, seria reconhecido como o único lugar de adoração para o povo de Israel. Com essa inovação, nasceu o monoteísmo moderno. Ao mesmo tempo, as ambições políticas dos líderes de Judá cresceram: tais ambições pretendiam fazer do Templo de Jerusalém e do palácio real o centro de amplo reino pan-israelita, a realização do lendário reino unificado de Israel, de Davi e Salomão.”
(grifos meus, pp. 12-13)


Farei uma digressão, a fim de elucidar a importância desta passagem para a compreensão da materialidade histórica da ideia de Deus. Os trechos destacados em negrito mostram-nos que as práticas históricas são sempre práticas dotadas de significado, ou melhor, práticas interpretadas pelos seus agentes. Por conseguinte, os modos como os homens interpretam os eventos que vivenciam são também constitutivos da trama histórica. Não só as transformações, as mudanças ocorridas ao longo da história do desenvolvimento da ideia de Deus são integrantes da materialidade histórica dessa ideia, mas também os modos como as ocorrências são interpretadas pelos protagonistas dessa história. Notemos que os líderes judaicos viam a adoração a outros deuses como uma maldição, como uma traição do próprio povo contra o Deus hebreu. Ademais, eles pensavam que a causa das agruras vividas pelo povo em Judá (reino do sul) era a adoração do povo a outros deuses. Javé era um deus exclusivista. É interessante ver que a “purificação religiosa” não descrevia outra coisa senão a eliminação total da adoração de outros deuses; além disso, “purificação” supõe que a adoração a outros deuses, prática comum e persistente até então entre os antigos hebreus, era vista como imunda, maculada. A instituição do Templo de Israel como único local de adoração para o povo de Israel não só pretendia atender à centralização do poder da fé em Javé e à consolidação de sua vitória sobre os demais deuses; o Templo era símbolo do desejo de expansão do poder político das autoridades israelitas; ele sinalizava a intenção de estabelecer um reino unificado. O desenvolvimento da ideia de Deus não pode ser separado, portanto, das ambições políticas de uma pequena elite de sacerdotes interessada em conservar-se no poder e em fortalecê-lo.
Retomemos a importância do deserto como nascedouro da soberania de Deus. O deserto é inimigo do pluralismo. É o lugar onde o Uno se alça ao Todo; onde o outro se torna um inimigo e “um Buda de pedra”, “um sacrilégio” (p. 81). O deserto fomenta uma mentalidade peculiar, que consiste na recusa do político, na ignorância do Estado e na desobediência à lei civil. O deserto é o lugar onde o individualismo rebelde floresce, onde a hostilidade a toda forma de autoridade constituída se acentua e a solidariedade tribal se fortalece. O nômade reconhece a propriedade, mas ignora a fronteira, que pode ser sempre expandida segundo as medidas das forças atuantes. Assim, o poder de Deus deve fazer-se sentir por toda parte. Sua soberania supranatural, supranacional, sem fronteiras, causa escassez de recursos e lança os homens ao abandono. As contradições são inerentes à existência no deserto, guiada pelo Deus único: a crueldade caminha com a hospitalidade; o homicídio, com o sacrifício. O Deus cioso do deserto cuida criminoso renegá-lo. Lembra Debray que “diante do bezerro de ouro, Jeová exige dos seus que ‘matai, cada qual, a seu irmão, a seu amigo, a seu parente’ (Ex. 32, 28)” (p. 82).
O deserto insurge-se contra a vida na cidade.O absolutismo se opõe ao fetichismo: se o povo citadino ora  diante de estátuas, os homens do deserto se apressam a po-las abaixo. Assim, procederam Moisés, Calvino e seus seguidores. Eles decapitaram estátuas de pedra, símbolos de santidade para os que, diante delas, lhes prestavam culto. Todos iconoclastas que disseminavam a intolerância em nome das Sagradas Escrituras.



3.1. Os profetas

Desde o Sinai, os profetas acalentavam o ideal de justiça social. Esse ideal estava tacitamente presente no culto de Javé. A história do Êxodo conta que Deus estava ao lado dos fracos e dos excluídos. Sucede, contudo, que os israelitas, na época em que viveu Amós, eram castigados por Javé por serem eles também opressores.
Amós era um pastor que vivia originariamente em Técua. Sua atividade se inicia por volta de 752 a.C. Não havia, ainda, no Oriente Médio, uma ideologia religiosa coesa (Armstrong, p. 78). Em seu culto, Javé era vivenciado como uma realidade transcendente. Sua humanização, no entanto, dependia de sua proximidade com os homens. Quanto mais próximo dos homens mais humanizado se tornaria.
Quando os babilônios invadiram Judá, levaram o rei e vários israelitas ao exílio e dominaram Israel, em 587 a.C. Jeremias pregava nesse tempo e, seguindo a tradição de atribuir emoções humanas a Javé, fez com que Deus lamentasse sua própria aflição e desolação. O Deus de Jeremias lamentava o fato de não mais ter um Templo onde era adorado. Esse Deus sentia-se desolado, desorientado, ofendido e abandonado pelo seu povo (Armstrong, p. 78). A raiva de Jeremias não era senão a raiva do próprio Javé.
Chamo a atenção do leitor para as formas como a ideia de Deus vai-se modificando. O Deus de Jeremias sofria um processo de antropomorfismo. Era um Deus mais humanizado. Segundo Armstrong,

“Quando pensavam no homem, os profetas automaticamente pensavam em “Deus”, cuja presença no mundo parecia indissociável de seu povo. Com efeito, Deus depende do homem para atuar no mundo – uma ideia que se tornaria muito importante na concepção judaica do divino”.
(p. 78)


Tendo sempre em mente o fato de que a confecção deste texto está calcada sobre o pressuposto de que Deus é uma Ideia no sentido kantiano, a compreensão da dependência de Javé relativamente ao homem deve ser depurada de pregnância ideológica. É claro que os profetas não compreendiam Deus como uma ideia, de modo que essa dependência não deve ser interpretada como subordinação de Deus ao homem, mas como participação por Deus na condição humana. Os homens sentiam a atuação de Deus em suas experiências e emoções. Ocorre que o pressuposto por nós assumido modifica a isotopia inscrita no excerto citado. Isotopia, em Análise do Discurso, é o termo empregado para designar a recorrência de um dado traço semântico ao longo de um texto. A isotopia determina planos de leitura para o texto e permite explicar por que todo texto é passível de muitas interpretações, ao passo que não admite todas as interpretações. A isotopia filtra, por assim dizer, os sentidos autorizados pelo texto. Ela controla as interpretações dos textos plurissignificativos.
Quando se assume “Deus” como Ideia que não designa um ser ou ente identificável na realidade, deve-se interpretar a dependência a que o excerto citado faz alusão como consequência lógica: se Deus é uma Ideia pensada pelo homem, então essa ideia só tem influência sobre a vida humana na medida em que os homens  atribui a ela um valor em suas práticas históricas concretas. A dependência de Deus relativamente aos homens, nesse sentido, ilustra a materialidade histórica da ideia de Deus. É somente quando a consciência religiosa, sob efeito da ideologia (no sentido marxista), pensa Deus como um Ser independente da práxis (ainda que nela atuante) – práxis que é  histórica -, como Realidade Transcendente e primeira, que esse Deus deixa de ser produto socioideológico da práxis humana na história. Mas é sempre importante enfatizar que a ideologia é produzida nas condições materiais de existência, de sorte que a própria consciência que pensa Deus como Realidade independente da práxis é produto de tais condições. A consciência religiosa, tomada  como reflexo de relações sociais concretas na história, representa para si a relação entre Deus e o homem de modo invertido, o que produz, como resultado, o apagamento, na memória, da materialidade histórica da ideia de Deus.

Tendo os babilônios conquistado Israel, Javé se demonstrou mais satisfeito e disposto a salvar seu povo e a conduzi-lo de volta para casa; afinal, a dominação babilônica ensinou uma dura lição aos israelitas.
Ezequiel estava entre os primeiros deportados para Tel Aviv em 587 a.C, durante a dominação babilônica. Ele teve uma visão de Javé que o derrubou de fato. Depois dessa visão, o sacerdote Ezequiel viu-se obrigado a disseminar a palavra de Deus entre os filhos rebeldes de Israel. No trecho abaixo, Armstrong nos dá a saber a singular trajetória desse profeta:

“Sua singular trajetória mostra claramente como o mundo divino se tornara estranho para a humanidade. O próprio Ezequiel foi obrigado a se tornar um sinal dessa estranheza. Com frequência, Javé ordenava-lhe que adotasse umas atitudes esquisitas, que além de separá-los dos seres humanos normais, apontavam as agruras de seu povo nesse período e, num nível mais profundo, mostravam que Israel tornava-se um estranho no mundo pagão”.
(p. 80-81)


A história do desenvolvimento da ideia de Deus se confunde com a saga de um povo que lutava incessantemente pela sua independência, pela construção de uma identidade nacional. Armstrong assinala que entre as coisas estranhas que Ezequiel tinha de fazer por ordem de Javé estava a ingestão de excrementos.
Se Ezequiel encarnava a radical descontinuidade do culto de Javé, a visão pagã, por outro lado, celebrava a continuidade que acreditava haver entre os deuses e o mundo natural. Ezequiel não se agradava disso: as religiões pagãs, para ele, eram um tipo de imundície. Quando, numa de suas visões, visitou o Templo de Jerusalém, se deparou com o povo de Judá adorando deuses pagãos. Armstrong nota que “o próprio templo se tornava um lugar apavorante com figuras de serpentes contorcendo-se e de outros animais repulsivos pintadas nas paredes” (p. 81)
Não é surpreendente que os israelitas, vivendo em condições sócio-históricas profundamente marcadas por dominações estrangeiras, se dedicassem ao culto dos deuses dos povos dominadores. No tempo de Ezequiel,  mulheres choravam pelo deus sofredor Tamuz (dos sumérios, conhecido pelos egípcios como Osíris). Outros israelitas adoravam o sol.
Javé, enciumado e desejoso de atenção, instigou israelitas como Ezequiel a perceber que os reveses da história se estruturavam e se explicavam na base de uma lógica mais profunda. Os reveses sinalizam uma justiça que se encontrava nas profundezas dos acontecimentos.

“Ezequiel tentava encontrar um sentido no mundo cruel da política internacional”.
(p. 82)


Não é custoso ver a fonte donde a referida lógica estendeu seu alcance de modo a estruturar as formas como as consciências cristãs, ainda hoje,  compreendem as ocorrências do mundo. A ideia de que mesmo dos acontecimentos mais aterradores é possível extrair um sentido benéfico ou positivo encontra raízes na Bíblia, como ilustra a compreensão de Ezequiel. Essa mentalidade perdura até os dias de hoje entre nós.

Vejamos como a ideia de Deus se modifica nos autores do Primeiro e Segundo Isaías.

Os israelitas exilados na Babilônia cuidaram não ser correto praticar sua religião fora da Terra Prometida. Os cânticos a Javé não podiam ser entoados em terras estrangeiras. Os que estavam insatisfeitos com essa impossibilidade se contentaram, por alguns momentos, com a ideia de atirar contra as pedras bebês babilônicos (Armstrong, p. 82).
Um novo profeta, cujos oráculos  e salmos foram, posteriormente, acrescentados aos de Isaías, pedia calma aos mais revoltados entre os israelitas. O acréscimo desses textos deu origem ao Segundo Isaías.
No exílio da Babilônia, alguns judeus começaram a adorar os antigos deuses babilônicos, ainda que outros tenham desenvolvido uma nova consciência religiosa. Naquele tempo, o Templo de Israel estava em ruínas e, impedidos de participar de suas liturgias, os hebreus só tinham Javé. Foi graças ao Segundo Isaías que Javé foi declarado o único Deus.
Sabe-se que a construção do que viria a ser considerada a literatura bíblica contou com uma série de acréscimos e adaptações. Uma dessas adaptações é ilustrada no mito do Êxodo na seguinte passagem, cuja confecção se deu pela articulação de metáforas que evocam a vitória de Marduque sobre Tiamat, o mar primordial.


E Javé secará o braço de mar do Egito
Com o calor de seu sopro
E estenderá a mão sobre o rio [Eufrates]
E o dividirá em sete canais, para que
Se passe por ele a pé enxuto
E haverá caminho para o resto do seu povo [,,,]
Como houve para Israel quando saiu da terra do Egito
(Isaías, 11, 15, 16)


No Primeiro Isaías, a história assume a forma de um aviso divino. No Segundo Isaías, em seu livro Consolação, a história engendra nova esperança para o futuro. Os dois livros codificam interpretações da história, com base em pressupostos de fé. No Segundo Isaías, alimentava-se a crença de que Javé resgataria Israel novamente. Deus era o Senhor da história: Ele a projetava e a conduzia segundo seu poder e vontade. Ele era o único Deus que realmente importava. E o Segundo Isaías o faz declarar categoricamente: “Não há outro Deus além de mim” (Isaías, 46, 1). Escusa dizer que essas interpretações são também produzidas ideologicamente e devem ser compreendidas como partes integrantes da materialidade histórica da ideia de Deus. O Deus hebreu é um Deus que intervém na história.
O Segundo Isaías não tardou em desqualificar os deuses dos gentios, proclamando a soberania de Javé. Para o autor do Segundo Isaías, nem Marduque nem Baal (deus cananeu) eram os autores da Criação, mas apenas Javé. Consequentemente, pela primeira vez, os israelitas se interessaram, de fato, pelo papel de Javé na criação, provavelmente pela influência dos mitos cosmológicos da Babilônia (p. 83).
Conforme vimos, ao apresentar o papel que desempenhou o surgimento da escrita no estabelecimento do monoteísmo judaico, a história escrita de Javé foi-se constituindo por adaptações de fontes literárias estrangeiras. Essas adaptações literárias, essas reescrituras baseadas em fontes externas também são aspectos da materialidade histórica da ideia de Deus. Deus é também produto discursivo. Mas não devemos tomar discurso como sinônimo de texto. O discurso é prática social historicamente situada, conectada dialeticamente com outros elementos da vida social. O discurso é moldado pela estrutura social e, ao mesmo tempo, constitutivo dessa estrutura. Entendido como modo de ação social e forma de representação, o discurso tem uma materialidade histórica. Os profetas, como temos visto, agiam por meio do seu discurso; procuravam atuar socialmente por meio de seu discurso; alguns procuravam mudar a ordem social de seu tempo por meio de suas práticas discursivas; no entanto, essas práticas eram também moldadas pela forma como se organizava a sociedade em que eles viviam.
Leia-se o trecho abaixo, tomado a Armstrong:

“Se Javé derrotara os monstros do caos nos tempos primordiais, seria muito simples para ele redimir os israelitas exilados. Percebendo a semelhança entre o mito do Êxodo e as narrativas pagãs da vitória sobre o caos aquático no começo dos tempos, o Segundo Isaías exortou seu povo a esperar com confiança uma nova demonstração divina”.
(p. 83)


Acima, é especialmente notável o sentimento de esperança por uma intervenção divina benéfica. O autor bíblico escreve para estimular o povo a perseverar na confiança na intervenção benéfica de Javé.
No trecho seguinte, o autor do Segundo Isaías remonta à vitória de Baal sobre Lotan, “o monstro marinho da criação Cananéia”, chamado também de Raab, o Crocodilo e o Abismo.


Desperta, desperta!
Veste-te de força,
Braço de Javé
Desperta, como antes,
Em tempos de gerações há muito passadas.
Não cortaste Raab ao meio,
E transpassaste o Dragão
Não secaste o mar;
As águas do grande Abismo
Para fazer do leito do mar
Uma estrada
Por onde passaram os remidos?
(Isaías 51, 9, 10)


No exílio babilônico, Javé sobrepujou seus rivais na imaginação religiosa dos israelitas (Armstrong, p. 184), e o paganismo deixou de ser atraente. Nascia, pois, o judaísmo. Deve-se frisar o papel desempenhado por Javé num período histórico repleto de adversidades: Javé incutia esperança nos que nele criam. Ele era o signo da Salvação em tempos em que a opressão andava em par com a injustiça, e a escravidão e o exílio destruíam a dignidade e a identidade de um povo, que se acreditava eleito por Ele.
Javé tornara-se, portanto, o único Deus, sem que, para tanto, fosse necessário mobilizar uma retórica filosófica. Nas palavras de Armstrong,

“Como sempre, a nova teologia venceu não por ser racionalmente demonstrável, mas por conseguir evitar o desespero e incutir a esperança”.
(p. 84)


Evitar o desespero é, para a consciência religiosa, ainda hoje, o verdadeiro sentido da fé. Esse sentido não se presta, sem alguma forma de aborrecimento, ao exame racional. Por isso, para a maioria dos fiéis dos três grandes monoteísmos, a fé dispensa justificação racional. Não é certo, contudo, concluir daí que a fé cristã jamais se socorreu de uma justificação racional. A história da teologia cristã atesta os esforços por conciliar fé e razão. Eles se encontram na pena de Santo Agostinho (354-430 d.C), de Santo Anselmo (1033-1109), de São Tomás (1221-1274), por exemplo. Não é exagero dizer que a teologia cristã é uma teologia de base racional.
Convém lembrar que o Deus do Segundo Isaías não era acolhedor. Abaixo, ilustra-se a transcendência de Deus ao mundo e ao conhecimento humano: Deus é incognoscível e inefável.

Porque meus pensamentos não são vossos pensamentos
Nem vossos caminhos meus caminhos, diz Javé.
Porque assim como os céus são mais altos que a terra,
Assim são meus caminhos mais altos que vossos caminhos,
E meus pensamentos mais altos que vossos pensamentos.
(Isaías, 55, 8,9)

O que a fé, nutrida na imaginação, separa o exame racional torna transparentemente relacionado. O autor de Isaías afirma serem de naturezas distintas os pensamentos de Javé e dos homens, da mesma forma o são os propósitos, as intenções. Essa distinção essencial entre pensamentos, intenções divinas e pensamentos, intenções humanas marca a superioridade da natureza divina à natureza humana. A razão de Deus é superior à razão humana; os propósitos de Deus mais elevados do que os propósitos humanos. Por isso, o homem jamais poderá conhecer a mente, a natureza e os propósitos de Deus. Essa interpretação se consagrou no imaginário social ocidental tecido pelas malhas da cultura judaico-cristã. Ela reaparece, ainda que sob formas sutilmente diferentes, mas conservando o mesmo conteúdo, nas consciências religiosas da modernidade.
No trecho de Isaías, Deus é representado como um ser que não se deixa cercear nos conceitos e palavras humanos. Todavia, Javé nem sempre estava disposto a atender os apelos de seu povo. O caráter universalista de que está impregnada a ideia de Deus é patente neste trecho de Isaías, no qual o autor dá testemunho de seu anelo por um tempo em que o Egito e a Assíria também se renderiam a Javé.

“Bendito seja meu povo do Egito, e da Assíria, obra de minhas mãos, e de Israel, minha herança”.
(Isaías, 19: 24, 25)


Desnecessário dizer que o autor de Isaías faz Javé falar; mas uma interpretação que vê Javé como mero personagem de um literatura construída com uma grande coleção de escritos históricos, memórias, lendas, contos folclóricos, propaganda real, historietas, profecia e poesia antiga não chega a reconstruir o sentido profundo que reúne a fé de um povo que lutou por sua independência aos esforços por restituir incessantemente sua identidade nacional. Mais do que uma personagem literária, Javé parece ter sido a ideia mais cara com que a tinta e o sangue de homens foram derramados para registrar uma história que atravessou gerações para dar forma a sensibilidades de muitas épocas até os nossos dias. Nos tempos pré-estatais, o culto de Javé dava solidez a aliança entre as tribos. A liga era de caráter sagrado e Javé seu fundamento.

À guisa de conclusão, para os que, como eu, não creem na existência de qualquer forma de divindade, não creem em qualquer domínio sobrenatural, estudar as circunstâncias históricas em que se desenvolveu a ideia de Deus é corroborar a convicção de que, mesmo esse Deus que, desde as origens, se apresentou com clara vocação universalista, é produto da história humana. Por conseguinte, não há razões para elegê-lo, não mais que a qualquer outra forma de deus, para o posto de deus verdadeiro ou real. Também as razões dessa eleição devem ser buscadas nas malhas da História.