Mostrando postagens com marcador Lucidez. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Lucidez. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

"Nietzsche foi um bon vivant: ele soube desferir seus golpes" (BAR)

                                      


                

                  Contra o cansaço endêmico


Em entrevista a Silvie Jaudeau, o filósofo romeno E. M. Cioran responde a diversas perguntas sobre sua vida e obra. A certa altura, Jaudeau pergunta ao filósofo: por que o senhor rompeu com a poesia? -  ao que responde Cioran:[1]


“Por esgotamento interior, por enfraquecimento da minha capacidade de emoção. Chega um tempo em que se fica ressecado. O interesse pela poesia está ligado a essa frescura do espírito sem a qual rapidamente os artifícios são percebidos. O mesmo vale para a prosa. Na medida em que fico mais velho, escrever não me parece essencial. Livre de um ciclo de tormentos, descubro enfim a dor da capitulação (...)”.



O esgotamento interior e o ressecamento a que se refere Cioran não são apenas sintomas do envelhecimento e da proximidade do fim da vida. São sintomas da apreensão da vanidade de tudo que, outrora, lhe parecia indispensável. Na juventude, para enfrentar suas crises de insônia e evitar que, afundado em seus tormentos, viesse a pôr fim a sua vida, Cioran dedicou-se a escrever. Escrever, segundo ele mesmo confessou, foi sua única alternativa para evitar o suicídio. A resposta de Cioran é reveladora de um homem já cansado da vida; mas esse cansaço não é meramente um estado fisiológico tardio; trata-se de um estado que o acompanhou durante quase toda a sua vida, que marcou profundamente sua obra. Que este cansaço  tenha-o mortificado ainda na juventude prova-o o texto Esgotamento e agonia de Nos Cumes do Desespero, no qual o jovem Cioran escreveu “quero morrer, mas lamento querer morrer”[2]. As páginas de Cioran não são, para mim, simples objetos de estudo e reflexão; são testemunhos de experiências que me são congênitas. Todo o sentido da filosofia, para mim, se justifica nessas páginas. A atmosfera asfixiante, de um pessimismo clarividente e desesperador, combinado com um ceticismo corrosivo, deleita meu espírito tanto quanto se parece com a atmosfera em que, há alguns anos, compus muitos de meus textos.
Ainda uma segunda pergunta dirigida a Cioran acarreta uma resposta que deve ser aqui referida. Jaudeau pergunta ao filósofo romeno: A sua verdade não reside no silêncio oposto hoje aos que ainda esperam livros do senhor?. Leia-se a resposta.


“Talvez; mas se não escrevo mais é por estar farto de caluniar o universo. Sou vítima de uma espécie de desgaste. A lucidez e a fadiga venceram-me – falo de uma fadiga filosófica tanto quanto biológica -, algo se rompeu em mim. Escreve-se por necessidade, e a lassitude elimina essa necessidade. Chega um tempo em que nada disso interessa mais.”



Eis aí, mais uma vez, o testemunho de alguém que foi vencido pela vida; não porque foi inapto fisiologicamente para suportá-la, mas justamente porque soube resistir a ela tão profundamente que a desmascarou para apresentá-la tal como é: um acontecimento sem sentido e sem propósito. A lucidez lhe foi o ônus por ter suportado durante tanto tempo a vida. A lucidez, porquanto é um estado de compreensão penetrante, cirúrgica, inquietante, revela aquilo que se mantivera encoberto por nossas ilusões (no sentido freudiano, a saber, por crenças motivadas pelo desejo). Por isso, em Do inconveniente de ter nascido, ele asseverou: “Relativamente a todo e qualquer ato da vida, o espírito desempenha o papel de desmancha-prazeres”.[3] Esse papel é extensivo à lucidez; no entanto, mais do que ser um estraga-prazeres, a lucidez costuma fustigar a ponto de, como no caso de Cioran, tornar-nos lassos. O tempo em que a lucidez atinge seu ápice é o tempo em que “nada mais interessa”.
De que modo busco compensar o cansaço contaminante de Cioran é o que minhas próximas linhas hão de explicar. A explicação, a fim de que seja o mais inteligível possível, deve começar pelo esclarecimento do significado deste meu enunciado: “Ter um alvo, um adversário sobre o qual possamos lançar nossos ataques – é este meu remédio contra o cansaço endêmico da vida”.
Esse enunciado, eu o produzi entre um trecho e outro de Nietzsche. Enquanto me mantinha debruçado sobre o livro A Vontade de Potência, ocorreu-me que Nietzsche pôde viver a vida que tanto o ocupou em sua filosofia, em meio aos seus tormentos costumeiros, porque soube aproveitar a vontade de viver para atacar seus adversários com o refinamento de quem sabe esperar o tempo oportuno. Quem são os adversários aos quais se opunha o autodenominado primeiro imoralista? É o próprio Nietzsche que nos esclarece, em Ecce Homo (Por que sou um destino?):


No fundo, são duas as negações que encerra em si a minha palavra imoralidade. De um lado, eu nego um tipo de homem que até agora tem sido considerado como superior: o dos bons, dos benévolos, dos caridosos; de outro, contradigo uma espécie de moral que chegou a adquirir certa preponderância, chamada mais claramente a moral decadente, a moral cristã”.


A filosofia nietzschiana combinou duas formas de entusiasmo: um entusiasmo ofensivo, combativo, que identificou os adversários para atacá-los  em suas trincheiras; e um entusiasmo afirmador, graças ao qual nos ofereceu belas páginas de uma lucidez fortificante. Contra o veneno que enfraquece a vida, Nietzsche ofereceu um antídoto: o seu Zaratustra, o seu homem dionisíaco, o seu amor fati. Nietzsche, que se insurgiu ferozmente contra as tendências negadoras da vida – reunidas sob as categorias do niilismo e do pessimismo, em suas formas diversas – não evitou o reconhecimento de que a vida é desfazimento, é dor, é sofrimento. Sua ousadia consistiu em condenar aqueles que, enfraquecidos pela consciência desta verdade, insistiam em desaprová-la, em condená-la.

A condição de existência do homem é a mentira; de forma diversa, seria não querer ver de modo recalcitrante como é feita, no fundo, a realidade. Esta não é tecida de forma a estimular a todo momento os instintos de benevolência, nem muito menos de maneira a permitir em qualquer ocasião a ingerência de mãos estúpidas e boas”.



Segundo Nietzsche,  o otimista é tão decadente quanto o pessimista; mas, ainda consoante Nietzsche, o otimista talvez seja um tipo mais nocivo porque nunca diz a verdade. Costumeiramente afirma sua “felicidadezinha” na mentira. É um tipo caluniador da vida.


Eu sou o primeiro imoralista; por isso, sou também o destruidor por excelência”.


O primeiro imoralista foi um destruidor que se pretendia também criador, que profetizava um tempo em que os homens seriam artistas.
Seu ateísmo foi reconhecido como instintivo, conforme atesta na passagem seguinte do texto Por que sou tão inteligente:

““Deus”, “imortalidade da alma”, “redenção”, “além”, todos esses são conceitos que nunca levei em conta; nunca com eles sacrifiquei o meu tempo, nem mesmo em criança; talvez nunca fosse bastante ingênuo para fazê-lo? Para mim, meu ateísmo não é uma consequência, nem mesmo um fato novo: existe comigo por instinto. Sou bastante curioso, suficientemente incrédulo, demasiado insolente para contentar-me com uma resposta tão grosseira. Deus é uma resposta rude, uma indelicadeza contra nós, pensadores; antes, dizendo-se a verdade, não é senão um tosco empecilho contra nós mesmos: não deveis cogitar dele!”.



O Deus cristão esteve, sem dúvida, na linha de frente dos ataques ferinos de Nietzsche. Deus – bem notara o filósofo – era a própria antítese da vida. O cristianismo paulino não é senão a expressão da decadência. O cristianismo, retirando da vida qualquer valor em favor de um “além-mundo”, caracterizado por levar à fadiga os instintos, é uma religião niilista. Nietzsche acusa o cristianismo – e a prática missionária de Paulo, particularmente – de estimular a má consciência “contra o sentimento de dignidade da alma nobre”. Contra o Deus que enfraquece, Nietzsche escreveu:

Ensino o não em face de tudo quanto torna fraco – de tudo quanto esgota. Ensino o sim em face de tudo quanto fortifica, do que acumula forças, do que justifica o sentimento de vigor”[4]


A radicalidade da crítica do conceito de Deus, levada a efeito por Nietzsche, repousa no fato de ele ter conseguido, como poucos, operar uma incisão semântica que permitiu expor os sedimentos de sentido perniciosos encobertos por um longo trabalho de doutrinação. Em Ecce Homo, lemos:

“O conceito de “Deus” foi arquitetado como antítese ao de vida, tendo sido reunido nele, em terrível unidade, tudo o que havia de abjeto, de venenoso, de calunioso: todo o ódio mortal contra da vida”.


Com a invenção do conceito do Deus cristão, o homem torna-se culpado; a vida, objeto de renúncia; a “mundanidade”, de desaprovação.
O que as páginas de Nietzsche nos ensinam, em essência, é que a filosofia só pode estar a serviço da vida (e não pode ser diferente!) se for para afirmá-la contra as diversas tendências que se orquestram para enfraquecê-la, para negá-la.  A vida, enquanto vontade de poder, é um pathos – o fato donde resulta um devir e uma ação.
De que modo, afinal, compenso o peso do cansaço mortificante das páginas cioranianas? A resposta salta evidente: é necessário sorver o vigor nietzschiano compreendendo que o impulso para o "viver mais" depende da força com a qual atacamos as tendências que conspiram para aniquilá-lo.





[1] CIORAN, E. Entrevistas. Porto Alegre: Sulina, 2001, p. 29.
[2] CIORAN, E. Nos Cumes do Desespero. São Paulo: Hedra, 2011, p. 29
[3] CIORAN, E. Do inconveniente de ter nascido. Lisboa: Letra Livre, 2010, p. 44.
[4] NIETZSCHE, F. Vontade de Potência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 201.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Aprender a viver








Ontem conversávamos sobre o ser ateu e você me contava de sua impaciência com pessoas que insistem em importuná-la, tentando  dissuadi-la de sua postura intelectual em face da existência. Querem fazê-la dobrar-se diante de uma verdade inabalável, indiscutível, insuspeitável e absoluta. Elas se cuidam porta-vozes da verdade atemporal ou eterna, que provém de um Ser transcendente ao qual a inteligência humana deve se submeter. Eis que lhes apresentamos, em confronto, a filosofia – ou, melhor seria, a atitude filosófica. A filósofa brasileira Marilena Chauí a define como uma recusa a aceitar o senso-comum, as crenças, opiniões e valores correntes da vida cotidiana, que se nos são apresentados como estabelecidos e inquestionáveis. A esse aspecto negativo na definição do termo, Chauí acrescenta um aspecto positivo, a saber, o fato de a atitude filosófica ser uma interrogação sobre o que são as coisas, os fatos, as ideias, os valores, sobre quem somos nós. Também – ensinará a filósofa – a atitude filosófica encerra, além da pergunta “o que é?”, as perguntas “por que é?, “como é?. E eu acrescentaria o “para que é?”. Em suma, o que apresentamos a essas pessoas que vivem confortavelmente no mundo, no colo de sua “verdade” salvífica é a capacidade legitimamente humana de questionar, de duvidar.
Durante nossa conversa, eu lhe contei de minha experiência recente quando me vi envolvido num debate intelectualmente árduo sobre Deus e a descrença nele com pessoas para as quais os livros são permanentemente um estranho. Em tais circunstâncias, argumentar torna-se uma tarefa de Sísifo. E você bem o sabe, amiga. Por isso, antes de dar-se o incômodo de defender suas posições, melhor será interrogar seu interlocutor sobre quantos e quais livros já leu. Do contrário, é como arar terras inférteis. Um debate só prospera quando há mentes que o impulsionem; em face de pessoas cujos espíritos parecem estar atrofiados ou paralisados, o debate, se não se torna impossível, torna-se, certamente, improdutivo.
Vou direto ao assunto deste texto. Antes, porém, preciso lembrá-la de que também lhe disse que me tornei ateu não porque meu nascimento me legara certa dose de sofrimento (do qual não tenho remota lembrança), mas porque descobri a filosofia. E essa descoberta exerceu um efeito psicológico em mim à guisa de uma Iluminação (intelectual). A filosofia me permitiu a revelação, nada semelhante à suposta revelação de Deus. Trata-se de uma revelação tangível, visceral, que me lançou uma lucidez sobre alma, ajudando-me a viver melhor. Não me precipito em afirmar que ela foi responsável por me desenterrar da cova da depressão onde eu jazia  ou - se preferir outra imagem que exprime bem o sofrimento que acomete uma pessoa deprimida – por me resgatar das regiões abissais onde eu estava me afogando.
Hoje, há pouco, encontrei num capítulo de um livro do filósofo e ex-ministro da França Luc Ferry uma exposição clara e didática (porque, segundo o próprio autor, destinada a leitores que pouco sabem de filosofia) sobre o lugar da filosofia na vida do ser humano. Lendo o texto, encontrei nele as razões por que a filosofia abriu-me o caminho de minha salvação. Em tempo, você verá com que sentido emprego esta palavra. Não se trata, evidentemente, de uma salvação no sentido que lhe dá a religião, porque ela não é suspeita ou incrível; ao contrário, ela pode ser bastante crível, porque tangível, porque real.
Espero que eu consiga não só dar a saber a você e aos possíveis leitores que se dispuserem a acompanhar-me na leitura destas linhas as razões pelas quais a filosofia provocou-me um terremoto nas estruturas cognitivas de minha mente, libertando-me dos esquemas rigorosos e herméticos com que eu, antes, ainda psicologicamente dependente da muleta religiosa, interpretava a realidade e vivia a vida, como também lhe estimule (e nos leitores) o irresistível interesse em ler o livro de Luc Ferry. Meu propósito é também compartilhar leitura, hábito que não abandono e que cuido seja humanamente profícuo. É quando se me insufla o espírito docente que me incita a aprender mais quando me envolvo em atividades que promovem o saber. Aprender em conjunto, aprender compartilhando... é disso que se trata.
O livro de Luc Ferry cujo primeiro capítulo há pouco li e que me orientará as reflexões que doravante apresentarei é Aprender a viver – filosofia para os novos tempos (2010). O primeiro capítulo intitula-se de O que é a filosofia?. Nele, o autor procurará ensinar ao leitor incipiente em filosofia ou que quase nada dela sabe, o que é filosofia. Definir filosofia é já um grande e primeiro desafio para qualquer especialista na área e o autor o reconhece desde o início. É preciso, de antemão, suspeitar da validade do modo como modernamente a filosofia vem sendo definida, que, segundo o autor, é um modo reducionista. Nas palavras de Ferry:


“Uma das principais extravagâncias do período contemporâneo é reduzir a filosofia a uma simples “reflexão crítica” ou ainda a uma “teoria da argumentação”. A reflexão e a argumentação são, sem dúvida alguma, atividades altamente apreciáveis. É verdade que são mesmo indispensáveis à formação dos bons cidadãos, capazes de participar com alguma autonomia da vida da cidade. Mas trata-se aí apenas de meios para outros fins diferentes da filosofia – pois esta não é nem instrumento político nem muleta da moral”.
(p. 20)

O filósofo não nega que “reflexão crítica” e “um modo de argumentar” sejam partes indispensáveis a todo empreendimento filosófico. Melhor dizendo, é próprio da filosofia ser uma atividade de pensamento, que visa à reflexão crítica e que se fundamenta numa argumentação rigorosa. No entanto, segundo Ferry, - e isso ficará evidente adiante – não consistem essas etapas o cerne da filosofia, não são elas que a definem como um campo do saber específico. O que distingue a filosofia de outros campos do saber? Alguns dirão que são as questões que levanta. A filosofia ocupa-se com os fundamentos da realidade, visa a atingir o universal, representa ela um esforço para chegar às raízes dos problemas. Na filosofia, busca-se atingir a totalidade do sentido. Luc Ferry é mais claro, nesse tocante, aos nos patentear, afinal, a questão fundamental sobre a qual se constroem os diferentes sistemas filosóficos. Leiamos este passo:

“Ela [a filosofia] parte de uma consideração muito simples, mas na qual se encontra latente a interrogação central de toda filosofia: o ser humano, diferentemente de Deus – se é que ele existe – é mortal ou, para falar como os filósofos, é um “ser finito”, limitado no espaço e no tempo. Mas, diferentemente dos animais é o único que tem consciência de seus limites. Ele sabe que vai morrer e que seus próximos, aqueles a quem ama também. Ele não pode, portanto, evitar interrogar-se sobre essa situação que, a priori, é inquietante, até mesmo absurda e insuportável. Certamente é por isso que ele se volta de imediato para as religiões que lhe prometem a “salvação”.
(p. 21)

O homem está no centro das preocupações filosóficas. É a condição humana que demanda reflexão filosófica. Segundo Ferry, “a equação “mortalidade + consciência de ser mortal” é um coquetel que carrega em germe a fonte de todas as interrogações filosóficas” (p. 33).
Por limitações de tempo e espaço, preciso me ater ao que considero essencial no texto de Ferry e que melhor esclarecerá o benefício intelectual e psicológico que me acarretaram os estudos filosóficos. É na seção A finitude humana e a questão da salvação que seu discurso se reveste de um teor intelectualmente robusto.
Para Ferry, tanto quanto para muitos filósofos antigos, a filosofia ajuda-nos a viver melhor, a despeito de nossas angústias, a despeito da consciência de nossa finitude. Ela nos convoca a buscar uma “salvação” por nós mesmos, para o que sugere que façamos bom uso da razão. Assim, o autor determinará o lugar da filosofia em cotejo com o da religião. Ele definirá a filosofia em relação à religião. Para tanto, reconhecerá, de início, o que se segue:


“A filosofia – todas as filosofias, por mais divergentes que às vezes sejam nas respostas que tentam oferecer – promete também que podemos escapar dos medos primitivos. Ela tem, pois, em comum com as religiões, pelo menos na origem, a convicção de que a angústia impede de viver bem, ela nos impede não apenas de ser felizes, mas também de ser livres. Temos aí, como eu já lhe havia sugerido com alguns exemplos, um tema onipresente entre os primeiros filósofos gregos: não se pode pensar ou agir livremente quando se está paralisado pela surda inquietação que gera, mesmo quando se tornou inconsciente, o temor do irreversível. Trata-se, pois, de chamar os homens à “salvação”.”
(p. 29)

A “salvação”  oferecida pela filosofia é intransferível, ou seja, não é dependente de um Outro que nos transcende, mas depende de nossa própria iniciativa e de nosso esforço racional. Antes de trazer à consciência do leitor passagens extremamente importantes para a fundamentação de meus propósitos, preciso fazer ver que a filosofia, quando situada em oposição à religião, acaba por ser desprestigiada na perspectiva teológica cristã. Assim é que, para muitos teólogos – exceto para os que se esforçaram por tornar a filosofia uma adenda da teologia, como São Tomás e Santo Agostinho – a filosofia se confunde com o diabólico, justamente pela ruptura que faz com o discurso dogmático que pretende subsidiar a fé. Observa Ferry que a palavra diabo significa, em grego, “aquele que separa”. Mas não se trata de qualquer separação; trata-se da separação da relação vertical do homem com Deus.


“Para um teólogo dogmático, a filosofia – salvo, é claro, se ela se submete completamente à religião e se põe inteiramente a seu serviço (mas então ela não é mais verdadeiramente filosofia.) – é por excelência obra do diabo, pois, ao instigar o homem a se voltar contra as crenças para fazer uso da razão, do espírito crítico, ela o arrasta insensivelmente para o terreno da dúvida, que é o primeiro passo para longe da tutela divina”.

(pp. 28-29)

Esse trecho de Ferry merece alguma consideração. Quero destacar o que se segue: 1o) ao contrário do que nos sugere a imagística teológica, construída com base na bíblia, uma leitura secularista nos permitiria dizer que o diabo não é aquele que desvia o homem do caminho que leva a Deus, mas aquele que esclarece o homem, instiga-o a lançar mão do expediente da dúvida, do questionamento (ora, nada mais humano do que duvidar, do que desejar saber; 2o) Ao ensinar a confiança cega (fé) como virtude, a religião não abre concessão à dúvida. É preciso resistir às tentações do diabo, que quer inculcar-nos a dúvida e conservar-nos na obediência inquestionável a Deus.


“Por não acreditar num Deus salvador, o filósofo é antes de tudo aquele que pensa que  se conhecemos o mundo, compreendendo a nós mesmos e compreendendo os outros, tanto quanto nossa inteligência o permite, vamos conseguir, pela lucidez e não por uma fé cega, vencer nossos medos”.

(p. 24)


Não é custoso concluir pela incompatibilidade entre as duas atitudes em face da realidade: a religiosa e a filosófica. Trata-se de duas vias que tomam direções opostas, por vezes, conflitantes: uma propõe-nos a salvação pela fé; a outra, a “salvação” pela razão, que culmina na sabedoria, estado a que chegamos quando conseguimos viver mais felizes e livres, porque reconciliado com a vida, porque não mais perturbado com a inevitabilidade da morte, nem confortáveis na esperança de que se cumpra uma promessa cujo único fiador é um Outro que nos transcende e de cuja existência não podemos ter certeza.
Ferry nos lança a seguinte questão: “Toda filosofia estaria destinada a ser ateia?” (p. 30), ao que ele não apresenta uma resposta, pelo menos não diretamente. Preferirá, contudo, no decorrer do texto, nos mostrar que a filosofia é preferível porque somente ela nos abre o caminho da liberdade de pensamento e o caminho  para a lucidez. Assim, escreverá:


“Filosofar, mais que acreditar, é, no fundo, - pelo menos do ponto de vista dos filósofos – já que o dos crentes é, com certeza, diferente -, preferir a lucidez ao conforto, a liberdade à fé. Trata-se, em certo sentido, é verdade, de “salvar a pele”, mas não a qualquer preço”.

(p. 31)


Por que não se submeter a uma doutrina de salvação cujo único caminho é Deus? Outra questão que nos levanta Ferry. E a resposta dada pelo filósofo merece ser aqui reproduzida na íntegra. Ele nos apresenta duas razões, a primeira das quais lemos a seguir:

“Primeiramente – e antes de tudo – porque a promessa que as religiões nos fazem para acalmar as angústias da morte, a saber, aquela segundo a qual somos imortais e vamos reencontrar depois da morte biológica os que amamos, é, como se diz, boa demais para ser verdadeira. Boa demais e muito pouco crível a imagem de um Deus que seria como um pai para os filhos. Como conciliá-la com a insuportável repetição dos massacres e das desgraças que se abatem sobre a humanidade: que pai deixaria seus filhos no inferno de Auschwitz, de Ruanda, do Camboja? Um crente dirá, sem dúvida, que é o preço da liberdade, que Deus fez os homens livres e que o mal lhes deve ser imputado. O que dizer, porém, dos inocentes? O que dizer dos milhares de criancinhas martirizadas durante esse crimes ignóbeis contra a humanidade? Um filósofo acaba duvidando de que as respostas religiosas bastam. De alguma forma, ele acaba sempre pensando que a crença em Deus, que surge como por reação à guisa de consolo, nos faz talvez perder mais em lucidez do que ganhar em serenidade. Ele respeita os crentes, é claro. Ele não supõe necessariamente que eles estejam errados, que sua fé seja absurda, ainda menos que a existência de Deus seja certa. Como, verdade seja dita, se poderia provar que Deus não existe? (...)”.

(pp.30-31)


Não sou tão condescendente quanto o autor ao nos fazer acreditar que os filósofos não podem supor que os crentes estão errados. Alguns parecem supor. Também não entendo por que seria necessário provar a inexistência de Deus tanto quanto seria a inexistência de duende, fadas e Papai Noel. Na falta de evidências para a existência de tais seres, não vemos razão para acreditar nela. E eu diria que se a questão da existência x inexistência de Deus fosse investigada em termos de probabilidade, não tenho dúvidas de que a argumentação orientada para a maior probabilidade da inexistência sobrepujaria o esforço argumentativo em sentido contrário. Para mim, “provar a inexistência de Deus” é um falso problema. Ninguém se insurge contra quem não se dá o trabalho de tentar provar a inexistência de Papai Noel. O problema, eu o reconheço, é que a ideia de Deus é um estratagema com que uma poderosa instituição ideológica milenar tenta dar por encerrado os dois maiores problemas humanos: o do sentido da vida e o da morte. Enquanto permanecer o mistério, Deus continuará a ser a única resposta para milhões de pessoas incapazes de se livrar dos grilhões psicológicos da religião para experimentar um dos maiores benefícios da filosofia – a autonomia de pensar, porque a resposta que conforta, que consola, a despeito do sofrimento, a despeito da injustiça, a despeito dos argumentos que possamos oferecer em favor da inexistência de um ser de tal magnitude. Não é aqui o lugar para levar adiante meu esforço argumentativo nessa matéria.
Em favor da filosofia, Ferry acrescenta:

“O bem-estar não é o único ideal sobre a Terra. A liberdade também é um ideal. E se a religião acalma as angústias, fazendo da morte uma ilusão, corre o risco de fazê-lo ao preço da liberdade de pensamento. Porque, de certa forma, ela sempre exige em troca da serenidade que pretende oferecer que, num momento ou noutro, a razão seja abandonada para dar lugar a fé, que se ponha termo ao espírito crítico para que se aceite acreditar. Ela quer que sejamos, diante de Deus, como crianças, não adultos em quem ela não vê, afinal, senão arrogantes raciocinadores”.

(p. 31)

Por fim, é forçoso  concluir que escolher pela filosofia é um ato que requer coragem, justamente porque a filosofia, ao contrário da religião, não promete aquilo de cujo cumprimento não pode ter certeza. Religiosos ou não, filósofos ou não, sabemos que vamos morrer. Sabemos que nossa vida está desde o nascimento limitada a certa duração. Nenhum de nós, religioso ou não, filósofo ou não, sabe o que há depois da morte. Todos sabemos, contudo, que a morte é o retorno ao inorgânico. Sabemos disso ao ver um cadáver. A morte põe fim à vida consciente. Sabemos que os que morreram não retornam mais à vida. Sabemos que as pessoas falecidas que amamos não poderão mais estar conosco. Assim, o filósofo lhe propõe: em face da inevitabilidade da morte e conscientes de nossa finitude, vamos enfrentá-la pelo exercício da reflexão que leva a uma compreensão mais clara e verdadeira dessa condição, a fim de que possamos alcançar um estado de sabedoria, indispensável para viver feliz e livremente. Ao contrário, o religioso propõe: não se preocupe, a morte é uma ilusão, toda pessoa que viver segundo a vontade de Deus terá o benefício da salvação, ou seja, da imortalidade.
A morte nunca me atormentou. Não tenho medo de morrer. Quiçá, esse destemor encontre raízes na aurora de minha existência, já que meu nascimento manteve um longo namoro com a morte. Encontrei na filosofia uma forma poderosa de enfrentar o sofrimento, mais do que nunca dantes encontrara na religião, que aliás nos ensina a suportá-lo com resignação. Sofrer, por vezes, é inevitável. Muitos sofrem (pessoas e animais). A vida nos dá testemunho do sofrimento todos os dias. Mas não posso aceitar a crença de que sofrer é necessário. Sofrer não o é. E é claro que buscamos o prazer e desejamos não sofrer. Ao contrário do que nos sugere a teologia cristã, que personifica em Jesus a virtude do sofrimento, um modelo a ser seguido  para todo crente que sofre, aquele que se beneficia da filosofia começa a recusar a ideia de que sacrificar-se, como ocorrera com o “cordeiro de Deus”, em favor de uma ilusão, possa ser considerado uma virtude. No tocante ao martírio sobre o qual se estabeleceu a Igreja, Marcelo Da Luz nos ensina:


"A Igreja nasceu sob o estigma do martírio de Jesus. Do alto da cruz, o Cristo personifica a reivindicação da religião sobre os corpos dos fiéis. Desde o princípio, os máximos valores cristãos - o perdão dos pecados e a vida eterna - foram associados à autoimulação. A aceitação do sofrimento enquanto exigência ao cumprimento dos insondáveis planos divinos conduz o crente a desvalorização de si e consequente resignação à dor.
(...)"

(Onde a Religião Termina: 2011, p. 145)


Fiquemos, então, com este trecho de Ferry, com o qual ponho termo a este texto, convencido de que a filosofia não só pavimentou o caminho que me levou a aderir ao ateísmo, mas também, sobretudo, me permitiu a reconciliação com a vida e com o humano em mim.


“Se a filosofia, assim como as religiões, encontra sua fonte mais profunda numa reflexão sobre a “finitude” humana, no fato de que para nós, mortais, o tempo é realmente contado e de que somos os únicos seres neste mundo a ter disso plena consciência, então, é evidente que a questão de saber o que vamos fazer da duração limitada não pode ser escamoteada”.

(p. 33)