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quarta-feira, 21 de outubro de 2015

"Mermo quano falamo assim sabemo falá" (BAR)

            
                      

          A influência de aspectos fonéticos na ortografia


Aspectos fonológicos e fonéticos do português brasileiro e ortografia este foi o tema de uma prova do processo de admissão de professores de língua portuguesa da UFF. Os pleiteantes à vaga deveriam, pois, dissertar sobre esse vasto tema, sem que lhes fosse dada qualquer indicação sobre quais  critérios seriam utilizados pela banca na avaliação dos textos. Como se pode ver, tal como se apresenta o enunciado do assunto ao qual os candidatos deveriam dispensar sua atenção, as possibilidades de abordagem são inumeráveis. Quais os aspectos deveriam ser privilegiados? De que modo se deveria considerar a questão ortográfica? De minha parte, a ortografia só poderia ser abordada pontuando as influências de certos fenômenos fonéticos na produção escrita dos usuários da língua. O candidato que decidisse tratar das regras do Novo Acordo Ortográfico não conseguiria estabelecer a unidade de sentido pressuposta pelo tema. Se o tema da ortografia se apresenta coordenado ao tema dos aspectos fonéticos e fonológicos, é lícito supor que se está esperando que o candidato correlacione os dois temas.
Há muitos fenômenos fonéticos que influenciam na produção escrita dos usuários do português brasileiro. Em outros termos, há muitos fenômenos fonéticos que explicam por que os usuários do português, mormente nas fases iniciais de alfabetização, tendem a grafar erroneamente certas palavras. É preciso, pois, ter em conta o fato de que tais erros são, em última instância, decorrentes de fenômenos regulares que se dão na fala dos usuários do português brasileiro. Esses fenômenos podem ser divididos, a título metodológico, em dois grupos: 1) os que pertencem ao grupo dos mais estigmatizados; 2) os que pertencem ao vernáculo geral brasileiro, a saber, que ocorrem na língua falada por todos os brasileiros. Vejamos alguns exemplos de fenômenos em cada grupo.
Comecemos por examinar os fenômenos fonéticos inclusos no grupo 1. O fenômeno do rotacismo carreia, sem dúvida, um alto grau de estigmatização social. O rotacismo consiste na permuta do fonema /l/ por /r/ nos encontros consonantais /bl/, /cl/, /fl/. Os pares bloco > broco; claro > craro; flauta > frauta são exemplos de rotacismo. O rotacismo, nesse ambiente fonológico – em encontro consonantal – é estigmatizado em todo o Brasil. Pode ocorrer também o rotacismo em final de sílaba, como no par tal-co > tar-co. Essa forma de rotacismo é característica de algumas regiões onde se usa o vulgarmente chamado “dialeto caipira” (interior de São Paulo, Sul de Minas Gerais, etc.). Os falantes dessa variedade linguística usam uma consoante retroflexa em sílabas travadas, como em “porta” (o /r/ retroflexo é pronunciado com o levantamento e o encurvamento da ponta da língua em direção ao palato duro).
Outro fenômeno bastante estigmatizado é o da monotongação de ditongos átonos crescentes em posição final. Palavras como notícia, paciência, imundície são, por força desse fenômeno, pronunciadas como notiça, paciença, imundice. Um personagem de televisão ficou conhecido por usar, de forma caricatural, a variante poliça por polícia. Sucede, contudo, que os usuários da língua que se utilizam dessas formas monotonganizadas seguem uma deriva histórica da língua. Na história do português, há muitos exemplos da mesma tendência. A forma latina prigritia deu origem à forma portuguesa “preguiça”; “pretiu”  deu origem à forma “preço”, etc.
Passemos a considerar alguns fenômenos que se situam no grupo 2. Eles caracterizam usos linguísticos comuns a todos os brasileiros. Por exemplo, todos nós, falantes nativos de português brasileiro, independentemente de classe socioeconômica, grau de escolarização, faixa etária, sexo, etc., apagamos o /r/ em final de palavra, sobretudo em final de verbos no infinitivo. Assim, pronunciamos “cantar”, “falar”, “vender” como “cantá”, “falá” e “vendê”. Também alguns substantivos perdem o /r/ final, como “professô”, “dotô” (cf. “doutor”), etc. No caso de “dotô”, ocorre ainda a redução do ditongo /ow/. Casos como este são gerais na fala do brasileiro. A monotongação dos ditongos /ey/ e /ay/ são, particularmente, gerais diante de consoantes palatais ou da vibrante simples (/r/). Vejam-se os exemplos “chêro”, “bêjo”, “pêxe” e “caxa” correspondentes às formas grafadas “cheiro”, “beijo”, “peixe” e “caixa”. Esse fenômeno interfere no processo de alfabetização, dado que a tendência do aprendiz é escrever a vogal simples e não o ditongo. Portanto, não nos devemos surpreender se uma criança, nessa fase de escolarização, escrever “bêjo” em vez de “beijo”, o que não significa dizer que não se deve ensiná-la a grafia correta. O mesmo fenômeno está na origem das formas escritas “carangueijo”, “bandeija” e “prazeiroso”, por exemplo, as quais indicam uma hipercorreção por influência do processo de monotongação na fala. Nesse caso, o falante, por analogia, escreve com ditongo as formas que não têm ditongo. Por um processo de indução, julga que também aquelas palavras têm grafia diferente do modo como se pronunciam, tal como sucede com as formas “cheiro”, “beijo”, “peixe”. A hipercorreção se realiza como processo inverso da monotongação: usa-se ditongo onde não há, nem na fala, nem na escrita, ditongo.
Por fim, veja-se outro caso típico de variação linguística no domínio fonético que influencia na forma como se grafam as palavras. A consoante lateral /l/, quando em final de sílaba ou de palavra, é pronunciada, na maior parte do território brasileiro, como a semivogal [w] (é o nosso “u” de “incauto”). Daí resultam certas dificuldades de escrita, como a grafia das palavras “mal” e “mau”, que se pronunciam de modo indistinto. A vocalização da lateral, comum em formas como “Brasil” (Brasiu), “barril” (barriu), “alto” (auto), “esbelto” (“esbeuto”), leva o falante a produzir, na escrita, frases em que “mau” aparece no lugar de “mal” e vice-versa. Assim, é comum grafar “mau” em “ele se veste mau” e “mal” em “Ele é mal”, malgrado o esforço despendido pelo professor de português na insistência com que diz que “mau” corresponde a “bom” e “mal” corresponde a “bem”, o que significa dizer que “mau” é adjetivo, portanto, que se usa para modificar substantivo, e “mal” é advérbio e que, portanto, se usa para modificar verbo (cf. Ele se veste mal/ Ele canta mal).
No tocante ao apagamento do /r/ em final de palavra, que vimos anteriormente, é importante lembrar, nas formas infinitivas, esse fenômeno nos permite explicar por que são possíveis grafias como “você estar em casa” e “ele dar um bom partido”. Esses casos patenteiam a hipercorreção por influência da tendência geral de apagamento do /r/ em final de palavra, na língua falada.
De tudo que foi exposto, depreende-se facilmente que vários erros de ortografia se elucidam quando compreendemos a influência de certos fenômenos fonéticos na produção escrita dos usuários da língua. Tais fenômenos podem ser gerais, caracterizando o vernáculo brasileiro, ou podem ser característicos de variedades linguísticas bastante estigmatizadas. Mais uma vez, tais fenômenos dão testemunho de um aspecto geral e inerente a todas às línguas conhecidas: a variação e mudança das formas como são usadas pelos seus falantes.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

O caso da "superfluicidade" - considerações morfológicas

                      

                     


                            O uso e a gramática
                                  Desfazendo alguns equívocos

Ontem, numa aula de filosofia, por motivações discursivas, a professora fez uso, com manifesta hesitação, da forma “superfluidade”. Em certo momento de sua fala, ela se referia à “superfluidade da vida”. Imediatamente, um colega interveio para “resolver” a questão, que, àquela altura, poderia estorvar o curso normal da aula, por interessante que fosse (para mim, certamente!). O colega se apressou em reparar o “equívoco”, dizendo que “o “correto” é “superfluicidade”. Imediatamente estranhei, mas preferi manter-me calado, pois, afinal, a aula tinha de prosseguir. A professora deu-se por satisfeita, e o colega, depois de sentenciar sua profunda sabedoria linguística, pôde descansar em sua satisfação. Mas o que aprendi, nestes anos de dedicação aos estudos linguísticos e filosóficos, é que também os linguistas, tais como os filósofos, são indivíduos “insatisfeitos”, “irriquietos”; eles não se contentam com soluções simples, máxime quando claramente equivocadas. Cabe, então, considerar os fatos.
“A vida é supérflua”, dizia a professora. A certa altura, ela precisou formar um correlato morfológico a partir do adjetivo “supérfluo”. Lançando mão de seu conhecimento linguístico intuitivo, formou “superfluidade” a partir de “supérfluo”. É possível demonstrar que a forma “superfluidade” é a forma verdadeiramente usual e rejeitar como usual a forma “superfluicidade”, como recomendada pelo colega? Veremos que a resposta é “sim”.
A língua portuguesa dispõe do sufixo “-idade”, que entra na formação de substantivos abstratos que denotam qualidade ou estado a partir de adjetivos. São exemplos de formações em “-idade”: raridade, honestidade, sinceridade. Tais formas derivam, respectivamente, de “raro”, “honesto” e “sincero”. Esse padrão derivacional é extensivo à forma “supérfluo”, a partir da qual se forma “superfluidade”, pelo acréscimo do sufixo “-idade”. O acréscimo de “-idade”, nas formas consideradas, se acompanha de uma modificação morfofonêmica, já que a vogal temática “-o”é suprimida. Mas modificações desse tipo são  sistemáticas quando do acréscimo de sufixos. O que se dá com a formação “superfluicidade”? Em primeiro lugar, não cabe dizer que ela é “errada”. Também não se pode dizer que ela seja agramatical, porque o aparecimento do fonema /s/ (na escrita, marcado com “c”) é sistemático quando se anexa a certos adjetivos o sufixo “-idade”. Em que condições estruturais, é esta a questão que convém examinar.
Sem mais rodeios, as formas adjetivas terminadas em “-z”, quando recebem o sufixo “-idade”, sofrem alteração morfofonêmica na base. Fonologicamente, as formas “feliz”, “sagaz” e “capaz”, por exemplo, são transcritas como /feliS’/, /sagaS’/, /KapaS’/. Em final de sílaba, “z” tem som de /s/. Esse /s/ é uma fricativa alveolar surda. O fonema /s/ difere de /z/ pelo traço [sonoridade], presente em /z/, e ausente em /s/. Façamos o mesmo procedimento que fizemos com as formas anteriores: vamos anexar às formas “feliz”, “sagaz” e “capaz” o sufixo “-idade”. O resultado dessa operação é “felicidade”, “sagacidade”, “capacidade. Veja-se que, terminando o adjetivo em “-z”, o acréscimo do sufixo “-idade” produz uma forma terminada em “(c)idade”. Ora, a ocorrência da letra “c” é um fato de escrita, mas, fonologicamente, ela marca o fonema /s/, que vimos presente nas formas derivantes /feliS/, /sagaS/, /KapaS/. A alteração para “(c)idade” decorre da necessidade de preservar a sibilante surda /s/ presente nas formas derivantes. Posto isso, há uma condição fonológica para a formação em “-(c)idade”, a saber, a ocorrência de /z/ em sílaba final de palavra. Ora, o adjetivo “supérfluo”, como facilmente se vê, não atende a essa condição, donde não haver a necessidade de formar “superfluicidade” a partir de “supérfluo”.

Que os falantes nativos tenham a propensão a ser naturalmente linguistas é um fato inegavelmente atestado pelos verdadeiros linguistas, isto é, pelos que são linguistas de formação. Tanto aqueles quanto estes se valem de sua intuição linguística quando do uso de sua língua materna (no caso dos linguistas, essa  intuição está impregnada de pressupostos teóricos; é, não raro, iluminada por saberes explícitos sobre a estrutura e o funcionamento da linguagem). O recurso a essa forma de intuição é patente nos momentos em que há hesitação na escolha entre uma forma e outra, como no caso em que devemos escolher entre “preciso de fazer o trabalho” e “preciso fazer o trabalho”, ou ainda, quando a dúvida é mais tenaz, temos de escolher entre “supusesse” e “suposse”, num contexto sintático como “se ele____, (então)...”. No primeiro caso, o falante nativo, não sendo linguista, se valerá unicamente de sua intuição linguística calcada sobre a prática comum de sua língua num dado estado sincrônico, de modo que, provavelmente, escolherá a opção “preciso fazer o trabalho”, muito embora não haja nada no sistema gramatical da língua que desautorize o uso da preposição “de”, quando se articula o verbo “precisar” (ou “necessitar”) a um infinitivo. Notemos que as duas variantes são gramaticalmente aceitáveis, ou seja, são previstas pelo sistema de regras que governam os arranjos sintagmáticos da língua portuguesa, muito embora a ocorrência daquelas variantes pareça correlacionar-se com variáveis sociolinguísticas. No segundo caso, os falantes nativos, ao menos os mais escolarizados, poderão optar por “supusesse” com base no conhecimento, não necessariamente declarado, da constituição morfológica dessa forma, que tem na base a forma “pusesse” (pretérito imperfeito do subjuntivo) do verbo “pôr”. Aqui se impõe uma advertência que é ignorada pelos falantes nativos que não são linguistas de formação: a sistematicidade da língua é produto do uso. Dito de outro modo, a gramática, compreendida como ‘sistema de regras’, emerge do uso da língua, se constitui pelo uso - que é social - da língua. Trata-se, pois, de uma evidência que tem importantes implicações para o tratamento teórico da linguagem e para a lida intuitiva com ela no dia-a-dia. Mesmo não pretendendo enumerar tais implicações, é importante dizer que não há, como queria certa tradição linguística, de um lado a “estrutura da língua”; e, de outro lado, o uso da língua. Na verdade, a estrutura da língua é fixada pelo uso, o qual é sempre governado por regras, quer sejam elas gramaticais, quer sejam elas sociais. É o uso social e histórico da língua que produz as cristalizações que dão a evidência de que a língua é dotada de uma estrutura interna, isto é, de um sistema de unidades e de regras - uma gramática.
No entanto, é justamente porque esse uso é social, porque a língua é uma realidade social, que o uso não estabelece, de uma vez por todas, um sistema rígido ou inflexível de regras e unidades para a língua; esse sistema, que é produzido por força do uso social que fazemos da língua, é flexível, maleável, suscetível a reconfigurações, no entanto, previsíveis pela própria regularidade do uso. Ao produzir a gramática, ou seja, o sistema de regras e unidades da língua, o uso engendra, ao mesmo tempo, o domínio das atualidades e o das virtualidades. Antes de prosseguir, preciso sublinhar que, ao dizer que o uso “fixa a gramática”, não quero dizer que estabelece para além de si um sistema acabado cuja existência lhe é independente. A gramática, como já disse, emerge do uso, o que significa dizer que ela está em constante construção – a língua mesma está em constante construção, em constante fazer-se – no/pelo uso. Essa compreensão de gramática que se faz pela prática da língua é coextensiva à compreensão de que não existe língua fora do uso. Ora, a língua, enquanto sistema de signos abstrato, só tem lugar no trabalho teórico. A língua não se encontra nem nos dicionários (que só listam seus lexemas), nem nos manuais de gramática (que descrevem sua constituição e fixam seus padrões de uso). Também não se identifica com as frases que se tomam isoladamente para fins pedagógicos de análise de sua estruturação. A língua, portanto, é aquilo que os falantes fazem ao interagirem socialmente por meio de arranjos de signos de extensão e complexidade variáveis em contextos sociais determinados. A língua é uma atividade intersubjetiva, uma prática social governada por um conjunto variado de regras gramaticais e sociais.
Pois bem. Disse que o uso engendra os domínios das atualidades e das virtualidades. Cabe, agora, esclarecer o que significa isso. O uso fixa os padrões linguísticos. Tais padrões são atravessados pela tensão entre a flexibilidade e a inflexibilidade. A gramática, que emerge do uso, que é produto do uso, se constitui de domínios de regras, de padrões cuja flexibilidade se estende por um continuum em que é possível verificar os padrões inflexíveis, os quais constituiriam, por assim dizer, o “núcleo duro” da gramática, e os padrões claramente flexíveis. Entre esses dois extremos, há todo um espectro de padrões suscetíveis a restrições. Por exemplo, o falante nativo de português não dispõe da liberdade para usar o artigo depois do substantivo, como em “menino o”, tampouco pode usar a preposição “para” (ou outra qualquer), para introduzir o complemento verbal do verbo “gostar” (cf. * Eu gosto para chocolate). Ele também não pode suprimir a preposição “de” regida pelo verbo “gostar”, produzindo algo como “Eu gosto chocolate”. Esses padrões que não admitem variação, que não são flexíveis constituem, no entanto, parte do conhecimento intuitivo, quase inconsciente, que os falantes têm de sua língua materna. No extremo oposto, onde se situam os padrões variáveis, flexíveis, o falante nativo dispõe de alguma liberdade, senão vejamos. O falante de português pode escolher, tendo em vista influências contextuais, entre o uso de “Esse assunto é entre eu e você” e “Esse assunto é entre mim e você”. A tendência comum de coibir a variação inerente ao uso da língua não deixará de questionar a possibilidade de escolha – é verdade – formulando a pergunta: “Mas “entre eu e você” não é errado? (porque as gramáticas normativas nos ensinam que tal construção é errada; porque, na escola, o professor disse que é errada). A despeito disso, esse caso ilustra um padrão linguístico variável, flexível previsto pela gramática da língua que o uso fixou.
Os exemplos da posição do artigo e da regência do verbo “gostar” estão entre os casos de combinações que simplesmente não fazem parte da língua, o que significa dizer que não fazem parte do uso da língua, o que significa dizer que são simplesmente o tipo de coisa que nenhum falante nativo de português, independentemente do grau de escolarização, de sua classe socioeconômica faria, porque a anteposição do artigo ao substantivo (cf. o menino/ a bicicleta, a pipa) e o uso da preposição “de” com o verbo “gostar” (cf. gostar de chocolate) são já sabidos pelo falante nativo de português, são manifestações de sua competência linguística, de seu conhecimento intuitivo das regras de formação de enunciados do português. Ninguém ensina isso a ele.
O exemplo do “entre mim e você” e “entre eu e você” está entre os casos de padrões flexíveis. Eles se situam no domínio das atualidades do sistema. Os estudiosos - e os falantes nativos em geral - constatam a ocorrência de tais formas o tempo todo nas práticas de uso da língua.
Falta ainda apontar exemplos de padrões linguísticos que recobririam o domínio das virtualidades do sistema da língua, ou seja, daqueles padrões que, embora não sejam atualizados no uso, verificados no uso, não deixam de ser previstos pelo uso, ou pela gramática ou sistema de regras da língua. Os processos de formação de palavras fornecem bons exemplos de padrões que, embora constitucionalmente possíveis, não são usuais (o que não significa que, não havendo alguma restrição de ordem estrutural, não possam se tornar usuais). Vejamos alguns exemplos.
Tomem-se as formas “fixação” e “aleitamento”. Trata-se de formações usuais no português. Qualquer falante nativo as reconhece como bem-formadas. A descrição dessas formas se elucida como se segue. O sistema da língua dispõe dos sufixos “-ção” e “-mento” que servem à formação de substantivos nos quais se aproveita a noção de ação do verbo derivante na forma nominal derivada. Assim, com as formas “fixa-ção” e “aleita-mento”, categorizamos o evento ou processo verbal sem referência ao tempo, modo,  às pessoas envolvidas, etc. Importa ver que, em “fixação”, não há qualquer restrição estrutural que desautorize a ocorrência de “fixamento”. A única razão para que “fixamento” não ocorra é que já há disponível a forma “fixação” no uso da língua. A despeito de sua não-ocorrência, a forma “fixamento” constitui uma virtualidade do sistema da língua, ou seja, a forma “fixamento” é prevista pelo sistema de regras morfológicas do português. Temos também a forma “mapeamento” e, por isso, dispensamos o uso da forma “mapeação”, o que não significa dizer que “mapeação” não seja bem-formada e não esteja, por isso, prevista pelo sistema de regras. Mas a língua deve operar de modo a preservar sua dinamicidade e flexibilidade, evitando a sobrecarga da memória dos falantes. Por isso, exceto quando há especificidade estilística ou semântica de uso, quando dispomos de dois sufixos que satisfazem as condições de um mesmo processo de formação, a escolha por um deles implica a desnecessidade de uso do outro. Para “martelar”, temos as formas “martelagem” e “martelação”. Mas, em “martelagem”, o sufixo “-agem” especifica uma técnica da metalurgia; em “martelação”, forma comum nas variedades coloquiais, o sufixo “-ção” marca intensidade na repetição do ato de martelar. Os sufixos “-agem” e “-ção” se anexam a uma mesma base verbal, mas o que disso resulta comporta uma especificação semântica. Vejam-se também os casos de “jornalista” e “jornaleiro”.
Já, na forma “aleitamento”, a ocorrência do sufixo “-mento” é condicionada pelo processo de parassíntese que incidiu sobre a base. O radical primário é “leite”, do qual se derivou, por parassíntese, ou seja, pelo acréscimo simultâneo de um prefixo e um sufixo à base, a forma “aleitar”. Essa forma derivada constitui o radical secundário que dá origem à forma “aleitamento”. O sufixo “-mento” é a forma sistematicamente escolhida para as nominalizações a partir de bases formadas por parassíntese (cf. enobrecer/ enobrecimento; encarecer/encarecimento/ amolecer/amolecimento). Há, portanto, nesse caso, uma restrição estrutural: uma base previamente formada por parassíntese, que impede a anexação do sufixo “-ção”. Essa restrição estrutural é, em última instância, fixada pelo uso.
A título de conclusão, é bom desfazer alguns equívocos bastante comuns:

1o equívoco: supor que, pelo simples fato de uma forma não se verificar no uso da língua, deve-se considerá-la como não pertencente à língua, como inexistente. O próprio uso, ao fixar o sistema, produz também as condições de possibilidade de ocorrência de formas. Há, na língua, por isso, domínios de virtualidades. Formas como “livração” e “desfeliz” só  fere as sensibilidades porque o uso consagrou as correspondentes “livramento” e “infeliz”.

2o equívoco supor que os dicionários são autoridades soberanas no que diz respeito ao que é usual. Ora, os dicionários não registram todas as formas de uso da língua. A língua varia, muda, e os dicionários estão sempre atrasados em relação à produtividade lexical de uma língua, em relação à deriva da língua.

3o equívoco supor que os padrões que se situam no domínio das virtualidades não pertencem à língua. A rigor, isso não é verdade. O domínio morfológico-lexical das virtualidades recobre as formas que, embora não usadas, são previstas pelo sistema de regras – a gramática – da língua. Essas formas existem como virtualidades, porque se prestam a uso, atendem às exigências previstas pela gramática, a qual, como procurei argumentar, emerge do uso, é produto do uso. A língua, portanto, como sistema de signos, só pode ser abstraída do uso em condições teóricas.

Observação final



Outro equívoco eu ouvi a um professor que se referia ao fato de a Linguística pensar/trabalhar a palavra (o signo) sempre desvinculada do contexto de uso. Isso só é parcialmente verdadeiro, segundo uma reconstituição de sua história. Na verdade, já há muito não se admite fazer linguística com base no pressuposto de que a língua existe em si e por si mesma como um sistema de signos abstrato. A Linguística moderna surgiu, é verdade, com Saussure, a partir da publicação de seu Curso, em 1916, tendo como um de seus axiomas a existência formal da língua independente do contexto de uso; mas houve revoluções teórico-metodológicas no interior da Linguística desde então. 

quinta-feira, 12 de março de 2015

A marcação de plural no sintagma nominal - "Olha os caderno novo que eu ganhei"

                
                                   


                          Um caso de variação linguística
                      A marcação de plural no sintagma nominal


“A começar do nível mais elementar de relações com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder”

(Maurizio Gnerre)


O tema deste texto recobre um fenômeno linguístico do qual se ocupa, com especial interesse, a sociolinguística. Tenciono dar a saber e discutir um caso de variação linguística a partir da análise da manifestação de concordância no interior do sintagma nominal.
Inicialmente, contudo, considerarei alguns conceitos sociolinguísticos pressupostos pela análise. Antes de apresentá-los, refiro um passo do linguista Marcos Bagno (2011), com o qual, na sua Gramática Pedagógica do Portuguêsnos adverte que a reação à mudança linguística é uma característica comum a todas as culturas humanas.


“A reação à mudança linguística é um traço universal das culturas humanas. A língua está de tal forma entranhada em cada um de nós que imaginar que ela um dia deixará de ser o que é se revela uma ideia insuportável, uma noção capaz de causar, em muitas pessoas, mesmo que inconscientemente, um medo quase semelhante ao medo de morrer. Porque a mudança da língua é, de fato, a morte da língua tal como uma geração de falantes a conhece (muito embora a língua esteja também, a todo instante, além de morrendo, renascendo) (...)”. (Bagno, 2011, p. 116)


Malgrado o exagero com que chega a comparar o medo da morte com o medo de uma suposta depravação da língua, Bagno permite-nos dizer que, se a reação à mudança linguística é um fato universal atestado em todas as sociedades, a variação e a mudança linguísticas também o são. Nenhuma língua natural permanece inalterável ao longo do tempo. Todas as línguas do mundo são perpassadas, essencialmente, pela diversidade de usos. Variação e mudança são fenômenos inerentes à realidade linguística. As línguas são dinâmicas, porque dinâmicas são as sociedades em que elas são usadas; as línguas variam e mudam, porque também variam e mudam as sociedades das quais aquelas são a base fundamental. A mesma ideia pode expressar-se na observação de que as línguas são fenômenos históricos, instituições culturais. Ora, nem a história, nem as culturas humanas permanecem inalteráveis. As línguas, portanto, não só acompanham as transformações histórico-culturais (também sociais, políticas, econômicas...), como também as expressam.
sociolinguística é uma das subáreas da Linguística e se ocupa com o uso social da língua no interior das comunidades de fala. A sociolinguística concentra sua atenção na correlação entre fatores linguísticos e fatores sociais que influenciam o uso da língua. Ela se situa no espaço interdisciplinar, na fronteira entre língua e sociedade, procurando dar conta, de modo especial, das ocorrências linguísticas concretas que comportam um caráter heterogêneo.



1. A noção de “erro” linguístico



Do ponto de vista sociolingüístico, o que, vulgarmente, se chama de “erro linguístico” baseia-se numa avaliação negativa que, não sendo de ordem linguística, é estritamente calcada sobre o valor social atribuído ao falante, considerando sua classe socioeconômica, seu grau de escolarização, seus antecedentes geográficos, sua maior ou menor participação nas esferas de poder, seu sexo, sua cor de pele e outros preconceitos culturais e socioeconômicos.
O suposto “erro” linguístico desencadeia, infelizmente, uma série de avaliações negativas sobre o falante e supõe uma cadeia de causas e consequências que, por ser de natureza ideológica, é, necessariamente, falsa: quem fala errado, pensa errado, age errado, não é estimável e confiável, etc.
Uma lição elementar da sociolinguística é que não há variação linguística sem alguma avaliação social. Numa sociedade tão fortemente hierarquizada como a sociedade brasileira, todos os valores culturais e bens simbólicos se situam também em escalas hierárquicas que se organizam segundo valorações como “bom”, “ruim”, “certo”, “errado”, “feio”, “bonito”, etc. A língua é o bem simbólico mais importante de uma sociedade, e seu uso, portanto, é submetido àquelas escalas hierárquicas de valoração.
Não menos importante é levar em consideração o fato de que, entre as formas de uso valoradas como “erradas”, há formas que se consideram mais “erradas” do que outras. A medida da gravidade desses “erros” é inversamente proporcional à escala de prestígio social: quanto menos prestigiado socialmente é o usuário da língua; quanto menor é seu nível socioeconômico, maior é a gravidade atribuída aos supostos “erros” de sua fala.
Não custa insistir em que as valorações positivas ou negativas que recaem sobre os usos linguísticos assentam em pressupostos, orientados ideologicamente, sobre a origem sócio-cultural e econômica dos falantes. Ademais, a classificação das variedades linguísticas em “certas” e “erradas” se faz com base em critérios políticos e ideológicos. Quem detém o poder dispõe das condições pelas quais pode impor (e impõe) a sua variedade linguística como aquela pela qual se deve pautar o comportamento linguístico de todos os membros da sociedade.
Como toda seleção implica exclusão, todas as demais variedades linguísticas dos grupos dominados serão tomadas como variedades “erradas”, “imperfeitas”, “inadequadas” e serão designadas com termos que carreiam grande teor de pejoratividade.
Destarte, quando os linguistas observam que não há usos linguísticos “certos” e “errados” em si, estão chamando a atenção para o fato de que “certo” e “errado” não são defeitos das formas linguísticas, mas efeitos da valoração socioideológica a que não só elas são submetidas, como também, mormente, seus usuários. Quem discrimina o modo de falar de alguém está discriminando, na realidade, a pessoa que fala e, por extensão, a classe social a que ela pertence. Por isso, o preconceito linguístico é, fundamentalmente, um preconceito social.




1.1. Heterogeneidade e unidade na língua


Todas as sociedades são constituídas por segmentos que atuam como forças em direção à mudança ou em direção à conservação do status quo. Os segmentos dominantes social, política, econômica e ideologicamente adotam a segunda direção: estão interessados na conservação do status quo. A língua, na medida em que é uma realidade social, encontra-se, permanentemente, suscetível à pressão dessas duas forças: uma que impulsiona a variação e a mudança; outra que pressiona no sentido de manter a unidade, refreando a variação. Há, portanto, uma tensão constante e interação entre essas duas forças antagônicas, donde resulta que as línguas exibem inovações, conservando, contudo, sua coesão interna.
A noção de comunidade linguística é dependente da convergência de padrões estruturais e estilísticos. Portanto, a comunidade linguística deve sua existência ao impulso que conduz à manutenção da unidade.
A variação ocorre em consonância com as propriedades sistêmicas da língua e se efetua porque é contextualizada e regular. Todas as línguas mantêm-se numa espécie de equilíbrio instável, porque, de um lado, exibem, fundamentalmente, uma pluralidade de usos, uma diversidade de formas de expressão que se realizam segundo padrões regulares; de outro lado, conservam padrões, que, por não variarem, se dizem categóricos, e que contribuem para produzir a coesão interna do sistema linguístico, sem a qual não haveria possibilidade de intercomunicação entre os falantes de comunidades de fala diferentes. Além disso, insisto em que a variação é ordenada, ela se submete a regras previstas pela gramática da língua.




1.2. Sistematicidade, legitimidade e estigmatização


Do ponto de vista da ciência linguística, todos os usos linguísticos são legítimos e se prestam à previsibilidade, em que pese às variações estilísticas.
É importante reconhecer que todos os padrões linguísticos se prestam à avaliação social, que pode ser positiva ou negativa, o que os torna indicadores do tipo de inserção social do falante. As formas que recebem maior valor social são aquelas que se fazem acompanhar de um alto grau de monitoramento e de letramento. Às formas de maior prestígio se associam maior sensibilidade, percepção e planejamento linguístico.
Não se ignore o fato de que a diversidade linguística se distribui num continuum. Assim, os falantes adquirem primeiro as variantes informais e, num processo sistemático e gradativo, vão apropriando-se de registros mais formais, que se aproximam das variedades de maior prestígio.
Todas as línguas, portanto, apresentam variantes mais prestigiadas do que outras. E entre as formas desprestigiadas, algumas são mais estigmatizadas do que outras, em virtude da classe social de seus usuários, os quais já são alvo de estigmatização em termos socioeconômicos e culturais.



1.3. Variação linguística: variantes e variáveis

A variação linguística, conforme deve ter ficado claro, é um fenômeno universal. A variação se manifesta por meio de formas linguísticas alternativas denominadas de variantes.
Variantes são, portanto, grosso modo, as diversas formas alternativas de se dizer a mesma coisa. Essas formas alternativas constituem um fenômeno variável.
Existem variáveis dependentes sempre que o uso das variantes for influenciado por variáveis, quer de natureza interna à língua, quer de natureza social (externa). Essas variáveis ou grupo de fatores que podem ser de natureza estrutural (interna à língua) ou de natureza social chamam-se variáveis independentes. Elas exercem pressão sobre os usos acarretando o aumento ou a diminuição de ocorrência das variantes.
Cumpre enfatizar que as variáveis recobrem tanto o fenômeno em variação quanto o grupo de fatores. Esses grupos de fatores são parâmetros reguladores dos fenômenos variáveis e condicionam positiva ou negativamente o uso das formas variantes.



2. A marcação de plural no sintagma nominal

2.1. O Sintagma nominal: definição e estrutura



sintagma nominal  é um constituinte oracional formado, necessariamente, de um substantivo ou palavra suscetível de ocupar a posição própria do substantivo, que é a de núcleo do sintagma nominal.  Doravante, usarei a abreviação SN para representar o sintagma nominal. Todo SN é, portanto, uma unidade significativa da oração e terá como núcleo uma palavra de natureza morfológica substantiva. O SN pode constituir-se de seu núcleo apenas, ou pode, além do núcleo, encerrar outras unidades articuladas a ele. Vejam-se dois exemplos que ilustram as duas formas de estruturação do SN: em (1), com apenas o núcleo; em (2), com elementos articulados ao núcleo.

(1) São Paulo é a maior cidade brasileira.
       SN
     núcleo


(2) Este meu anel de ouro.
            Núcleo

Em (2), toda a unidade “Este meu anel de ouro” corresponde ao sintagma nominal, cujo núcleo é “anel”. A esse núcleo, se acham articulados os elementos “este”, “meu” e “de ouro”. Em (1), a extensão do SN se reduz ao seu núcleo.

As unidades que se articulam ao núcleo do SN cumprem a função sintática de determinantes ou de modificadores. Os determinantes se dispõem à esquerda do núcleo; e os modificadores podem prender-se à esquerda (no caso dos adjetivos que admitem anteposição ao substantivo), mas, frequentemente, se articulam à direita do núcelo.
Considerem-se os exemplos abaixo (o asterisco marca a inaceitabilidade da construção e a interrogação a dúvida quanto à sua aceitabilidade):

(3) Este meu anel dourado
   * Este meu dourado anel

(4) Este excelente artigo histórico
  * Este excelente histórico artigo

(5) Os três meninos simpáticos
    Os três simpáticos meninos  (?)



Urge definir os determinantes e os predicadores. Começo por responder à questão: o que são determinantes? A função sintática dos determinantes é desempenhada por unidades que se articulam à esquerda do substantivo, quer para identificar sua referência tendo em vista a situação espaço-temporal, quer para fixar-lhe o estatuto informacional, quer ainda para delimitar seu número. O grupo dos determinantes abriga: os artigos (definidos e indefinidos), os pronomes possessivosdemonstrativosindefinidos e os numerais ordinais e cardinais. Nesse grupo, também devemos incluir o pronome relativo “cujo”, que não nos interessará na presente discussão.
A classe dos determinantes é sintático e semanticamente heterogênea. Veja-se, a título de exemplificação, o comportamento semântico-pragmático do artigo definido e do pronome demonstrativo, nos sintagmas nominais destacados, nas frases abaixo:



(6) Dois homens encapuzados roubaram uma joalheria, mas os bandidos foram presos assim que deixaram o local.

(7) Nunca mais vi aquela moça que conheci naquela festa.


Em (6), o sintagma “os bandidos” comporta uma informação já dada, ou seja, faz remissão ao segmento “dois homens encapuzados”, anteriormente expresso. O artigo definido cumpre aí a função de indicar que a informação veiculada no sintagma que introduz é já conhecida do interlocutor/leitor. Por ocasião da leitura, o leitor constrói um modelo textual, que é uma representação mental que toma forma com base no texto e que funciona como uma memória partilhada e publicamente alimentada pelo próprio texto. Assim, uma vez introduzido no modelo textual do leitor um referente (ainda não mencionado), este passa a ter o estatuto “ativo”, porque sob o foco da memória de trabalho, é o que sucede em (6). A introdução do referente “dois homens encapuzados” torna-o passível de reativação, situação que se dá com a introdução do sintagma encetado pelo artigo definido “os bandidos”. O primeiro referente introduzido passa a preencher um “nódulo” no modelo conceitual do mundo textual construído. Nesse sentido, o artigo definido, que preenche a função sintática de determinante do SN “os bandidos”, é índice de identificabilidade do referente, ou seja, ele marca o estatuto informacional do referente como “identificável” ou acessível no modelo textual. Esse estatuto é garantido pelo compartilhamento de conhecimentos entre o locutor e o seu interlocutor. Em suma, o artigo definido é usado, sistematicamente, em sintagmas nominais que fazem remissão anafórica, ou seja, que devem ser interpretados em dependência com algum segmento anteriormente expresso no texto. Esses sintagmas introduzidos por artigo definido comportam, então, informação velha ou dada (isto é, já conhecida, ou acessível a partir de um segmento precedente, ou mesmo inferível a partir dos contextos sociocognitivos partilhados).
Em (7), o demonstrativo “aquele” é um dêitico memorial ou recognitivo, visto que sua interpretação referencial pressupõe o acesso a um tipo de conhecimento experiencial e socioculturalmente compartilhado (Roncarati, 2010, p. 65). Em outras palavras, o uso do demonstrativo recognitivo pressupõe a seguinte condição: o interlocutor deve compartilhar com o locutor algum tipo de conhecimento calcado na experiência que, em última instância, é de base sociocultural. A compreensão do sintagma encetado por esse demonstrativo depende de que o interlocutor possa acessar em sua memória o saber a respeito do referente categorizado.
Necessário será identificar as posições ocupadas pelos determinantes relativamente ao núcleo do SN. Como podem ocorrer mais de três elementos à esquerda do núcleo, a posição 1 será ocupado pelo elemento mais afastado do núcleo; e a posição quatro, pelo elemento mais próximo. As posições 2 e 3 seguem a ordem numérica. Assim, temos



(8) Todos os últimos bons alunos foram aprovados no vestibular.
     P1   P2   P3    P4




A identificação das posições será importante quando da investigação do fenômeno de concordância no interior do SN. Considere-se, agora, a função de modificador.
No interior do SN, o modificador é o adjetivo ou um substantivo que preencha a função do adjetivo. A função de predicador pode também ser desempenhada por um grupo formado de preposição (em geral, “de”) e substantivo. Esse grupo é um sintagma preposicional (SP) encaixado no SN. Chamamos modificadores, portanto, as unidades que, articuladas ao núcleo de um SN, lhe acrescentam um ingrediente semântico. Semanticamente, os modificadores qualificam ou classificam o referente designado pelo substantivo que preenche a posição de núcleo do SN. Seguem-se os exemplos abaixo, nos quais se destacaram as duas formas de manifestação do modificador nominal: em (9), na forma de adjetivo; em (10), na forma de SP (sintagma preposicional).



(9) O anel dourado.

(10) O seu trabalho de história.



2.2. A marcação do plural no SN

Principalmente a partir de 1980, foram produzidos muitos estudos sobre a concordância de número no SN. Esses estudos apontam uma significativa variedade de padrões de concordância, não só em função do diversificado número de unidades que podem preencher o sintagma nominal, como também em função de fatores linguísticos e societários condicionantes.
Com vistas a examinar a questão, vou-me ater apenas às três primeiras, se bem que dispensarei especial atenção à primeira e à segunda, dentre as cinco variáveis consideradas pelos estudos. Essas cinco variáveis são as que se demonstraram mais relevantes na marcação do plural no SN. Seguem-se as variáveis:

1) alterações morfofonológicas decorrentes do mecanismo de flexão;
2) estruturação do SN;
3) características dos falantes (sexo, idade, nível de escolarização, origem urbana ou rural);
4) tipos de registro (formal ou informal);
5) modalidade da língua (falada ou escrita).



2.3. Alterações morfofonológicas e estruturação do SN


A classe de palavra e sua posição na estrutura do SN são variáveis importantes para o estabelecimento de padrões de concordância nominal. Não menos importante para a compreensão do referido fenômeno é considerar o princípio de saliência fônica, que se caracteriza pela maior ou menor identidade entre as formas singular e plural nos vocábulos.
Com base no princípio de saliência fônica, observou-se que as formas menos marcadas fonologicamente, ou seja, aquelas em que a diferença fônica entre singular e plural repousa apenas na presença do morfema de número [s], seriam mais suscetíveis de não apresentar a marca de número. Por outro lado, as formas mais marcadas para o plural tenderiam a apresentar a ocorrência da marca de plural. Considerem-se os seguintes exemplos que ilustram essa condicionante fonológica para a marcação de plural no SN:

(11) Ela levou os menino pra escola.

(12) Desenhou uns corações no caderno.




Em (11) e (12), destacou-se em negrito o núcleo do SN. Em (11), a marca de plural foi cancelada no núcleo (aparecendo apenas no determinante), em virtude de a marcação de plural no substantivo “menino” ser menos saliente, ou seja, essa marcação se faz apenas com o acréscimo da desinência de número [s]. Nesse caso, a tendência é pluralizar apenas o determinante e deixar no singular o núcleo do SN. Em (12), tanto o determinante quanto o substantivo núcleo foram pluralizados, porque, nesse caso, há maior saliência fônica na marcação de plural no substantivo, dado o fato de formas terminadas em “ão”, muita vez, sofrerem uma mudança morfofonológica maior quando flexionadas para o plural. No caso da palavra “coração”, o plural modifica a configuração fonológica da última sílaba “-ção”, que passa para “-ções”. O princípio de saliência fônica mostra que, nesse caso, quando se marca o plural, o que se ouve é outra configuração fonêmica.
Outro princípio, igualmente relevante, que tem sido levado em consideração por diversos estudos é o do paralelismo formal. Reza esse princípio que marcas acarretam marcas, e ausência de marca (marca-zero) leva à ausência de marca.
Assim, estando presente o morfema de plural [s], ele poderia condicionar a presença dessa marca nos demais elementos do SN. Analogamente, a ausência da marca num elemento do SN acarretaria a ausência da marca nos demais elementos. Senão, vejamos:

(13) TodoS  oS meuS livroS são novos.
                   Sintagma nominal

(14) Comprei oS livro didático.



O exemplo (13) ilustra a situação em que a presença da desinência [s] em todos os determinantes acarreta a sua presença no núcleo do SN “livros”. Esse é o padrão de flexão adotado pelos falantes das variedades de prestígio da língua, nas quais a marcação de plural se faz por redundância: marca-se o plural em todos os determinantes passíveis de flexão, o que leva a necessidade de pluralizar também o núcleo do SN. No exemplo (14), entretanto, ainda que a marca de plural ocorre no determinante, ela é cancelada no núcleo, o que implica seu cancelamento no modificador também. Os falantes que seguem esse padrão de concordância nominal não sentem a necessidade de operar com o princípio de redundância; eles apenas sinalizam que o SN está no plural marcando com [s] o primeiro elemento do sintagma. É importante dizer que eles não erram; apenas seguem outra regra ou padrão.
Conquanto variáveis como tonicidade do item no singularcontexto fonológico subsequente possam ser consideradas na compreensão da variabilidade dos padrões de concordância no SN, as que foram anteriormente mencionadas têm se demonstrado mais relevantes.
Voltarei a considerar aspectos estruturais do SN que se apresentam como fatores importantes na marcação de plural em seu interior. Agora, no entanto, refiro o resultado de um estudo que levou em conta variáveis sociais.





2.4. Variáveis sociais

Quando se consideram as variáveis sociais, é notável que, no Brasil, sobressaia o nível de escolaridade do falante, que é um marcador de sua classe social.
Almeida (1997) e Brandão & Almeida (1999), desenvolvendo pesquisas que coletavam registros de fala de indivíduos analfabetos com baixo nível de escolaridade (tendo no máximo a quarta série do ensino fundamental), em zonas rurais do Rio de Janeiro, constataram que chega a 87% a frequência com que se dá o cancelamento da marca de plural no núcleo do SN. Por outro lado, o cancelamento dessa marca nos determinantes e modificadores é menor: 4% naqueles; 21% nestes.
É necessário certo cuidado na interpretação desses dados, pois que uma série de condicionamentos se entrecruzam, do que resultam diferentes combinações de itens marcados/ não-marcados quanto ao número.

2.5. Revisitando aspectos estruturais

Volvendo olhares para a estruturação do SN novamente, é necessário considerar, em primeiro lugar, a complexidade da estruturação do SN, o qual pode se constituir de mais de três elementos suscetíveis de flexão, chegando a cinco, como se pode ver em (15):

(15) Todos os nossos últimos bons alunos ingressaram em universidades públicas.

No corpus de Almeida, figuram SNs com apenas dois elementos. Sendo estruturalmente mais simples, esses SNs ou apresentam todos os seus elementos flexionáveis com marca de plural, ou apenas o primeiro deles. Ressalte-se, todavia, que, uma vez ocorrendo o numeral no SN, é sistemático o cancelamento da marca de plural no núcleo. Os exemplos (16), (17) e (18), a seguir, ilustram casos de SN com um elemento apenas articulado ao núcleo ou com um numeral:

(16) As espadas são de ouro.

(17) A gente pesca em outraS lagoa.

(18) Ele tem três barco.

Os SNs que exibem mais de dois elementos, quer encerrem três, quer encerrem quatro, são, deveras, mais interessantes. A variedade dos padrões demanda nossa atenção.
Atendo-me aos elementos que se topam à esquerda do núcleo, há que destacar os seguintes padrões de concordância nominal:

a) havendo um e apenas um elemento flexionável antes do núcleo, esse elemento recebe a marca de plural. O núcleo, por sua vez, pode recebê-la ou não.

(19) As espinhas miúdas.
(20) Uns barco novo.

(21) Aquelas onda perigosa.

É claro que (19) ilustra o padrão que governa a concordância nominal nas variedades de prestígio da língua. Nas variedades de menor prestígio, o padrão é outro: marca-se o plural apenas no determinante, deixando no singular o núcleo.

b) ocorrendo dois constituintes pré-nucleares flexionáveis, o que ocupa a posição 1 recebe a marca, e o que ocupa a posição 2 pode recebê-la ou não:

(22) Todos os prato
(23) Todos esses dia.
(24) As própria rede.

Nos três exemplos, o núcleo é mantido no singular. A despeito da variabilidade da macação de plural nos determinantes, via de regra, a marca de plural aparece sempre no primeiro elemento. Pode-se estipular uma regra que parece estar sendo seguida, que se formaliza como: havendo dois determinantes flexionáveis no SN, é suficiente marcar o plural apenas no primeiro elemento. Note-se que a marca [s] pode ser cancelada no segundo elemento, como mostra o exemplo (24).

c) se o elemento pré-nuclerar se acha na posição 3, o cancelamento da marca é a norma.

(25) Os dois melhor mês.

Em (25), há três elementos antes do núcleo, e a regra parece prever o cancelamento da marca [s] apenas no terceiro elemento, o que ocupa a posição 3, a mais próxima do núcleo.

Quando se consideram os modificadores que se dispõem à direita do núcleo, ou seja, os elementos pós-nucleares, o padrão é o cancelamento da marca de número no modificador. Vejamos os exemplos abaixo:

(26) Uns barco novo.

(27) Umas nuvens cinzenta.

(28) Uns vinte ano passado.

Esses casos também ilustram a variabilidade comum à marcação de plural no interior do SN. Note-se que todos os determinantes aparecem no plural. Essa é uma regra que já vimos: havendo um elemento flexionável antes do núcleo, esse elemento é pluralizado. O núcleo, conforme vimos também, pode ou não receber a marca de plural: em (26) e (28), ele não apresenta a marca; apenas em (27), apresenta-a. Como, no entanto, estamos levando em consideração o que ocorre com o modificador, ou seja, com o adjetivo posposto ao núcleo do SN, inferimos daí que os falantes parecem estar seguindo um padrão bastante regular: o cancelamento sistemático da marca de plural no modificador pós-nuclear.
Cumpre ainda observar que a ocorrência de um numeral em qualquer das posições pré-nucleares é condição para o cancelamento de plural no elemento seguinte, conforme atestam os seguintes exemplos:


(29) Esses três tipo.

(30) Três outro garoto.

Outros estudos, levando em conta o cruzamento de variáveis tais como distribuição dos constituintes do SN e o tipo de marcas precedentes, atestaram que os elementos pré-nucleares tendem a ser atualizados com a marca de número, e os constituintes nucleares e pós-nucleares tendem a não apresentar a marca, muitas vezes, de modo categórico e independentemente de haver ou não marcas formais e/ou semânticas anteriormente enunciadas.
Considerando-se tão-só a distribuição dos constituintes, isto é, a ordem em que ocorrem, o cancelamento de marca verificou-s em 6,5% dos casos nos elementos pré-nucleares, 82% nos nucleares e 89% nos pós-nucleares.
Os casos visitados, nesta exposição, não esgotam a complexidade do fenômeno de concordância no SN. Outras estruturas oracionais, em que figuram SNs, como as construções predicativas e passivas com “ser” tiveram de ser colocadas fora do escopo de minhas preocupações, dadas as limitações de espaço. Não obstante, os casos examinados aqui revelam que o mecanismo de concordância nas variedades desprestigiadas da língua é extremamente complexo; é mais complexo do que o padrão seguido pelos falantes cultos, que tendem a estender a marca de plural a todos os elementos flexionáveis do SN.
Tendo em vista tudo que foi exposto, é importante frisar que os falantes que não seguem a marcação de plural por redundância, a que se verifica nas variedades formais da língua, não estão cometendo erros, mas seguindo outros padrões. Nas variedades desprestigiadas da língua, a operação de concordância depende não só da noção de conjunto extensiva ao SN, mas também da noção de subconjuntos que do SN se infere. Assim, ao conjunto de elementos que se acham à esquerda do núcleo, aplica-se, normalmente, a marca de plural; aos que se acha à direita, essa marca não é aplicada.