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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Os pontos de vista formal e semântico em Linguística

                 
                           

             Análise formal e Análise semântica
                          na descrição gramatical


Linguistas são aqueles que se dedicam ao estudo científico da linguagem. Parte de seu trabalho consiste em explicitar a gramática de uma língua – gramática que constitui, necessariamente, um modelo teórico, isto é, uma hipótese sobre como essa língua se organiza estruturalmente de modo a permitir a expressão e a compreensão de sentidos. Assim entendida, a gramática constitui um modelo descritivo-explicativo da estrutura e do funcionamento de uma dada língua.
Tendo em vista o exposto, no trabalho de produção de modelos de gramática, as unidades da língua podem ser descritas sob dois pontos de vista: o formal e o semântico. Quando buscamos descrever as unidades linguísticas do ponto de vista formal, estamos interessados em explicitar um conjunto de aspectos do qual está excluída qualquer referência a noções recobertas pelo domínio da semântica. Analisar uma unidade linguística do ponto de vista formal significa considerar relações internas ou externas a ela, em cuja base está a interseção entre os planos sintagmático e paradigmático, sem aludir a qualquer aspecto da dimensão significativa dessa unidade. Por outro lado, analisar uma unidade linguística semanticamente é considerar aspectos de sua natureza significativa. Vamos esclarecer como se opera a análise segundo esses dois pontos de vista, tomando-se, para tanto, a palavra lealdade.
Convém dizer que a forma, que é sinônimo de estrutura, de um constituinte linguístico é resultado da combinação de suas unidades na cadeia sintagmática. Assim, a forma da palavra lealdade resulta da combinação da base (radical) “leal” com o sufixo “-dade” (cf. leal + dade = lealdade (forma)). A explicitação da forma de uma unidade linguística supõe a divisão dessa unidade em unidades menores por meio da análise da totalidade da construção. Tomando-se, portanto, a palavra lealdade, pode-se considerar, do ponto de vista formal, seus elementos e características fonológicas (fonemas, sílabas, acento). Dir-se-á, por exemplo, que lealdade é uma palavra polissílaba, que sua estrutura silábica é CV-VC-CV-CV (C = consoante; V = vogal), que seu acento tônico recai sobre a penúltima sílaba e que, por isso, se trata de uma palavra paroxítona. Note-se que não se faz qualquer referência ao significado da palavra “lealdade”, mas se especifica informações que tocam à sua estrutura fônica.
No domínio morfológico, submeter a palavra lealdade à análise formal é procurar identificar os elementos que entram a fazer parte de sua estrutura. Por exemplo, lealdade é formada da combinação do radical “leal” (que é uma forma livre na língua) com o sufixo “-dade” (forma presa). Na tradição gramatical, essas duas unidades mínimas dotadas de significado chamam-se morfemas. Todavia, o ponto de vista formal proíbe-nos de levar em conta qualquer aspecto significativo ligado a essas mínimas unidades. Quando limitamos a análise ao ponto de vista formal, estamos interessados em explicitar a constituição da forma de uma dada unidade linguística, seja ela uma palavra, seja um sintagma, seja uma frase.
No domínio sintático, pode-se dizer que a palavra lealdade ocupa a posição de núcleo de um SN (sintagma nominal), que se deixa antepor de um determinante, como um artigo (cf. a lealdade), um pronome demonstrativo (cf. essa lealdade), um pronome indefinido (cf. alguma lealdade), etc. Novamente aqui o ponto de vista formal circunscreve a análise às relações entre as unidades linguísticas indispensáveis à constituição da estrutura. Por exemplo, dado o sintagma nominal “a lealdade do cachorro”, diremos que sua estrutura resulta da combinação de um núcleo “lealdade” com um determinante externo “a” e com um SP (sintagma preposicional) “de cachorro”  que se acha encaixado no SN:

                       

A análise formal contempla também aspectos de concordância e possíveis correspondências sintáticas em cuja base está a interseção entre os planos sintagmático e paradigmático. Por exemplo, do ponto de vista formal, distinguem-se as funções de “lealdade” nas construções “A lealdade do cachorro nos comove” e “Nós apreciamos lealdade” pela posição ocupada pela palavra “lealdade” na frase. Na primeira frase, ela ocupa a posição à esquerda do verbo. É núcleo de um sintagma nominal que preenche a posição típica do sujeito. Como tal, governa a relação de concordância, isto é, o núcleo “lealdade”, que é um substantivo que se apresenta no singular, obriga o verbo a assumir a forma de terceira pessoa do singular, para, assim, atualizar a relação de concordância. Na segunda frase, “lealdade” ocupa a posição à esquerda do verbo (apreciar). Não toma parte na relação de concordância, já que ela é, agora, governada pela unidade “nós” (sujeito) que se acha na posição à esquerda do verbo. A distinção formal da função sintática de “lealdade” pode também apelar para a comuta com uma forma pronominal. Em “A lealdade do cachorro nos comove”, todo o conjunto “a lealdade do cachorro” pode ser comutado com o pronome “ela” (cf. ela (a lealdade do cachorro) nos comove). Por outro lado, em “Nós apreciamos lealdade”, pelo menos em uma das variedades da língua, usamos o clítico “a”: “Nós a apreciamos”. Nas variedades desprestigiadas, pode-se encontrar o pronome “ela” na posição pós-verbal em que figura “lealdade” (cf. Nós apreciamos ela). Nesse caso, a distinção entre as funções sintáticas desempenhadas por “lealdade” se faz não só pela observação da posição ocupada por esse vocábulo na estrutura oracional, mas também se apóia na relação de concordância centrada no verbo. Assim é que o “ela” que se topa depois do verbo não toma parte da relação de concordância; por outro lado, o “ela” que se acha à esquerda do verbo (na posição típica do sujeito), governa a relação de concordância. Vejam-se outros dois exemplos abaixo:

(1) O espetáculo não agradou a Marcos.
(2) Maria não confia em Marcos.

Do ponto de vista formal, pode-se fazer ver que os constituintes “a Marcos” e “em Marcos” comportam-se de modo diferente. É verdade que ambos estão pospostos ao verbo e estão encetados de preposição, ainda que em (1) figure a preposição “a”, exigida pela valência do verbo “agradar” e em (2) figure a preposição “em”, exigida pela valência do verbo “confiar”. Sucede, contudo, que apenas “a Marcos” é passível de comutação com “lhe”. Trata-se de um fenômeno sistemático em português, apontado em minha dissertação de mestrado: os complementos encetados por “a” (e também “para”, preposição que se acha em flutuação com “a” com verbos que denotam ‘transferência de alguma coisa’ ou ‘deslocamento de uma coisa no espaço’) comutam com “lhe”. Por outro lado, “em Marcos” não admite a comutação com “lhe” (cf. * Maria lhe confia). Não devemos confundir o uso do verbo “confiar” na construção “confiar em”, à qual se associa o significado ‘ter confiança’, com o uso de “confiar” na construção “confiar a”, à qual se associa o significado ‘entregar aos cuidados de’ (cf. Confiei ao advogado meus documentos). A condição de possibilidade para a comuta com “lhe” é a ocorrência da preposição “a”. A possibilidade ou não de comuta com “lhe” levou alguns gramáticos, entre os quais Rocha Lima, a distinguir dois tipos de complemento verbal: o objeto direto, cujas características formais é ser introduzido pela preposição “a” (ou para) e ser comutável com “lhe”; e o complemento relativo, que é encetado por qualquer preposição (inclusive “a”), mas que não é comutável com “lhe”. A tradição escolar de ensino de língua portuguesa não leva em conta essa distinção, embora se trate de uma distinção formal (possivelmente  também semântica) que, exigindo ou não outra nomenclatura, deveria ser estudada como um aspecto estrutural e funcional da gramática do português. A importância de considerá-la reside em que é um aspecto do conhecimento linguístico intuitivo do falante nativo de língua portuguesa. Qualquer falante nativo de português reconhece que, dada a estrutura X DEPENDE DE Y, a variável “Y” é substituída por “dele” ou “disso” (cf. Você não depende dele/ disso), mas não por “lhe” (cf. * Você não lhe depende). Por outro lado, o reconhecimento da referida distinção formal aponta para outro fato, por vezes, ignorado: há casos em que, a despeito da ocorrência de um complemento introduzido por uma preposição diferente de “a”, o “lhe” pode figurar na posição do complemento, pelo menos nas variedades desprestigiadas. Por exemplo, na construção “João bateu no irmão”, é usual, nas variedades desprestigiadas do português, a ocorrência de “lhe” preenchendo a função de “no irmão”: “João lhe bateu”.
Na construção “Maria não confia em Marcos”, o constituinte “em Marcos” é substituído pela forma “nele”. Novamente, não fazemos qualquer referência a aspectos semânticos quando limitamos a análise gramatical ao ponto de vista formal. Veja-se também que as funções desempenhadas pelo constituinte “de Marcos”, nas orações seguintes, se diferem, do ponto de vista formal, pela posição que ele ocupa na cadeia sintagmática: (a) Maria gosta de Marcos; (b) O chapéu de Marcos é marrom. Em (a), “de Marcos” dispõe-se junto ao verbo, à esquerda dele; em (b), integra um SN, articulando-se a um núcleo nominal (um substantivo). Esse SN dispõe-se à esquerda do verbo, ocupando a posição típica do sujeito. Em parte, é por isso que chamamos “de Marcos”, em (a), de “objeto direto” ou “complemento direto”; e em (b), de “adjunto adnominal”.
Note-se, de passagem, que a distinção tradicional entre as funções de “complemento nominal” e “adjunto adnominal”, que, do ponto de vista formal, não parece justificar-se, se esteia em critérios semânticos. Senão, vejamos. Considerem-se as orações abaixo:

(3) A casa de Saquarema é muito boa.
(4) A divulgação da notícia desagradou aos policiais.
(5) A fala do professor Elias emocionou a todos.


Tanto em (3) quanto em (4) e em (5) figuram grifados SP encetados da preposição “de”. Esses SP se prendem a um núcleo nominal. A tradição gramatical distingue entre duas funções com base em critérios semânticos. Em (3) e (5), o SP ‘de__SN’ cumpre a função de adjunto adnominal. Em (3), porque se prende a um substantivo concreto para especificar ou classificar seu referente. Em (5), porque se liga a um substantivo abstrato que designa ‘ato ou evento’ em relação ao qual o constituinte ‘de__SN’ representa o AGENTE. Trata-se de uma função semântica. Entendemos que em “A fala do professor Elias”, “do professor Elias” desempenha a função de AGENTE, daquele que fala. Por outro lado, em (4), “da notícia”, prendendo-se a um substantivo abstrato que designa também o evento, cumpre a função de PACIENTE ou OBJETO. Dessa vez, entendemos que “da notícia” é a coisa que é divulgada.
A distinção entre adjunto adnominal e complemento nominal não se limita à referência a esses aspectos semânticos. Outros mais são levados em conta. O complemento nominal, segundo reza a tradição, completa o significado de um substantivo abstrato que designa ação, evento ou mesmo qualidade. Assim, em “A amizade de Bianca é importante para mim”, o constituinte “de Bianca” é um complemento nominal simplesmente porque se liga a uma qualidade que encontro em Bianca. Implícita aqui está a suposição da natureza transitiva de substantivos que designam ‘evento, ‘ação’ e ‘qualidade’. O substantivo “amizade” prevê, em sua semântica, uma estrutura relacional, formalizável como  “AMIZADE de X por Y”, em que X e Y são complementos nominais.
A distinção entre adjunto adnominal e complemento nominal, na medida em que se apóia, basicamente, em aspectos semânticos, traz mais problemas do que os resolve. É claro, poderíamos dizer, que em “A amizade de Bianca”, “de Bianca” não representa o AGENTE, mas também não designa o PACIENTE. Poder-se-ia ver em Bianca a FONTE de uma relação FONTE-PACIENTE. Ora, tanto Bianca quanto “eu” somos EXPERIENCIADORES da relação de amizade. A experiência de amizade, quando representada na estrutura AMIZADE de X por Y, encerra uma relação entre uma entidade X que é a FONTE (donde se origina a amizade) e o PACIENTE (que é, de certo modo, “afetado” pela amizade). A descrição semântica não é determinante para a distinção entre duas funções que, formalmente, não se diferenciam.
Não há dúvida de que alguns substantivos, os chamados abstratos que denotam ‘ato’, ‘processo’ ou ‘atividade’, são do tipo transitivo, como “divulgação”, “apresentação”, “atualização”, etc. (claramente, por força de sua base verbal). Tais substantivos preveem uma estrutura relacional, a qual compreende dois termos que se articulam ao núcleo: APRESENTAÇÃO de X por Y. As posições de X e Y são ocupadas pelos constituintes ‘de__SN’ e “por__SN”. Ora, esses constituintes são integrantes da estrutura prevista pela semântica desse nome. Não há razão para atribuir duas funções distintas com base na observação, de cunho semântico, de que um representa a coisa que é objeto de apresentação; e o outro, a pessoa que apresenta. Ambos são complementos do nome, ou melhor,  argumentos do nome.
A tradição gramatical reza que muitos adjetivos e advérbios em “-mente” selecionam complementos nominais. Todo complemento nominal é encabeçado de uma preposição exigida pela forma nominal a que ele se articula. Por exemplo, o adjetivo “acessível” seleciona um complemento encetado da preposição “a” (cf. O espetáculo é acessível a todos). O advérbio “contrariamente” também seleciona um complemento introduzido por “a” (cf. Agiu contrariamente à minha sugestão).
Tomando-se novamente a palavra lealdade, pode-se estudá-la, finalmente, do ponto de vista semântico. Nesse caso, consideram-se seu significado denotativo, seus possíveis significados conotativos, suas restrições de seleção, etc. Por exemplo, “lealdade” parece selecionar, para a posição ‘de__SN’ (a lealdade de X), um substantivo que designa animal, como “cão” (cf. A lealdade do cão). Por outro lado, usamos “fidelidade” para se referir a seres humanos. Ademais, “lealdade” designa uma qualidade abstraída de entes, ao passo que “casa” designa um ente concreto, uma substância.
O verbo “voar”, por sua vez, seleciona para a posição de sujeito um substantivo que comporta a propriedade [+ voável]. Em outros termos, é parte da análise semântica do verbo “voar” a informação de que esta forma faz restrição de seleção quanto ao tipo semântico de substantivo passível de ocupar a função de sujeito. Ora, “voar” seleciona sujeitos como “avião” e “águia”,  que comportam o traço sêmico [+ voável], mas recusa a ocorrência de formas como “árvore” e “casa”, que não comportam tal traço.
Quando se define o objeto direto como “termo que completa o significado de um verbo transitivo direto”, está-se fazendo referência ao aspecto semântico dessa função sintática. Quando se define o agente da passiva como o termo que designa o agente de uma construção na voz passiva, está-se referindo a um aspecto semântico dessa função sintática.
Pode-se  discriminar os planos sintático e semântico na análise da seguinte oração abaixo:

 (6) Maria   entregou    a mochila    ao seu colega.

Do ponto de vista formal, temos um sujeito “Maria”, que se define como o termo com o qual o verbo concorda. O sujeito se dispõe á esquerda do verbo. Ele é representado por um substantivo. Temos um complemento verbal “a mochila”, que se dispõe à direita do verbo. Esse complemento é desprovido de preposição e é passível de substituição pelo clítico “a” (cf. Maria a entregou ao seu colega). Temos também um complemento verbal introduzido da preposição “a”, exigida pela valência do verbo “entregar”. Esse complemento é comutável com “lhe”. A comutação com “lhe” é uma propriedade formal que contribui para distinguir esse complemento do complemento anterior, desprovido de preposição.
Quando consideramos a estrutura relacional do verbo ENTREGAR, formalizável como X ENTREGAR Y a Z, concluímos que a variável X indica a posição que deve ser ocupada pelo sujeito, termo que governa a relação de concordância centrada no verbo. As variáveis Y e Z situam-se fora do escopo da concordância; não obstante, indicam que os termos que as substituem estão também subordinados ao verbo. Formalmente, a subordinação ao verbo se dá de modo diferente: o constituinte correspondente a Y se subordina ao verbo sem o intermédio da preposição; Z, por seu turno, prevê um termo que se liga ao verbo por meio de uma preposição necessária.
Do ponto de vista semântico, pode-se dizer que X corresponde ao AGENTE da ação de “entregar”; Y, ao OBJETO da ação; e Z, ao BENEFICIÁRIO da ação. O verbo entregar inclui-se na classe dos verbos que denotam a ideia de ‘transferência de uma coisa para’.
Os pontos de vista formal e semântico não se excluem na análise gramatical; mas devem estar articulados entre si. É preciso, contudo, atentar para a recomendação do linguista Mario Perini, em sua Gramática Descritiva do Português (2004),



“Os dois aspectos, o formal e o semântico estão presentes na palavra reloginhos, mas precisam ser separados na descrição. Essa separação é fundamental quando se estuda a gramática, porque a relação que existe entre as formas gramaticais e o significado que elas veiculam é extremamente complexa e indireta. Na verdade, a explicitação dessa relação é um dos objetivos primordiais da análise linguística – e por isso mesmo é essencial descrever os dois aspectos separadamente, para depois colocá-los em confronto” (p. 38).

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Forma e função em Linguagem

                            
                   


                        Os conceitos de forma e função
                              nos estudos linguísticos


Este texto integra uma coletânea devotada ao tratamento de diversos temas atinentes à linguagem. Ele fora escrito há, aproximadamente, 8 anos, período em que eu ainda me dedicava aos estudos de mestrado e estava demasiado interessado na articulação da teoria com a prática de ensino da língua portuguesa. Este texto, readaptado, destina-se, pois, aos professores de português, mormente aos que atuam no nível básico de ensino.
Constitui objetivo desta exposição esclarecer os conceitos de forma e de função no quadro dos estudos linguísticos. O pressuposto que sustenta todo o desenvolvimento desta exposição consiste na crença de que é indispensável à formação do professor de português o conhecimento tanto teórico quanto operacional daqueles conceitos.

a) Forma

Em primeiro lugar, vou demonstrar como o conceito de forma é empregado na literatura linguística de um modo geral. Ele apresenta-se com relativa variação semântica nos modelos de análise linguística. Destaco os seguintes sentidos atribuídos, normalmente, ao termo forma:

1) Na esteira do estruturalismo saussuriano, a palavra forma é empregada para designar a teia de relações entre as unidades na cadeia sintagmática.

A título de exemplificação, trago à cena a imagem do esqueleto ósseo. Da relação sistemática entre os ossos resulta o esqueleto (a forma), que é, por isso, o conjunto estruturado dos ossos do corpo humano. Forma, na tradição saussuriana, é sinônimo de estrutura (embora o linguista não tenha utilizado esse termo, preferindo o termo sistema). Ademais, urge ter em conta que forma opõe-se, nessa tradição, a substância. A substância constitui o conjunto desarticulado de elementos do sistema. Os elementos “nós”, “a”, “a”, “praia”, “fomos” são cada um uma substância; da relação resultante desses elementos no eixo sintagmático resulta a forma. Veja-se a frase abaixo:

(1) Nós fomos à praia.


Cada um dos elementos da cadeia sintagmática é uma substância; a disposição sistemática desses elementos constitui a forma. Creio ser possível inferir que uma frase só é dotada de forma se estiver organizada segundo certos padrões previstos pela gramática da língua. Comparem-se os dois exemplos abaixo:

(2) O menino chutou a bola.
(3) A chutou bola o menino.

Enquanto falantes nativos de português, sabemos, intuitivamente, que (2) é aceitável, mas (3) não o é. Reconhecemos que (2) é dotado de uma estrutura, ou seja, de uma forma que confere ao enunciado significado e inteligibilidade, ao passo que (3) é desprovido de qualquer organização prevista pela gramática da língua. A forma de (2) pode ser descrita utilizando as seguintes notações, unidas por hífens: SN – V – SN. Leia-se “SN” como sintagma nominal; V como verbo. A estrutura SN – V – SN constitui um padrão previsto pela gramática do português. Qualquer frase formada com base nesse padrão é dotada de forma.
O caso de (3) ilustra uma sequência de palavras desprovida de uma forma ou estrutura. Por isso, sequer se trata de uma frase em português. Até aqui, portanto, forma designa o conjunto resultante da articulação das unidades linguísticas na cadeia sintagmática. Forma implica organização padronizada na cadeia de fala. Fica excluída do escopo semântico de forma qualquer referência a uma coerência semântica.
No entanto, se (3) fosse reformulada como (3a),

(3a) A bola chutou o menino.


poderíamos dizer que se trata de uma construção dotada de forma? A resposta é sim. Se examinarmos (3a), concluiremos que a construção foi também formada com base no padrão estrutural: SN – V – SN. Todavia, apenas (3) encontra repercussão linguística no espírito do falante.
Castelar de Carvalho, no entanto, entende que o conceito de forma deve compreender a articulação de uma “coerência sintática” (uma espécie de sintaxe mental) com uma “coerência semântica” (um modelo de organização conceptual determinado na/pela língua). Se acompanharmos Carvalho, deveremos, forçosamente, concluir que (3a) não é dotado de forma, porque lhe falta a contraparte da coerência semântica. Não se trata de determinar qual das perspectivas é a correta; ambas as perspectivas são válidas. A primeira delas – situando-se na tradição estruturalista saussuriana – excluí do domínio de forma a referência à estruturação semântica. Forma, nesse caso, reduz-se à estruturação sintática (ou melhor, sintagmática). Para Carvalho, no entanto, forma deve abrigar a estruturação semântica. Essa estruturação pode ser formalizada para (3) como: AGENTE – V-ação – PACIENTE.
Cumpre ainda distinguir entre construção e forma. Se a forma é a estrutura resultante da disposição sistemática das unidades linguísticas, a construção é uma substância dotada de forma. Assim, por exemplo, “A casa de vidro” é uma construção, dotada da seguinte forma:

                                      SN
                           DET           MOD


Leia-se DET como determinante e MOD como modificador.


2) Forma recobre a análise que se vale de tudo quanto prescinda do significado; opõe-se, nesse sentido, ao plano do conteúdo. Equivale, pois, ao plano da expressão. Agora, forma - e seu adjetivo correlato formal - caracteriza um critério de análise.

Nas gramáticas normativas, bem como nos trabalhos de orientação descritiva, de um modo geral, sobretudo nos de cunho morfológico e sintático, usa-se o termo forma para referir-se à análise que não leva em conta as relações significativas entre as unidades linguísticas. Em outras palavras, quando se diz que um determinado fato linguístico vai ser estudado sob o ponto de vista formal, normalmente, o estudioso lançará mão de expedientes de análise gramatical, cuja utilização pressupõe o abandono do critério semântico (são exemplos desses expedientes a “substituição”, “segmentação”, “deslocamento”, etc.). Segue-se o exemplo abaixo:

(4) Maria viu Eduardo com um binóculo.

Primeiramente, essa oração é ambígua. Mas essa ambiguidade é estrutural, ou seja, é formal, já que resulta do modo como os constituintes estão organizados. Assim, são possíveis as duas leituras (estruturais) abaixo, as quais são representadas com colchetes:

(4) Maria viu Eduardo [com um binóculo]
      Maria viu [Eduardo com um binóculo]

No primeiro caso, isola-se o constituinte “com um binóculo”, a fim de exprimir que esse constituinte não faz parte do domínio do sintagma “Eduardo”. Esse procedimento autoriza a leitura: Maria utilizou um binóculo para ver Eduardo. No segundo caso, reunindo “Eduardo” e “com um binóculo” entre colchetes, exprime-se que “Maria viu Eduardo quando ele portava um binóculo”. Nesse recorte, “com binóculo” prende-se a “Eduardo”. A análise estrutural patenteia que o significado da oração varia segundo o constituinte a que se liga o termo “com um binóculo”.  A ambiguidade estrutural pode ser desfeita dando outro torneio à oração. Por exemplo, podemos topicalizar o constituinte “com um binóculo”, ou seja, deslocá-lo para a posição anterior ao sujeito: “Com um binóculo, Maria viu Eduardo”. Podemos ainda dispor “com um binóculo” entre o verbo e o seu complemento: “Maria viu, com um binóculo, Eduardo. Essas duas formas atribuídas à construção delimitam um domínio único de leitura: Maria utilizou o binóculo para ver Eduardo.
Normalmente, a lição tradicional se vale de um critério semântico para distinguir as funções sintáticas desempenhada pelo constituinte “com um binóculo”. Para tanto, ensina-se que, sendo binóculo um instrumento por meio do qual Maria vê Eduardo, a ele deve-se chamar de “adjunto adverbial”; por outro lado, entendendo-se que Eduardo é o possuidor de um objeto no momento em que Maria o viu, ao constituinte “com o binóculo” atribui-se a função de adjunto adnominal. É verdade, no entanto, que a distinção entre as funções de “com um binóculo” se imponha por critério que é antes formal do que semântico. O critério em jogo aqui é o critério distribucional, de modo que, se “com um binóculo” estiver orbitando o sintagma verbal, ele será “adjunto adverbial” (nesse caso, ele relaciona-se com o verbo, mas não sob o modo de dependência, isto é, ele não é previsto pela valência do verbo). Se, por outro lado, “com um binóculo” se articula ao núcleo “Eduardo”, então sua função será a de adjunto adnominal.
Vejamos outro exemplo no qual os termos isolados entre colchetes são contemplados, na tradição, segundo critérios semânticos:

(5) O ladrão foi preso [ pelo policial]
(6) O ladrão foi preso [pelo roubo]


A tradição gramatical confere os rótulos “agente da passiva” e “adjunto adverbial” (de causa) aos constituintes “pelo policial” e “pelo roubo”, respectivamente. Com esses rótulos, identificam-se duas funções sintáticas. Mas essas funções sintáticas são, no entanto, fixadas com base em critérios semânticos. Tais critérios são:

a) o fato de “pelo policial” representar o agente da ação de “prender” (foi preso);
b) o fato de “pelo roubo” representar a circunstância que acompanha a ação de prender. Essa circunstância é a causa da ação.

Note-se, de passagem, que nos estudos dos papéis semânticos (recobertos pela Semântica Estrutural), o papel semântico [AGENTE] apresenta as propriedades sêmicas [+ animado] e [+ intencional]. O substantivo que funciona, semanticamente, como agente da ação tem de apresentar, necessariamente, esses dois traços. Do exposto segue-se que não podemos interpretar “pelo roubo” como agente, já que o substantivo que entra a fazer parte dessa construção é dotado do traço [- animado].
A análise que se paute pelo critério formal identificará os seguintes aspectos:

a) as unidades linguísticas que integram  constituinte cuja função se pretende determinar;
b) as unidades às quais esse constituinte se articula;
c) as propriedades morfossintáticas que comporta esse constituinte.

Destarte, formalmente, ambos os constituintes – pelo policial e pelo roubo – são introduzidos de preposição (que é, nesse caso, a mesma); ambos têm um substantivo núcleo. Ademais, tanto pelo policial quanto pelo roubo articulam-se ao adjetivo preso, do qual são modificadores (Azeredo, 2002); ambos, finalmente, não se flexionam no plural por exigência gramatical: o plural se manifesta de acordo com o conteúdo que temos em mente.
Pode-se concluir que, pelo critério formal, as duas funções, que, tradicionalmente são distintas, devem ser reunidas sob o mesmo rótulo. Isso, decerto, além de contribuir para reduzir a taxionomia gramatical, resulta numa prática teoricamente mais precisa e coerente com os fatos linguísticos em pauta.
Na segunda parte deste estudo, retomarei a discussão sobre a análise formal, quando irei cotejá-la com a análise que se serve da perspectiva semântica. Tenho defendido que, conquanto não seja profícuo abandonar o critério semântico, na análise gramatical, deve-se, por clareza e cuidado, distinguir entre o aspecto semântico e o aspecto formal (morfossintático); e nunca tomar o primeiro como peremptório.
Antes de levar a cabo minhas considerações sobre o conceito de forma, cumpre observar que o termo, nos estudos morfológicos, pode referir-se à estrutura interna do vocábulo ou ao morfema. Assim, costuma-se se referir a “-ção” como uma forma da palavra “declaração”. Outrossim, podemos utilizar forma para nos refirir à constituição interna da palavra “declaração”. Nesse caso, forma conserva seu sentido de estrutura, com a diferença de que, agora, passa a ser entendido no estrato do vocábulo. Assim, nos referimos à forma da palavra “declaração” quando queremos destacar o conjunto que resulta da aderência entre o radical “declar-”, a vogal temática “-a”, o tema “declara-” e o sufixo deverbal “-ção”. Novamente,  forma aqui é empregado na acepção consagrada na tradição saussuriana, mas circunscrita ao domínio da morfologia.

b) Função

Dentre os sentidos com que é empregado o termo função em Linguística, dois interessam-nos aqui:

1o sentido: do ponto de vista do Funcionalismo, função designa o “papel” de um objeto, isto é, sua serventia para a realização de algo (esse conceito é adotado pela Sociedade Internacional de Linguística Funcional (SILF), cujo fundador foi André Martinet.

André Martinet se ocupou das acepções do conceito de função em seu Conceitos fundamentais em Linguística. Não intento esgotar o espectro de significados atribuídos ao termo função. Meu recorte abrigará apenas dois sentidos que ilustram uma problemática da qual o professor não pode desviar seu olhar.

2o sentido: na tradição gramatical, o termo restringe-se ao âmbito sintático e designa o papel desempenhado pelos constituintes sintáticos na oração.


De acordo com 1),  função  refere-se ao papel que a língua desempenha para os seres humanos, ou seja, o de permitir a interação social. Em 2), função diz respeito ao elenco das chamadas “funções sintáticas”. A função é conhecida pela análise das relações morfossintáticas e semânticas entre os termos oracionais. Assim, a função do constituinte “do Pedro”, em “A casa do Pedro fica em Friburgo”, só pode ser determinada mediante a observação da relação que estabelece com o núcleo “casa”. Chama-se aquele termo de adjunto adnominal, porque se observa duas coisas: a) que ele adere a um núcleo nominal (casa); b) que ele modifica (‘acrescenta um ingrediente semântico’) esse núcleo. Por outro lado, dada a relação de “em Friburgo” com o verbo “ficar”, para ele não podemos fixar a função de adjunto adnominal, deveremos lhe atribuir outra função. A tradição lhe atribui a função de adjunto adverbial. Essa função sugere que o termo “em Friburgo” comporta uma informação que se acrescenta, que não é prevista pela semântica do verbo “ficar”, o que constitui um equívoco. Na acepção de ‘localizar-se’, o verbo “ficar” seleciona um argumento ‘Em__SN’ locativo. Portanto, “em Friburgo” é, em termos tradicionais, um complemento do verbo “ficar”, e não um adjunto.
O conceito de função, quando considerado na perspectiva da Gramática Funcional, é muito mais abrangente. Não cabe aqui examiná-lo. É suficiente dizer, no entanto, que uma análise de cunho funcionalista deverá alargar o conceito de função para dar conta de fenômenos que desbordam o limite estrito da sintaxe para encontrar abrigo no âmbito do discurso. Na Linguística Sistêmico-Funcional, o termo função é sinônimo de intenção ou propósito e implica necessariamente a produção interacional de significados. Dizer que “felizmente”, por exemplo, cumpre uma função, em “Felizmente, nada de mal aconteceu”, é dizer que “felizmente” serve para significar algo, serve para realizar alguma intenção, algum propósito. Diz-se que “felizmente” é, nesse caso, um modalizador, porque serve, ou seja, tem a função de expressar certa atitude de satisfação, de felicidade do locutor relativamente ao conteúdo comunicado. A gramática tradicional atribuiria a esse termo a função de adjunto oracional, que é um subtipo de adjunto adverbial. A única diferença é que ele está modificando toda a oração, e não só o seu núcleo. Semanticamente, a Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) não prevê uma subcategoria semântica para essa função, pelo menos não até onde eu sei.
Atentando-se ainda à concepção tradicional de função, citem-se as palavras de André Lalande que, em seu Vocabularie technique et critique de la philosophie (1960, p. 136) define função como:

“papel próprio e característico desempenhado por um órgão em um conjunto cujas partes são interdependentes”.



Trata-se, como se vê, de uma noção aplicável a qualquer organismo em cujo interior ocorrem relações entre suas partes constitutivas. Essa definição de função é, assim, aplicável à língua, que é um sistema complexo e coeso de signos, entre os quais se estabelecem relações opositivas, quando dispostos na cadeia sintagmática.
Finalmente, procurando evitar ambiguidade suscitada pela concepção tradicional de função, o linguista dinamarquês, seguidor fiel de Saussure, Louis Hjelmslev, em seu mais famoso e importante trabalho Prolegômenos a uma teoria da linguagem (1968 [2003]), define função como relações de dependência muito mais gerais que, portanto, não se circunscrevem aos limites estritos do âmbito sitagmático.

“Uma dependência que preenche as condições de uma análise será denominada função. Deste modo, diremos que há função entre uma classe e seus componentes (entre uma cadeia e suas partes, entre um paradigma e seus membros), do mesmo modo que há função mútua entre os componentes (partes e membros) (Hjemslev, 2003, p. 39).


É preciso ressaltar que Hejmslev denomina de functivo “um objeto que tem uma função em relação a outros objetos” (ib.id.). Ou seja, os functivos são elementos que “contraem” uma função entre si.
O autor observa que a definição adotada é semelhante à definição lógico-matemática, ainda que não seja idêntica a essa. Revela-nos que melhor será entendê-la como uma concepção que intermedeia o sentido lógico-matemático e o etimológico. Destarte, o termo função recobre não só as relações de dependência entre grandezas (relações de pressuposição entre elementos: A pressupõe B), caso em que o conceito de função recobre o sentido lógico-matemático, como também noções tradicionais, tais como “complemento gramatical”, “papel”, “posição”.
Em seu livro, Hjemslev apresenta os tipos de functivos e de funções. Da função entre os diversos functivos infere-se o fator pressuposição. Destarte, pode-se observar as seguintes relações de pressuposição, segundo Hjemslev:

a) A e B pressupõem-se mutuamente: o sujeito pressupõe o predicado e vice-verso. Mesmo nas orações ditas, tradicionalmente, “sem sujeito”, pode-se dizer que há na estrutura profunda, seguindo Chomsky, sujeito. A ausência de um termo na posição de sujeito é uma idiossincrasia do português. No inglês, por exemplo, esse princípio de pressuposição mútua entre sujeito e predicado é válido: It’s raining. (está chovendo).

b) A pressupõe B, mas B não pressupõe A: na sequência “confiar em”, o verbo pressupõe a preposição, mas esta não pressupõe o verbo. Da mesma sorte, a oração “que me ajudasse” pressupõe a oração “Eu pedi”; todavia esta não pressupõe aquela.
É discutível que “Eu pedi” não pressuponha “que me ajudasse”. Mesmo no âmbito do discurso, quem produz “Eu pedi” apenas, dá margem à recuperação pelo interlocutor da informação atinente ao que foi pedido em algum momento anterior do discurso. Sintaticamente, parece haver interdependência entre a oração dita principal “Eu pedi” e sua completiva “que me ajudasse”.
c) Não há pressuposição entre A e B: em “Lúcia e eu saímos à noite”, o verbo não pressupõem “à noite”, nem este pressupõe o verbo.

Em suma, o termo função normalmente recobre três noções: as de “serventia de um objeto” (enfoque funcionalista), a de “papel desempenhado por um termo na oração (perspectiva da Gramática Tradicional) e, numa perspectiva estruturalista, a de “interdependência entre elementos ou signos”. Essa última noção é, como vimos, mais geral e clara (embora complexa) que a da Gramática Tradicional.
Finalmente, devo salientar que aqueles três tipos de pressuposição se verificam tanto no eixo sintagmático, a que Hjemslev chama processo ou texto, quanto no eixo paradigmático, denominado pelo autor de sistema.

No que toca à generalidade da concepção de função de Hjemslev, no domínio da palavra, um elemento também contrai uma função com outro elemento. Assim, numa forma como patos, o morfema pluralizador –s contrai uma função com o tema pato.