Filosofia em foco
A existência angustiante
Uma leitura de Kierkegaard e Sartre
Este
texto se destina a mostrar de que modo dois grandes representantes da corrente
de estudos filosóficos, conhecida na tradição pelo nome de existencialismo - corrente filosófica cujo objeto é o homem
concreto no mundo, o homem como ser que precisa fazer-se a si mesmo enquanto
ser livre e ser para quem sua existência se lhe apresenta como um problema-,
pensaram o conceito de angústia.
Esses dois representantes são Sören A. Kierkegaard (1813-1855) e Jean Paul
Sartre (1905-1980). Embora Sartre tenha uma grande dívida para com Kierkegaard,
sua filosofia opõe-se à filosofia deste, relativamente a um pressuposto básico
sobre o qual a sua (de Sartre) se erigiu e a partir do qual se desenvolveu: a inexistência de Deus. Enquanto
Kierkegaard se ocupou da existência do homem tendo como ponto de referência a
relação do indivíduo com Deus, Sartre pensa-a como um acontecimento
contingente, e não algo em cuja origem se encontra uma Providência. É no
confronto de duas filosofias, assentadas em pressupostos opostos, ou seja, uma
de orientação cristã e outra de orientação ateísta, que buscarei iluminar o
modo como os dois filósofos compreenderam a experiência da angústia como uma
dimensão estruturadora da existência humana.
Ainda
que haja pontos de contato entre os dois pensamentos, especialmente no que
tange ao tema da angústia, o modo de enfocá-lo e as consequências que o enfoque
de cada um carreia são diferentes. Trataremos, portanto, de pontuá-las. Também
tenho em vista assinalar os pontos em que os dois filósofos se encontram e os
pontos em que eles se distanciam, no que tange à visão deles sobre o que é o
homem.
Antes
de expor, em pormenores, como ambos os filósofos pensaram a angústia – tema
central deste texto -, precisarei lançar um olhar geral sobre o empreendimento
filosófico desses dois pensadores, destacando temas que se relacionam
intimamente à questão da angústia.
Para
os meus propósitos, em cuja extensão não está prevista uma dissertação sobre o
existencialismo como tal, basta assinalar que essa corrente de estudos
filosóficos busca pensar o indivíduo concreto, tendo em conta sua existência
cotidiana. Um postulado central do existencialismo é formalizado pela frase a existência precede a essência. Com
ela, quer-se dizer que não existe uma natureza humana, que não é possível
definir o homem anteriormente ou previamente ao ato de existir. Ela significa
que o homem, enquanto projeto, primeiro existe para então, exercendo sua
liberdade absoluta, realizar-se, escolher quem quer ser; em uma palavra,
definir-se. Essa frase nega que haja uma essência precedente, que determinaria
aquilo que cada indivíduo vai ser ou deve ser. É necessário, portanto, reter
esse postulado, ao qual retornarei, mais adiante, ao me ocupar com o pensamento
de Sartre, a fim de que o leitor compreenda bem em que bases se sustenta o
desenvolvimento do pensamento existencialista, nas suas diversas vertentes.
Quem quer que se alinhe com a perspectiva existencialista não poderá rejeitar o
postulado segundo o qual no homem a
existência precede a essência.
Começarei
por considerar o pensamento de Sartre, por se tratar de um pensador que marcou
indelevelmente o nosso tempo. Sartre está mais próximo de nós do que
Kierkegaard. A opção por começar por Sartre não pode fazer esquecer ao leitor a
precedência de Kierkegaard. A filosofia de Sartre inspirou-se, em parte, no
pensamento de Kierkegaard. Sartre tem uma dívida para com Kierkegaard (e,
certamente, para com Heidegger).
1.
Sartre: no homem, a existência precede a
essência
Sartre
(1905-1980) foi um filósofo bastante atuante na França do pós-guerra.
Considerado o principal divulgador e um dos grandes nomes do existencialismo,
Sartre tem uma grande dívida para com Kierkegaard e Heidegger. Sua mais
importante obra é O Ser e o Nada.
Sartre
levou a sério a tese central do existencialismo – a existência precede a essência -, de tal modo que é difícil dissociá-la
de sua filosofia, ainda que, tal como está formalizada, constitua ela a
expressão de uma releitura que ele, Sartre, fez de Heidegger. Sem me estender
sobre o problema de saber se Sartre foi fiel à letra de Heidegger, nesse
tocante, o fato é que essa tese tem uma importância inegável na estruturação de
sua doutrina filosófica. Com base nessa tese, Sartre argumentou que o homem não
é predeterminado por alguma essência, que sua existência é marcada
fundamentalmente pela liberdade: primeiro o homem existe, se encontra no
mundo, para só depois definir um sentido ou uma essência para a sua vida.
A
referida tese deve ser compreendida relativamente à afirmação da absoluta
liberdade do homem. Como ser totalmente livre, é o homem, enquanto indivíduo
concreto existente no mundo, que escolhe quem quer ser. É preciso, aqui,
assinalar a importância que tem o pressuposto ateísta em que se erige e a
partir do qual se desenvolve o pensamento sartreano. Como não exista Deus, isto
é, como não exista um projetista que determine previamente um sentido, uma meta
ou plano para a existência do homem, argumentará Sartre que cabe ao indivíduo e
apenas a ele escolher as formas de viver que pensa ele serem mais adequadas ou
as melhores.
Se
o pressuposto da inexistência de Deus, em que se apoia a filosofia de Sartre,
se alinha adequadamente com a proposição segundo a qual não há uma essência
humana prévia que faça de cada indivíduo o que é ou deve ser, não se segue daí
que Sartre estivesse mais preocupado em provar o seu postulado existencial (a
existência precede a essência) com base em seu ateísmo. Na verdade, sua maior
preocupação residia em argumentar que, mesmo admitindo-se a crença em Deus,
essa crença resultaria sempre de uma escolha pessoal, de modo que a crença em
qualquer divindade não pode ser imposta a ninguém. É sempre o indivíduo que tem
de escolher entre crer ou não crer num deus ou nas visões miraculosas de um
profeta.
Novamente,
reportando-nos à tese existencialista que está no cerne, especialmente, da filosofia
de Sartre, compreende-se bem por que Sartre afirma ser absoluta a liberdade do
homem. Sartre não nega que o homem a exerça em certas condições sociais, não
nega que escolhemos tendo em conta certas circunstâncias, certo conjunto de
condições; mas nega que haja determinismo de alguma espécie. O homem goza de
liberdade absoluta porque não possui uma essência que o determina, porque “o
destino do homem encontra-se dentro dele mesmo”. Estamos condenados a sermos
livres: não nos é possível não escolher, pois não escolher é também uma
escolha.
Vale
insistir em que, ao sustentar que no homem a
existência precede a essência, Sartre quer-nos fazer ver que os entes
humanos não são dotados de alma, natureza ou essência que os façam ser o que
são. Assim também, afirmar a absolutidade da liberdade humana não é, de modo
algum, ignorar as condições em que essa liberdade é exercida. Por isso, Sartre
fala em facticidade. Evidentemente, o
ente humano é um ser que se acha no mundo, que precisa exercer sua liberdade
nesse mundo. Mas ao chegar ao mundo, esse ser encontra certas condições que
preexistem a seu nascimento. A facticidade
é, portanto, não só nosso passado, mas também nossas condições biológicas,
sociais, etc. Ela compreende o fato de nascermos numa dada sociedade, de possuirmos
certos atributos físicos, de falarmos um idioma, e nos encontrarmos em
situações sociais que não escolhemos totalmente. Não obstante, para Sartre, a
existência humana é capaz de transcender sempre esse domínio do imediatamente
dado, movendo-se, portanto, para além dele, negando-o.
Vamo-nos
concentrar, agora, visto que é urgente fazê-lo, na questão da liberdade, em
Sartre. Para Sartre, tanto quanto para Kierkegaard, o homem é um ente livre.
Eis aqui um ponto de contato entre os dois pensadores, a cujo desenvolvimento
me deterei mais adiante. Por ora, convém notar o radicalismo com que Sartre
trata da questão da liberdade, ao enfocá-la como a essência da condição humana.
Esse radicalismo é entrevisto no exemplo que ele fornece de um homem que esteja
encarcerado. Mesmo nessa condição, é ele quem escolhe entre a resignação e o
desafio, ou seja, é ele quem escolhe entre permanecer como prisioneiro ou agir
para alcançar sua libertação. As consequências de sua escolha não o eximem de
fazê-la. É claro – e este ponto é importante – que a liberdade absoluta ou
radical se acompanha da responsabilidade total. Somos sempre responsáveis por
tudo o que fazemos. Não há lugar para desculpas. Não podemos dar desculpas ou
responsabilizar um ser divino ou nossa facticidade por nossas ações e as
consequências que elas carreiam. Se o fizermos, incorreremos no que Sartre
chama de má-fé. Ser livre é ser
responsável: a absolutidade da liberdade implica a absolutidade da
responsabilidade. Veremos que a consciência dessa relação necessária entre
liberdade e responsabilidade é fonte de angústia. Mas, antes de trazer à cena a
questão da angústia, precisamos desenvolver um pouco mais a relação entre
liberdade e responsabilidade.
Em
O Existencialismo é um humanismo (2010), observa Sartre acerca da
responsabilidade o seguinte:
“(...) A primeira
decorrência do existencialismo é colocar todo homem em posse daquilo que ele é,
e fazer repousar sobre ele a
responsabilidade total por sua existência. E quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos
dizer que ele é responsável estritamente por sua individualidade, mas que é
responsável por todos os homens” (grifo meu).
Nesse
passo, Sartre argumenta que, ao fazer uma escolha por conta própria, um
indivíduo também escolhe por todos os outros indivíduos. Quando, em sua
escolha, esse indivíduo inventa o homem que quer ser, ele cria, ao mesmo tempo,
uma imagem do homem que cuida ele deve ser. Essa imagem deve ser extensiva a
todos e deve valer para toda uma época.
Como
o homem é um projeto, como nada predetermina aquilo que ele é ou deve ser, a
responsabilidade é consequência dessa liberdade que tem o homem de definir o
significado de sua própria vida. Naquela mesma obra, Sartre nota a extensão de
nossa responsabilidade:
“Se a existência, além do
mais, precede a essência, e nós queremos existir ao mesmo tempo em que moldamos
nossa imagem, tal imagem é válida para todos e para nossa época inteira”.
(p. 27)
O
homem, como “ser condenado a ser livre”, não tem escolha senão assumir essa
condição. No existencialismo, o homem é sempre considerado um ser em situação e
é em situação que ele precisa construir o sentido de sua existência. Necessário
é insistir em que, não obstante Sartre afirmar ser todo indivíduo, no momento
em que tem de escolher, responsável por toda a humanidade, não ignora o fato de
que ninguém pode ter controle absoluto sobre a situação em que se encontra.
Sartre reconhece que há outros indivíduos além de nós e que, embora sejamos
livres, numa dada situação, não podemos simplesmente determiná-la.
1.2.
A angústia e a inescapabilidade à liberdade
Doravante,
vou-me deter a mostrar como a experiência de angústia é definida e explicada por Sartre. Começarei, pois,
apresentando a definição de angústia proposta por Sartre. Sartre a entende como
um tipo de apreensão fenomenológica da liberdade absoluta a que o homem está
condenado. Na angústia, é a liberdade que se apresenta, em seu próprio ser,
como uma questão para si mesma.
Sartre
– e, nesse tocante, Kierkegaard e Heidegger estão de acordo – diferencia a
angústia do medo. Enquanto o medo supõe um objeto externo que o provoca, a
angústia não tem objeto externo. Mais precisamente, a angústia põe diante de si
mesmo o indivíduo; ele sente angústia em face da representação do modo como
poderia agir numa ou responder a uma situação ameaçadora. A angústia pressupõe
uma apreensão reflexiva sobre o eu e sobre nossa liberdade para responder a uma
situação-limite de modos vários. Sartre ilustra a compreensão que tem de
angústia com a imagem de alguém que, caminhando junto a um precipício
experiencia a possibilidade de pular no abismo. É justamente na consciência de
sua liberdade para saltar no abismo que reside a angústia.
Duas
são as fontes de angústia que já se podem discriminar, tendo em vista as
considerações feitas até aqui. Para Sartre, a angústia pode manifestar-se no
reconhecimento de nossa liberdade total e também na consciência da
responsabilidade que temos de assumir por força dessa condição. Assim, sentimos
angústia ao reconhecer que somos totalmente livres, que nada determina o que
somos ou como devemos agir e também a sentimos ao tomarmos consciência de que
somos responsáveis por nossas ações. A angústia emerge ou resulta da
consciência de que nada pode impelir-nos a ser ou fazer alguma coisa. Nossos
sucessos e fracassos na vida são produtos de nossas escolhas e somos por eles
responsáveis.
Tanto
Kierkegaard quanto Sartre veem a angústia como um componente fundamental da
existência humana. A angústia é consequência dessa necessidade humana de
construir um sentido para a existência – uma existência – vale lembrar - que carece de um fundamento transcendente
(pelo menos, é esta a visão de Sartre) e que, por isso, não pode renunciar à
busca pela construção de um significado.
1.3.
O nada da consciência e a angústia
Antes
de levar a cabo esta seção, é preciso elucidar o problema da consciência, em
Sartre, e o modo como esse problema se articula à questão da angústia.
Vamos
começar notando que, acerca do ser,
Sartre limita-se a dizer que é. Para
Sartre, o ser é o que é, e nada mais. O ser é pleno, total, perfeito,
ilimitado, nada pode perturbá-lo, porque ele não tem nenhuma consciência de si
mesmo; ele é pura e simplesmente. Relativamente à consciência, o ser é o
objeto, é tudo aquilo do qual temos consciência. Dessa concepção de ser
segue-se que a consciência precisa do objeto para ser, já que a consciência é
nada. Diremos melhor: ela é nada sem o objeto para o qual ela se dirige. O
sujeito não é nada, para Sartre.
Como
a consciência só existe na sua relação intencional (aqui fica clara a
influência da fenomenologia no pensamento de Sartre) com o objeto que não é ela
mesma, segue-se daí que o fundamento da consciência é o nada. A consciência se
define pelo princípio da contradição: ela é aquilo que não é e não é o que é.
Isto é, ela é consciência de outra coisa, mas ela nunca se identifica com o
objeto do qual ela é consciência.
O
ser, na medida em que é perfeito, fechado em si mesmo, é chamado por Sartre de em-si. A consciência é o para-si. O para-si é responsável, em seu ser, pela
relação com o em-si. Ele se produz sobre o fundamento de uma relação com o
em-si. Convém dizer o seguinte sobre o para-si. Embora envolva auto-reflexão, o
para-si compreende toda a consciência. O ser do para-si é a liberdade, pela
qual ele nega o em-si. Também não devemos pensar o para-si como um ente real,
embora exista na medida em que sabe
o que não é. A consciência diante de uma cadeira sabe que
não é este objeto que ela postula. O para-si é consciência livre e
transcendente, porque nega tanto nossa facticidade quanto os objetos.
Antes
de me estender um pouco mais sobre o modo de ser da consciência, cabe notar
como Sartre entende o Nada. Em
Sartre, o nada tem estatuto ontológico; ele é parte da estrutura ontológica do
nosso mundo. Nesse sentido, Sartre se distancia de uma longa tradição
filosófica, que via o nada como o não-ser. Para Sartre, o nada não é o não-ser,
não exclui o ser, não é ausência de ser. O nada, na perspectiva de Sartre,
integra a relação entre o homem e o mundo. É através do para-si (a consciência)
que o Nada irrompe no mundo. O ser e o nada são, pois, duas categorias
ontológicas fundamentais. Dualista ou não, Sartre afirma que o nada é uma
interrupção dentro do próprio ser ou, dizendo poeticamente, o nada emerge do
ventre do próprio ser.
Volvendo
à questão da consciência. Um retorno a Descartes permite a Sartre estabelecer
uma distinção entre o cogito
pré-reflexivo e o cogito reflexivo.
A afirmação de que a existência precede a essência implica, entre outras
coisas, a inexistência de um “eu”, com o qual experienciamos o mundo. Vale
enfatizar este ponto: Sartre nega que exista um “eu” que se identifique com a
consciência. O modo original da consciência é o que Sartre chama de cogito pré-reflexivo, graças ao qual
experienciamos o mundo e de cujo domínio está excluída uma concepção do “ego”.
O
segundo modo da consciência é o cogito
reflexivo, que supõe um “eu” que reflete sobre experiências passadas. Esse
“eu” se encarrega por unificar essas experiências, dotando-lhes de um sentido.
Sucede,
contudo, que o “eu”, para Sartre, não seria mais do que um feixe de percepções;
ademais, o filósofo sustenta que nosso modo original de perceber o mundo, de
nele existir não envolve a existência de um “eu”. Segundo Sartre, nós olhamos o
mundo como olhamos a paisagem através de uma janela, sem que, nesse ato,
tenhamos uma experiência fenomenológica de nossa própria individualidade.
Tampouco apreendemos a nós mesmos como sujeitos cuja unidade perduraria. Por
outro lado, quando trazemos à memória eventos vividos, como se olhássemos pela
janela, em retrospecto, conferimos a nós um “eu”, no momento em que atribuímos
uma unidade à sequência temporal. Nesse momento, estamos em face do modo
chamado cogito reflexivo.
Da
concepção sartreana de consciência, deve-se reter o seguinte:
a)
A consciência é posicionalmente consciente do objeto da qual ela é consciência.
A consciência é sempre consciência de alguma coisa; e também é consciência que
assume uma conduta em relação a essa coisa;
b)
A consciência é não posicionalmente consciente de si mesma enquanto
consciência, ou seja, ela está indiretamente consciente de que não é o objeto
que está visando.
Como
não há um conteúdo real para a consciência, como não há um eu que está em
relação consciente com o objeto que visa, Sartre conclui que o fundamento da
consciência é o nada. A consciência, para Sartre, é fundamental e
ontologicamente um não-ser em relação ao ser.
Como
o fundamento da consciência é o nada, nenhum ser pode assumir o estatuto de
princípio de explicação do comportamento humano. Não há nenhum tipo de
essência, quer divina, quer biológica, quer psicológica, quer social, que
anteceda e determine nossas ações. Sartre não hesitará em concluir que o homem
é tão somente o conjunto de seus atos. A liberdade é o único fundamento dos
valores e nada justifica a adoção de tal ou qual valor.
O
homem é o ser pelo qual os valores existem e, como tal, ele é injustificável. A
angústia também faz morada nessa liberdade que experimenta o homem de ser o
fundamento sem fundamento (sem essência, natureza, etc) dos valores.
O
nada da consciência é o fato de não haver um conteúdo real para essa
consciência. Não há – insisto – um eu que esteja numa relação consciente com o
objeto. Essa inexistência de um eu, de uma essência ou natureza é o que torna a
existência humana condenada a ser livre.
1.4.
A angústia diante do passado e do futuro
Sartre
observa que podemos experimentar angústia quando da própria emergência da
possibilidade de uma ação realizar-se no futuro, sem que nenhum impedimento
suprima essa possibilidade. O homem que caminha junto ao precipício, por
exemplo, é livre até para lançar-se ao abismo. Essa possibilidade de realizar
uma ação futura, uma ação sempre aberta, o angustia.
Por
outro lado, Sartre nota que uma decisão que tenhamos tomado no passado sempre
pode ser revogada, caso seja esta a vontade de quem a tomou. Assim, um
apostador que, perdendo muito dinheiro no jogo e que tenha quase lançado por
terra as chances de casar-se, decidisse não mais jogar, jamais estaria obrigado
a manter sua decisão quando passasse por uma casa de jogos. Pode suceder que,
nesse momento mesmo em que o apostador passasse pela casa de jogos,
experimentasse angústia, justamente por aperceber-se de que a decisão que
tomara outrora não o obriga a mantê-la em definitivo.
2.
Kierkegaard: o homem é uma síntese entre
o finito e o infinito
Qualquer
tentativa de abordar a filosofia de Kierkegaard deve pontuar o fato de que ele
é um dos poucos filósofos cuja vida exerceu uma profunda influência na
construção de sua obra. Embora considerado o pai do existencialismo, a relação
de Kierkegaard com o existencialismo não é tão facilmente sustentável. De
qualquer forma, tradicionalmente, sua obra se caracteriza como a expressão de
um existencialismo cristão. No entanto, Kierkegaard não era um doutrinador
cristão; era, antes de tudo, um pensador religioso (filósofo?) que expressou suas angústias e
inquietações ao longo do trabalho de reflexão sobre a fé cristã e sobre o modo
mais adequado de o homem, enquanto indivíduo, vivenciá-la. Kierkegaard manteve
com o cristianismo uma relação de tensão e sofrimento – uma relação decorrente
de uma influência religiosa marcante de seu pai. Seu pai apreciava o modo
exacerbado como os rígidos princípios do protestantismo dinamarquês eram
observados. O protestantismo era, à época, a religião de Estado. Várias
publicações de Kierkegaard foram destinadas à crítica ao cristianismo de
Estado, que, para ele, era incompatível com suas crenças cristãs.
Filósofo
dinamarquês nascido em compenhague, Kierkegaard desenvolveu sua filosofia tendo
em mira, especialmente, a filosofia de Hegel com sua pretensão de estabelecer,
em definitivo, a identidade entre o real e o racional. Contra Hegel,
Kierkegaard insistiu em que não é a Razão que governa o mundo. Embora
reconhecesse que ela pode ter uma função reguladora, observava Kierkegaard que
a matéria sobre a qual ela atua está impregnada de irracional. Em oposição a Kant, Kierkegaard delegou à fé
um lugar proeminente em face da razão supra-sensível. A ele importava
mais, no julgamento, a seriedade, a autenticidade da vida, a pureza do coração,
e não a transgressão de uma lei da razão. Sua originalidade consistiu em
atribuir superioridade à dimensão religiosa, em detrimento da dimensão ética.
Ademais, estabeleceu em Deus a instância normativa. Retornarei a esse ponto
mais adiante.
Tendo
em vista sua crítica às filosofias que pretendiam superestimar o poder da
Razão, Kierkegaard pode ser inserido entre os filósofos denominados de irracionalistas. O irracionalismo, em cuja esteira pode-se situar a filosofia de
Kierkegaard, foi um movimento marcante no final do século XIX, que visou a
criticar a supremacia da razão, vista como um instrumento pelo qual era possível
estabelecer a verdade. Essa tendência ganhou força, especialmente, depois de
Hegel.
Os
pensadores irracionalistas buscavam reanimar a questão da verdade, tomando para
ponto de partida a existência. Afinado com esse projeto, Kierkegaard não
hesitou em afirmar a necessidade de viver uma verdade que seja verdadeira para
o eu.
O
irracional é o paradoxal, para Kierkegaard. Esse paradoxal é originário, é a
própria energia da vida em sua interioridade mais escusa. Esse paradoxal ou
irracional enfeixa todas as forças da alma. Reside ele na percepção de que é
tão-só a categoria do absurdo que
lhe permite pensar a fronteira que precisa transpor para que a existência se
revista de sentido. Observa Kierkegaard que é trabalho da condição humana
atingir o supremo bem que é a beatitude ou eternidade.
A
essa altura, saliente-se que Kierkegaard, alinhando-se com os postulados do
irracionalismo, nega que o sentido da existência seja atingível pelo caminho da
reflexão racional. A investigação de Kierkegaard, na medida em que se afasta de
toda a tradição filosófica, se situa fora do domínio da racionalidade
ordinária. Embora situada no domínio do paradoxo e da paixão, sua investigação
vai mais além, de modo a alcançar o “padecer”. São caras ao seu empreendimento
filosófico as categorias existenciais existência,
angústia, desespero, liberdade e beatitude.
Para
Kierkegaard, o modo como o homem se relaciona consigo mesmo determina sua
situação no mundo. Essa relação se dá na forma de três dimensões: a estética, a ética e a religiosa. Tratarei delas em uma seção
separada.
Vale
insistir em que Kierkegaard critica tanto a falta de religiosidade do clero da
Igreja Luterana, em sua época, quanto a influência negativa de Hegel no mundo
intelectual.
2.1.
A proeminência do indivíduo
A
filosofia de Kierkegaard centrou-se no indivíduo, que ganha proeminência
ontológica. Sua filosofia, portanto, contrasta com a de filósofos como Spinoza,
Hegel e Marx, para os quais o indivíduo pouco importava. O eu kierkegaardiano
não existe encerrado em si mesmo; mas não se erige em absoluto. O eu não é o
fundamento de si mesmo; não é a identidade do sujeito com o produto de seu ato.
Entre o eu e o absoluto há intermediações que se impõem no caminho que leva o
primeiro a atingir o último.
O
postulado da existência do eu como auto-relação serve de eixo para Kierkegaard
pensar a existência e a condição humana – condição marcada profundamente pelo
desespero. Kierkegaard sustentou que a existência nunca poderá ser objeto para
o pensamento. Ela é a origem a partir da qual cada um de nós tem experiências,
pensa e age. Existir, para o homem, não é ser ou ter uma existência empírica e
imediata. O homem é o único existente; o único ente diferente de todos os
outros entes, os quais têm uma existência empírica e não sabem o que são. Para
o homem, que tem consciência de sua finitude, a existência é uma tarefa, uma
exigência, qual seja, a do devir, a de definir-se.
Para
Kierkegaard, o homem é, de fato, um ente particular, porquanto está adiante de
si; ele se ocupa de si mesmo, está perpetuamente interessado em si, inclinado
aos possíveis (nada para ele está fixado, determinado previamente). O homem é
um ente que pode ser, mas sempre em face de suas escolhas. É por seus atos que
o homem se determina, que ele emerge do imediatismo das coisas, ao mesmo tempo
em que age livremente: ele ek-siste,
isto é, mantém-se fora de si mesmo, no seu projeto, sua relação com o que é. O
existente, que é o homem, é o único ente capaz de existir na abertura ao ser.
Sendo autêntica, a existência do homem faz sentido por si mesma.
O
que seria, então – perguntaríamos a Kierkegaard – existir para o homem?
Existir, para o homem, é, ao mesmo tempo, não ser Deus e não ser apenas como os
entes ou coisas que existem na inconsciência da imediatidade e na coincidência
do eu consigo mesmo. A existência é o próprio sentido da vida que, não se
prestando a ser um objeto de uma consciência imediata, se desnuda
progressivamente ao longo do tempo – domínio em que ela é instada a realizar-se
na relação com a verdade eterna. Em Kierkegaard, a existência mantém uma
relação de extrema intimidade com a subjetividade de viver.
2.1.2.
O homem como síntese entre o infinito e o finito
Em
Kierkegaard, a existência tem como horizonte Deus. Nesse ponto, Sartre se distancia
de Kierkegaard. Em Sartre, a existência tem como único horizonte o mundo. Mas
nos concentremos em Kierkegaard. Para ele, toda existência é uma espécie de
mal-estar, dado que o homem percebe como problemática a inserção no tempo do
princípio eterno que lhe deu origem. Ademais, é um mal-estar, porque os
possíveis embaçam a liberdade que precisa determinar-se.
É
a totalidade da finitude no homem que deve relacionar-se com o infinito.
Sucede, contudo, que essa finitude é complexa por si mesma, é conflituosa; está
fadada à tensão e ao desequilíbrio. Na finitude, a consciência opera uma cisão
entre alma e corpo, entre interioridade e exterioridade. A emergência do
espírito no homem é já o limiar da angústia. Mas, antes de tratar desse
irromper-se da angústia no surgimento do espírito, é necessário compreender não
só o que Kierkegaard chama de espírito,
mas também seu lugar na sua própria filosofia.
Remontando
à condição de Adão no Paraíso bíblico, Kierkegaard toma como ponto de partida o
estado de inocência, no qual a alma
e o corpo compõem uma unidade em repouso e em serenidade. Nesse estado, não há
angústia, não há nada contra o qual se deve combater. Na inocência, estado de
ignorância e típico da idade infantil, o ser humano não é determinado como
espírito; mas é determinado psiquicamente como unidade imediata com a natureza.
Sem culpa, sem angústia e sem sofrimento, o homem goza da felicidade da
inocência.
Kierkegaard,
trazendo à cena a proibição feita por Deus a Adão, mostra que é justamente
porque a proibição desperta em Adão a possibilidade de liberdade que essa
proibição o angustia. O que antes, em estado de inocência, era o nada da
angústia, deste momento em diante, passa a ser interiorizado nele, Adão, como
um nada que se qualifica por força do espírito: esse nada é a angustiante
possibilidade de ser-capaz-de.
Kierkegaard
prosseguirá observando que essa possibilidade angustiante não sabe o que ela é
capaz de fazer (ignora-se a distinção entre o bem e o mal). Existe tão-só,
neste momento, a possibilidade de ser-capaz-de.
Essa possibilidade, evidentemente, não deixa de ser uma forma de ignorância,
embora superior. Também é uma forma superior de angústia. Essa capacidade ama e
não ama a angústia, porque foge dela.
Seguem-se
às palavras de proibição, as palavras da sentença. Deus, então, sentencia:
“Certamente tu morrerás”. Adão, evidentemente, não sabe o que significa morrer;
todavia, a ignorância de Adão não exclui a possibilidade de ter-lhe afigurado
ao espírito um acontecimento terrível. O horror experimentado por Adão, ao
imaginar a possibilidade desse acontecimento terrível, se converteria em
angústia, dado que Adão não compreendeu o enunciado de Deus. Fica-lhe novamente
a ambiguidade da angústia: ele a ama, enquanto infinita possibilidade de ser-capaz-de, mas dela foge; agora,
especialmente, porque ela lhe põe diante de outra possibilidade que assume a
forma de consequência de sua escolha. Se ele é infinitamente capaz de, é capaz de fazer qualquer
coisa, até mesmo de matar-se.
A
inocência adâmica situa-se na angústia, quando esta se relaciona com o proibido
e com o castigo. Sem haver culpa, há, no entanto, angústia.
Retomemos
o conceito de espírito, a fim de precisá-lo. Direi, em primeiro lugar, que, em
Kierkegaard, o espírito deve testemunhar a nossa liberdade relativamente à
natureza, a qual é necessária e determinada. O espírito é o aspecto religioso
de nossa existência, em contraste com o aspecto sensual, carnal e mundano. É o
princípio do pensamento e da reflexão no homem. Daí ter-nos legado Kierkergaard,
em seu O conceito de angústia (2010, p. 46), o enunciado “Quanto menos
espírito, menos angústia”. O espírito é a faculdade de síntese reflexiva.
O
homem é espírito. O espírito é o eu, e o eu é uma relação entre a alma e o
corpo. Essa relação se relaciona consigo mesma, por meio do espírito. O eu é o
fato de que a relação se relaciona consigo mesma. Assim, não sendo identidade
abstrata, o eu é essencialmente relação viva consigo mesma. Não é propriamente
relação entre alma e corpo, mas a relação em sua reflexividade que se
desenvolve na dinâmica do tempo. A reflexividade dessa relação, que se vai
desdobrando no tempo é que permite a realização da síntese entre o finito e o
infinito, entre o temporal e o eterno, entre a liberdade e a necessidade, entre
o absoluto e o relativo, entre o incondicionado e a condição que compreende os
contraditórios de nossa humanidade. Deve-se insistir em que é através do espírito que a relação entre a
alma e o corpo relaciona-se reflexivamente consigo mesma. O eu é essa relação
que se relaciona consigo mesma em sua reflexividade.
Ao
se debruçar sobre a identidade do eu, Kierkegaard insiste em sua reflexividade,
insiste na singuralidade de cada indivíduo, graças à qual esse eu se desprende
da impessoalidade da espécie e se desfaz das máscaras forjadas pelas convenções
sociais.
Não
é custoso ver que, em Sartre, o conflito dessa relação não encontra lugar. Para
Sartre, não há um “eu”, um sujeito, entendido como conteúdo da consciência. Não
há, portanto, espírito; e não há cisão entre corpo e alma. Em Sartre, o eu é
produto da necessidade de conferir unidade a experiências passadas. É um feixe
de percepções. Não é fundamento da consciência, já que a consciência se
constitui enquanto nada.
O
espírito, portanto, surge como consequência da cisão entre alma e corpo, a
qual, por sua vez, resulta do conhecimento, da consciência reflexiva de si
mesmo. No momento em que Adão e Eva tomam consciência de sua nudez, o espírito
se faz presente no estado de repouso (ainda que em esboço), permitindo o
nascimento da vida interior. Não devemos supor que, em estado de inocência, o
homem encontra-se em unidade com a natureza. O espírito, ainda que repouse em
estado de imediatidade e sonho, coloca Adão e Eva em face da possibilidade de
ser capaz de. Esse espírito, ainda como possibilidade, já experimenta a
angústia diante do nada.
Em
Kierkegaard, a existência humana é dotada de uma reflexividade bastante
complexa. O homem é filho do finito e do infinito, do eterno e do temporal. Sua
condição obriga-o a buscar incessantemente o equilíbrio nessa relação, com
vistas a realizar o mais adequadamente possível a síntese. Ora, uma síntese é
reunião de duas coisas percebidas como distintas. Trata-se, pois, da síntese
entre o finito e o infinito. Essa relação relaciona-se consigo mesma, e o seu
resultado é o eu. Nota Kirkegaard que ou essa relação se faz a si mesma, ou é
tornada possível por obra de outra coisa. Se esse é o caso, a relação, ou seja,
o espírito, relaciona-se com aquilo que a tornou possível, a saber, com Deus.
Por conseguinte, para Kierkegaard, resgatar conscientemente a relação com Deus
é nascer para si mesmo de verdade. É renascer, reconciliar-se. Mas essa
renovação envolve dor. Há uma tensão no interior do indivíduo que escolhe
relacionar-se com Deus: é o indivíduo que se determina, que se escolhe. Se ele
fosse determinado, não seria um eu. Nesse ponto, Kierkegaard e Sartre se
aproximam: a liberdade do indivíduo implica responsabilidade, e existir é estar
intimamente consciente de que somos responsáveis pelo que escolhemos vir a ser.
Todavia, em Kierkegaard, há uma força ontológica fundadora da relação consigo
mesma.
É
tarefa do homem não só reunir numa unidade a alma e o corpo, mas elevar essa
unidade ao nível de espírito, graças à relação com Deus. O homem espiritual,
cuja vida finita renasce na relação com o infinito, é uma forma do homem que se
sobreleva ao homem, tanto quanto o homem eleva-se sobre o animal. A
espiritualidade, na perspectiva de Kierkegaard, é uma propriedade do homem que
o distingue absolutamente do animal.
2.1.3.
Unindo pontos
Façamos
uma síntese intermediária ou provisória, antes de trazer à cena a questão
principal desse texto: a da angústia. Kierkegaard esboça uma teoria do self, à luz
da qual pensa o espírito como síntese entre corpo e alma. O espírito precisa
compreender numa síntese o tempo e a eternidade, no momento em que TEM DE FAZER
ESCOLHAS.
Kierkegaard
reintroduz na filosofia o nada como categoria ontológica. A disposição que nos
leva ao nada é a angústia. Kierkegaard, seguido por Heidegger, considera a
angústia como aquilo que manifesta o nada.
Estar
na presença de Deus é estar envolvido numa solidão muito pessoal, muito íntima
que deve permanecer discreta e oculta. O homem, síntese entre o finito e o
infinito, deve experienciar o sentimento religioso em sua interioridade, ou
seja, na relação do eu consigo mesmo diante de Deus. Diante de Deus, a
exterioridade desaparece e deve o homem fechar os olhos.
A única essência do homem é
não ter essência alguma. O homem é uma existência livre, é um ente
livre que corre o risco de se perder. Ele constitui uma exceção na natureza:
ele é livre, capaz de autodeterminar-se em ato, é livre do determinismo
natural. Sua existência, por definição, supõe o desprendimento de seu ser
relativamente aos imperativos da natureza. Pela liberdade, o homem é um dever-ser: ele deve determinar-se sem
deixar se determinar. O homem é um ser em perpétuo vir a ser.
2.1.4.
Explicitando alguns pressupostos kierkegaardianos
Em
Kierkegaard, a religião anda em par com a filosofia. Religião e filosofia têm o
mesmo objeto – Deus enquanto verdadeiro em si e por si e o homem na sua relação
com ele. Kierkegaard reconhece nas religiões um domínio em que o homem
expressou sua consciência do Absoluto, de modo que não se pode negar que elas
são obra suprema da razão. Não obstante, Kierkegaard se revoltou contra o
pretender exaustivamente submeter o religioso ao pensamento. Também critica a
tendência de subsumir o real ao racional – tendência que leva à quase diluição
do individual no universal. Aqui, se entrevê sua crítica a Hegel, cujo sistema
pretendia reunir tudo – Deus, o homem e o mundo – ao abrigo de uma Razão
soberana, tendo o homem um lugar central numa totalidade que lhe justifica
progressivamente a própria existência. Kierkegaard acusava Hegel de que, ao
proceder assim, suprimia a angústia como uma dimensão fundamental da existência
humana.
Como
Kierkegaard tenha se dedicado a desenvolver uma fenomenologia do espírito individual ou da existência, a questão que o ocupava não era “o que é o homem?”;
seu esforço era encaminhado no sentido de demonstrar as etapas por que ele,
homem, deve passar, a fim de apropriar-se cada vez mais de si, como numa
caminhada ou ao longo de uma história que se vai construindo e na qual a morte
pode irromper para sinalizar o quão inacabado é o homem. A fenomenologia do
espírito individual busca, pois, descrever os momentos que, relacionados
dialeticamente, compõem o curso de ascensão do indivíduo a si mesmo, sem que
jamais chegue a termo, no domínio temporal, esse processo de ascensão a que a
própria vida destina cada um de nós. Donde a ideia de existência como
edificação. Existir é um edificar-se contínuo, que supõe a passagem de um
momento a outro num esforço por encontrar-se consigo mesmo.
A
existência é uma tarefa, e é tarefa do existente, isto é, do homem tornar-se
uma síntese entre o finito e o infinito. Nesse sentido, essa síntese é a
própria essência humana, a cuja realização se consagra o homem. Cabe, a essa
altura, uma digressão elucidativa. Se Sartre nega haver qualquer essência ou
natureza humana que determine o que o homem pode ser, Kierkegaard, ao que
parece, admite uma essência humana. Diz, inclusive, que a essência da
existência humana é a auto-relação, e essa auto-relação determina o modo de o
homem encontrar-se ou estar no mundo. Todavia, o homem, dirá Kierkegaard, é um
ser livre, o que nos leva à conclusão de que essa essência não é um
determinante; é o que o homem traz em si como possibilidade para ser vivida intimamente,
e, como possibilidade, está sempre submetida à vontade, à liberdade do homem.
Vale lembrar que o homem precisa realizar a síntese que o constitui como tal,
mas ela só pode realizar-se na existência, e o homem é livre para escolher
entre a realização dessa síntese, a busca por uma relação com Deus e a imersão
total no mundo.
Devemos
ter em conta que não se trata de uma ascensão do espírito em direção a Deus,
mas da relação do espírito consigo mesmo em diálogo com Deus. A cisão é a
própria relação do espírito consigo mesmo. O homem é, pois, marcado por uma
cisão que constitui sua própria existência pela mediação de seu fundamento,
qual seja, Deus.
Ora,
se a essência humana consiste em ser bem-sucedido nessa relação com Deus, não
pode o homem furtar-se a ela, tampouco deve o homem fugir ao mundo. Kierkegaard
preconizava que o fim a que se destina a existência humana é apropriação da
existência como existência no aqui e agora, em cada instante que nos dá a
eternidade.
É
importante reforçar esta ideia, a fim de que se torne claro o que se seguirá,
quando eu me concentrar no problema da angústia: o homem é uma síntese entre o psíquico e o corpóreo. O espírito
perturba continuamente, quando presente, essa relação entre alma e corpo. Por
outro lado, não deixa de ser favorável a ela porque busca estabelecê-la.
Trata-se de um poder ambíguo, portanto. A forma como o espírito se relaciona
consigo mesmo e com a condição do homem é a da angústia: “O espírito se
relaciona como angústia (p. 47)”.
A
existência, para o homem, o lança a um paradoxo, ou melhor, está fundada num
paradoxo. O espírito não pode desembaraçar-se de si mesmo; tampouco pode
apreender-se a si mesmo, enquanto ele se volta para fora de si. O homem não
pode imergir num estado vegetativo, pois que ele é determinado pelo espírito;
não pode escapar à angústia, já que ele a ama, mas não a ama verdadeiramente,
porquanto, afinal, foge dela.
Finalmente,
para Kierkegaard, a consciência humana é marcada profundamente pelo desespero.
Ainda que eu não possa me ocupar desse tema neste texto, vale notar que o
desespero é visto por Kierkegaard como uma característica essencial do ser
humano. Não há homem livre do desespero. O desespero é uma verdade totalizante
da condição humana. E Kierkegaard não consente a objeções. Quem quer que
suponha não carregar desespero é porque se deixa viver despreocupado em face do
mundo. Kierkegaard reconhece que o homem vive imerso na banalidade da vida, na
qual encontra satisfação imediata. Vivendo num relativo entorpecimento em face
de sua condição desesperante, o homem não se dá conta, naturalmente, do
desespero, tampouco se apercebe da flutuação entre saúde e doença que acenam
com a fragilidade da vida. Ele vive em segredo, e a vida lhe passa
desperdiçada. Kierkegaard nega que a felicidade se encontre no prazer. Ela é
uma miragem, enquanto busca de um bem durável, no plano da finitude e do
possível. E conclui: todo homem é, por
natureza, desesperado.
2.2. O salto de fé
Na
medida em que existir é, simultaneamente, devir e ser, existir exige a fé. Mas
a fé não é fuga ao mundo, mas uma apreensão da eternidade no tempo. Enquanto
certeza interior que antecipa a infinitude (Hegel), ela é esforço orientado
para descobrir o sentido da existência, ou seja, para viver com sentido, para viver
uma vida bem orientada na dimensão do ser. Por isso, a fé conduz ao crescimento
no ser; é ela abertura do tempo à eternidade, de modo que, pela fé, o homem
vive da própria eternidade no tempo.
Lembremos
que o homem é cindido por um abismo que precisa transpor. Esse abismo se
interpõe entre o eu e o eu mesmo. Toda uma vida é necessária para transpô-lo.
Examinemos, brevemente, o lugar que ocupa a fé na filosofia de Kierkegaard.
Qual é a sua importância para a existência humana?
Kierkegaard
afirma que a escolha é nosso ponto de partida, é nossa companhia permanente e
nosso fardo mais pesado. Como ente livre, o homem tem sempre de fazer escolhas.
O problema fundamental para Kierkegaard, quando se debruçou sobre a condição
humana, é o que cada eu, enquanto indivíduo, deve fazer e não que deve
conhecer. Necessário é encontrar uma verdade que valha para o eu, uma ideia por
que esse eu possa viver e morrer. Mas onde encontrá-la? Respondeu Kierkegaard:
na crença religiosa. Mas a crença religiosa envolve paixão e não razão. A fé é
incompatível com a razão; esta pode minar aquela. A crença autêntica supõe um salto de fé, porque se define como uma
força que provém de nosso interior e que dispensa a orientação da razão. Não
importa, aqui, se nossa crença é verdadeira ou certa.
Segundo
Kierkegaard, a fé só tem sentido, ou melhor, só é necessária na ausência de
certezas e de segurança. Se estivéssemos realmente seguros da existência de
Deus, prescindiríamos da fé. Mas a existência de Deus não é uma questão de
reflexão racional. O apelo à necessidade de manter em divórcio a fé e a razão
não é uma originalidade de Kierkegaard; na verdade, ele não faz mais do que
recuperar posições antigas de pensadores como Tertuliano (155 d.C) e João Duns Escoto (1265-1308), os quais insistiam no primado da fé sobre a razão.
2.3.
As dimensões da auto-relação
A
existência do homem pode desenrolar-se em três dimensões, segundo Kierkegaard. Na dimensão estética, o homem assume
uma posição de pura exterioridade. Nela, ele se evade de si. A vida estética se
esvai no instante do prazer. Nela, o homem busca o prazer como sentido da vida,
mas não qualquer prazer; tão-somente aquele prazer que provoca o amor que não
se satisfaz em possuir o corpo do amado; quer possuir sua alma e sua liberdade.
Dois tipos humanos são característicos dessa dimensão: o sedutor, que vive em
função do prazer, tipo para o qual o prazer é o sentido da vida; e o poeta,
que, sendo um esteta, se deixa impregnar-se da beleza do real para poder erigir
seus versos.
Na dimensão ética, o
homem vê-se diante da liberdade. Essa dimensão é a dimensão da liberdade. O
homem não pode passar de uma dimensão para a outra por meio de um ato da
inteligência; para fazê-lo, ele precisa de um salto, o qual depende de um ato
da vontade. O locus da liberdade é a
consciência individual, a qual é marcada profundamente pelo desespero. O
desespero é um sentimento que o homem experimenta em face da escolha de si
mesmo.
O
tema do desespero demandaria, por si mesmo, um novo texto. Não me deterei a
tratar dele aqui. Basta-me notar que o desespero se prende à liberdade de que
goza o homem em face de sua própria condição como ser de relação consigo mesmo.
O homem pode assumir duas atitudes: pode querer relacionar-se consigo mesmo,
independentemente do princípio absoluto que o pôs nessa relação (ou seja,
ignorando a Deus), ou pode não querer relacionar-se consigo mesmo. Quando o
homem se nega a relacionar-se consigo mesmo, situa-se no domínio da ficção,
porque pretende, em vão, escapar a si mesmo, o que lhe é impossível, a não ser
matando-se. Essa impossibilidade de fugir a si mesmo é fonte de desespero para
o homem.
Na
dimensão religiosa, o homem
encontra-se com a fé. Acontece que, se a dimensão ética se assemelha a uma
farsa, já que as regras encobrem e impedem o ato de liberdade, e se a dimensão
estética tem uma urdidura de comédia, porque leva o homem a voltar-se para o
prazer e o entretenimento, a dimensão religiosa tem uma face de tragédia,
porque sua força motriz é a paixão – a paixão da fé. Onde há paixão há angústia
e dor.
Kierkegaard
considera a fé a mola da história humana. O homem, contudo, que fica atrelado
às tarefas que servem para preencher o tempo não vai mais além.
Diremos,
à guisa de conclusão, que não há entre as três dimensões mediação, porquanto
cada uma delas se caracteriza por contradições inconciliáveis. Somente a
liberdade pode por fim aos conflitos, já que o indivíduo precisa escolher uma
dentre as dimensões. A passagem de uma dimensão a outra não se dá à luz da razão,
mas à luz da vontade, por meio de saltos. Mas a dimensão religiosa é, para Kierkegaard, mais verdadeira, por ser
mais significativa para o ser humano.
2.4.
A angústia como dimensão estruturante da existência
Trata-se
de uma ideia fulcral esta que verbalizarei – fulcral porque serve de
sustentáculo para o que se seguirá. A angústia, para Kierkegaard, não é uma
patologia psíquica, uma enfermidade, como fora consagrada na literatura
psicanalítica. A angústia, na filosofia kierkegaardiana, é uma estrutura básica
do modo como o existente, isto é, o ente humano se relaciona com a vida,
consigo mesmo e com os outros. Ela dá forma a essa relação.
Vimos,
quando eu trouxe a interpretação que fez Kierkegaard da tentação no Paraíso
bíblico, que a angústia decorre da manifestação do Nada. O Nada, quando
interiorizado pela consciência, causa angústia. A angústia reside em nossa
liberdade que se traduz como “angustiante possibilidade de poder”. Sartre
acompanha Kierkegaard na distinção entre angústia e medo. Enquanto o medo supõe
um objeto real, um perigo real, a angústia é apreensão diante do nada, do
vazio. É na angústia que a liberdade se expressa como poder ser.
Para
Kierkegaard, ao contrário de Sartre, a angústia não é angústia diante do mundo;
é o fato mesmo de o homem existir no mundo, enquanto ser encarnado, síntese
entre corpo e alma, e corpo sexuado. Tanto Kierkegaard quanto Sartre, porém,
definem a angústia como uma estrutura existencial, na qual a liberdade humana
toma consciência de si mesma como sendo seu próprio nada. Kierkegaard e Sartre
se aproximam também no tocante à compreensão segundo a qual o homem experimenta
a angústia na carne, ainda que essa visão seja mais marcante em Kierkegaard.
Para
Kierkegaard, a angústia é a realidade da liberdade como possibilidade que se
coloca antes da possibilidade. Isso significa que o homem é livre antes mesmo
de poder ser segundo a determinação de sua liberdade. A liberdade no homem
preexiste à possibilidade de poder ser o que ele quiser, e isso lhe causa
angústia.
A
angústia é o pressentimento experimentado pelo homem de que ele é maior do que
a experiência imediata. Kierkegaard vê
na angústia a ação do espírito como causa simultânea da cisão e da síntese
entre alma e corpo na consciência reflexiva. Compreendamos melhor essa ideia.
Ao
tomar consciência de seu corpo, o homem remete a imediatidade corporal à
exterioridade, isto é, ao tomar consciência de seu corpo, o homem apreende essa
realidade imediata remetendo-a como algo que se relaciona à exterioridade do
mundo. Como corpo, ele se percebe como parte constitutiva da natureza; no
entanto, no momento mesmo em que toma consciência da imediatidade corporal, o
homem experimenta sua interioridade como domínio capaz de se autodeterminar. A
dialética entre interioridade e exterioridade atravessa e marca inteiramente a
existência humana. O homem não é mais apenas um corpo; não está mais unido
inextricavelmente ao natural; pela consciência de sua interioridade e pela
possibilidade que tem ela de se
autodeterminar, o homem percebe-se como livre das amarras e predeterminações da
exterioridade, do natural.
A
angústia, então, liga-se à reflexividade nascente, a essa experiência
originária que constitui o fato mesmo de existir, ao qual, no entanto, a
própria condição humana impõe um tornar-se ato de existir. Longe de levar a
experiência a perder-se num vácuo, a angústia lhe confere sentido, porque
provém justamente dessa indeterminação humana originária que se impõe o dever
de autodeterminar-se.
A
angústia é o que leva a consciência a flutuar diante de todos os possíveis. Ela
surge da intuição de que o homem é uma síntese a realizar-se, mas que, no
entanto, fracassa, na maioria das vezes, na tarefa de edificação de si mesma. A
angústia é o domínio em que o si mesmo começa a aparecer, é uma experiência
impregnada de uma tonalidade afetiva única, dado que ela não tem objeto. A
angústia não é intencional, no sentido de que não se dirige para um objeto. Ela
se apresenta na origem do desvelar-se do indivíduo a si mesmo, quando ele se
confronta com o seu nada, com o abismo desprovido de profundidade que é o
possível; ela surge quando ele toma consciência de sua situação desesperadora.
Enfim, ela surge da impotência que sente o homem, logo de início, quando se
esforça por realizar uma síntese adequada.
Por
fim, cumpre notar que a angústia, em Kierkegaard, é o sentimento de inquietude
que se encontra na origem da livre opção (no que Sartre está de acordo); mas é
também o que resulta do reconhecimento pelo homem de sua finitude e da sua
condição mortal (é angústia diante da morte, do nada); e também – o que não
deixa de nos surpreender – angústia em face do silêncio de Deus. Nem a fé nos
dá garantia.
Conclusão
Penso
ser arriscada qualquer tentativa de estabelecer uma linha demarcatória entre as
duas visões sobre a angústia, por mim contempladas neste texto. Para fazê-lo,
precisarei me aprofundar mais nessa temática tanto em Kierkegaard quanto em
Sartre. Por ora, reitero que tanto um quanto outro situam a angústia no domínio
da liberdade e da responsabilidade que decorre da consciência que tem o homem
de ser livre. No entanto, em Kierkegaard, a angústia parece ser mais invasiva,
mas conflitante, porque se imiscui na interioridade da subjetividade humana,
corrói o eu durante o esforço de realização de sua síntese. Como Sartre não
reconhece o eu como realidade ontológica, a angústia não pode manifestar-se
como um sentimento esmagador do eu em sua interioridade. Em Kierkegaard, a
angústia está envolvida na transcendência do homem tendo como instância de
referência o Absoluto. Sartre, embora reconheça que o homem é ser de
autotranscendência, nega que essa autotrasncedência o conduza a uma relação com
o Absoluto. A autotranscendência do homem, para Sartre, se dá como imanência,
porque se dá no mundo, é relativa ao mundo. O homem se autotranscende porque
livre, porque pode ultrapassar sua facticidade, ou melhor, pode negá-la. Para
Sartre,, ao contrário de Kierkegaard, a angústia é angústia em face do mundo.