O
mundo do leitor
Por
que todos deveriam ler?
Por
que todos deveriam ler é o ponto
arquimediano que sustenta, que confere textura e consistência à ordem de
reflexões e análises que apresento neste texto. Meu objetivo precípuo é oferecer
um conjunto, teoricamente estruturado, bem fundamentado, de razões por que
penso que a leitura é uma prática de vida indispensável à plena realização da
autonomia, da liberdade e da potência de viver (a mais importante dentre
todas!). À proporção que eu for avançando na exposição e na articulação dessas
razões, espero lograr convencer o leitor de que a imersão na prática da leitura
leva-o a dessituar-se, a desenraizar-se, cognitiva, fisiológica e afetivamente
das ocupações da vida ordinária, do solo da cotidianidade mediana, domínio no
qual as atividades repetidas dos atores sociais reproduzem continuamente os
aspectos estruturais do sistema social, domínio da vida cuja duração e fluxo
não levam à parte nenhuma, - para nos fazer participantes de outro nível ou
estratos de realidade, para nos fazer frequentar novas e complexas dimensões da
realidade. Descerrando dimensões mais profundas, intricadas e complexas da
realidade, talvez sequer entrevistas em nossa experiência ordinária, a leitura
possibilita-nos a abertura de planos de compreensão igualmente mais complexos, com
dimensões que permanecem obnubiladas na experiência cotidiana de mundo. A
leitura nos leva a experienciar outros vastos campos de sentido desconhecidos,
porque velados durante a maior parte do tempo vivido na faina cotidiana. Ler é
perfurar a espessura da autoevidência do mundo da ocupação com as coisas, do mundo da vida (conceito que será
dilucidado por mim mais adiante), do mundo utilitário das relações com todas as coisas que tocam ao viver comum e
imediato. Mas equivocar-se-á quem daí concluir que a leitura nos afasta do
mundo, nos aliena dos problemas concretos e “reais” da vida. Como bem ensina
Lajolo (2000, p. 7), “(...) lê-se para entender o mundo, para viver melhor”, ao
que ajunta “quanto mais abrangente a concepção de mundo e de vida, mais
intensamente se lê” (ibid.). Quanto mais e melhor compreendemos o mundo mais avidamente
e intensamente devoramos os livros, porque a complexidade do real é
inesgotável, e a compreensão que podemos ter dele, apesar de limitada pela
natureza de nossas faculdades cognitivas, é sempre renovada e realimentada por
essa inesgotabilidade.
Desde já, faz-se mister dizer que não
ignoro que a produção de leitura é um processo abrangente de que fazem parte
componentes sensoriais, emocionais, intelectuais, fisiológicos, neurológicos,
bem como culturais, econômicos e políticos. Outrossim, admito que ler não se restringe a uma experiência de
trato com o texto escrito. É possível ler outros objetos simbólicos (sinais de
trânsito, expressões corporais e gestuais, obras de arte, eventos e situações
sociais, filmes, peças de teatro, etc.). A leitura implica a compreensão de formas simbólicas, independentemente dos
suportes materiais ou plataformas digitais pelos quais elas se expressam. Não
obstante, meu enfoque sobre a leitura a situa no domínio da cultura letrada, à
luz da qual ela é vista como condição necessária para a participação, cada vez
mais ampla, dos indivíduos em suas esferas. O exercício contínuo da leitura é
fundamental para que compreendamos como as produções da cultura letrada
contribuem diretamente para o estabelecimento de relações de poder e de
dominação dos grupos letrados, dos indivíduos possuidores do capital cultural e
simbólico sobre os grupos não letrados, carecidos dessas formas de capital. Ler
é um acontecimento histórico que diz respeito a outras formas de expressão da
atividade humana no devir histórico. Também não ignoro que a prática de leitura
pode ser dificultada ou mesmo inviabilizada por condições sociais objetivas.
Sobre tais condições nos chama a atenção Martins, no excerto abaixo:
(...) em nossa trajetória existencial,
interpõem-se inúmeras barreiras ao ato de ler. Quando, desde cedo, veem-se
carentes de convívio humano ou com relações sociais restritas, quando suas
condições de sobrevivência material e cultural são precárias, refreando também
suas expectativas, as pessoas tendem a ter sua aptidão para ler igualmente
constrangida. Não que sejam incapazes (...). A questão aí está ligada às
condições de vida, a nível pessoal e social. (Martins, 2006, p. 18).
A defesa que faço, aqui, da
importância da prática da leitura passa pela consideração das condições
socioculturais e econômicas concretas que determinam as várias formas de
desigualdade entre as classes sociais. Esse tema merecerá a minha acurada
atenção, antes mesmo de atacar a questão central a partir da qual se costuram
as reflexões deste texto. Doravante, visando a evitar muitos desvios e
digressões no curso do discurso, motivadas pela necessidade de aclarar,
pontualmente, um ou outro conceito teoricamente pertinente à discussão, passo a
inventariá-los e esclarecê-los abaixo. Alguns destes conceitos, embora
codificados por palavras de uso corrente nas práticas linguísticas cotidianas, passam
ao largo do foco da consciência reflexiva dos indivíduos. Muitos destes
conceitos, cujo significado descerro, não são definidos nem problematizados na
fala do homem comum. Outros conceitos têm circulação em domínios teóricos
especializados e conhecê-los contribuirá para que meu texto torne-se tanto mais
legível quanto semanticamente cristalino e consistente para o leitor.
1. Conceitos básicos
pressupostos na leitura deste texto
a)
Preconceito
É uma atitude cultural positiva ou negativa dirigida a membros de um grupo
ou categoria social. Na qualidade de atitude, preconceitos combinam crenças e
juízos de valor com predisposições afetivas positivas ou negativas.
Sociologicamente, o preconceito é um tema importante, porque todo preconceito
fundamenta práticas de discriminação, constitui o estofo do tratamento desigual
de indivíduos que pertencem a um grupo ou categoria particular. Quando o
tratamento desigual se expressa como abuso, exploração e injustiça
sistemáticos, o tratamento desigual e o preconceito que lhe está na base
tornam-se opressão social. Opressão
social descreve uma relação de
dominação e subordinação entre
grupos ou categorias de indivíduos, na qual o grupo dominante obtém algum
benefício com o abuso, a exploração e a injustiça praticados sistematicamente
contra o grupo subalterno.
b)
Estereótipo
Crença rígida, excessivamente
simplificada, não raro, exagerada, aplicada a uma categoria inteira de
indivíduos ou a cada indivíduo da mesma categoria. Estereótipos constituem a
base do preconceito, que, por sua
vez, é usado para justificar discriminação e atitudes positivas e negativas.
Estereótipos podem ser tanto positivos quanto negativos. Assim, por exemplo, a
crença estereotipada de que os judeus são gananciosos é negativa, e a crença de
que os cristãos não o são é um estereótipo positivo.
c)
Representações coletivas
São fenômenos mentais compartilhados
socialmente pelos quais as pessoas organizam suas vidas. Representações
coletivas são elementos constitutivos de qualquer cultura. Elas recobrem o
conjunto de crenças, ideias, valores, símbolos e perspectivas que moldam os
modos de pensamento e de sentimento que são gerais e permanentes numa sociedade
ou grupo social. As representações coletivas são compartilhadas pelos membros
de uma sociedade como sua propriedade coletiva. A socialização dos indivíduos
se dá na comunicação das representações coletivas que são, então,
compartilhadas entre eles, nas mais diversas esferas de interação social. A
própria interação social depende da circulação constante de representações
coletivas em uma sociedade.
d)
Emoções
A linguagem evoca, representa, eleva
ou arrefece nossas emoções. Na vida cotidiana, vinculamo-nos a tudo que nos
ocupa através de nossas experiências emocionais e subjetivas com base nas quais
o cotidiano se dota de uma espessura de significado. As emoções possibilitam
aos indivíduos uma valiosa compreensão de suas relações com o mundo e de suas
expectativas a respeito dele; ademais, elas os orientam em suas diferentes
formas de agir. Segundo Solomon (2015, p. 22), “emoções são processos”. Emoções
não são sentimentos. Para Solomon, sentimentos são sensações não inteligentes.
Jung, por sua vez, considera sentimento
uma palavra vaga para designar apreciação,
julgamento de valores (agradável, desagradável, bom ou mau). Solomon dá-nos
a conhecer a seguinte definição de emoção:
(...) é um processo complexo que engloba vários e
diferentes aspectos da vida de uma pessoa, incluindo interações com outras
pessoas, bem como seu bem estar físico, ações, gestos, expressões, sentimentos,
pensamentos e experiências semelhantes.
e) Senso
comum
A expressão senso comum designa, segundo Jessé Souza (2019, p. 16), “o conjunto
de crenças dominantes compartilhadas pela esmagadora maioria de indivíduos de
uma sociedade”. Podemos também definir o senso comum como um conjunto
diversamente sistemático de representações (da realidade, do homem, da natureza
e do sobrenatural), de juízos morais e afetivos acerca das ações individuais e
coletivas, acerca das condições em que se realizam essas ações, bem como um
conjunto sistemático de crenças sobre a relação de causas e efeitos entre os
eventos humanos, naturais e sobrenaturais. O senso comum abriga também esquemas interpretativos úteis que
servem para orientar nossa conduta e conferir ordem e significado à vida
cotidiana. Os esquemas interpretativos do senso comum são constituídos e
adotados por cada indivíduo, natural e inconscientemente, no curso de sua
socialização primária e secundária e formam o pressuposto basilar das suas
ações sociais. O senso comum é o
principal fator de orientação da maioria das ações humanas assumidas como
“normais” e recorrentes na vida cotidiana. O senso comum exibe, num grau
elevadíssimo, a espessura de objetividade, a aparência de irrevogabilidade e
coercitividade que o sociólogo atribui à realidade social. O senso comum inclui
uma concepção, implícita ou explícita, radical e elementar, do mundo, que é
compartilhada mesmo por indivíduos que têm opiniões políticas e valores
opostos. Para Chauí (2008), o senso comum compreende um conjunto de saberes que
estruturam nossa vida cotidiana e orientam nossas ações nesse domínio. Esses
saberes que compõem o senso comum possuem, segundo a autora, as seguintes
características:
I) são subjetivos, porque veiculam emoções e opiniões individuais ou de
grupo, são e variáveis de uma pessoa
para outra, ou de um grupo para outro, dependendo das condições socioculturais
em que vivem os indivíduos e os grupos;
II) em decorrência de seu caráter
subjetivo, os saberes do senso comum envolvem uma avaliação qualitativa das coisas, que varia consoante os efeitos
que elas produzem sobre nós, os desejos que provocam em nós, ou ainda conforme
a finalidade ou uso que atribuímos a elas;
III) os saberes do senso comum agrupam
ou distinguem as coisas, segundo se apresentem a nós como diferentes ou
semelhantes;
IV) os saberes do senso comum trata
cada fato, cada coisa como algo distinto de todos os outros fatos e coisas, por
possuir qualidades que nos afetam de maneira diferente;
V) os saberes do senso comum operam
generalizações, pois que tendem a reunir numa só categoria ou ideia coisas que
são julgadas semelhantes;
VI) porque operam generalizações, os
saberes do senso comum envolvem o estabelecimento de relações de causa e efeito
entre as coisas ou entre os fatos, mesmo que essas relações não sejam
razoáveis. Essas relações de causa e efeito são, muitas vezes, expressões de
superstição;
VII) os saberes do senso comum afastam
de sua esfera a surpresa e a admiração em face da regularidade, da constância e
da diferença das coisas; ao contrário, dão maior visibilidade ao que é
imaginado como único, extraordinário, maravilhoso, miraculoso;
VIII) os saberes do senso comum
incluem uma persistente incompreensão a respeito da investigação científica,
que o senso comum vê como magia, como uma atividade que se ocupa do misterioso,
do incognoscível;
IX) O senso comum projeta nas coisas
ou no mundo sentimentos de angústia e de medo em face do desconhecido. Por
exemplo, o homem comum da Idade Média via o demônio em toda parte; e muitas
pessoas supersticiosas e religiosas, ainda hoje, acreditam em assombração;
X) em função de todas as
características elencadas anteriormente, nossas certezas cotidianas e o senso
comum de nossa sociedade ou de nosso grupo social cristalizam-se em
preconceitos com os quais os indivíduos passam a interpretar toda a realidade
imediata e todos os acontecimentos que experienciam.
O conceito de senso comum interessa-me na medida em que ele instancia um domínio
de experiência comum que, não esgotando a complexidade da realidade, retém dela
apenas as aparências, as superfícies e aspectos que não são articulados em camadas
mais profundas de sentido. A leitura nos desabitua a nos contentar em arranhar
as superfícies da realidade.
f)
Esquemas interpretativos
Por esquemas interpretativos, entendem-se os quadros, as molduras (frames) interpretativos de uma situação
à qual temos de dar uma resposta imediata. Os esquemas interpretativos nos
permitem atribuir, com rapidez, um sentido a um evento ou acontecimento. Eles
estruturam nossa experiência de mundo no senso comum e são colhidos de um
repertório de saberes e vivências arquivados em nossa memória. Os esquemas
interpretativos não são o mesmo que preconceito nem estereótipo, muito embora
preconceitos e estereótipos concorram para a escolha de um esquema
interpretativo em vez de outro. Na vida cotidiana, os esquemas interpretativos
orientam nossas ações. Assim, a ação imediata que se segue a um evento no campo
da percepção do sujeito depende de um esquema interpretativo que ele adote
nesse momento. Se, por exemplo, um transeunte ouve um grito de jovens numa rua
pouco iluminada, ele buscará um esquema interpretativo que lhe permita formular
algumas hipóteses: são jovens brincando? Serão bandidos assaltando pessoas?
Será uma briga por algum motivo? O que o transeunte fará rapidamente – fugir,
chamar a polícia, correr em auxílio – dependerá do esquema interpretativo
ativado por ele para dar sentido a essa situação específica. Os esquemas interpretativos de que se
constitui o senso comum, geralmente, são muito grosseiros, formam-se em
processos educativos informais da socialização primária e abrigam apenas os
elementos suficientes para conferir um sentido rudimentar à situação com a qual
lida o sujeito. Mas, em outros casos, os esquemas interpretativos também variam
bastante em termos de complexidade e de organização. Alguns são muito
elaborados, amplamente artificiais, logicamente restritivos e servem à
articulação de interpretações sobre diversos planos de um acontecimento, de
sorte que são úteis para orientar também processos muito complexos de
argumentação e contra-argumentação.
g) Experiência
Experiências são interpretações pessoais daquilo que acontece
conosco. Experiências têm sempre caráter pessoal. Elas envolvem sempre uma
repetição de um estado de coisas em que o sujeito está envolvido e cuja
uniformidade o habilita a resolver problemas. Por isso, costumamos dizer que
aprendemos com a experiência. A experiência é uma das fontes de nosso
conhecimento do mundo. A experiência, portanto, recobre tudo o que o homem
sente, o que ele percebe, o que ele compreende em todos os momentos da vida.
Nas experiências, se nos dão sensações e percepções de modo inseparáveis. O que
sentimos e percebemos, ao ter experiências, são totalidades estruturadas
dotadas de sentido. Há, em toda percepção,
interpretação, compreensão. Toda percepção é uma experiência dotada de
significação, porque o que é percebido tem sentido em nossa história de vida, é
parte de nossas vivências.
h)
Percepção
Cabe aqui acrescentar algumas palavras
sobre o conceito de percepção. Em geral, a percepção
envolve a capacidade de operar uma síntese das sensações. Toda percepção é uma
atividade cognitiva. Sem pretender fazer longas incursões nos terrenos da
discussão sobre a natureza do ato perceptivo, quero apenas advertir que não
devemos tomá-lo restritivamente como sinônimo de sensação. A percepção envolve
sempre uma interpretação feita pelo
sujeito percepiente. Hume, por exemplo, não reduzia a percepção às sensações;
ele concebia as percepções como impressões
e ideias. Para ele, impressões são
um gênero de percepção que afetam nossa consciência com mais força e
vivacidade. Entre as impressões, ele inclui as sensações, as paixões e as emoções.
As ideias são outro gênero de percepções. Elas são “pálidas imagens das
impressões no pensamento e no raciocínio”. As impressões e as ideias se
distinguem em termos de graus: as impressões produzem efeitos mais fortes sobre
a consciência, ao passo que as ideias são menos “impregnantes” – ou, se o
leitor preferir – marcantes. As ideias têm efeitos mais tênues sobre o
espírito. Sem me alongar demais sobre essa matéria, o que importa é fazer
entender que a percepção é interpretação
dos estímulos e que ela está intimamente articulada aos processos simbólicos de
produção de significação. Os estímulos, quando interpretados na percepção, são
organizados numa totalidade significativa. Percebemos sempre as totalidades
significativas dentro de outras totalidades significativas.
I)
Representação
Por representação, entendo tanto a atividade por meio da qual algo é
conhecido, como o conteúdo, o objeto conhecido. Representar algo é reter a
imagem mental de algo. A representação é também um quadro, uma moldura mental ou
cognitiva, à luz da qual algo ou um objeto se torna acessível ao entendimento,
se torna conhecido. Representações são símbolos, na medida em que se põem no
lugar da coisa ou do objeto a ser conhecido. Epistemologicamente, mantenho uma
versão sociointeracional do representacionalismo. Destarte, assumo que o
conhecimento que temos do mundo é filtrado por uma instância intermediária
entre o sujeito e o objeto. Essa instância intermediária são as representações,
que são produzidas nas práticas intersubjetivas de que participam os sujeitos
nas inúmeras situações de comunicação. O acesso dos sujeitos ao mundo, aos
objetos que afetam sua consciência, sua sensibilidade nunca é direto, mas
sempre mediado pelas representações simbólicas, pelas representações construídas
no e pelo discurso nas práticas socioculturais. Não limitando a questão da
representação ao âmbito da teoria do conhecimento, faz-se necessário, para fins
de formação de um leitor crítico, entender que o processo de representação da
realidade é uma atividade desenvolvida
no próprio discurso, concebido como forma
de prática social. Tanto o processo de representação quanto o discurso que
o realiza, embora se refiram à realidade, também a constituem. Essa concepção
de representação como um processo fundado discursivamente é um contributo
teórico da Análise de Discurso Crítica.
j)
Mundo
Empreguei
a palavra “mundo” várias vezes neste texto, sem me preocupar em precisar seus
significados, já que assumo como parte do conhecimento linguístico pressuposto
como partilhado com o leitor o saber acerca do que significa a palavra “mundo”.
Essa palavra é parte de nosso léxico mental, usamo-la com muita frequência nas
práticas linguísticas do dia a dia. Mas, quase nunca, nos detemos a pensar no
que essa palavra significa em cada um dos usos correntes que fazemos dela.
Vejamos um exemplo. Suponhamos que, no noticiário do Jornal Nacional, ouvimos o
seguinte enunciado “O mundo entra em
alerta com a descoberta de uma nova variante do coronavírus”. Note-se que o
predicador “entrar em alerta” - ‘pôr-se,
estar em estado de muita atenção, de preocupação’ - se combina com um sujeito
cujo núcleo é um substantivo [- animado]. Somente seres animados, seres vivos reais ou imaginários, em geral,
entram em estado de alerta, mas não entes não vivos (inanimados). O uso da
palavra “mundo”, nesse caso, expressa hipérbole e prosopopeia. Em “o mundo
entra em alerta”, sabemos que se superdimensiona o estado de alerta (não é o
mundo inteiro que entra em alerta; mas apenas uma parte de pessoas, em número
significativamente muito reduzido, digamos, os cientistas, as autoridades
públicas e algumas pessoas da população mundial). Por outro lado, atribuímos
uma qualidade ou comportamento próprio de seres vivos (entrar em estado de
alerta) a um ente não vivo (o mundo). É claro que o mundo contém um vasto
ecossistema vivo, mas nós já não o concebemos, tal como no passado, como um
organismo vivo. Deixando de lado os pormenores dessa discussão, o fato é que,
quando dizemos “o mundo entra em alerta”, queremos apenas dizer que, na
verdade, é a comunidade humana, são os grupos humanos que se põem em estado de
atenção (mas não bandos de chimpanzés, por exemplo, embora eles também façam
parte do mundo). Também usamos a palavra “mundo” em expressões do tipo “mundo
do narcotráfico”, “mundo do crime”, “o meu mundo”, “o mundo literário,
científico”. Em todas essas ocorrências, a palavra “mundo” significa ‘a
totalidade de um campo ou mais de um campo de atividades, de relações ou, como
no último caso, de investigação´. Em “o
mundo científico”, “mundo” designa ‘o campo de atividades desenvolvidas por
cientistas ou o campo de investigação científica’. Quando uma pessoa apaixonada
diz “quando o conheci ou a conheci, o meu mundo mudou completamente”, essa
pessoa quer dizer que a sua relação com o campo de coisas e pessoas que
participam, direta ou indiretamente, da sua vida diária mudou
significativamente.
Para
os meus propósitos neste texto, interessa-me dar a conhecer os dois
significados com que o conceito de mundo
é usado em filosofia e nas ciências, em geral: 1) a totalidade das coisas existentes; 2) a totalidade de um campo ou mais campos de investigação, de atividades
ou relações. No sentido 1), o mundo é o próprio cosmo, identificação feita,
pela primeira vez, por Pitágoras, no século VI a.C. O mundo como cosmo é uma
totalidade ordenada. Essa definição do conceito de mundo prevaleceu na
filosofia grega desde então. Platão a aceitou, acrescentando a distinção entre
o “todo”, cujas partes podem dispor-se de várias maneiras diferentes, e a
“totalidade”, cujas partes preenchem posições fixas. Aristóteles, concordando
com Platão, disse que o mundo é a estrutura, a constituição da totalidade (a
sua ordem) que permanece a mesma, a menos que suas partes se organizem diferentemente.
Para Platão e para Aristóteles, o mundo é a ordem imutável do universo. Os
estoicos, por sua vez, distinguiam entre o “universo”, concebido como
totalidade de todas as coisas existentes, incluindo o vácuo, e o “mundo”, que
recobria o sistema do céu e da terra, bem como dos seres que os habitam. Já na
modernidade, com Heidegger, “mundo” comporta um significado mais familiar e
próximo ao sentido do uso que o homem comum faz desse vocábulo. O mundo é o
campo constituído pelas relações do homem (Dasein)
com as coisas e com os outros homens e seres. Discordando de Heidegger,
mantenho que não há apenas o mundo humano, o mundo histórico edificado pela
atividade humana. O mundo não se esgota neste vasto complexo geopolítico e
cultural (histórico) em cujas esferas vivem os animais humanos em comunidades
culturais complexas. Há outros muitos mundos diferentes do nosso que constituem
a biocenose (a totalidade de interações entre os seres vivos de todas as espécies
que povoam o biótopo, no vasto ecossistema vivo de que somos uma parte). Há
mundos microscópicos que não vemos a olho nu (o mundo dos vírus, das bactérias,
por exemplo). Há outros bilhões de mundos neste imenso universo cujos espaços
infinitos ignoramos (bilhões de galáxias).
Em
nossas práticas linguísticas cotidianas, usamos a palavra “mundo” para nos
referir à totalidade de tudo que (nos) acontece, que fazemos no espaço-tempo
restrito do nosso planeta cosmologicamente insignificante.
l)
mundo da vida
Introduzido por Hurssel na filosofia, o conceito
de mundo da vida recobre o mundo
imediato em que vivemos intuitivamente, com suas ocorrências familiares, com as
coisas que aprendemos na experiência comum no cotidiano. O mundo da vida é o
mundo habitado por todos nós na lida com as coisas, nas ocupações da vida
cotidiana. O mundo da vida recobre o mundo do trabalho, o mundo das tarefas
domésticas, o mundo dos encontros casuais, o mundo dos transeuntes, etc. O
mundo da vida se opõe ao mundo da ciência, não raro estranho e enigmático para
o homem imerso no mundo da vida. Coube a Harbemas ressignificar o conceito de mundo da vida de modo a fazê-lo
descrever o horizonte contextual difuso ao longo do qual se desenvolvem, se
espraiam e se articulam as práticas comunicativas intersubjetivas destinadas ao
entendimento e à compreensão, práticas em que se formam as convicções, as
crenças gerais e fundamentais aceitas e compartilhadas coletivamente.
m) Crença
Usamos, com muita frequência, a
palavra “crença” nas diferentes situações comunicativas de que participamos na
vida diária. Mas sabemos o que significa dizer que alguém tem uma crença em
algo, que alguém crer em algo? O campo de investigação filosófica que se
preocupa em determinar o que queremos dizer quando dizemos que alguém possui
uma crença, que alguém diz crer em algo é a epistemologia. A epistemologia se ocupa, na verdade, do
conhecimento, ela busca esclarecer as condições e os limites do conhecimento
verdadeiro. Mas um dos componentes da definição clássica do conhecimento é a
crença. Conhecimento é definido como crença verdadeira justificada. Não basta
simplesmente que uma pessoa creia que x
é o caso para que ela possa dizer que tem conhecimento de x. Afinal, posso crer
em coisas que não são verdades. Em outras palavras, posso crer em proposições
que são falsas. Em epistemologia, crença
é a atitude de quem manifesta adesão
a uma proposição (um estado-de-coisas) que toma por verdadeira. Os linguistas
chamam verbos factivos uma classe de
predicados que tem a propriedade de implicar a pressuposição feita pelo falante
de que o conteúdo da oração completiva é factual,
ou seja, o falante, ao usar tais verbos, assume como verdadeiro o
estado-de-coisas designado na oração completiva. São exemplos de verbo factivos
epistêmicos verbos como saber, crer,
acreditar, perceber, notar, ignorar, entre outros. O estado de coisas
descrito na oração completiva conserva sua factualidade, mesmo que o verbo da
oração principal seja negado. Ao produzir o enunciado “eu creio que Júlio ganhou na loteria”, o locutor assume o pressuposto
de que a oração “Júlio ganhou na loteria” é factual. Mesmo que alteremos a
polaridade da frase, o pressuposto da factualidade atribuída ao conteúdo da
oração completiva se mantém (cf. Eu não
creio que [Júlio ganhou na loteria]). Entendamos bem que a factualidade da
proposição é assumida como pressuposta,
ou seja, quem crê que x pressupõe que x é
um fato. Mas podemos ter crenças falas. A crença não implica a existência
objetiva de seu objeto. Por exemplo, se eu digo “creio que o atual rei da
França é calvo”, eu assumo como factual o conteúdo “o atual rei da França é
calvo”, embora a proposição “o atual rei da França é calvo” seja,
evidentemente, falsa (a França não é mais uma monarquia). Toda crença envolve,
portanto, um compromisso, certo comprometimento, uma adesão relativamente
frouxa, mais ou menos firme ao conteúdo da crença por parte de quem a sustenta.
Crenças moldam nosso comportamento e motivam nossas ações. Toda crença é uma
atitude pela qual afirmamos, com certo grau de probabilidade, que é verdadeiro
o estado-de-coisas descrito num enunciado. Crenças são intrinsecamente
representativas, porque encerra um modelo de mundo, uma imagem mental daquilo
que é passível de conhecimento. Crenças são sempre representativas, porque
funcionam como mapas mentais pelos quais nos orientamos no mundo e o
experienciamos. Nem todas as crenças são imediatamente acessíveis. Uma crença
pode ser falsa e mesmo assim justificada. Por exemplo, quem acredita que
Bolsonaro é honesto porque não há crime comprovadamente imputado a ele pode ter
uma crença falsa, apesar de justificada. Quem acredita que as vacinas que nos
imunizam contra a covid-19 causam câncer porque foi isso que ouviu de um médico
negacionista tem uma crença falsa, embora justificada. Crenças falsas são, portanto,
aquelas que representam o mundo incorretamente.
n)
Ideologia
No domínio do discurso público e
privado, sobretudo no domínio político, faz-se largo uso do termo ideologia, sem que haja o devido
cuidado em precisar, no espectro polissêmico de seus usos, em que sentido se
está empregando o termo naquela situação de fala em que o termo ocorre. Meu
escrúpulo teórico e analítico impõe-me sempre o dever de esclarecer o sentido
em que emprego o termo ideologia.
Esposo o conceito de ideologia tal
como definido por Gallo:
[ideologia
é] uma força material que se entranha nas estruturas subjetivas pré-conscientes
de cada indivíduo, fazendo com que ele reproduza em todos os seus atos – do
pensar ao escovar os dentes, do trabalhar profissionalmente ao relacionamento
amoroso – a estrutura da máquina social de produção. Em palavras mais simples,
para usar uma metáfora biológica, cada um dos indivíduos se torna uma das
células do aparelho reprodutor desse sistema social. (Gallo, 2009, p. 121).
O
aspecto que cuido importante na definição de ideologia proposta por Gallo é
tanto a sua natureza material quanto
seu entranhamento nas estruturas
pré-conscientes da subjetividade. Partindo do pressuposto de que a relação
entre o homem e o mundo é sempre mediada pela interpretação, ou seja, pela interpretação do mundo feita por ele,
de modo que o que se dá a conhecer ao homem é sempre uma representação, que
pode ser mais ou menos próxima da realidade, e nunca a realidade em si mesma,
importa-me sublinhar dois aspectos da concepção de ideologia adotada por Gallo:
a materialidade da ideologia e sua relação com a subjetividade.
Segundo
Gallo, a ideologia “(...) só adquire sentido quando cristalizada nos atos do
cotidiano”. (ibid., p. 78). Gallo, contudo, nega que a ideologia se manifeste
em discurso, no que estou em completo desacordo com ele. Gallo não reconhece a
materialidade linguístico-histórica do discurso. O discurso é uma realidade
sócio-histórica. Faltou a Gallo a percepção disso. A materialidade do discurso
recobre a relação com a exterioridade (histórica). Materialidade, em Análise do Discurso, é a forma encarnada, a forma
material onde se prendem indissociavelmente forma e conteúdo: forma
linguístico-histórica, significativa. A materialidade do discurso é
linguístico-histórica. Todos os sistemas semióticos, consoante ensina Bakhtin,
contribuem para expressar a ideologia e são moldados por ela. Bakhtin localiza
a ideologia no signo, visto que a própria consciência só pode existir por meio
da materialização em signos nas interações sociais. Anuo à tese de Gallo,
quando observa que “a ideologia se insere na própria estrutura da consciência,
em sua busca de fundamento” (ibid., p. 79), mas, se, como propõe o autor, a
ideologia se entranha na estrutura da consciência dos indivíduos, cabe
perguntar como ela consegue se inserir na consciência individual. A resposta
encontramos em Baktin: por meio do signo.
Bakhtin entende a consciência como uma realidade material, e a materialidade da
consciência se constitui, se forma na interação social por meio dos signos. A
consciência incorpora estruturalmente a ideologia, porque a consciência é
povoada de signos entretecidos por fios ideológicos. Para Bakhtin, o signo (ou
a linguagem) é o locus, por
excelência, da ideologia.
Para
Gallo, a ideologia se manifesta socialmente, isto é, “no fato de muitas pessoas
agirem e pensarem de forma análoga”. (ibid.). Quando considerada a relação da
ideologia com a subjetividade, assumo, com Gallo, que o sujeito é socialmente
fabricado, produzido pela ideologia. A subjetividade, isto é, a maneira
particular pela qual cada indivíduo experiencia o mundo, entende a sociedade e
se insere em seus processos, é um efeito da produção ideológica. Assim, é
preciso pensar a vida individual, tudo aquilo que o indivíduo experiencia em
termos do que sente, pensa, age, acredita, etc. como efeitos da “máquina de
produção”:
(...) a
máquina de produção estabelece uma rede de relações que atravessa todo o corpo
social, chegando a cada indivíduo, entranhando-se à sua estrutura, levando-o a
pensar e a agir no restrito panorama que a máquina constrói, no restrito
paraíso de produção. Uma produção é algo
muito mais abrangente que a maneira pela qual uma sociedade produz; mais que
isso é a forma pela qual ela se
produz e a maneira pela qual ela se reproduz. (ibid., 97-98, grifo meu).
Um
modo de produção não se limita a ser o conjunto das relações necessárias à
produção e reprodução material da existência dos homens; é também um modo de
produção de ideologia que produz consciências, subjetividades que vão, por sua
vez, reproduzir, em cada ato de linguagem, em cada ato cotidiano, por mínimo
que seja, esse mesmo modo de produção, “até que a mera possibilidade de se
pensar e agir de forma diferente não passe de uma possibilidade, constantemente
exorcizada pela sociedade e pelo próprio indivíduo”. (ibid., p. 98). No mundo
do capitalismo global, a ideologia capitalista produz uma subjetividade única
que, por sua vez, produz e reproduz o sistema capitalista, ao mesmo tempo a
ideologia capitalista produz e reproduz a si mesma ajustando-se às diferentes
classes sociais envolvidas naquele modo de produção.
À luz da Análise de Discurso Crítica (ADC), a ideologia estabelece e sustenta
relações de dominação.
o)
Dominação
Outro
conceito que, não frequentando as esferas do discurso comum nas quais se
movimenta o homem comum não especialista, precisa ser previamente conhecido
pelo leitor é o de dominação. Em
sentido lato, entende-se por dominação,
em sociologia, a probabilidade de encontrar obediência a um mandato de determinado conteúdo entre pessoas.
Dominação pode também significar a existência, no interior de um grupo social
ou de uma instituição, de alguns elementos mais fortes que outros, que lhes
impõem mais ou menos um ponto de vista. A dominação
é uma relação social de
superioridade ou de subordinação de um sujeito, de uma classe social ou
instituição relativamente a outros sujeitos, classes sociais e instituições. Na
dominação, o grupo ou instituição, ou sujeito dominantes controla a distribuição
dos recursos materiais de natureza diversa – isto é, tanto bens de consumo e dinheiro
quanto ideias, ideologias, discursos – e o ordenamento dos respectivos direitos
e processos políticos relacionados a essa distribuição, valendo-se, para tanto,
segundo as circunstâncias, de diversas formas de poder, de autoridade, de
influência, entre outros recursos destinados a condicionar o comportamento,
embotar a consciência reflexiva, bloquear a percepção dos dominados. A
dominação, através da socialização e do controle social, impede que os sujeitos
dominados e os grupos subjugados compreendam como se gera a injustiça da ordem
social vigente e que, portanto, venham a agir de modo crítico e autônomo para
modificá-la. A dominação visa a produzir amplamente a legitimação social da
ordem vigente. A dominação é tanto econômica quanto social, política e
ideológica. Na condição de classes dominantes, as classes abastadas assumem e
utilizam, para seus próprios fins, o excedente da riqueza social produzido
pelas classes trabalhadoras, e garantem o direito político e jurídico de
explorar o trabalho destas classes. A possibilidade de exploração do trabalho
assalariado fundamenta-se na propriedade formal ou no controle efetivo dos
meios de produção a partir da terra. As classes de proprietários dispõem dos
meios de produção, o que significa dizer que dispõem dos instrumentos e insumos
necessários à produção, bem como da força de trabalho dos trabalhadores (ela
mesma um instrumento de produção). A possibilidade da exploração nas relações
de dominação também se baseia na coerção física e ideológica exercida
individual ou coletivamente sobre os membros das classes inferiores. São os
sujeitos, inseridos em práticas discursivas e sociais, que contribuem para a
manutenção e para a mudança das estruturais sociais em que agem, conquanto
essas mesmas estruturas também determinem o que, quando e como algo pode ser
dito. Onde há dominação, entretanto,
pode haver também resistência. A prática de leitura fornece uma
contribuição de inestimável importância para a formação de sujeitos aptos a
resistir às formas de dominação, conferindo-lhes os conhecimentos e capacidades
necessárias para que se tornem agentes de práticas discursivas que lhes
questionam a legitimidade.
Finalmente,
à luz desse conceito de dominação, lavrado na teoria marxista, é preciso
reconhecer que o Estado é também um instrumento de dominação. Segundo Engels, a forma do Estado é a dominação, e seu
conteúdo é a exploração.
p)
Classes sociais
Por
classe social, entende-se o conjunto amplo de indivíduos que se situam
em uma posição semelhante na estrutura das relações econômicas, políticas e
culturais, historicamente determinadas, de uma dada sociedade. Os
indivíduos que compõem uma classe social compartilham entre si certas características
consideradas socialmente relevantes, tais como riqueza ou renda, prestígio,
estilo de vida, capital cultural e simbólico, tipo de moradia, grau de
escolarização, entre outros. Todas as classes sociais mantêm relações de
interdependência, predominantemente antagônicas. Uma classe social é,
sociologicamente, definida a partir de seu fundamento objetivo, que é
independente da consciência dos indivíduos e serve para distribuí-los em
diversos conjuntos que recobrem modalidades semelhantes de uma variável ou de
uma combinação de variáveis, tais como posição
social nas relações de produção, a função exercida na organização social, a
profissão, o pertencimento a um grupo étnico ou religioso, etc.
Para que possamos determinar o lugar
de uma dada classe social na estrutura de classe, é necessário medir algumas
dimensões, dentre as quais as mais frequentemente consideradas são: riqueza, poder e prestígio. Mas essas dimensões não esgotam o número de fatores
definidores de uma classe social, conforme veremos. É preciso considerar a
transferência dos valores imateriais de pais para filhos na socialização
familiar em cada classe. Quando consideramos as classes sociais, não podemos
ignorar os efeitos internos das classes nos indivíduos e os efeitos externos sobre
a sociedade como um todo. Destarte, a pertença a uma classe social condiciona,
de modo objetivo, isto é, independentemente da consciência ou da vontade do
sujeito, alguns aspectos fundamentais de sua vida, tais como a profissão, na qual se expressa a divisão
do trabalho a que ele é submetido, o nível
de renda, as possibilidades
educacionais, as expectativas ou
esperanças da vida, o estilo de vida, o prestígio social de que goza e, sobretudo, a possibilidade de intervir nas decisões políticas, comunitárias e
nacionais. Por isso, Weber definiu a classe social como “uma comunidade de
destino” ou como “uma possibilidade de vida”. A classe social só se torna um
fator determinante do comportamento do sujeito que a ela pertence se ele tiver
condições de desenvolver uma clara consciência
de classe. Salta evidente o papel desempenhado pelos processos
formativo-educacionais, sobretudo os da escola que se pretende verdadeiramente
democrática e que resiste aos poderes políticos e econômicos que a organizam de
modo a que sirva de instrumento para a reprodução e legitimação dos valores,
das ideologias e dos padrões de comportamento prestigiosos das elites.
Além de fornecer ao leitor os insumos
teóricos necessários à realização de uma exitosa tarefa de compreensão do presente
texto, todos os conceitos elencados e esclarecidos anteriormente patenteiam, de
forma indubitável, que a linguagem é um
sistema de conhecimento do mundo, que as palavras funcionam como escaninhos
cognitivos que codificam e armazenam o conhecimento socialmente produzido sobre
o mundo. Por isso, quem amplia o seu vocabulário amplia seus horizontes de
conhecimento de mundo; quem lê mais abre mais “janelas” para perceber e
compreender melhor e em mais profundidade o mundo.
2. As
condições invisíveis da desigualdade de classes
Durante o período longo que precedeu à
escritura deste texto e em que garimpei livros, fiz fichamentos, anotações,
apontamentos e fui articulando, numa estrutura coerente, trajetos teóricos, os
vários temas, cujo tratamento me pareceu relevante, fui me confrontando com a
complexidade do real. No que tange à complexidade do real, Morin (2015) nos diz
que ela envolve imperfeição e incerteza. A complexidade exige o reconhecimento
do irredutível, a saber, do que não pode ser reduzido ao simples, do que não se
presta a simplificações. É oportuno atender nas seguintes considerações feitas
pelo filósofo acerca do conceito de complexidade:
(...)
a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de
constituintes heterogêneos inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo
do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações,
interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo
fenomênico. Mas então a complexidade se apresenta com os traços inquietantes do
emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade e da incerteza... Por
isso, o conhecimento necessita ordenar
os fenômenos rechaçando a desordem, afastar o incerto, isto é, selecionar
os elementos da ordem e da certeza, precisar, clarificar, distinguir,
hierarquizar... Mas tais operações, necessárias à inteligibilidade, correm o
risco de provocar a cegueira, se elas eliminam os outros aspectos do complexus.
(...) (Morin, 2015, p. 13-14).
Todo este texto, que é uma forma de
ação social que dá testemunho da complexidade do real, é também a realização de meu esforço por levar o
leitor a aperceber-se de que quanto mais lê mais ele se expõe à complexidade do
real, mais ampliada se torna a sua consciência desse “tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações,
acasos, que constituem nosso mundo fenomênico”. E quanto mais experiencia,
não apenas intelectualmente, mas também afetivamente, a complexidade do real
mais desenvolvida se torna a sua capacidade de pensamento complexo, sem a qual
ele não pode compreender nada, ou quase nada, da complexidade das relações, das
retroações que formam o tecido do mundo que a leitura lhe abre. O
desenvolvimento do pensamento complexo não se dá sem dificuldade, conforme nos
lembra Morin:
A
dificuldade do pensamento complexo é que ele deve enfrentar o emaranhado (o
jogo infinito das inter-retroações), a solidariedade dos fenômenos entre eles,
a bruma, a incerteza, a contradição. (ibid., p. 14).
Quando
cuido que o não leitor vive uma vida “empobrecida”, quero dizer, com esse juízo
de valor, que o leitor vive uma vida pouco intelectualmente fecunda e presa às
grades perceptivo-representativas do senso comum, através das quais a realidade
que ele experiencia se lhe apresenta como uma sequência de imagens análogas às
de um filme que passa numa tela de cinema. Tanto quanto ignora o que aconteceu
nos bastidores da gravação do filme, também ignora as forças, os processos, as
estruturas responsáveis por produzir os efeitos imagéticos da realidade que só
pode experienciar em fragmentos, em pedaços nos restritos limites das grades
perceptivo-representativas do senso comum. Como só consiga ver pedaços,
fragmentos de realidade no fluxo de imagens, através das grades do senso comum,
o não leitor é muito pouco capaz de estabelecer as articulações necessárias
para construir uma totalidade significativa minimamente compreensível. Mesmo
tendo muitas reservas para com o pensamento de Platão, sua teoria do
conhecimento tem intuições que ainda hoje me parecem muito certas e valiosas.
Para conhecer verdadeiramente, ensinava Platão, precisamos ultrapassar,
transcender o horizonte da dóxa. Aqui
Platão me parece irrefutável. A opinião, embora necessária à experiência
prática da vida cotidiana, compele a adesão sem verificação; é veiculada sem
que precise ser demonstrada ou provada. No senso comum, muitas vezes, aderimos
passivamente às opiniões correntes, que se formam pelas impressões sensíveis,
por nossos hábitos e pelos costumes nos quais fomos educados. Para conhecer, no
entanto, precisamos ultrapassar o estrato das aparências, dos simulacros, das
imagens, que distorcem, disfarçam, ocultam as estruturas profundas, as teias
simbólico-imaginárias do real, as quais sustentam o aparecer de tudo quanto é
cognoscível. O inteligível não se deixa apreender imediatamente; para desvelá-lo,
precisamos de investigação, precisamos nos demorar em ruminações espirituais,
precisamos nos deter a excogitar. Não estou sugerindo, como fizeram Platão e
Aristóteles, cada qual à sua maneira, que o conhecimento verdadeiro envolva
apreensão de essências; estas ou nos são incognoscíveis ou são brumas do imaginário; todavia, o
conhecimento supõe um salto, um ir além do aparecer comum para imersões no complexo,
para demorar-se em exames profundos da trama contraditória, entretecida de
ambivalências e significados difusos que escapam ao tatear costumeiro do senso
comum e de suas opiniões flutuantes. A prática da leitura nos acostuma à compreensão
de que a realidade nunca se deixa mostrar totalmente e seus efeitos fenomênicos
nos levam, com muita frequência, ao autoengano e à adesão a supostas certezas
que assumimos como inabaláveis.
O
que se seguirá, doravante, é mais uma etapa do desdobramento da questão central
por que todos deveriam ler. O simples
ato de formulá-la impele-me à tarefa necessária de enfrentar a questão das
desigualdades sociais como obstáculos ao desenvolvimento de práticas de
leituras por sujeitos pertencentes às classes sociais menos favorecidas. E, ao
me debruçar sobre esse problema, sem pretender aqui apontar soluções para ele,
mas tão-só compreender seus aspectos que não são normalmente visíveis,
procurarei sensibilizar o leitor para o fato de que toda tentativa de
compreender a realidade é desencadeada por uma ou mais questões que elaboramos;
essas questões iniciais, que são tomadas como pontos de partida da investigação,
suscitam, ao longo do percurso investigativo, outras questões encadeadas com as
anteriores. É assim que a questão “por que todos deveriam ler” encaminha as
questões “o que é ler”, “por que alguns não se habituaram a ler”, “quais as
condições necessárias à formação de leitores competentes”, etc. Todas essas
questões que se vão impondo à consciência reflexiva do sujeito habituado à
leitura e à escrita patenteiam a complexidade da realidade em referência à qual
elas foram formuladas. Vejamos, então, quais são as condições objetivas das
desigualdades entre as classes sociais, que constituem fatores que dificultam
ou inviabilizam o desenvolvimento do hábito de leitura entre os membros das
classes menos favorecidas.
Em
seu livro A ralé brasileira (2020),
Jessé Souza, rejeitando a visão reducionista e enviesada do economicismo em
suas versões liberal e marxista, que insiste em explicar a desigualdade social
entre as classes em termos meramente econômicos, chama-nos a atenção para a
importância da transferência dos valores imateriais na reprodução das classes
sociais e de seus privilégios ao longo do tempo. Para Souza, tanto o economicismo liberal
quanto o marxismo vulgar, incorrem no mesmo erro:
(...) Reside
em não perceber que mesmo nas classes altas, que monopolizam o poder econômico,
os filhos só terão a mesma vida privilegiada dos pais se herdarem também o
“estilo de vida”, a “naturalidade” para se comportar em reuniões sociais que é
aprendida desde tenra idade na própria casa, com amigos e visitas dos pais, em
aprender o que é “de bom tom”, em aprender a não ser “over” na demonstração de
riqueza como os “novos ricos” e “emergentes”, etc. (Souza, ibid., p. 25).
Vê-se, pois, que o economicismo, que é
a visão dominante adotada por todas as pessoas comuns, não especialistas, torna
invisíveis as pré-condições sociais, emocionais, morais e culturais que
constituem os fatores decisivos para explicar as desigualdades econômicas
visíveis entre as classes sociais. Ao se referir ao modo como se reproduzem os
valores imateriais na classe média, Souza observa que eles são reproduzidos
“pela transmissão afetiva, invisível, imperceptível, porque cotidiana e dentro
do universo privado da casa”. (ibid.). Assim, são as pré-condições, reproduzidas no meio familiar
da classe média, que “irão permitir aos filhos dessa classe competir, com
chances de sucesso, na aquisição e reprodução de capital cultural”. (ibid.).
O
filho ou a filha da classe média se acostuma, desde tenra idade, a ver o pai
lendo jornal, a mãe lendo romance, ao tio falando inglês fluente, ao irmão mais
velho que ensina os segredos do computador brincando com jogos. (ibid.).
Esse processo de identificação afetiva, que consiste em imitar os padrões de
comportamento que amamos e de quem amamos, se dá no nível pré-reflexivo, sem a
mediação da consciência do sujeito. Esse processo é tão natural quanto respirar
e andar; e é por isso que ele é tão invisível quanto extremamente eficaz como
forma de legitimação do privilégio. O caráter invisível de tal processo de
identificação emocional e afetiva não deixa de implicar uma extraordinária
vantagem na competição social, seja na escola, seja no mercado de trabalho em
relação às classes desfavorecidas. É por esquecer as diferenças nos modos de
socialização familiar entre as classes sociais que ecoa persistentemente em
nossas sociedades capitalistas o discurso meritocrático que inculca a crença na
importância do “mérito” individual na conquista de uma vida social e econômica
bem-sucedida. Atente-se para o que escreve Souza nesse tocante:
Como
todas as pré-condições sociais, emocionais, morais e econômicas que permitem
criar o indivíduo produtivo e competitivo em todas as esferas da vida
simplesmente não são percebidas, o “fracasso” dos indivíduos das classes não
privilegiadas pode ser percebido como “culpa” individual. (ibid., p. 26).
A “boa consciência do privilégio”,
quer econômico das classes abastadas, quer cultural das classes médias, deita
raízes na invisibilidade das pré-condições familiares da reprodução do
privilégio de classe e no abandono social e político secular de classes sociais
inteiras, cotidianamente reiterados por toda a sociedade. Já em seu Como o racismo criou o Brasil (2021),
Souza nos mostra que, abaixo do 0,1% que recobre a camada social dos ricos e
super-ricos, todas as classes sociais lutam por um tipo de capital que não é
visível como o são o dinheiro e a propriedade: o capital cultural, que consiste na “incorporação do conhecimento
útil e legítimo da sociedade”. (ibid., p. 18). Urge, então, entender que é a
família de classe média, que se define pela reprodução do privilégio da
educação, “que vai criar e implementar de modo invisível, e por isso mesmo
extremamente eficiente, a farsa da meritocracia pela incorporação privilegiada
e tornada invisível de capital cultural”. (ibid.). O sucesso
escolar, que representa o meio de todo sucesso social, que se traduz em
termos de renda e poder aquisitivo diferenciados anos mais tarde, tem como
fundamento as pré-condições emocionais e afetivas que são construídas desde o
berço no seio familiar de cada classe social. Em vista disso, qualquer projeto
sociopolítico-pedagógico de incentivo à leitura, orientado para a formação de
leitores, deve informar-se pela consciência social de que “disposições para o
comportamento prático como disciplina, autocontrole, visão prospectiva e
capacidade de concentração e de pensamento abstrato” (ibid.) são privilégios de
classe, mormente em sociedades como a brasileira. Todas essas competências não
são nem naturais nem acessíveis a todos. Convém atentar para o excerto colhido
de Souza, abaixo:
(...) toda
família de classe média transmite uma série de aptidões às novas gerações. O
hábito da leitura é criado a partir do exemplo dos pais, que faz a criança, que
ama os pais, amar a leitura mais tarde. (ibid., p. 19).
Quando,
por outro lado, volvemos olhares sobre a vida cotidiana dos excluídos e humilhados
da sociedade brasileira, encontramos uma vasta e heterogênea classe social que
reproduz somente valores e representações coletivas “negativos” na socialização
familiar. O próximo trecho de Souza impõe-se à nossa cuidadosa atenção.
Mesmo nas
famílias mais estruturadas, com pais amorosos, o filho brinca com o carrinho de
mão de servente de pedreiro do pai e, como também ama o pai, aprende a ser
trabalhador manual desqualificado brincando. Quando a mãe lhe diz para ir à
escola dos negros e pobres, avisando que esse é o único caminho para sair da
pobreza, como ele pode acreditar, se a escola da mãe apenas a tornou uma
analfabeta funcional – como tantos outros dessa classe social brasileira?
(ibid., p. 19-20).
O
autor ensina
que a socialização familiar se realiza inteiramente por exemplos práticos de
vida e não por discursos, de sorte que “são esses exemplos práticos que os
filhos vão imitar e mais tarde reproduzir como herança de classe específica”.
(ibid., p. 20). Não podemos, portanto, renunciar à conclusão forçosa a que nos
levam as reflexões precedentes: as
classe sociais são construções socioculturais, cuja base é constituída pela
influência emocional e afetiva da socialização familiar.
2.1. O controle exercido pelas
ideias e discursos dominantes
A
dominação social exercida pelas elites não é apenas econômica e política; é
também, sobretudo, ideológica. A ideologia, como já mencionei, é de natureza
material, e sua materialidade é o signo. Consoante
nos ensina Bakhtin, “a realidade dos fenômenos ideológicos é a realidade
objetiva dos signos sociais”. (2006, p. 36). Os signos compõem nossos textos,
os quais, por sua vez, são expressões materiais das práticas discursivas. As
ideologias que se inscrevem e se estruturam em práticas discursivas se tornam
assaz eficazes quando se tornam naturalizadas e alcançam o status de “senso
comum”. Segue-se daí que a dominação ideológica se efetiva através dos
discursos. O discurso, para Fairclough (2001), é um modo de ação, uma forma em
que os indivíduos podem agir sobre o mundo e, mormente, sobre os outros. O
discurso também é um modo de representação (de produção de significados). Há
uma relação dialética entre o discurso e a estrutura social. O discurso é
moldado e restringido pela estrutura social: quer pela classe e por outras
relações sociais, quer pelas relações específicas que ocorrem em instituições
particulares, quer ainda pelos sistemas de classificação, pelas várias normas,
tanto as de natureza discursiva com as de natureza não discursiva. Para Fairclough
(ibid., p. 91), “o discurso é socialmente constitutivo”. Isso significa dizer
que o discurso contribui para constituir todas as dimensões da estrutura
social, a qual, direta ou indiretamente, o
molda e o restringe. Em outras palavras, o discurso é, ao mesmo tempo,
moldado pela estrutura social e constitutivo dessa estrutura. Discurso e
estrutura social se moldam reciprocamente. O discurso é uma prática de
significação do mundo e, como tal, constitui e constrói “o mundo em
significado” (p. 91). O discurso, como prática ideológica, constitui,
naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo a partir de posições
diversas nas relações de poder. Não se pode, portanto, perder de vista o fato
de que falar em “controle exercido pelas ideias dominantes” é o mesmo que falar
de controle exercido pelos discursos dominantes, já que as ideias se
materializam em signos, se estruturam e se expressam em práticas discursivas.
As
ideias e os discursos dominantes são produzidos pelas elites dominantes. Para
que a dominação se produza e se reproduza, indivíduos e grupos devem se
apropriar da produção de ideias para que possam estender a toda a sociedade uma
interpretação e justificação da realidade que estejam de acordo com os
interesses deles. Lembra Souza, em seu livro A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro (2019, p. 26), que “no
mundo moderno, a dominação de fato tem de ser legitimada cientificamente.” A
instância que legitima e valora em termos de aceitabilidade, de correção uma
ideia ou um discurso não é mais a religião, mas a ciência. Segundo o autor, “é
a ciência hoje, mais que a religião, que decide o que é verdadeiro ou falso no
mundo”. (ibid.). Segue-se daí que é fundamental compreender como as ideias
recebidas e os discursos que as veiculam são criados e como eles influenciam o
modo como cada sociedade vai se organizar, se estruturar. Antes de descer a
pormenores sobre como se dá a institucionalização das ideias, isto é, como elas
são fabricadas, organizadas e distribuídas pelas instituições que exercem o
controle social, devemos reter a seguinte lição de Souza:
Em vez de um
código genético que define por antecipação nosso comportamento, só podemos
construir e reproduzir um padrão de comportamento por força de ideias que nos
ajudam a interpretar o mundo. Afinal, são essas ideias que irão esclarecer os
indivíduos e as classes sociais acerca de seus objetivos, interesses e
conflitos. (ibid.).
Diferentemente
de abelhas e formigas, animais que também vivem em comunidades, nós somos uma
espécie de animais que, além de viver em comunidade, interpreta a própria ação,
de modo que “toda a nossa atuação no mundo é influenciada, quer saibamos disso
ou não, por ideias”. (ibid.). São as ideias e, sobretudo, os discursos que nos
permitem interpretar nossa própria vida e dar sentido a ela. Vejamos, então, de
modo breve e um pouco esquemático, como se realiza a institucionalização das
ideias dominantes (sem perder de vista o fato de que as ideias dominantes se
materializam nos discursos dominantes, e são estes que realizam efetivamente
uma dominação consistente). As ideias não são entes que habitam um mundo etéreo
e transcendente (como pensava Platão), absolutamente apartado das vivências
comuns e concretas do dia a dia. As ideias têm existência material, já que se
encarnam em práticas discursivas, em práticas institucionais por meio das
formas simbólicas que povoam e organizam as esferas de interação social. As
ideias se textualizam, estão encarnadas em livros, nos códigos da Lei, nos
documentos oficiais da administração do Estado, nos editoriais da imprensa,
etc. Elas são veiculadas e reproduzidas diariamente pelos textos produzidos e
reproduzidos nas plataformas digitais e nos veículos de comunicação. São as
ideias (e os discursos) dominantes, produzidos e reproduzidos pelas classes
dominantes, política e economicamente, pelas instituições dominantes que passam
a determinar a vida das pessoas comuns e seu comportamento cotidiano, sem que
elas tenham consciência reflexiva disso. Em nossas sociedades ocidentais, quer
sejamos especialistas, quer não, habituamo-nos a pensar o mundo e a condição
humana relativamente a todos os demais seres existentes com base no esquema
metafísico-dualista formado pela separação entre alma e corpo, ou espírito e
corpo. As raízes dessa separação entre alma e corpo, ou entre espírito e corpo, se encontram na
metafísica de Platão. Ela constitui o pressuposto metafísico de sua teoria
ética. (o leitor interessado em compreender, com mais detalhes, a teoria da
alma, em Platão, poderá encontrar neste blog um texto inteiramente dedicado ao
tema). Dou a saber, muito resumidamente, em que consiste esse pressuposto. Para
Platão, a vida virtuosa não se realiza, se a parte racional da alma não exercer
pleno domínio sobre as partes apetitiva e colérica. A alma virtuosa é aquela
que não se deixa sucumbir aos apelos do apetite e da cólera, o que significa
dizer que não cede aos apelos irracionais das paixões cuja sede é o corpo. O
peso do corpo e das paixões sobre a alma leva Platão a conceber o corpo como uma
espécie de prisão da alma. Mas a essência da alma – a sua imortalidade – não é
destruída, nem prejudicialmente afetada pelas influências danosas do corpo. A
vida virtuosa exige o domínio do espírito (a parte racional, reflexiva do
composto alma e corpo que é o homem) sobre as paixões desmedidas e indomáveis
do corpo. Não estando submetida ao domínio da alma racional ou do espírito, as
paixões incontroláveis do corpo levariam o indivíduo a se tornar escravo do
desejo (sempre insaciável) ou dominado pela loucura (embora Sócrates não visse
todo delírio como um mal, mas isso não nos interessa aqui). Esse esquema
metafísico-dualista assumirá a forma de uma hierarquia moral invisível por força do trabalho dos primeiros
Padres da Igreja Cristã primitiva. Graças ao trabalho diário, secular e
silencioso de milhares de sacerdotes e monges cristãos, tanto na Europa quanto
nos rincões mais distantes do globo, aquele esquema metafísico-dualista de
Platão, então ressignificado na dogmática cristã como caminho para o bem e para
a salvação do cristão, se transformará numa hierarquia moral que passará a ser
inculcada nos camponeses e nos citadinos, “e isso em uma época histórica na
qual as pessoas tinham a salvação no outro mundo como ponto fundamental de suas
vidas”. (ibid., p. 21). Se aquele esquema metafísico-dualista separava aqueles
que possuíam espírito daqueles que não o possuíam, e que, por não o possuírem,
eram percebidos como animais ou apenas como corpos sem alma (para Descartes, no
século XVII, em plena modernidade, os animais eram “máquinas” simplesmente, sem
afetividade, sem inteligência, sem alma), a hierarquia moral invisível cunhada
no cristianismo, operando nas relações humanas, está na base da reprodução do
racismo racial e cultural, uma chaga inextirpável de nossa civilização
ocidental e, sobretudo, de nossa sociedade brasileira. (ver Souza, 2019, 2020, 2021).
A
separação platônica entre espírito e corpo, que sussurra em clichês,
persistentes no discurso do senso comum, como aquele com que se recomenda “agir
pela razão e não pela emoção” (pelas paixões), ou como outros tantos que
censuram os comportamentos ou modos de ser passionais (“ela é muito passional”,
“ele se deixou levar pelas paixões”, assumindo a forma de uma hierarquia moral
invisível por força do trabalho da instituição que, antes da modernidade, e
durante a maior parte da história ocidental, exercia o poder não só espiritual,
mas também político e econômico – a Igreja Católica -, passou a colonizar a
vida das pessoas comuns, moldando seu modo de ser, de pensar e seu
comportamento cotidiano, sem que elas o saibam, ou melhor, sem que elas
suspeitem do modo como as ideias e os valores associados àquela antiga
distinção metafísica passaram a ser tão evidentes e naturais para elas. A bem
da verdade, nossa tendência tão comum de perceber as emoções como fonte da
irracionalidade e as paixões como caminho para a infelicidade foi moldada por
uma ideia moral que dominou o pensamento dos filósofos gregos antigos. Os
estoicos, que adotaram o racionalismo e intelectualismo moral socrático, tal como Platão, viam nas paixões a fonte de
toda a infelicidade. Se Platão nos legou a ideia de que as paixões e tudo que é
passional no agir humano supõem forças ilógicas e irracionais, os estoicos não
viriam a contradizer o maior discípulo de Sócrates.
Segundo
Souza, na modernidade, a hierarquia moral invisível é reproduzida
hegemonicamente pela mídia e pela indústria cultural por meio de seus bens de
consumo, tais como livros populares (entre os quais o do gênero autoajuda) e
cinema. É essa reprodução massificada da hierarquia moral invisível, que separa
os homens e as mulheres entre seres superiores e seres inferiores, entre seres
autoritários e poderosos e seres submissos e fracos, que produz saberes e
discursos que legitimam as várias formas de dominação (política, econômica,
ideológica e cultural) e opressão social, política e econômica. Como lembra
Souza (2019, p. 26), “não apenas a mídia, mas também os indivíduos e as classes
sociais vão definir sua ação prática, quer tenham ou não consciência disso, a
partir desse mesmo repertório de ideias”.
A
institucionalização das ideias é, conforme venho mostrando, um processo
histórico ao longo do qual elas se unem aos interesses de uma instituição – no
caso examinado, da instituição religiosa que deseja angariar fiéis, e se
materializam nas práticas institucionalmente reguladas que cunham os seus
agentes (que os formam, os educam) – são estes os sacerdotes e os monges -, os
quais passarão a atuar continuadamente no tempo, por meio da prática da
catequese, de sermões e outros dispositivos institucionais, de modo a
transmitir o repertório de ideias já codificadas num cânone, num corpo de
discursos, de textos legitimados pela instituição religiosa. Em resumo, Souza
nos esclarece a respeito desse longo processo, o seguinte:
É precisamente
essa ação continuada no tempo, atuando sempre em um mesmo sentido, que logra
mudar a percepção da vida e, em consequência, o comportamento prático e a vida
real e concreta como um todo para uma enorme quantidade de pessoas. (ibid., p.
22).
Não
resta dúvida de que essa hierarquia moral invisível e dominante determina as
ações e os pensamentos de uma maioria esmagadora de pessoas ainda hoje,
sobretudo porque elas não percebem o seu poder sobre elas, sobretudo porque
elas nunca refletem sobre a influência que essa hierarquia exerce sobre seu
comportamento diário e sobre sua vida como um todo. Consoante nota Souza, “sem
consciência crítica da ação dessas ideias sobre nosso comportamento, somos
todos vítimas de uma concepção que nos domina sem que possamos sequer esboçar
reação”. (ibid.).
Finalmente,
não é difícil inferir de todo o exposto, nesta seção, que às classes dominantes
estão associados os valores do espírito, do conhecimento valorizado socialmente,
da produção do pensamento crítico, enquanto às classes trabalhadoras e
dominadas se associam os valores “baixos”, “vis” do corpo, do trabalho braçal e
do trabalho maquinal dos músculos que se assemelha ao operar dos animais,
considerados, segundo um preconceito muito arraigado e corrente na consciência
coletiva, “irracionais”. Como nos adverte Souza, “nós nunca refletimos acerca
dessas hierarquias, assim como não refletimos sobre o ato de respirar”, e
conclui “é isto que as faz tão poderosas: elas
se tornam naturalizadas”. (ibid., p. 23, grifo meu).
3. A importância da leitura: um
convite e suas múltiplas vozes
A
esta altura da discussão que venho empreendendo, pode parecer que a importância
da leitura é demasiado evidente para mobilizar tal dispendioso esforço em
justificá-la. Bastaria o senso comum para nos convencer da importância dela: ler é importante para que adquiramos mais
conhecimento de mundo. Sem negar que ler muito e habitualmente amplia o
nosso repertório de conhecimentos sobre muitas coisas, o que não fica claro
para as pessoas que acolhem, sem reflexão, essa conclusão óbvia do senso comum,
é que os textos não são apenas instrumentos de representação e meios para
formação de arquivos de conhecimento. Os textos não se limitam a registrar, a
codificar o conhecimento socialmente existente, Como ensina Koch (2004, p.
171), eles são “formas básicas de constituição
individual e social do conhecimento, ou seja, textos são linguística,
conceitual e perceptualmente formas de cognição
social”. Podemos dizer a mesma coisa, referindo novamente Koch (ibid., p.
172), na seguinte formulação: “todo conhecimento declarativo de nossa sociedade
é (com exclusão daquele que se traduz em números ou fórmulas) primeiramente
linguístico, ou melhor, conhecimento textualmente
fundado.” O conhecimento declarativo é o tipo de conhecimento que se
formula em proposições, em enunciados linguísticos e que obtemos por meio das
produções linguísticas, tais como “A Terra gira em torno do Sol”, “A capital da
Argentina é Buenos Aires”, “Todo solteiro é não casado”, etc. Assim, não
preciso ir à Argentina para saber que sua capital é Buenos Aires; eu o sei,
porque aprendi isso nos livros, na escola com professores que me disseram que
Buenos Aires é a capital da Argentina. Assim também sei que a Terra gira em
torno do Sol porque aprendi isso nos livros de ciências. Sei que todo solteiro
não é casado, porque conheço o significado da palavra “solteiro”, cuja
definição é ‘pessoa que não se casou’. Os textos que lemos não apenas servem para
transmitir saberes, conhecimentos; eles os constituem, os elaboram, os tornam
socialmente existentes. Nas palavras de Koch, referidas abaixo, fica mais claro
o que significa dizer que textos são
formas de cognição social:
Os textos são
condição de possibilidade de se tornar o conhecimento explícito, de
segmentá-lo, de diferenciá-lo, pormenorizá-lo, de inseri-lo em novos contextos,
permitir sua reativação, de testá-lo, avaliá-lo, corrigi-lo, reestruturá-lo,
tirar novas conclusões a partir daquilo que já é compartilhado e de representar
linguisticamente, de forma nova, novas relações situacionais e sociais. (ibid.,
p. 173).
Espero
esteja igualmente claro que, ao me referir a textos, estou tomando-os em sua versão escrita. Mas os textos não
se definem pela modalidade linguística em que são expressos. Há textos escritos
e há textos falados. Toda a comunicação oral se realiza por meio de textos
falados. Há várias maneiras de definir o conceito de texto, independentemente se aparecem na modalidade falada ou na
escrita. As definições de texto variam segundo as teorias linguísticas que se
ocupam de compreender os processos de produção de significado na linguagem. Por
isso, proponho que o texto seja definido como uma forma linguística, cognitiva e social complexa que permite a
interação social. Textos são a realização
material de eventos comunicativos. Textos instanciam (realizam, tornam
socialmente apreensíveis, explícitos) os discursos, mas não se confundem com
eles.
Quando
se diz que a leitura nos permite adquirir
conhecimento, concebemos, normalmente, “conhecimento” como algo já produzido,
como o produto resultante da atividade de conhecer. Quando nos referimos a
alguém que possui “vastos conhecimentos sobre uma matéria”, pensamos em “conhecimentos”
como um capital social e/ou cultural possuído por essa pessoa. Mas a presença
do sufixo derivacional “-mento” no vocábulo “conhecimento” permite-nos também
ativar um outro domínio cognitivo, assentado na noção de ‘processualidade’, no
caráter processual do “conhecer”. Quando falamos em “investimento no
conhecimento científico”, o que pretendemos dizer é “fornecimento de aporte
econômico para o desenvolvimento do modo de conhecer próprio da ciência”. Em
outras palavras, “conhecimento científico”, nesse caso, não é o resultado da
pesquisa científica, mas o processo ou ato de conhecer próprio da ciência. É no
sentido de tornar possível a produção de conhecimento socialmente relevante e
valorizado que devemos entender o texto como forma de cognição social, como formas
básicas de constituição individual e social do conhecimento.
Pretendo,
pois, de agora em diante, mostrar que a leitura nos possibilita não apenas um
enriquecimento intelectual, cognitivo, cultural; a leitura é uma experiência
que enriquece e desenvolve vários outros aspectos da nossa vida.
Em
seu livro Do mundo da leitura para a
leitura do mundo (2000), Lajolo observa que “(...) lê-se para entender o
mundo, para viver melhor”; e ajunta “(...) quanto mais abrangente a concepção
de mundo, de vida, mais intensamente se lê”. Para Lajolo, os livros patrocinam
a suspensão do real como meio pelo qual o retorno ao real é iluminado e
fundado. Quero me deter na consideração
dessas imagens da “suspensão do real” e do “retorno iluminador ao real”
construídas por Lajolo para nos fazer compreender o papel da leitura. A
suspensão do real não se identifica com a ruptura com o real, o afastamento do
real; não é que o leitor se aliene do real. O que é suspenso é este nível de
realidade que nos é familiar, é a aceitabilidade de uma realidade cujo caráter
objetivo, cuja concretude ontológica não questionamos. O real que se suspende é
este nível de realidade em que se ancora a nossa consciência prática, que nos
garante o que Giddens (2002) chama de segurança
ontológica. A segurança ontológica
recobre a nossa “atitude natural” na vida cotidiana, graças à qual temos a
forte sensação da concretude, da objetividade de uma realidade exterior à nossa
consciência e compartilhada com outras pessoas. À medida em que nos envolvemos
cognitiva e emocionalmente na leitura, à medida que experienciamos o mundo
textualizado durante o tempo em que permanecemos absorto na prática da leitura,
acompanhando atentamente como o autor vai construindo uma versão, uma imagem da
realidade em consonância com seus objetivos e seu projeto de sentido, o mundo
que habitamos fora do texto, que se nos dá à consciência em seus aspectos
fenomênicos, é iluminado de tal modo,
que regiões antes nunca percebidas, dimensões que antes permaneciam imersas em
brumas se relevam significativamente compreensíveis. Para a composição deste
texto, revisitei vários livros, procurei manter-me distante dos estímulos
perturbadores da cotidianidade, para entregar-me completamente à leitura. Em um
dos livros que visitei, intitulado de Por
que o mundo não existe (2016), do filósofo Markus Gabriel, se me deparou um
trecho que me enlaçou o espírito, fecundando-o. Gabriel escreveu “o sentido é,
então, o modo como um objeto se manifesta” (ibid., p. 70). Veja-se que o autor
apresenta-nos uma definição de “sentido”. Usamos a palavra “sentido”, por
exemplo, em expressões como “o sentido da vida”, “o sentido de uma ação”, “o
sentido a ser seguido”. É claro que, naquele trecho de Gabriel, “sentido”
situa-se no campo semântico de “significado”. No livro O sentido da existência (2016b), do mesmo autor, é nos dito que “o
sentido é uma modalidade de organização para a qual alguma coisa se apresenta
de algum modo (...)”. (ibid., p. 16). Para Gabriel, que endossa um novo
realismo, há um mundo cuja ordem é anterior ao aparecimento do sujeito
cognoscente. Não me interessa aqui me deter na questão epistemológica e
metafísica que a posição de Gabriel suscita. Mas interessante, para mim, é
chamar a atenção para o fato de que, ao propor um tema, ao formular o problema
do “sentido” e ao nos convidar para que acompanhemos a discussão por ele
proposta sobre o problema, o autor faz com que nós, leitores, tornemo-nos participantes deste mundo
construído textualmente, tornemo-nos experienciadores de uma realidade que se
vai construindo discursivamente, à medida que vamos avançando na leitura e vamos
acompanhando o desdobramento do texto. E o mais importante é que, ao nos propor
um problema para ser meditado, somos estimulados a pôr o mundo da
cotidianidade, o mundo das ocupações com as coisas aqui e agora “entre
parênteses”. Este mundo não deixa de existir no sentido corrente, é claro; mas
deixa de nos solicitar, deixa de nos importunar; ele não está ausente, pelo
menos não completamente; ele se converteu numa espécie de “pano de fundo”. O
mundo textual não é, contudo, uma alteridade absoluta; não se trata de um mundo
totalmente diferente do mundo fora do texto. Mesmo nas literaturas ficcional ou
fantástica, o mundo do texto é construído com os elementos de que se compõe a
realidade extralinguística. Mas o mundo do gênero fantástico ou ficcional é um
mundo recriado, reconfigurado, reconstruído segundo a imaginação criativa do
autor que inscreve no real vivido novas, extraordinárias e insólitas
possibilidades de experiência, com vistas a nos desabituar de nossa atitude
natural em face da ordem do mundo, atitude natural esta com base na qual
apreendemos que o mundo e sua ordem é tal como o vemos, o percebemos na
experiência imediata, sensorial, cognitiva que temos dele; atitude natural esta
que nos habituar a pensar que a ordem do mundo existe independentemente de
nossos cérebros, que não teriam qualquer participação na criação, na construção
dessa ordem que percebemos. Também nas prosas do domínio jornalístico e
acadêmico, na prosa narrativa dos gêneros do conto, do romance, o mundo ou a
realidade são construídos e reconstruídos, embora sem romper com a
verossimilhança. Voltando ao livro Por
que o mundo existe, nele encontramos um trecho em que o autor nos diz que
“o mundo é o campo de sentido no qual todos os outros campos de sentido se
manifestam”. (ibid., p. 73). Ele também observa que o mundo “é o campo de
sentido de todos os campos de sentido”. Note-se que ele agora nos incita a
refletir sobre outra questão, qual seja, “o que é o mundo?”. O mundo é definido
por ele como “campo de sentido de todos os campos de sentido”; é, portanto, o
campo ao qual todos os demais campos de sentido pertencem. Novamente, não me
interessa elaborar um comentário crítico do pensamento do autor. Importa-me, em
compensação, sensibilizar o leitor para o fato de que a perspectiva proposta
pelo autor sobre o que é o mundo contrasta com nossa atitude natural de
experienciar “o mundo”, de defini-lo, de entendê-lo. O que a leitura, nesse
caso, faz conosco? Ela nos desacostuma de uma maneira rígida de olhar, de
pensar, de imaginar, de definir as coisas, de experimentar as ocorrências do mundo, de viver a realidade. Ela nos propõe uma nova
percepção (interpretação) de mundo, que ativa outras experiências de
significação do próprio mundo. Ela
provoca a desestabilização do terreno comum no qual enraizamos nossas
percepções habituais sobre o mundo. Ela produz rachaduras, fissuras, quebras no
solo da experiência da vida cotidiana. A leitura fomenta nossa capacidade de
pensamento abstrato, descola o pensar dos modos vulgares de interpretação da
realidade imediata.
Regina
Zilberman, por sua vez, lembra que “ler coincide com a aquisição de um hábito e
tem como consequência o acesso a um patamar do qual dificilmente se regride.”.
Lajolo, novamente, nota que “a ação de ler caracteriza toda a relação racional
entre o indivíduo e o mundo que o cerca” (ibid., p. 15). Ainda, segundo a
autora, “ou o texto dá um sentido ao mundo, ou ele não tem sentido nenhum”. A
leitura qualifica toda nossa relação com a realidade; ler transforma nossas
relações habituais, rotineiras com a realidade cotidiana. E José Luiz Fiorin
diz que “ler é construir a liberdade da alma”.
Eliana
Yunes, em Leitura como experiência,
afirma que “ler é desfazer a certeza e vacilar com a confiança de que se
perdendo há mais a encontrar” (2003, p. 10). A autora faz uma defesa do ócio
criativo, chamando-nos a atenção para a forma de sociabilidade instituída na
vida moderna, que elide o tempo necessário ao exercício da reflexão.
A vida
moderna, principalmente, acelerou a velocidade do cotidiano urbano com
compromissos, tarefas, negócios que
aboliram o tempo para pensar; só sentimos epidermicamente e agimos como que
tocados à corda, à pilha, mecanicamente, chegamos ao tempo em que o ócio deixou
de ser a antessala da preguiça para tornar-se preliminar da reflexão, condição
e memorial da criação. E todo homem tem
direito a este tempo de contemplação, experiência do ócio criativo.
Contudo, na vida urbana ele nos escapa, premidos que estamos pela necessidade
de produzir “automaticamente”. (ibid., p. 11, grifo meu).
Como
souberam ver os filósofos da Escola de Frankfurt, não basta que as classes
trabalhadoras lutem pelo benefício de dispor de mais tempo livre do processo de
produção, sem quebrar a lógica da produção que continua a operar nos hábitos
cotidianos no exíguo tempo de ócio que resta aos trabalhadores. O capitalismo
não só torna escasso o tempo livre exigindo trabalhadores superprodutivos; ele
molda e determina as esferas destinadas ao lazer, ao passatempo, ao
divertimento dos trabalhadores, de modo que o requerido ócio criativo jamais se
realiza, na verdade, e o tempo livre é preenchido do descanso intercalado, não
raro, com tarefas que atendem à necessidade de recuperar a energia, a saúde e a
boa disposição dos trabalhadores para que voltem a operar com eficiência na
produção. Atualmente, o uso de smartphones e das redes sociais como Facebook e
Instagram preenche a maior parte do tempo livre disponível aos trabalhadores,
quer nos fins de semana quando uma parte deles não está ocupada em seus
empregos, quer no percurso de suas casas até o local de trabalho. A questão que
se impõe e que importa a quem se preocupa com a formação de leitores é mais a
da qualidade de fruição do tempo livre disponível do que a da quantidade de
tempo livre disponível.
Ainda
segundo Yunes, “a leitura de um texto hoje pode nos devolver de forma mais
autônoma ao mundo” (ibid., p. 12). As considerações de Yunes, aqui citadas,
levam o seu leitor a formular várias questões. Este é um papel fundamental
desempenhado pela prática de leitura: nos
habilitar a ser questionadores, sujeitos pensantes capazes de questionar. Como
viemos a nos tornar autômatos sociais? Por que passamos a responder ao mundo
produtivo de modo tão maquinal? Por que nos conformamos a essas condições de
exploração e opressão? Por que nosso tempo é cada vez mais sequestrado por
pessoas que nos forçam a trabalhar e enriquecem à nossa custa? Por que nos
habituamos a certos tipos de lazer enquanto nos recusamos a fruir outros, no
exíguo tempo livre que nos é dado fruir? Essas são questões que os fragmentos
citados do texto de Yunes nos levam a elaborar. Ao bom encontro com tais
questões, vem Sonia Kamer, quando, em seu artigo Escrita, experiência e formação – múltiplas possibilidades de criação
da escrita, faz a seguinte ponderação: “(...) se penso na leitura e na
escrita como experiência é porque as entendo como locus da indignação e da resistência”. (2003, p. 67). Assim, descobrimos
outra finalidade da leitura: ser o lugar
de indignação e de resistência. A leitura (e também a escrita) formam
pessoas capazes de articular atos de indignação e de resistência. Não basta
simplesmente reconhecer a injustiça e a opressão da ordem vigente, nem
descobrir um novo esquema de corrupção orquestrado pelo governo e odiar os
corruptores; é preciso aprender articular, isto é, elaborar verbalmente um
manifesto de indignação, que seja também a realização de um ato de resistência
contra os mecanismos institucionais da dominação. Mas, para articular a
indignação e a resistência, preciso, antes de tudo, compreender com clareza
como operam esses mecanismos institucionais que produzem e reproduzem a
dominação (social, política, econômica, ideológica); e, para compreender, é
preciso ler; do contrário,
permaneceremos em estado de ignorância apática ou em estado de insatisfação
conformada. Para Kamer, ler não só nos torna sujeitos politicamente mais
conscientes, mais participativos. Para ela, “trabalhar com a linguagem, a
leitura e a escrita pode favorecer uma ação que convida à reflexão, a pensar
sobre o sentido da vida individual e coletiva”. Este é, certamente, um dos
grandes benefícios da leitura filosófica, que deveria ser mais do que um
simples hábito, mas uma necessidade existencial de cada um. A autora também
observa que a prática da escrita é condição de possibilidade para pensar sobre
a história pessoal e coletiva que se faz conjuntamente com os outros,
ampliando, assim, o raio de ação e reflexão individual e coletivo. Em Jogos de inclusão e exclusão sociais: sobre
leitores e escritores urbanos no final do século XX no Rio de Janeiro (2003), Tania Dauster evoca um princípio básico
da Linguística Textual, ou seja, dos estudos que se ocupam das condições
indispensáveis à produção e compreensão textual. Segundo Dauster,
Quando se
produz o sentido, acontece a leitura. Quanto mais informação, experiência,
leituras anteriores, mais sentido vai ter o texto lido e mais leitor será o
leitor. (ibid., p. 100)
Ao
enfatizar a importância do background
cultural do leitor quando da prática de leitura, Dauster alude ao princípio
teórico comum aos atuais estudos em Linguística Textual, segundo o qual a
compreensão de um texto depende da mobilização contínua pelo leitor de
conhecimentos prévios que ele possui. Kleiman (2003) concorda com Dauster, nos
esclarecendo sobre quais os tipos de conhecimento devem ser ativados pelo
leitor em sua memória para que consiga atingir uma compreensão adequada de um
texto:
(...) o leitor
utiliza na leitura o que já sabe, o conhecimento adquirido ao longo da vida. É
mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o sentido do
texto. (2003, p. 13, grifos meus).
3.1. Os benefícios da leitura
É,
certamente, porém, mais do que todas as autoras referidas anteriormente, Luzia de Maria que virá a contribuir para a
sistematização das razões por que ler é importante. Em seu Clube do livro – ser leitor: que diferença faz? (2009), a autora inventaria
vários benefícios proporcionados pela leitura. Explicitá-los será a tarefa que
me cumpre, doravante.
1)
a leitura favorece mais compreensão
Já
insisti demais em aclarar este aspecto da importância da leitura. Não resta
dúvida de que a leitura acarreta maior capacidade de compreensão do mundo. Mas
Maria acrescenta um ingrediente que fica apenas entrevisto nessa concepção de
leitura que nos é consensual: ler nos
torna melhores leitores tanto na escrita dos textos quanto na escrita da vida.
Maria observa que “quanto mais experiente for o leitor – tanto na vida quanto
nos textos – melhor leitor será, tanto na escrita da vida quanto na escrita dos
textos”. (ibid., 83). Não só ler mais e melhor nos faz escrever mais e melhor,
nos faz mais competente na construção do pensamento complexo, mas também nos
fazer ser os verdadeiros autores da construção histórica de nossa vida, porque
a leitura nos ajuda a compreender o modo como vivemos, como temos vivido e o
que temos feito para mudar, mesmo que no raio limitado de nossa ação individual
e com os escassos recursos de que dispomos, as condições concretas que nos
impedem de exercer mais liberdade, nos mantendo num estado contínuo de
subserviência. A autora acrescenta que a leitura também “produz sempre mais
conhecimento sobre a leitura, de modo que os que leem muito, sem dúvida, tendem
a ler melhor”. Deveras, não há receitas prontas que sirvam ao desenvolvimento
da proficiência em leitura. A competência de leitura vai-se desenvolvendo à
proporção que realizamos mais práticas de leitura diversificada. Ler mais para
ler melhor – este é o caminho para nos tornarmos leitores cada vez mais aptos a
compreender os silêncios que atravessam as palavras, os não ditos que
significam no dito, os sentidos que se produzem nos implícitos, nas
entrelinhas, etc.
2)
a experiência na leitura produz mais
conhecimento sobre a própria leitura
É
justamente isso que diferencia um leitor competente de um leitor mediano ou um
não leitor. Conforme ensina a autora, “(...) quem lê mais lê melhor”. (ibid.,p.
87). Quanto mais experiência em leitura cumulamos, mais conhecimento sobre a
própria leitura adquirimos. Segundo Maria, a leitura também promove a
experiência de vida, ou seja:
(...) aquela
experiência que vai acrescentando conhecimentos vários à nossa teoria de mundo,
vai nos tornando capazes de formular melhores e mais promissoras previsões,
seja diante dos textos ou dos infinitos desafios que a vida nos coloca
permanentemente. (ibid., p. 88).
Notemos
que a autora entende que a leitura acrescenta mais conhecimentos à nossa
“teoria de mundo”. O que isso quer
dizer? Ora, todos nós, já em nossa socialização primária, e depois ao longo de
toda a nossa socialização secundária, que só cessa com a nossa morte, vamos
construindo uma “visão de mundo”, certa concepção básica pré-reflexiva de como
o mundo é simplesmente. As nossas experiências pessoais na interação com os
outros significativos (pais, irmãos, tios, avós, amigos) e com outros atores
sociais que nos educam ou que formam nossas opiniões (professores, o padre da
igreja, o nosso chefe no trabalho, os colegas de trabalho, os profissionais da
mídia televisiva, etc.) vão contribuir para compor, para formar, para construir
nossa interpretação, percepção, visão básicas do mundo. Mas essas experiências
pessoais, por mais numerosas que sejam, são limitadas às esferas do
tempo-espaço em que elas ocorrem. Se não promovidas pela leitura, que nos faz,
por assim dizer, habitar outros mundos históricos, que nos faz compreender o
que não compreenderíamos nos limites restritos e fugazes das experiências
pessoais no cotidiano, tais experiências dificilmente (talvez até nunca) nos
tornarão sujeitos dotados de consciência crítica. Ora, é, no mínimo,
ingenuidade supor que chegaríamos a compreender adequadamente e melhor as
razões da injustiça social e econômica que nos deparamos no cotidiano de nossas
metrópoles, numa conversa casual com amigos de trabalho, não especialistas, do
que o conseguiríamos, certamente, com muito mais profundidade e consistência
teórica, se nos detivéssemos na leitura de um livro escrito por um sociólogo
especializado no estudo do tema. Nossas experiências pessoais, se não
ampliadas, fomentadas, enriquecidas pela experiência de leitura, continuarão se
moldando, se reproduzindo em conformidade com os clichês, os preconceitos, as
crenças falsas, os supostos saberes que circulam largamente nas esferas de
interação social do cotidiano. Além disso, cada indivíduo, enquanto sujeito
social e histórico, existe num espaço-tempo muito limitado no longuíssimo e
complexo tempo histórico da humanidade. Como poderia ele pretender conhecer bem
e melhor o que acontece no aqui e agora de seu mundo histórico (a modernidade
do século XXI), se não puder conhecer ou se recusar a conhecer o que outros
homens que viveram numa época anterior à sua (num passado até muito remoto),
fizeram? O aparecer social, a que temos acesso em nossas experiências pessoais
imediatas na vida cotidiana, mascara as condições reais que o fazem aparecer
como aparece. Por exemplo, as pessoas das classes trabalhadoras (tanto as
pobres quanto as de classe média), em sociedades como a nossa, tão marcadas por
desigualdades sociais e econômicas, se queixam de que trabalham muito e são mal
remuneradas, entreveem a exploração a que são submetidas no cotidiano de
trabalho, mas não compreendem como a exploração das inúmeras classes sociais
subalternas se produz no capitalismo. Em outras palavras, muitas da imensa
maioria de pessoas que compõe as classes trabalhadoras podem sentir que há
exploração nas relações desiguais entre empregador e patrão, mas não chegam a
perceber e compreender adequadamente como a exploração do trabalho assalariado
veio a se constituir como uma realidade intrínseca ao sistema capitalista. O que
elas podem sentir na pele são os efeitos práticos e imediatos, vivenciados
subjetivamente, de um exploração que é sistematicamente reproduzida como um
elemento intrínseco à máquina de produção capitalista. Portanto, para que
pudessem compreender as condições estruturais, os processos sociais, econômicos
e simbólicos que explicam o aparecer social, aquilo que elas vivenciam na
cotidianidade mediana, nas relações imediatas de trabalho, elas teriam de ler;
em uma palavra, teriam de se debruçar sobre os livros. Como, na maioria das vezes, se mantenham mal
dispostas para com a leitura, evitando-a, vivem em conformidade com o que
simplesmente ouviram falar, desde tenra idade: que o mundo é assim – injusto, cruel, desumano, desigual, violento,
etc. – que devem aceitar “a vida como
ela é”. Como vivam divorciadas ou impedidas da prática da leitura, essas
pessoas, em geral, não compreendem como são possíveis as relações de dominação
e exploração, e não as compreendendo, contribuem consciente ou
inconscientemente, para a reprodução dessas relações contrárias aos seus
próprios interesses, no mundo histórico em que vivem, cujo sistema de produção
é o capitalismo. É claro que o grau de compreensão e as condições de
possibilidade para a compreensão da realidade sociopolítica e econômica variam segundo
o nível de escolaridade dos indivíduos e os privilégios de classe. A educação
oferecida aos mais pobres é bastante deficitária e precária para que possamos
esperar que venham a se dar conta da exploração a que é diariamente submetida a
sua classe social.
Não vou aqui me alongar sobre o caso bastante
emblemático dos bolsonaristas que veem o comunismo como uma ameaça real em toda
parte no Brasil, sem que sequer saibam alguma coisa sobre o comunismo
histórico, sobre o marxismo e o lenismo que o fundamentaram teoricamente. A
ignorância e a burrice dessa gente já é motivo de piada em programas de
entretenimento na televisão e nas plataformas digitais da rede de internet.
Mais importante será frisar o seguinte: adquirimos
mais experiência por meio da leitura.
3) Ler é um ato libertário
A
leitura é uma experiência de formação de sujeitos autônomos. A leitura torna
possível a liberdade da autonomia, a liberdade de construir conhecimentos sem a
mediação de um professor; a leitura promove o autodidatismo. Porque favorece o
desenvolvimento do pensamento complexo do leitor, a leitura dota-o da
capacidade de compreender a complexidade da realidade. Tanto mais complexo,
elaborado, profundo for seu pensamento, tanto mais apto estará o leitor para
lidar com a complexidade das ocorrências do real.
4)
A leitura favorece melhor o
desenvolvimento da inteligência
Em
princípio, no que toca ao entendimento comum de inteligência, devemos
reconhecer, com Gardner (1995), que não há uma única inteligência. Definindo a inteligência como “a capacidade de
resolver problemas ou de elaborar produtos que sejam valorizados em um ou mais
ambientes culturais ou comunitários”, Gardner propõe que sejam identificados
sete tipos de inteligência: a inteligência
linguística, a inteligência
lógico-matemática, a inteligência
espacial, a inteligência musical,
a inteligência corporal-cinestésica,
a inteligência interpessoal e a inteligência intrapessoal. Foge à
alçada deste trabalho o deter-me a comentar cada um dos tipos de inteligência
propostos por Gardner. Se as mencionei, foi com o único fito de chamar a
atenção para a inconveniência de falarmos em inteligência no singular. As
inteligências são múltiplas. Todas as pessoas são capazes, se as condições
objetivas para tanto lhes forem dadas, de desenvolver um ou mais de um tipo de
inteligência. Não há dúvida de que a leitura favorece o desenvolvimento de
algumas formas de inteligência, como a linguística, a interpessoal e a
intrapessoal. Todavia, o que a leitura especificamente favorece é o
desenvolvimento intelectual, a capacidade de pensamento crítico e abstrato. Nas
palavras de Maria,
Ela [a
leitura] areja as consciências e as torna aptas a dar sentido às próprias
experiências, a construir conhecimentos a partir da observação direta, a partir
da vivência pessoal. A leitura educa o
olhar e oferece ao estudante a amplidão do patrimônio cultural humano. E,
para reabilitar o gosto do conhecimento e capacitar o estudante a aprender a
complexidade dos tempos autuais, penso que o caminho viável é promover o
autodidatismo. (ibid., p. 106).
Maria,
outrossim, advoga a necessidade de exercitar a leitura diversificada como
condição indispensável à formação de um leitor que ostente “um olhar plural e
interesses mais variados”, sobretudo num tempo histórico em que os regimes
autoritários e os populismos conservadores voltam a crescer e a ganhar terreno,
com suas forças homogeneizantes e uniformizadoras. Um simples exemplo é
suficiente para demonstrar a importância da formação desse leitor ávido por
diversificar seu repertório de leituras. Cada vez mais os estudiosos das
ciências sociais e políticas vêm denunciando o crescimento da propaganda
fascista em várias partes do mundo, incluindo o Brasil. Entre nós, os
opositores, politicamente mais engajados, do governo de Bolsonaro, chamam-no de
fascista. Para quem nunca estudou ou já não mais se lembra do que foi o
fascismo como um regime político que vigorou na Europa durante a década de 30,
chamar Bolsonaro de fascista pode soar apenas como mero xingamento ou um
exagero de “intelectuais modinha”. Mas basta estudarmos como se constrói e se
dissemina a propaganda fascista, como se manifesta o comportamento fascista,
para reeducar o nosso olhar, para repensar o nosso julgamento anterior. Um dos
traços marcantes da política fascista é a substituição do debate fundamentado
pelo medo ou o ódio. Além disso, um líder fascista mente de modo inconsequente;
ele destrói os espaços de informação; dissemina e reforça teorias
conspiratórias; utiliza a linguagem para provocar emoções, incitando-as na
audiência. A política fascista abala a confiança nas universidades. Esses
traços que caracterizam a propaganda fascista que atua de modo a minar os
conceitos e as instituições democráticas bastam para perceber que governos
atuais como o de Jair Bolsonaro, no Brasil, como o de Viktor Órban, na Hungria,
e o governo do ex-presidente Donald Trump, nos Estados Unidos, são governos que
em nome da pretensa defesa das instituições democráticas utilizam (ou utilizou,
no caso do governo de Trump) de táticas fascistas. Entenda bem, prezado
pressuposto leitor, que mantendo-se divorciado da prática de leitura, ninguém
poderá ler e compreender bem e em profundidade o significado do que se passou a
chamar de bolsonarismo no Brasil. Da mesma forma, quem se mantém indisposto
para com os livros, mesmo tendo as condições sociais e materiais para
estabelecer com eles um convívio de philia,
jamais perceberá os perigos que ameaçam a democracia aqui e em várias partes do
mundo; jamais, em suma, verá e compreenderá aquilo que os estudiosos querem nos
fazer ver: o crescimento do autoritarismo político, dos populismos de direita
ultraconservadores no mundo. Sem a experiência da leitura, não conseguiremos
ver o grande perigo que esses movimentos políticos representam para a vida de
cada um de nós que reconhece, mesmo num nível pré-reflexivo, que viver em
regimes democráticos, malgrado seus impasses e conflitos, é melhor do que viver
em regimes onde todas as liberdades (a liberdade política, a liberdade
individual, a liberdade de pensamento e de imprensa) são abolidas em nome de
delírios de um poder de Estado que se institui pela força, pela violência e
coerção declaradamente abertas e livres de um ordenamento jurídico-político que
o limite.
5)
A leitura mantém a saúde do cérebro
Trata-se
aqui de reconhecer o que é consenso entre os neurocientistas: manter um nível
elevado de estudos ou um envolvimento intelectual em práticas assíduas de
leitura diminui significativamente as chances de desenvolvermos doenças
degenerativas na velhice. Sei que esse benefícios para a saúde cerebral são,
por si mesmos, insuficientes para estimular as pessoas a ler mais, já que
muitos de nós sabem também que manter atividades físicas regulares é
indispensável para conservar a saúde de nosso corpo como um todo e para
favorecer a longevidade e, no entanto, muitos de nós nos recusamos a
praticá-las. Sem embargo, o sedentarismo do corpo acarreta tantos prejuízos à
saúde quanto o sedentarismo intelectual leva a deterioração precoce do cérebro.
O cérebro precisa ser exercitado por meio de atividades intelectuais, entre as
quais se incluem os jogos (de carta, de tabuleiro, de esporte), palavras
cruzadas e – leitura.
Como
a principal característica do cérebro é a plasticidade,
isto é, a capacidade que ele tem de se reconfigurar por toda a vida, o cérebro
pode ser modelado e a inteligência ou as aptidões intelectuais podem ser
desenvolvidas, construídas:
A cada momento
em que nos lançamos numa nova experiência, em que fazemos novos contatos – com
pessoas ou conhecimentos e informações – novas conexões neurais são
estabelecidas e isso significa uma permanente reformulação no desenho de nosso
mapa cerebral. (ibid., p. 127).
O
cérebro, portanto, pode ser modelado; e nossas experiências é que constroem as
estruturas neurais de nosso cérebro. Ensina-nos Maria que “apenas 30% da
capacidade intelectual de uma pessoa é decorrência de sua herança genética; os
outros 70% resultam das experiências a que ela foi exposta e das aprendizagens
que construiu durante a vida”. (ibid., p. 128). Aprendizado e exercício são
importantes para que se estabeleçam conexões mais fortes entre os neurônicos.
Essas conexões serão mais fortes ou mais fracas dependendo do uso que fazemos
de nosso cérebro. Escusando-me do exagero, não estão completamente errados
aqueles que acusam os bolsonaristas de não fazerem uso de seus cérebros. É
claro que eles usam o cérebro, mas fazem um mau uso dele.
Uma
vez que estejamos convencidos de que a leitura é um caminho fecundo para o
desenvolvimento intelectual, somos forçados a reconhecer que a inteligência se
desenvolve pelo acúmulo de experiências de mundo ao longo da vida. Enquanto
vivemos, estamos continuamente envolvidos em processos de aprendizagem. Se é
verdade que nunca cessamos de aprender algo ao longo da vida, é igualmente
verdadeiro que necessitamos de um contexto sociocultural e familiar que
favoreça novas experiências e estimule o desenvolvimento da aprendizagem.
Lembra Maria que “nosso cérebro é alimentado, permanentemente, pelas nossas
interações com o meio exterior, com o grupo social que nos cerca, com tudo
aquilo que a vida nos oferece a cada instante”. (ibid., p. 131). Se o
desenvolvimento de nosso cérebro é dependente do entorno sociocultural, devemos
nos questionar quais tipos de bens culturais nos são oferecidos, se o que nos é
oferecido contribui ou não para o desenvolvimento de nosso cérebro, se os
encontros que fazemos estimulam novas e fortes conexões neurais ou conservam as
mesmas existentes. Nosso cérebro é um cérebro social em dois sentidos:
primeiro, no sentido de que seus neurônios estabelecem conexões com seus
vizinhos; segundo, no sentido de que necessita de interações sociais para se
desenvolver. Uma vez que nós, humanos, somos animais sociais, nosso nascimento
e desenvolvimento se dão, necessariamente, num meio social, onde construímos
nosso aprendizado e nossas inteligências por meio das interações sociais que
estabelecemos com os outros nesse meio. Nosso cérebro é extraordinariamente
dinâmico. As experiências de linguagem significaram um grande salto cognitivo
para a nossa espécie. A prática de leitura veio, posteriormente, nos descerrar
outros muitos níveis de realidade que não percebemos em nossas experiências ordinárias
de mundo. É somente praticando a leitura que passamos a compreender o que
significa a visão sistêmica da realidade, paradigma científico que tem dominado
cada vez mais as ciências atuais. O que, basicamente, essa visão sistêmica da
vida sustenta é que todos os organismos vivos são totalidades integradas, são
componentes sistêmicos de um vasto e amplo ecossistema, de sorte que a vida
humana está intimamente ligada a uma rede ecossistêmica do qual fazem parte
também os demais seres. A visão sistêmica da realidade é holística: vivemos num
mundo que é plurissistêmico, multissistêmico. Os diversos sistemas que compõem
o mundo se comunicam, se interpenetram, se predem mutuamente. As decisões que
tomamos no sistema econômico afetam outros sistemas, por exemplo, geram
impactos negativos na biodiversidade do planeta. A atual pandemia da covid-19 é
um exemplo e uma consequência dramáticos das escolhas que fazemos, por exemplo,
escravizando a vida animal, devastando gigantescas áreas florestais que abrigam
a biodiversidade e microrganismos potencialmente perigosos, caçando primatas
nas florestas africanas e entrando em contato com seu sangue contaminado por
vírus altamente letais, etc.
Cabe
ainda acrescentar, antes de encerrar esta seção, que, segundo Jung, é com a
imagem de mundo que o homem constrói que ele modifica a si próprio. O homem que
acreditou em que o Sol girava em torno da Terra é diferente do homem que
compreendeu ser a Terra um planeta que gira em torno do Sol. Assim, para Jung,
cada indivíduo desenvolve uma cosmovisão,
ou seja, uma consciência ampliada ou aprofundada que constitui um imagem do
mundo; e essa imagem do mundo o modifica e é através dela que esse indivíduo se
orientará e experienciará a realidade. Jung reconhecia que é necessário um grande
esforço individual para arrancar a consciência das preocupações e ocupações da
vida ordinária, de modo a orientá-la na direção dos problemas gerais e
profundos da condição existencial humana. Na maior parte das vezes, os
indivíduos permanecem com uma cosmovisão, ou o que Jung chama de atitude, inconsciente em suas vivências
ordinárias, sem chegar a formar uma atitude conceitual e concreta que lhe
permita saber por que motivo e para que fim vive e age do modo como vive e age.
Sem chegar a desenvolver uma cosmovisão profunda do mundo, seus motivos e
intenções fundamentais permanecem inconscientes para o indivíduo, e tudo se lhe afigura muito simples e
“natural”.
6)
A leitura torna as pessoas mais
criativas
Outra
vantagem que nos possibilita a leitura é o desenvolvimento da criatividade.
Para Maria, a leitura pode tornar as pessoas mais criativas, porque “ela
oferece essa bagagem de conhecimento indispensável à inauguração de novas
associações”. (ibid., p. 142). De que ordem são essas associações? A autora
fala em associação de elementos entre os quais ninguém jamais havia feito antes
relações ou aproximações. A criatividade consiste nisto: relacionar uma coisa
com outra, aproximar uma coisa de outra, de modo inédito. Penso que as
associações, as conexões novas, imprevistas que a leitura nos permite fazer são
associações entre significados, entre percepções, interpretações. Não criamos a
partir do nada; não há criação ex nihilo;
não obstante, podemos fazer notar novos arranjos, novas estruturas significativas,
novas causas, novas consequências ainda não vistas ou entrevistas num primeiro
lance de olhar sobre um fenômeno ou uma realidade. Se, como pretende Gabriel
Markus, o mundo é o campo de todos os campos de sentido, a leitura, na medida
em que promove a criatividade, permite-nos tornar visíveis outros campos de
sentido que não eram percebidos, visíveis também outras relações entre campos
de sentido que não haviam sido feitas, etc.
7)
a leitura aproxima as pessoas
Luzia
de Maria advoga que “quem lê passa a ter o que dizer e pode se tornar uma
pessoa mais interessante e mais bem aceita socialmente”. (ibid., p. 148). O que
diz a autora é confirmado diariamente em muitos meios sociais. Muitas pessoas
admiram e se sentem atraídas, não só sexualmente ou amorosamente, mais
intelectualmente por pessoas exibem, em sua fala, um amplo repertório de
leituras. É claro que transitamos aqui pelo terreno do variável prestígio
social conferido ao leitor e que é socialmente distribuído aos indivíduos e aos
grupos que detêm alguma forma de poder ou capacidade de influência. Nem todas
as pessoas se sentem interessadas em ouvir o que pessoas que leem demais têm a
dizer; muitas delas se sentem, de algum modo, ameaçadas, minoradas
intelectualmente, quando não conseguem atingir o grau de compreensão previsto
ou exigido na fala dos mais letrados, dos intelectualizados. De qualquer forma,
a leitura nos faz ter coisas interessantes para dizer, que podem não interessar
talvez a uma maioria, mas que encontrará
acolhida entre aqueles, cujos valores imateriais recebidos, são semelhantes. A
autora ainda defende que “a leitura aproxima as pessoas” (ibid.), o que é
verdade, mas nem sempre o é. Pelas razões que apontei, ler demais pode nos
tornar menos sociáveis, pode fazer com que recaiam sobre nós juízos de valor
merecidos ou imerecidos, que, em vez de nos aproximar das pessoas, nos
distanciam delas. Todavia, há que reconhecer, com Maria, algo que cuido
inegável: a leitura nos proporciona “experiências que não só ampliam nossa
visão do outro como a visão que temos de nós mesmos”. Prossegue a autora: “isso
concorre para fortalecer a autoestima e significa um acréscimo de prazer em
nossa vida, o que também fortalece as configurações do nosso cérebro e promove
sua longevidade”. (ibid.). Wolf, em seu livro O cérebro no mundo digital , observa que “ler nos níveis profundos
pode proporcionar um antídoto contra a tendência a afastar-se da empatia”.
(2019, p. 64). Mas a autora adverte que a empatia não significa ser compassivo
com os outros. Vai muito além disso. A empatia implica um conhecimento profundo
do outro. A empatia “envolve uma inteira rede de sentimentos e pensamentos que
conecta a visão, a linguagem e a cognição com amplas redes subcorticais”.
(ibid., p. 65). A empatia compreende tanto conhecimento quanto sentimento. Ser
empático, segundo a autora, “envolve abandonar conjecturas do passado e
aprofundar nossa compreensão intelectual de outra pessoa, de outra religião, de
outra cultura ou época”. (ibid., p. 67). Ela também nos ensina que “nossas
palavras contêm e ativam momentaneamente repositórios inteiros de sentidos
associados, memórias e sentimentos, mesmo quando fica determinado o sentido
exato num contexto dado” (ibid., p. 44). A linguagem, e não só a leitura, é
capaz de evocar em cada uma das palavras pronunciadas ou lidas “uma história
inteira de miríades de conexões, associações e memórias guardadas por muito
tempo”. (ibid.).
8)
A experiência do prazer de ler
O
melhor deixei para o final. É comum ouvirmos daqueles que gostam de ler, que
amam ler, ou daqueles que, mesmo não sendo amantes dos livros, gostam de reiterar
o que todo mundo diz, ou seja, que a leitura é fonte de prazer. Decerto, eu
seria a primeira pessoa aceitar a plausibilidade desta tese, se não fosse o
problema teórico que ela suscita: podemos educar as pessoas de modo que venham
a sentir prazer em atividades que elas julgam enfadonhas e desinteressantes?
Essa questão equivale a esta outra: será o prazer passível de ser objeto de
ensino, de aprendizagem? Creio que os gostos estéticos, as sensibilidades para
a fruição das artes podem ser moldados culturalmente, podem ser formados pelos
exemplos, pelas experiências na socialização familiar. Contudo, não me parece
razoável supor que as pessoas passarão a exercer uma atividade porque lhes
disseram que ela provoca prazer. Ademais, alegar simplesmente que a leitura
deve ser exercitada porque é fonte de prazer é passar ao largo do fato de que
há situações em que temos de ler um livro ou um texto qualquer (por exemplo,
porque teremos de fazer uma prova, porque falaremos dele num seminário, etc.)
que nos causa enfado, aborrecimento, porque o tema não é interessante, porque
não dispomos de conhecimentos prévios suficientes para encará-lo, ou
simplesmente porque talvez preferíssemos ler outro livro mais interessante,
etc.; portanto, nesses casos, ler causa, com muita frequência, desprazer. Que o
prazer é indispensável à realização pessoal quem o negará? O prazer é um
elemento muito importante na vida de qualquer ser humano. Quando exercemos uma
atividade que nos dá grande prazer, entregamo-nos a ela de modo absoluto.
Dedicamos a ela grande parte de nosso tempo na vida cotidiana, suspendendo os
apelos do mundo em derredor. Quando imersos em experiências de sumo prazer,
sequer nos ocupamos com a felicidade, com o que é a vida feliz. Decerto, não
importa qual seja a atividade ou trabalho em que nos empenhamos – jardinagem,
cozinhar, pintar, estudar, ler -, estaremos mais entregues a ele quanto mais
prazer possamos experimentar em sua realização. O psicólogo Mihaly
Csikszentmihaly chamou de fluxo a
experiência de prazer intenso desencadeado por uma atividade que exercemos.
Para ele, o envolvimento pleno no “fluxo” é que gera a excelência na vida.
Entregues ao fluxo, fruímos a felicidade. A experiência do fluxo (a do prazer
intenso) acarreta uma complexidade e crescimento maiores da nossa consciência.
Conquanto
eu não esteja tão seguro quanto a tomar o prazer como uma boa razão para o
incentivo à prática de leitura, concordo com Luzia de Maria, quando nota que
são as experiências do fluxo que dão sentido à nossa vida. Tem razão a autora
quando diz que “felizes são aqueles que conseguem conjugar o verbo trabalhar
experimentando o fluxo em seu dia a dia”. (ibid., p. 145). E aqui me distancio
de Aristóteles para me aproximar de Epicuro: o princípio da vida feliz é o
prazer. Se Aristóteles negava ser o prazer o princípio da eudaimonia (felicidade), ele admitia, por outro lado, que o prazer
que acompanha as atividades em que se empenham os homens as aperfeiçoa, as
qualifica. Para Aristóteles, o prazer tem caráter quantitativo, visto que
aumenta a qualidade da atividade. Sem atividade não há prazer; sem prazer, a
atividade decresce, podendo, inclusive, ser suspensa. É justamente porque
Aristóteles estabelece uma relação entre o prazer e a vida, entre o prazer e a
atividade, entre o prazer e a perfeição tanto do órgão quanto do objeto de
satisfação que ele afirma ser o prazer inseparável da virtude. É também por
essas relações que ele pode afirmar que a virtude é uma forma de prazer
superior, uma vez que a virtude é capaz de prolongá-lo, convertendo-o num ato
menos fugaz. Mas é nas virtudes intelectuais que o prazer é mais intenso, mais
vivo, mais longo e duradouro. Nesse tocante, me encontro em pleno acordo com
Aristóteles. Para Aristóteles, a felicidade é uma forma de atividade da alma;
ela tem um fim em si mesma. O homem feliz é aquele que realiza a atividade
contemplativa através do exercício da razão teorética. Ao exercitá-la, esse
homem se realiza plenamente, pois que vive segundo aquilo (o intelecto, a alma
racional) que, em ato, é possibilidade para a (realização da) felicidade.
Ao
sugerir que a leitura é fonte de prazer, a autora, conscientemente ou não, está
de acordo com Aristóteles, no sentido de que, para ele, para cada um de nossos
sentidos há um prazer que lhe é próprio, e também há um prazer próprio a cada
uma de nossas atividades, tais como falar, fabricar, pensar, jogar... ao que
acrescentaríamos – ler. Mas, se é assim, por que algumas pessoas rejeitam a
leitura como uma atividade enfadonha e entediante? Para estas pessoas que não
leem porque julgam a atividade desagradável e maçante, que poder pode ter sobre
elas a alegação de que a leitura é fonte de prazer, se é justamente isso que elas
negam? A situação da leitura parece ser a mesma que a de qualquer outra
atividade: há pessoas que sentem prazer em assistir a um jogo de futebol, ou em
jogar futebol, e outras não. Talvez, não haja, como pensava Aristóteles, um
prazer inerente a cada atividade que realizamos. Também não creio que o prazer
possa ser algo desenvolvido nas pessoas como as aptidões, o caráter, as
competências, a inteligência, as boas maneiras, etc. Devo confessar que não sei
como, ao longo de meu desenvolvimento psicossocial, passei a experienciar
prazer em ler. E o prazer que eu sinto em ler não é comparável a qualquer
prazer sensorial, embora os prazeres
sensoriais sejam inegavelmente importantes para o meu bem-estar e felicidade.
Mas o prazer da leitura se prende a uma necessidade existencial visceral por
que me sinto arrastado e sem qual as minhas experiências, as minhas vivências
cotidianas se esvaziariam de toda significação, fazendo pesar sobre mim o tédio
dos dias que se sucedem num tempo linear que me aviva a consciência de que
“viver é perder terreno” (Cioran).
4. O que é ler: a formação do
leitor e suas competências
Convém,
doravante, descer a algumas considerações sobre o que é ler e quais são as
competências, os conhecimentos que constituem a condição de possibilidade para que
o leitor se torne um leitor proficiente na prática de leitura. Não pretendo
levar à exaustão o tratamento que dispensarei sobre essas competências e
saberes. Oferecerei tão-só um quadro teórico consistente com o que nos ensinam
os estudos desenvolvidos na área da Linguística Textual.
Começarei,
pois, por responder à questão: o que é
ler? Ler é um processo
interativo, sociocognitivo-interacional de produção de sentidos, não só porque
o leitor precisa mobilizar um conjunto vasto de saberes a fim de construir a
coerência para um texto, mas também porque a coerência ou os sentidos são
construídos na interação entre o leitor, o texto e o autor. Sem que o leitor e
o autor partilhem mutuamente uma quantidade de conhecimentos, a reconstrução do
sentido cuja realização compete ao leitor se torna dificultosa e, em alguns
casos, impossível. Para ser bem-sucedida, a leitura precisa apoiar-se numa base
de conhecimento de mundo partilhado entre o leitor e o autor do texto.
A
leitura também é uma atividade estrategicamente orientada, porque, ao ler, o
leitor tem sempre em mente certos objetivos a serem atingidos, para o que, além
de mobilizar uma série de conhecimentos armazenados em sua memória, precisa
lançar mão de uma série de estratégias
sociocognitivas pelas quais ele realiza vários passos interpretativos
finalisticamente orientados, efetivos, eficientes, flexíveis e muito rápidos. Estas estratégias se subdividem em: estratégias cognitivas e estratégias metacognitivas. As estratégias
cognitivas são de natureza inferencial e inconsciente. Elas recobrem os
procedimentos através dos quais o leitor, utilizando os elementos formais
presentes na superfície do texto, faz ligações semânticas entre esses
elementos, ou entre eles e os saberes prévios que ele, leitor, possui. Inferência é
a operação pela qual, valendo-se de seu conhecimento de mundo, o receptor
(leitor/ interlocutor) de um texto estabelece uma relação não-explícita entre
dois elementos (normalmente frases ou trechos) textuais, ou entre esses
elementos e os conhecimentos necessários à sua compreensão. A inferenciação é uma atividade
linguístico-cognitiva básica no processo de compreensão textual. Ao
interagirmos socialmente por meio de textos, não nos limitamos a apreender os
conteúdos proposicionais dos enunciados a que somos expostos, mas, a todo
momento, estamos derivando deles, com base no diversificado conjunto de saberes
de que dispomos, conteúdos implícitos. A inferenciação é, particularmente, a
atividade que está na origem dos fenômenos de pressuposição e subentendido. As
estratégias cognitivas permitem também que o leitor construa a coerência local
do texto, reconhecendo as relações coesivas que se estabelecem entre os
elementos sequenciais ali existentes. Por seu turno, as estratégias metacognitivas permitem o estabelecimento dos objetivos
na leitura. Por meio delas, o leitor controla e regula o próprio conhecimento
que vai adquirindo ao longo da leitura. Por exemplo, ele é capaz de saber se o
que vem estudante até o momento é suficiente para uma adequada compreensão do
assunto. Ao refletirmos sobre a extensão e a quantidade do conhecimento
alcançado, valemo-nos de um conhecimento ou estratégia metacognitivo, ou seja,
de uma competência adquirida pela reflexão sobre o próprio saber.
Para
que haja compreensão mútua entre os interlocutores, numa atividade
comunicativa, é preciso que os seus contextos
sociocognitivos sejam, ao menos, parcialmente semelhantes. Os contextos sociocognitivos recobrem os
conhecimentos enciclopédio, sociointeracional, procedural, textual,
comunicativo, linguístico, ilocucional que os interlocutores previamente
possuem e que precisam ser, em parte, compartilhados para que haja compreensão.
Numa perspectiva sociocognitivo-interacional da produção de leitura, contextos são constructos mentais ou
modelos mentais; são constructos subjetivos e socialmente fundamentados,
elaborados pelos interactantes (no caso o leitor e o autor), e que dizem
respeito às propriedades da situação que eles supõem relevantes. Assim,
compreender um texto envolve a capacidade de o leitor construir um modelo mental adequado e coerente com
os modelos de mundo textualmente representados. Os contextos permitem e
condicionam a produção e compreensão dos textos falados e escritos. Contextos constituem o conjunto das
suposições, baseadas nos saberes diversos dos interlocutores (leitor/ receptor/
produtor/locutor), que são mobilizados para a interpretação e a compreensão de
um texto. Nossa autobiografia, a acumulação de experiências pessoais são uma coleção de modelos mentais. Modelos mentais são as representações
cognitivas de nossas experiências. Por seu turno, modelos de contexto são tipos especiais de modelos mentais. Eles
recobrem a maneira como experienciamos, construímos, definimos ou interpretamos
o que está acontecendo no momento em que estamos participando de um evento
comunicativo.
Quer
na leitura, quer em qualquer outra prática interacional, cada um dos
interlocutores traz consigo um contexto
sociocognitivo. A cada momento da prática de leitura ou da interação (na
conversação do dia a dia, por exemplo), esse contexto é modificado, ampliado, e
o leitor/locutores precisam ajustar seu contexto aos novos contextos que são
ativados e se originam na prática de leitura ou no intercurso da conversação. A
prática de leitura, portanto, é um processo
durante o qual o leitor está ativamente engajado num trabalho de interpretação
e compreensão do texto, levando em conta, para tanto, seus objetivos, seu
conhecimento sobre o assunto abordado pelo texto, sobre o autor, sobre a
linguagem, etc. O leitor, ao ler, assume uma atitude responsiva ativa, ou seja, ele concorda ou não com as ideias, os
argumentos do autor, completa-os, adapta-os, etc., porquanto, como diz Bakhtin, toda
compreensão é prenhe de respostas; toda compreensão é produção de respostas, de
significações. A leitura, portanto, é uma atividade que requer estratégias de
seleção, antecipação, inferência e verificação, por meio das quais o leitor
busca realizá-la da forma mais bem-sucedida possível. Sem essas estratégias,
não é possível atingir a competência na leitura. Essas estratégias é que vão
permitir ao leitor controlar o que está lendo, vão permitir a ele tomar
decisões em face das dificuldades pontuais de compreensão, vão possibilitar-lhe
a busca de esclarecimentos que contribuam para validar no texto as hipóteses
feitas por ele.
A
compreensão de um texto não exige que os conhecimentos ativados pelo texto e os
que o leitor têm armazenado em sua memória coincidam, mas que possam interagir
dinamicamente. Assim, tanto para a produção quanto para a compreensão de
textos, recorremos a três sistemas de conhecimento:
1) conhecimento linguístico;
2) conhecimento de mundo (ou enciclopédico);
3) conhecimento interacional.
O
conhecimento interacional subdivide-se em:
1)
conhecimento ilocucional;
2)
conhecimento comunicacional;
3)
conhecimento metacomunicativo;
4)
conhecimento superestrutural.
Os
contextos sociocognitivos subsumem todos os tipos de conhecimentos arquivados
na memória dos atores sociais, que necessitarão mobilizá-los, por ocasião da
interação verbal (o que inclui a leitura, que é uma forma de interação verbal).
1)
o conhecimento linguístico;
2)
o conhecimento de mundo, quer declarativo (que adquirimos já pronto, pelos
livros, pelo que nos ensinam os professores, etc.), quer episódicos (frames, scripts), que são adquiridos em
nossas experiências sociais de diversas situações e eventos da vida cotidiana;
3)
o conhecimento da situação comunicativa e suas regras (situcionalidade);
4)
o conhecimento superestrutural ou de tipos e gêneros textuais;
5)
o conhecimento estilístico ou o conhecimento das variedades da língua e sua
adequação às diferentes situações de interação;
6)
o conhecimento de outros textos que circulam em nossa cultura (intertextualidade).
Interpretar é uma
atividade interativa, demasiadamente complexa de produção de sentidos, dado que se realiza com base nos elementos
linguísticos presentes na superfície textual e na sua estrutura formal, e
demanda a mobilização de um vasto conjunto de conhecimentos e sua reativação,
reconstrução ao longo do evento comunicativo (ou da leitura).
No
âmbito dos estudos em Análise do Discurso, Eni P. Orlandi ensina que ler são
significa poder produzir qualquer sentido. Embora os sentidos possíveis para um
texto sejam muitos, não pode ser qualquer um. Segundo a autora, “ninguém lê num
texto o que quer, do jeito que quer e para qualquer um. Tanto quanto a
formulação (emissão), a leitura (compreensão) é também regulada. No entanto, ler (...) é saber que o sentido
pode ser outro”. (2012, p. 15).
Qual
é, então, o critério que nos permite determinar quais sentidos são possíveis e
quais não o são? Só a referência à história, diz Orlandi, permite determinar se
a compreensão do leitor foi insuficiente, dadas as possibilidades de sentido
previstas pela história de leituras para aquele texto, ou se as excedeu. Na
multiplicidade de sentidos possíveis atribuíveis a um texto, há uma determinação histórica que faz com que
só alguns sentidos sejam “legíveis”, “lidos” e outros não. O modo de produção
da linguagem é inerente ao modo de produção social. Todo texto “guarda” uma
história de leituras e de sentidos que irá determinar até onde pode ir o leitor
em sua leitura.
4.1. A competência intertextual
Um
leitor competente é aquele que também é capaz não só de identificar as relações
intertextuais, a presença de outros textos no texto cuja leitura ele realiza,
mas também de considerar as razões e a finalidade para a escolhas intertextuais
feitas pelo autor. O leitor deve ser capaz, portanto, de responder à questão: por que e para que o autor citou tal ou
qual texto, por que e para que aludiu a tal ou qual texto? Reconhecer o
caráter intertextual de todo texto implica perguntar-se sobre as funções
discursivo-argumentativas desempenhadas pelos outros textos que, incorporados
explicitamente ou mencionados implicitamente, constituem a tessitura de todo e
qualquer texto. Todo texto é um
intertexto.
A
intertextualidade é, portanto,
constituinte do processo de escrita e leitura. Por intertextualidade, entende-se as
diversas maneiras pelas quais a produção e interpretação de um dado texto
depende de conhecimentos de outros textos que o leitor precisa ativar. A
intertextualidade recobre um processo dialógico dos textos entre si, pois que
recobre os diversos tipos de relações que um determinado texto mantém com
outros textos. Todo texto é um
intertexto.
A
intertextualidade pode ser explícita,
caso em que se verifica a citação da fonte do intertexto (este texto é um
grande intertexto, um tecido composto por outros textos). São exemplos de
intertextualidade explícita: discursos
relatados como citações, referências; resumos e traduções; retomadas de textos
do interlocutor para encadear sobre eles ou questioná-lo na conversação. A
intertextualidade pode ser também implícita.
Nesse caso, a presença de outros textos se dá sem citação expressa da fonte,
exigindo do leitor a capacidade de recuperá-la na memória para construir o
sentido do texto. São exemplos de intertextualidade implícita: as alusões, a paródia, certos tipos de
paráfrases e ironias.
Finalmente,
em sentido amplo, a intertextualidade é um fenômeno
constitutivo de todo e qualquer texto; é um componente discursivo das condições
de produção de todo texto. Ela é a condição mesma de possibilidade de
existência dos textos, já que há sempre um já-dito, um dito prévio a todo dizer.
Todo texto é um mosaico de outros textos, de citações, de outros dizeres que o
antecederam e que lhe deram origem, a partir dos quais ele se constitui e aos
quais responde de algum modo.
Palavras Finais
Integrar
a experiência de leitura e, mormente, meu hábito diário de leitura ao domínio
das vivências cotidianas estruturadas pelo senso comum não é, para mim, uma
tarefa fácil. Não só porque, como este texto procurou mostrar, o mundo do
leitor resiste a toda tentativa de ser assimilado pelos esquemas de percepção e
compreensão próprios do senso comum, como também, sobretudo, porque a vida
cotidiana se me afigura o modo mais límpido e cristalino de expressão da
banalidade, da vanidade, da insignificância radical da existência. Tudo que os
homens fazem no cotidiano, na azáfama da vida diária, tem esse caráter de loucura
reprimida, de absurdidade sistematicamente recusada, de nadidade mantida sob os
disfarces de suas ficções culturais e simbólicas. Apercebendo-me da vaidade de
todas as coisas que os homens realizam sob o sol, devo igualmente reconhecer
que também aquilo que mais amo fazer - que é ler e escrever - cai sob esse
imperativo irrecusável: tudo é vaidade!
Não é que me doa a insignificância última de todas as coisas em face da mais
aguda consciência da inexorabilidade do túmulo, nem tanto os reveses da sorte
que podem nos tornar prematura e mortalmente enfermos; o que me atormenta é ver
tantas vidas que são privadas, seja pelas aleatoriedades naturais de uma gestação
infeliz, seja por uma ordem socioeconômica injusta e perversa, de florescer, de
se desenvolver, de participar dos processos de produção humanos deste mundo frágil
com suas agitações, com seus estalidos, com seu burburinho no pavoroso silêncio
da indiferença abissal do universo. No final das contas, viver é experienciar
tudo que se nos dá neste domínio banal e irrecusavelmente real do cotidiano
atarefado, das festas, viagens, bebedeiras, do consumo de bens e serviços, da
geração e criação dos filhos, do tempo consumido no sofá diante da televisão ou
em frente à tela de um celular... Viver, para a maioria esmagadora dos seres
humanos, é consumir o corpo e a própria vida para ganhar dinheiro e subsistir
até que adoeçam gravemente e morram num dia qualquer, para serem enterrados talvez
numa tarde chuvosa entre choros, gemidos e o silêncio indiferente do universo...
E tudo isso não significa absolutamente
nada... Porque “a vida é apenas uma
sombra que passa, um pobre bobo que se pavoneia e se exalta uma hora sobre o
palco e depois não se ouve mais, uma história contada por um idiota, cheia de
barulho e fúria, e que não quer dizer nada”. (Macabeth).