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quinta-feira, 22 de outubro de 2015

"Se os macacos chegassem a experimentar tédio, poderiam tornar-se gente." (Goethe)

                                 
                         


                           A experiência do Tédio
                              O Dasein e o mundo


1. Prelúdio
O aparecimento do mundo

Nossa mais primitiva forma de nos relacionarmos com o mundo se realiza através do corpo. Piaget identificou como período sensório-motor a fase que se estende desde o nascimento da criança até seus dois anos de vida – fase em que a criança começa a formar uma noção de “eu”, graças à qual ela se diferencia do mundo externo. O “eu”, na verdade, tem como centro gravitacional o corpo. A criança se apercebe como um corpo próprio distinto do mundo. Essa fase é caracterizada, fundamentalmente, pela ausência da função semiótica. É interessante notar que, para Piaget, a criança nasce num universo que se lhe apresenta caótico, preenchido por objetos que deixam de existir quando fora do campo da percepção. O espaço e o tempo são subjetivamente sentidos, e a causalidade é reduzida ao poder das ações. A criança explora o ambiente em que se encontra através das mãos e da visão. A experiência que obtém depende das ações num processo de imitação. Sua inteligência é prática: as ações precedem o pensamento. Mas uma grande transformação acontece quando a criança começa a desenvolver sua capacidade de linguagem. A aquisição da linguagem, segundo Piaget, tem início no final do período sensório-motor, quando a criança conta entre 3 e 4 anos. Evidentemente, a aquisição da linguagem é um processo de maturação, que envolve estágios, muito embora esse processo se desenvolva muito rapidamente acarretando um desenvolvimento cognitivo exponencial na criança. Com o desenvolvimento da linguagem, o que outrora lhe era caótico, torna-se dotado de ordem e significado: é a relação da criança com o mundo que se transforma radicalmente. É evidente que ela não deixa de relacionar-se com o mundo por meio de seus cinco sentidos e pelas ações de seu corpo. O processo de cognição é um processo corporificado e dependente das relações com outros. A cognição não é uma coisa que acontece na subjetividade dos indivíduos, mas é, fundamentalmente, cognição social, uma atividade que acontece entre indivíduos que atuam reciprocamente. Não obstante continuarmos até a morte a nos relacionar com o mundo através de nosso corpo, com o desenvolvimento da capacidade da linguagem articulada, a própria relação com o mundo assentada no corpo se transforma. O que entendo aqui por cognição é todas as atividades mentais associadas com o pensamento, com o conhecimento, com a memória e com a linguagem.
É por hábito que uso a palavra “mundo”, quando considero o desenvolvimento da criança antes do advento da capacidade linguística. Na verdade, não há mundo fora da linguagem ou antes da linguagem. O mundo não é uma coleção de coisas ou, pelo menos, não se reduz a uma coleção de coisas. Não nego que haja coisas no mundo (há este livro, aquela cadeira, aquela árvore, aquele rio, etc.). Mas este mundo mobilhado permanece imerso num breu impenetrável para nós antes que sejamos capazes de semiotizá-lo. A linguagem é a própria clareira à luz da qual o mundo aparece para nós como uma totalidade significativa. É forçoso protelar, por alguns instantes, o desenvolvimento de minha compreensão do conceito de mundo, para retomar o conceito de cognição em sua relação com a linguagem.
Devemos, pois, ter em conta que os processos cognitivos têm uma gênese sócio-cultural, não simplesmente biológica, pré-fixada. Os processos cognitivos, ademais, são objetos da consciência. Eles são mediados por instrumentos culturais e simbólicos. Quando nos referimos à cognição, pretendemos designar o processo de aquisição de conhecimento  que se dá pelo concurso da percepção, memória, raciocínio, imaginação e linguagem. Não menos importante é reter que, desde muito cedo, os signos inserem a criança no mundo social e organizam a experiência e a conduta delas; por seu turno, a criança torna-se capaz de engendrar linguística e cognitivamente o mundo, atuando sobre ele.
O que chamamos “mundo” não existe sem que ele seja estruturado pela dimensão simbólica. Esta dimensão não preexiste ao homem, mas é fundante do mundo pelo advento do homem. O simbólico, segundo Vygostky, recobre a construção de representações e a operação sobre elas, transformando a experiência humana com o real em conceitos, por meio dos quais o mundo é classificado e categorizado.
Para Vygotsky, é o significado das palavras que permite a elaboração de conceitos e de sistemas conceituais, de complexidade crescente de cadeias de pensamento. Lembro que o acesso ao significado das palavras é o momento de transição feita pela criança da inteligência prática – sensório-motora, para Piaget – aos complexos processos de pensamento.
Ainda com base em Vygotsky, uma vez que a natureza da linguagem é significar, segue-se daí que o desenvolvimento do pensamento conceitual é determinado pela linguagem, no curso das experiências sócio-culturais em que a criança está envolvida. Vygotsky percebeu bem que o significado é um elemento necessário e constitutivo da palavra e que a palavra sem significado não é palavra, mas um som (como são os fones de uma língua). Ademais, ele via o significado de uma palavra como uma generalização e, como tal, não era senão um conceito. A generalização é o próprio processo de formação de conceito, segundo Vygotsky, no que estamos de acordo. É um ato inegável e específico de pensamento. É forçoso, portanto, reconhecer que o significado da palavra, ou o conceito, é também um fenômeno do pensar.
As coisas que se dão em nossa experiência sensível não seriam totalmente conhecidas se não fossem reconhecidas pelo pensamento humano fundado no signo. Antes da aquisição da linguagem ou durante o desenvolvimento do processo, a criança já está sendo moldada pelas palavras dos adultos. Ainda que, nesse período, a imagem e a palavra se confundam para a criança, a palavra confere à imagem significado.
Quando as coisas são nomeadas pela palavra, ela liga a ordem do real (das coisas sensíveis) à ordem simbólica (das coisas para si), tornando aquela primeira ordem pensável e comunicável. Vale ponderar sobre este ponto. Não se negue a existência das coisas sensíveis, mas se rejeita a preexistência de uma ordem de coisas sensíveis. A totalidade das coisas sensíveis só se torna inteligível, só pode ser submetida aos processos de pensamento, quando a palavra ou a linguagem verbal lhe impõe uma ordem significativa. Somente quando essa totalidade sensível é estruturada numa ordem simbólica é que passa, então, a entrar a fazer parte da consciência humana como conhecimento.
Vygotsky nos mostra que o processo de internalização da linguagem faz confluir para um mesmo sentido o mundo biológico e as referências do mundo sócio-cultural. Esse processo desencadeia mudanças na relação do sujeito com a linguagem; marca as impressões culturais nos processos cognitivos, conferindo-lhes uma dimensão humana e estruturando a consciência e a cognição infantil.
O que é o mundo humano senão um sistema de significados? (Azeredo, 2007, p. 17).[1]
A linguagem, tal como a venho pensando aqui, é uma capacidade humana natural e mental que se acha articulada com outras funções cognitivas, tais como pensamento, memória, aprendizagem, inteligência, entre outras. A linguagem, segundo Chomsky, é a porta de acesso à compreensão da cognição humana. Nesse sentido, o estudo da linguagem possibilita a compreensão do funcionamento da mente.
Benveniste, em Problemas de Linguística Geral I (1989), chama-nos a atenção para a natureza fundante da linguagem:

“Por que o indivíduo e a sociedade juntos e por qual necessidade se fundam na língua? Porque a linguagem representa a mais alta forma de uma faculdade que é inerente à condição humana, a faculdade de simbolizar. Entendamos por aí, muito amplamente, a faculdade de representar o real por um “signo” e de compreender o “signo” como representante do real, de estabelecer, pois, uma relação de “significação” entre algo e algo diferente (...) A transformação simbólica dos elementos da realidade ou da experiência em conceitos é o processo pelo qual se cumpre o poder racionalizante do espírito. O pensamento não é um simples reflexo do mundo; classifica a realidade e nessa função organizadora (ênfase minha) está tão estritamente associado à linguagem que podemos ser tentados a identificar pensamento e a linguagem sob esse aspecto”. (1989, p. 30) (grifos meus).


Volvemos nossa atenção para o que é o mundo. Numa perspectiva à luz da qual o mundo é resultado de uma construção para a qual concorre a percepção-cognição, a linguagem e a cultura, deve-se rejeitar a ideia de um mundo já dado, ordenado e preexistindo ao homem. Que as coisas estejam aí e que nós habitamos em meio a elas não se coloca sob suspeita. A questão sobre o que é o mundo situa-se para além de nossa experiência imediata com ele. Nós nos habituamos a nos relacionar com o mundo enquanto uma totalidade de coisas já constituída. Husserl chama de mundo da vida o mundo da experiência humana considerado anteriormente a qualquer tematização conceitual. O mundo da vida é aquilo que se aceita, que se toma como dado, como pressuposto, constituindo nossa experiência cotidiana. O mundo da vida é o real em seu sentido pré-teórico, pré-reflexivo. Portanto, ao aventarmos a questão sobre o que é o mundo, estamos já formulando uma tentativa de teorizá-lo. A questão sobre o mundo retira-nos desse mundo da vida para nos lançar no domínio da reflexão sobre o que é mundo. Há algo, mas antes do advento do sentido não sabemos o que é algo. Ao nomear, o homem traz à existência as coisas. Vemos uma queda d’água. Algum tempo depois, ao retornar ao lugar, não a encontramos mais: o lugar permanece, pela memória identifico o ambiente em que antes me encontrara; mas não vejo mais a queda d’água. Se tudo muda no mundo, o que nos garante a permanência das coisas é a linguagem. Se disponho de uma palavra como “cachoeira” para designar aquele fenômeno que outrora percebi, mesmo na sua ausência, posso referir-me a ele, pensá-lo, torná-lo objeto de comunicação. O mundo natural, embora não seja fabricado pelo homem, não existe sem o investimento simbólico. É preciso nos prevenir contra a ideia ingênua de que a existência para o homem se reduza a estar em contato com as coisas, a estar no mundo em meio às coisas. A existência humana é atravessada pela dimensão simbólica: o homem existe numa rede de significados que ele mesmo constrói. Não há existência possível para o homem fora da dimensão simbólica: tudo que existe para o homem tem um nome. Aquilo que não tem nome, em última instância, não existe, tanto no mundo exterior quanto no mundo interior da mente. O que não tem nome não pode ser pensado; e se não pode ser pensado, não existe. Aquela árvore, aquela cachoeira, aquele rio não sei o que são, antes de nomeá-los como tais. O mundo é uma totalidade ordenada de significados. O mundo é tudo aquilo que pode ser dito; é a totalidade ordenada passível de ser nomeada, de modo que as coisas só podem existir para uma consciência humana na medida em que são passíveis de receber um nome. 
Considerando o transtorno da depressão, a psiquiatra Maria Rita Kelh faz menção à ideia de “rede de sentido e amparo”, ao observar o rompimento dessa rede pela depressão. Ora, nossa relação com o mundo, nossa existência é constituída dessa rede de sentido e amparo. É oportuno citar as palavras da autora, já que, além de corroborar minha compreensão do que é o mundo até o presente momento, encaminhará minhas considerações ulteriores acerca dele:

“A depressão é o rompimento desta rede de sentido e amparo: momento em que o psiquismo falha em sua atividade ilusionista e deixa entrever o vazio que nos cerca, ou o vazio que o trabalho psíquico tenta cercar. É o momento de um enfrentamento insuportável com a verdade. Algumas pessoas conseguem evitá-lo a vida toda (...)”.[2]

A psicanalista também se refere à ausência de sentido da vida e a brevidade de nossa vã existência. Ademais, nota que é pela multiplicidade de nossos laços libidinais que “tecemos uma rede de sentido para a existência”. Não estou interessado nas questões psicanalíticas suscitadas por esse passo. Interessa-me, na verdade, a ideia de que somos nós, seres humanos, que construímos uma rede de significados que constitui a totalidade do que chamamos de mundo. No entanto, o mundo, tomado em si mesmo, não está ordenado em significados, sequer se pode dizer que seja ele a manifestação exterior de uma natureza que lhe é subjacente. Em outros termos, não há uma natureza (essência) dada, um ser que as aparências escondem. Deve-se rejeitar a visão de que o mundo seja dotado de significado a partir de uma dimensão ontológica. Na contracapa de Antinatureza: elementos para uma filosofia trágica (1989), Rosset convida-nos a uma aprovação trágica da existência que consiste em prescindir de qualquer referencial ontológico:

“Aprovar a existência é aprovar o trágico: consentir em uma intangibilidade da existência em geral que as noções de acaso, artifício, facticidade, não-duração, descrevem cada um em seu nível conceitual. É também renunciar a toda exigência de ser para além da soma das existências. Ser e trágico opõe-se tal qual o não e o sim, a denegação e a afirmação, a necessidade e o acaso, a natureza e o artifício. O trágico da existência é o prescindir de qualquer referencial ontológico – ‘não nos comunicamos com o ser – diz Montaigne; todavia, seu privilégio é, paradoxalmente, ‘ser’. Por isso a existência somente é aprovada se simultaneamente for aprovado o caráter factício e artificial: ou a aprovação é trágica, ou não há aprovação”.


A natureza ou phýsis deve ser aqui entendida como a Ordem do mundo, uma lei que rege todos os fenômenos. Trata-se de uma natureza universal a partir da qual a vida se organiza. É ela que faz crescer, brotar, nascer tudo que há. Para Rosset, é necessário desaprender a ver o mundo como uma totalidade ordenada segundo uma natureza que lhe subjaz. Por isso, o autor escreve:

“Considerar o mundo independentemente da ideia de natureza significa generalizar uma experiência de desaprendizagem que a maioria dos poetas recomenda a todos que desejam reencontrar um contato “ingênuo”, ao mesmo tempo novo e original, com a existência – contato gerador desta “emoção” diante das coisas de que fala F. Garcia Lorca, e que supõe o esquecimento fulgurante das redes de significação tramadas pelo costume e pelo hábito. (p.49) (grifo meu).


Reencontrar o contato ingênuo com a existência é tornarmo-nos capazes de ter a experiência do espanto em face do real. Mas essa experiência supõe que reconheçamos que as redes de significação de que se constitui a existência são “tramadas pelo costume e pelo hábito”; em outras palavras, são tramadas por nós, seres humanos, na vida em sociedade. Essas redes de significação não preexistem ao nosso advento no mundo.  O mundo é o caos – sustenta Nietzsche. A lógica do mundo não se encontra no mundo, mas em nós. Nós é que logicizamos o mundo.


2. Considerações filosóficas sobre o tédio.

Nesta seção, atacarei o problema que me interessará, de fato, neste texto. As considerações preliminares serviram-me para melhor situá-lo. Espero que o leitor não encontre demasiada dificuldade para apreender a conexão entre essa segunda etapa do texto e a primeira, na qual revistei, em linhas gerais, a problematicidade da relação entre linguagem e mundo. Estou especialmente interessado em discutir o modo como Heidegger elabora sua compreensão do tédio. Não obstante, começarei referindo as palavras de Schopenhauer que já introduz algumas dimensões da significatividade do tédio que não poderiam ser ignoradas para efeito de discussão. No livro As dores do mundo (2014), Schopenhauer traça-nos a imagem da condição existencial do homem ocupado. Leia-se o excerto abaixo:

“O que ocupa todos os seres vivos e os conserva em sua contínua atividade é a necessidade de assegurar a existência. Mas feito isso, não sabem que mais hão de fazer. Assim, o segundo esforço dos homens é aliviar o peso da vida, tornar-se insensível, matar o tempo, isto é, fugir ao aborrecimento. Vemo-los, logo que se livram de toda miséria material e moral, logo que sacudiram dos ombros todos os fardos, tomarem sobre eles mesmos o peso da existência, e considerarem um ganho toda hora que têm conseguido passar, ainda que no fundo ela seja tirada dessa existência, a qual se esforçam por prolongar com tanto zelo. O aborrecimento não é um mal para desdenhar: que desespero faz transparecer no rosto! Faz que os homens, que se amam tão pouco uns aos outros, se procurem com tanto entusiasmo; é a origem do instinto social. O Estado considera-o como uma calamidade pública, e por prudência toma medidas para combatê-lo”. (2014, p. 34).


A leitura deste trecho não pode dispensar de articular as seguintes ideias. Em primeiro lugar, todos os seres vivos, entre os quais o homem, se ocupam, primordialmente, de assegurar sua sobrevivência. Garantir a sobrevivência é a atividade comum ao homem do cotidiano: o mundo da vida encontra nessa atividade seu modus operandi. Em segundo lugar, ocorre que, após realizar o trabalho que visa a garantir a subsistência, o homem se vê esmagado pelo peso da existência. Sua segunda tarefa consistirá em aliviar-se desse peso. Como o faz? Entretendo-se. Não encontrando mais nada que fazer, o homem se impõe a necessidade de escapar ao aborrecimento, isto é, ao tédio. Ele irá buscar meios para distrair-se da tediosa condição que é a sua, a saber, a de um existente. Estranhamente, a despeito do peso da existência, o homem preocupa-se em prolongá-la “com tanto zelo”. Para escapar ao desespero inerente à sua condição, os homens procuram uns aos outros, isto é, entregam-se à sociabilidade mesmo que “se amem tão pouco”. Para Schopenhauer, parece claro que os homens só constituíram a sociedade a fim de escapar ao aborrecimento e ao desespero inerente à sua condição. O Estado não pode permitir que os homens sejam abandonados a seu desespero, pois homens desesperados são muito suscetíveis à revolta contra a ordem que, na lucidez do desespero, pode revelar-se-lhes absurda e opressiva. Por isso, o Estado precisa sempre vigiar os homens e cuidar para que eles se mantenham domesticados e ocupados de tal modo, que não venham a se conscientizar do desespero de sua condição.
O homem ocupado é aquele que permanece fugindo ao tédio e ao desespero. Ele não está ocupado, propriamente, com a sua existência, com a sua condição enquanto existente, pois isso significaria ter de lidar com a vacuidade, com o vazio, com a fragilidade da rede de significados que dota o mundo de uma “ordem” e que sustenta a existência.
Em A filosofia do tédio (2006), o filósofo Svendsen desenvolverá uma compreensão do tédio como perda de significado. Vou-me ocupar de esclarecer essa compreensão. O tédio compreendido como uma perda de significado evoca-nos o que eu expus, na primeira seção, sobre o mundo como uma totalidade de significados. Acompanhemos o que nos escreve o autor:

“O homem é viciado em significado. Todos nós temos um grande problema. Nossas vidas têm deter alguma espécie de conteúdo. Não suportamos viver sem algum tipo de conteúdo que possamos ver como constituidor de significado. E o tédio pode ser descrito metaforicamente como perda de significado. O tédio pode ser compreendido como um desconforto que comunica que a necessidade de significado não está sendo satisfeita” (p. 32).


Cuido estar suficientemente clara a ideia de que o homem está condenado a significar. A condição para que o homem prolongue sua existência é que esta continue sendo fonte de significados. O que ocorre no tédio é que o homem experiencia a escassez da produção de significado. No tédio, homem reconhece a fragilidade da estrutura de significado que sustenta sua existência. Se ele crê que essa estrutura já está pronta, já está dada, cabendo-lhe apenas ajustar-se a ela, explorá-la, é possível que, no tédio, venha a suspeitar de sua solidez. Se, no entanto, não crê que essa estrutura seja preexistente e já constituída, é possível que, no tédio, reconheça não ser ela senão uma ficção que ele mesmo produz. Em qualquer dos casos, o homem precisa enfrentar a fragilidade dessa estrutura, que não resiste à própria fragilidade da vida.
Segundo Svendsen, no tédio, o homem experiencia o vazio do tempo como um vazio de significado. Ademais, o tédio tem a ver com a finitude e o nada. O tédio “é a morte em vida, uma não-vida” (p. 43).
Na perspectiva de Heidegger, o tédio é pensado a partir do conceito de humor. Os humores não devem ser reduzidos a estados psicológicos. Os humores são uma característica básica de nosso ser-no-mundo. Por conseguinte, segundo Svendsen,

“Uma mudança de humor deve, portanto, ser considerada também uma mudança no mundo quando operamos com um conceito de mundo como algo que pode ou não ter significado – pois não temos um mundo afetado para tomar como comparação, um mundo que não se deixasse atingir pela mudança de humor” .(p. 141).

O humor não é simplesmente um estado interno ou subjetivo que se projeta sobre o mundo. O humor modifica o próprio mundo. Se assumimos que o significado do mundo é construído pelo homem, então esse mundo pode ou não ter significado. O humor afeta o mundo como um todo e nossa relação com ele. Justamente porque é extensivo à totalidade do mundo, o humor difere da emoção. Emoções não são, necessariamente, gerais. Ademais, o humor pode durar por um tempo maior que a emoção. O humor também não tem objeto intencional; ao contrário, a emoção o tem.
O tédio será um humor, quando o mundo inteiro nos parecer entediante. O tédio que me interessa, para efeito de reflexão, é o tédio existencial, que pode assumir a forma de tédio profundo. Mas, ainda no que toca ao humor, é necessário frisar que encontrar-se num determinado humor não é apenas uma determinação ontológica do homem. Humores formam uma moldura básica para o entendimento e a experiência. Temos diferentes experiências de tempo dependendo do humor em que nos encontramos. Quando nos encontramos situacionalmente entediados, desejamos a supressão do presente, queremos escapar do lugar onde estamos. Portanto, diferentes humores são responsáveis por diferentes experiências de espaço também.
No tédio existencial, o tempo implode, torna-se uma espécie de presente eterno e enfadonho. Todo nosso ambiente perde sua vitalidade. E a diferença entre o próximo e o distante desaparece. No tédio, o indivíduo experimenta o desaparecimento das possibilidades que, quando se acha num humor adequado, se apresentam em número infinito.
Revisitando o pensamento heideggeriano sobre a estrutura existencial do Dasein, devemos lembrar que Dasein é um ser ocupado com o mundo. O Dasein é caracterizado por ser interessado em sua existência enquanto existente. O Dasein tem uma relação com sua própria existência. Ele também é um ser que tem uma compreensão de si mesmo, que se interpreta. Um humor pode abrir ao Dasein um horizonte de possibilidade de relacionar-se consigo. Trata-se, nesse caso, de um humor fundamental que o afeta a partir do mundo.
O exame dos humores pode revelar a disposição fundamental da existência humana, a saber, como ela deve estar no mundo. A disposição envolve sempre um descobrimento passivo do mundo feito pelo Dasein. A disposição não está sob seu controle. Mas é a disposição a condição necessária para que o Dasein perceba as coisas como significativas ou indiferentes. A disposição se revela através dos humores. Na verdade, são estes que revelam se alguma coisa tem significação para o Dasein.
A ideia de disposição consiste em que o Dasein já se encontra situado. Na disposição, o Dasein está aberto para o mundo. É necessário dizer que o humor é condição para o pensamento e a ação. Pelos humores, o Dasein vê seus próprios projetos. O humor o põe em contato com o mundo.
Para Heidegger, o tédio é um humor fundamental que nos conduz para a problematicidade do ser e do tempo. Como é a experiência do tempo no tédio? O tempo, no tédio, parece não passar como de costume. No tédio, experimentamos a realidade do tempo. O significado da vida se esfacela. E o Dasein perde sua relação com o mundo. Não lhe resta senão o nada, “uma falta que engloba tudo” (Svendsen, p. 140).
“(...) O Dasein é aprisionado no tempo, abandonado num vazio que parece impossível preencher. Ele fica entediado porque falta à vida um propósito e um significado; e a tarefa do tédio é atrair nossa atenção exatamente para isso”. (ib.id.).


Como se pode inferir da passagem acima, o tédio pode ser uma experiência de elucidação: no tédio, somos despertados para a insignificância de tudo. O homem entediado torna-se homem esclarecido sobre sua condição existencial no mundo: o mundo, em si, é desprovido de significado e a rede de significados que sustenta a existência é frágil. Por outro lado, o tédio não deixa de ser desumanizador, porque priva a vida humana do significado que a estrutura. Portanto, segundo Svendsen, “no tédio, há uma perda de mundo”, e “o Dasein torna-se empobrecido de mundo” (ib.id.). O tédio, tal como venho descrevendo-o, não é situacional, mas deve ser encarado como “um dado incontornável, como a própria gravidade da vida”. (p. 169).


2.1. Heidegger e a questão do tédio


Doravante, deter-me-ei a considerar, com mais acuro, a compreensão heideggeriana do tédio. Heidegger é mais conhecido por sua preocupação com o tema da angústia do que com o tema do tédio. Não obstante, não se deve daí concluir que ele estivesse desinteressado de pensar o tédio. Heidegger empreendeu uma análise de uma série de humores diferentes.
Ele insistia na necessidade de despertar um humor fundamental para a filosofia. Isso que deve ser despertado está, portanto, adormecido. O que ele quer despertar não é senão o tédio. O tédio dorme enquanto nos valemos de diversas formas para entretermo-nos cotidianamente. No entretenimento, o tédio fica adormecido. Mas por que deveríamos querer despertá-lo? Para Heidegger, é preciso despertá-lo porque só assim nós também seremos despertados. Os homens, segundo Heidegger, estão adormecidos em seus passatempos habituais. Heidegger via nesse sono comum a todos os homens na cotidianidade um caráter destrutivo. Adormecidos, os homens tornam-se incapazes de projetar-se para as suas verdadeiras possibilidades. Tais possibilidades se ocultam nos passatempos dos homens adormecidos. Segundo Svendsen,

“O principal problema com a vida real é que ela não nos dá acesso aos fundamentos da existência, uma vez que é uma vida que foge do fundamental. Viver é importar-se, especialmente, no sentido de facilitar as coisas para si escapando”. (p. 128-129).


A vida do homem do cotidiano assemelha-se à vida dos prisioneiros da Caverna de Platão; mas, no caso do homem do cotidiano, a verdade que lhes está oculta é a verdade sobre a sua condição enquanto ser-no-mundo. Consoante Heidegger, experiências como a angústia e o tédio provocam no homem a necessidade de reagir, visto que nelas o homem não pode mais relacionar-se confortavelmente com o mundo. O homem se vê lançado brutalmente de volta para si mesmo. Heidegger diz haver várias formas de tédio. Num extremo, há o tédio superficial; noutro, o tédio profundo, que atinge o próprio fundamento do Ser. É possível, segundo Heidegger, que sejamos lançados ao tédio profundo pela experiência do tédio superficial.
Retome-se a ideia de divertimento como meio de fugir ao tédio. Pascal expressa bem essa ideia no seguinte trecho:

“O único bem dos homens consiste, pois, em divertir o pensamento de sua condição, ou por uma ocupação que dele os desvie, ou por alguma paixão agradável e nova que os ocupe, ou pelo jogo, a caça, algum espetáculo atraente e finalmente por aquilo a que se chama divertimento”.[3]


Neste passo, convém, para a satisfação dos meus propósitos, reter a ideia de que os homens, para escapar ao tédio, buscam o divertimento. É necessário que busquemos alguma coisa que nos prenda a atenção e que nos ajude a passar o tempo. O tempo é nosso grande inimigo quando nos sentimos entediados. Se olhamos continuamente o relógio num determinado momento, é sinal de que o tédio está se acentuando. Olhamos o relógio quase compulsivamente na esperança de perceber que o tempo passou, que passou mais rápido do que de costume. Sabemos, contudo, que, normalmente, ficamos desapontados.
No tédio, o que importa, o que nos aflige é o ritmo do tempo. No tédio, o tempo é lento, e essa lentidão mostra-nos que não dispomos de controle sobre o tempo.
No passatempo, importa-nos a ocupação. Nós nos mantemos ocupados porque queremos escapar ao vazio do tédio. Mas não será possível entediar-se fazendo alguma coisa? A resposta é sim. Heidegger distingue entre o entediar-se por alguma coisa e o entediar-se fazendo alguma coisa. O tédio profundo corresponde a esta última forma de tédio. Posso estar ocupado fazendo algo e, a posteriori, tornar-me consciente de que estava entediado. Nesse caso, experimento um vazio que se enraíza na temporalidade de meu próprio eu. Na forma profunda de tédio, é o próprio tédio que entedia.
No tédio profundo, sentimo-nos vazios tanto em relação às coisas que nos cercam quanto em relação a nós mesmos. No tédio profundo, o Dasein é abandonado à totalidade de ser que, no entanto, se retrai. As possibilidades genuínas do Dasein deixam de se realizar no tédio. Tudo se torna ao mesmo tempo indiferente e aborrecido em sua falta de significado. Eu mesmo me torno indiferente a mim mesmo. Sinto-me absorvido na vacuidade de ser eu. Segundo Svendsen, “o tédio revela um vazio, uma insignificância, em que todas as coisas são atraídas para uma indiferença geral”. (p. 139).
Para Heidegger, o tédio revela o puro ser. Compreendamos o que significa isso. Em primeiro lugar, o Dasein tende, em si mesmo, a viver na inautenticidade, estado em que se deixa dispersar-se em distrações. Heidegger está interessado em pôr a nu a sensação de terror em nós. O tédio, como vimos, tem o privilégio de nos despertar; mas nós despertamos assustados quando o tédio nos afeta. O Dasein não está confortável no mundo do tédio. No tédio, o mundo torna-se estranho e inóspito – o mundo deixa de ser um lar protetor e se torna ameaçador. No tédio, experienciamos o nada da realidade. Nossa relação normal com o mundo, com as coisas se rompe. O nada do tédio parece atrair completamente nossa atenção; só o nada do tédio nos interessa. No tédio, o significado das coisas é destruído, de modo que elas nos aparecem como efêmeras e vazias.
Cabe perguntar o que, então, resta ao Dasein? O Ser. Mesmo imerso completamente em nada, o Dasein é; e o ser pode, portanto, se revelar para o Dasein com toda a sua nudez insignificante. No estado inautêntico de ser, o verdadeiro caráter de ser é encoberto. Uma vez que se rompa a relação inautêntica e sem significatividade do Dasein com o mundo, somos despertados para uma relação autêntica com nós mesmos.
É mediante o colapso de todo significado estruturante de mundo que o Dasein se liberta de sua dependência de outros seres.  Ao menos, duas questões se nos apresentam prementes na abordagem heideggeriana do tédio – trata-se de questões que o próprio Heidegger não resolve: 1) De onde provêm os recursos que freariam a tendência do Dasein a cair no mundo?; 2) Será que o tédio pode nos permitir uma compreensão abrangente e profunda “do significado do Ser”?  Finalmente, poderíamos perguntar se não seria o tédio um problema que diz respeito à nossa vida concreta.






[1] Todo este trecho se acha no texto O domínio do simbólico, publicado neste blog. Nesse texto, empreendi uma discussão mais pormenorizada sobre questões que, nesta nova oportunidade, merecerão tão-só um tratamento tangencial.
[2] http://www.contioutra.com/depressao-um-enfrentamento-insuportavel-com-a-verdade/
[3] PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 50.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

"Tem a cada dia diante dos olhos a morte, o exílio e tudo o que parece assustador, principalmente a morte: jamais terás então qualquer pensamento baixo ou qualquer desejo excessivo". (Epicteto)

                               


                                A caminho da morte
                                  Confrontos filosóficos



Neste texto, pretendo apresentar e discutir o problema da morte, tal como dele se ocuparam Max Scheler (1874-1928) e Martin Heidegger (1889-1974), procurando assinalar pontos de proximidade e distanciamento entre as reflexões desenvolvidas por estes dois filósofos. Na primeira parte do texto, elucido a perspectiva de Scheler, à qual se seguirá uma breve crítica. Na segunda parte, dou a saber o modo como Heidegger desenvolve o tema da morte, tarefa à qual se seguirá também uma breve crítica.


1. Quem foi Max Scheler

Max Scheler (1874-1928) foi um filósofo alemão, nascido em Munique, que se notabilizou por ter adaptado o método fenomenológico de Husserl ao tratamento de questões de ética, teoria dos valores e da cultura, e antropologia filosófica. Na fase inicial de sua obra, foi um pensador católico. Sua concepção de ética se desenvolveu em oposição ao formalismo da ética kantiana, que deveria ser superada por uma apreensão vivida dos valores éticos e também estéticos, calcada sobre a fenomenologia.
Scheler integra-se ao círculo de filósofos da vida cujo pensamento se desenvolveu em oposição a algumas correntes do pensamento científico, as quais professavam um mecanicismo e um finalismo levados ao extremo. Essas correntes concebem a morte como um acontecimento mais ou menos catastrófico, externo ao indivíduo e semelhante a um acidente mecânico e artificial.


1.2. A visão naturalista da morte

Scheler se distancia do idealismo alemão, segundo o qual a morte não afeta o ser humano. Ao contrário, sustentará Scheler que todo ser humano se caracteriza essencialmente por um esgotamento interno dos agentes vitais dos quais depende o desenvolvimento da espécie. Assim é que a morte, na visão de Scheler, é um fenômeno ligado à essência do ser vivo. Ela faz parte da forma e da estrutura de toda a vida. A vida não pode, portanto, ser pensada sem a morte. Creio ser possível depreender daí, com Scheler, que pensar sobre a morte é pensar a vida, em sua totalidade. Quem se ocupa de refletir sobre a morte está ocupado com a reflexão sobre a vida.
A tese basilar endossada por Scheler é a de que a existência humana é orientada para a morte. Nesse sentido, Scheler pavimenta o caminho que será trilhado pelo pensamento de Heidegger, para quem também a morte não acontece como um acidente ou uma catástrofe, contrariamente ao que pensavam Lévinas e Sartre. Tanto Scheler quanto Heidegger estarão de acordo no tocante ao fato de que a existência humana é orientada para a morte: “Tão logo um homem chega à vida, ele está já bastante velho para morrer” – lembrará Heidegger. Mas a aproximação entre os dois cessa por aqui. Scheler pensa a morte no domínio ôntico; ao passo que Heidegger a pensará no domínio ontológico. A diferença entre os métodos adotados levará esses dois filósofos a resultados distintos.
Scheler rejeita o método experimental do empirismo clássico em seu trabalho de investigação do fenômeno da morte. Sua reflexão tanatológica dispensa uma discussão sobre as teses cartesianas ou kantianas, bem como rejeita uma compreensão fisiológica e psicológica da relação entre corpo e alma.
Ao se ocupar da atitude do homem moderno – um tipo coletivo - em face da morte, Scheler nota que esse homem nega, na realidade, a “essência e o ser da morte”, na medida em que se esquiva da certeza intuitiva de sua morte, deixando de viver “na presença da morte”. A morte é um a priori de toda observação e experiência indutiva. Ela imiscui-se em cada fase do desenvolvimento da vida. Scheler, assumindo que a existência do ser vivo tem necessariamente um conteúdo limitado, manterá que é a experiência de esgotamento do futuro e do aumento do passado que constitui a experiência íntima de nossa orientação para a morte.
O homem moderno identifica-se, para Scheler, ao homem do ocidente europeu, que se habitou a afastar de sua consciência a morte, considerando-a apenas um fato que, um dia, lhe acontecerá.

1.2.1 O conhecimento intuitivo da mortalidade


Reza o senso comum que eu chego à certeza de “minha morte” futura com base na experiência empírica, fundada na observação, ela mesma calcada sobre processos indutivos pelos quais da morte dos outros concluo que eu também deverei morrer. Scheler rejeita resolutamente essa visão, lançando-se à empresa, como faria mais tarde Heidegger, que consiste em buscar uma razão pela qual um homem solitário, que nunca tivesse observado o acontecimento da morte de outros – entendida como a transformação de um ser humano em cadáver – chegaria à certeza de sua condição mortal.
Tomando-se para exemplo o eremita, como, pergunta Scheler, ele poderia alcançar aquela certeza? Num primeiro momento, sem ainda atingi-la, o eremita teria um pressentimento de seu fim se comparasse as diferentes fases de sua vida, assim como se levasse em consideração experiências tais como o envelhecimento, o sono e a doença.
Naturalmente, isso não bastaria para que o eremita concluísse pela certeza de sua mortalidade, mas tão-somente pela possibilidade de seu fim. Ora, como esse sujeito solitário pode ainda saber que a curva de suas experiências não se desenvolverá ilimitadamente? Ou seja, nada lhe garante ainda o conhecimento seguro de que não seja esse o caso. Afinal, a sua vida poderia se caracterizar por uma abertura para possibilidades infinitas.
Se, tomadas em conjunto, a observação da morte dos outros, as conclusões da indução, as lembranças do eremita quando ele compara as fases de sua vida, só podem levar à probabilidade, decerto elevada, mas não à certeza absoluta, da sua morte, resta a Scheler recorrer ao sentimento como meio para explicar como é possível a esse indivíduo solitário chegar à certeza de seu fim.
Mesmo que imaginássemos um ser humano que jamais apresentasse sinais de fraqueza, que não conhecesse cansaço e doença, ele poderia atingir a certeza de sua condição mortal pelo sentimento que ele tem de sua vida, segundo crê Scheler. O sentimento lhe dá a experiência vivenciada da estrutura de cada fase da vida. E é por essa experiência que ele alcançaria o conhecimento seguro de sua mortalidade.
Convém esclarecer esse ponto.
Segundo Scheler, a ideia de morte está entre os elementos constitutivos da consciência. Scheler assume aqui a tese de que a morte faz parte da essência da vida, da sua forma e estrutura. Segue-se daí que a morte já está fundamentalmente presente em cada fase da vida. Uma vez tenha limitado sua análise ao nível biológico, Scheler observa que a vida se apresenta de duas maneiras:

1) a vida é um grupo de fenômenos particulares de ordem morfológica e motora que se dá à percepção comum e sensível dos seres vivos;

2) a vida é um processo de uma consciência especial que se desenvolve com base no corpo.

Esse processo, num momento de seu curso, que é indivisível, apresenta uma forma própria que é idêntica em todos os seres vivos. O estudo dessa estrutura desindividualizada do ser vivo é que permite a experiência da morte, que está presente em cada fase da vida. É por esse estudo também que percebemos intuitivamente a essência da morte e, desse modo, chegamos à certeza da condição mortal do ser humano.
A morte se apresenta, portanto, para Scheler, como um a priori para toda observação e experiência indutiva do conteúdo variável de cada processo vital real. Mas essa percepção da morte não deve ser confundida com o sentimento de proximidade da morte ou o pressentimento do fim da existência, tampouco com o desejo de morrer ou o seu medo. Ela se situa num nível de ser mais profundo. Temos experiência da diminuição do passado e essa experiência, segundo advoga Scheler, é a experiência íntima de nossa orientação para a morte. A experiência da estrutura de um instante de vida alicerça a certeza de nossa condição mortal e revela a realidade da morte natural.


1.2.2.  A estrutura do processo vital

Cabe esclarecer de que modo, segundo Scheler, se atinge a certeza da morte pela experiência da estrutura do processo vital. A estrutura do processo vital num instante indivisível T se divide em três atos – que são distintos qualitativamente - , todos correlatos a esse instante: o presente, o passado e o futuro. Esses atos são imediatos de qualquer coisa. A cada ato se atribui uma extensão. A percepção se vincula ao presente; a lembrança se prende ao passado; e a expectativa se atrela ao futuro. Essas três extensões – percepção, lembrança e expectativa – se diferem das extensões mediatas cujos meios são o raciocínio e a reprodução. Scheler postula que a totalidade T vivida em cada instante se expande com o desenvolvimento do indivíduo.
Argumenta ainda o filósofo que a consciência do ser vivo percebe intuitivamente, num instante do processo vital, não só as três dimensões imediatas, mas também e principalmente a totalidade (T). Essa totalidade se divide novamente à medida que o processo vital progride objetivamente numa direção característica, a qual representa um fato específico da experiência vivida. O crescimento da extensão do conteúdo do passado, acompanhado da repercussão imediatamente experimentada desse mesmo passado, se dá concomitantemente com a redução da extensão do conteúdo do futuro imediato; também a ação que se antecipa para ele vai diminuindo.
Cumpre reter que o domínio do presente fica mais comprimido entre o passado, dilatado, e o futuro, encurtado. À proporção que a vida flui, tendo em conta todos os instantes vividos, diminuem as possibilidades de experiência na expectativa vital imediata. Na medida em que a totalidade é constante, sustenta Scheler que, aumentando o passado, tanto o presente quanto o futuro diminuem necessariamente.


1.3. Crítica à tanatologia de Scheler

Dentre as dificuldades suscitadas pelo modelo de análise tanatológico de Scheler, destaque-se como a principal o ter ignorado a importância da experiência ôntica da morte do outro como meio de possibilidade de atingir um conhecimento intuitivo da mortalidade.
Decerto, a morte é o limite natural do ser vivo, inclusive do ser humano. Ela participa de sua constituição biológica presente. Também está fora de questão o fato de que o ser vivo é projetado numa direção irreversível, que é a de seu termo: a morte.
Todavia, continua problemático ignorar que o ser humano só parece ter consciência de sua condição mortal, da inscrição da morte na estrutura da vida, pela experiência com a morte do outro.
Outro problema suscitado pela análise de Scheler consiste em não ter ele demonstrado que a temporalidade está delimitada por um passado e um futuro precisos. O homem não tem consciência, a priori, de que o campo de suas possibilidades diminui, de que a extensão de sua vida se encurta. Ora, sem se apoiar na experiência empírica com um cadáver e sem por indução concluir que essa condição é a sua, o sujeito humano está justificado na suposição de que sua projeção para o futuro é ilimitada.


2. Heidegger: a morte como minha possibilidade mais própria

Não há dúvida de que o ser-para-a-morte heideggeriano determinou o curso da filosofia ocidental no exame da morte. Heidegger separou, radicalmente, por princípio metodológico, a análise da morte da questão sobre uma possível imortalidade, a qual foi circunscrita ao domínio ôntico – domínio que colocou fora da alçada de sua perquirição. Ademais, Heidegger procurou ver a morte no interior da série de fenômenos da vida. Sua originalidade consistiu em desenvolver uma reflexão sobre a morte no nível ontológico, separado esmeradamente do nível ôntico no qual se situou a visão de seus predecessores Simmel e Scheler.
Para Heidegger, o propriamente morrer representa o Dasein na sua essência do “poder-ser”. A fim de que compreendamos esse momento do desenvolvimento do pensamento do filósofo de Fribourg, necessário será trazer à luz as categorias de fim, possibilidade e devir. Igualmente importante é ter em conta sua definição de morte como a possibilidade da impossibilidade de ser.
Começarei por apresentar a distinção por ele estabelecida entre os domínios ôntico e ontológico; passarei, em seguida, a considerar a sua afirmação, em consonância com Epicuro, segundo a qual é impossível experimentar a minha morte, entendida como “estado de morte”. Posteriormente, darei a saber como o filósofo de Fribourg procurou demonstrar não ser possível alcançar a noção exata de seu propriamente morrer pela análise da morte do outro. Em seguida, discuto a sua proposta para a aquisição da certeza da mortalidade, a qual se estriba no conceito de ser-para-a-morte.
Como o conceito de ser-para-a-morte repousa sobre a noção de temporalidade, entendida ontologicamente, outros conceitos recobertos por ela deverão ser contemplados, tais como o de poder-ser, possibilidade, ser-antes-de-si e ser-para-o-fim.
Por fim, esboço uma crítica ao projeto heideggeriano de fundar a certeza da morte unicamente em uma ontologia da temporalidade apartada completamente de uma perspectiva ôntica.

2.1. O retorno ao ser: a distinção entre o ôntico e o ontológico

Cuido lícito dizer que é extremamente difícil compreender o desenvolvimento da investigação teorética de Ser e Tempo, sem que compreendamos o princípio metodológico que a norteia. Tal princípio consiste na distinção entre os domínios ôntico e ontológico que se ilumina pela busca heideggeriana de fundamentar sua analítica existencial no domínio ontológico, para cuja tarefa ele apela a que seja retomada a questão central de toda a ontologia clássica, a saber, o significado do ser. Trata-se, segundo Heidegger, de um problema ainda não resolvido e que perpassou toda a filosofia grega. O primeiro passo dado por Heidegger foi revisitar a questão do ser na esteira da tradição platônico-aristotélica. Para os gregos, dirá Heidegger, o ser é presença. O ser é presença constante. Todavia, o que mais interessou a Heidegger foi o fato de os gregos terem assumido um horizonte temporal específico, a saber, o presente para, então, determinar o ser. O ser é determinado tendo como referência necessária o tempo.
Vou-me cingir a sublinhar este fato: ao propor um retorno ao ser, Heidegger revisita o pensamento original dos gregos. Destarte, busca pensar o ser sem o ente, e esse ser, que é impessoal, revela-se e se esconde em um acontecimento atemporal, ao qual o homem tem de submeter-se. O ser de Heidegger pode ser comparado ao apeíron de Anaximandro, indiferente às perguntas e às interrogações do homem.
Com vistas a esclarecer a distinção entre os níveis ôntico e ontológico, cumpre notar que Heidegger parte da diferenciação entre as ciências ônticas, como a biologia e a medicina, a antropologia e a história, cujo objeto é o ente particular regionalmente delimitado, um ente já dado antes mesmo que a ciência tenha lhe fixado o estatuto de objeto, e a ciência ontológica, a filosofia, ciência por excelência, que se caracteriza pela universalidade e radicalidade. Ela transcende a regionalidade das ciências ôniticas.
O objeto dessa ciência ontológica – a filosofia – é o ser enquanto fundamento dos entes e condição a priori de possibilidade de aparecimento dos entes. O ser não se apresenta como tal no mundo, mas determina o que aí aparece.
Heidegger instaura, assim, uma barreira intransponível entre os níveis ôntico e ontológico, ao mesmo tempo em que pretende que a ciência ontológica fundamente as ciências ônticas. Estas se ligam àquela, embora lhe sejam completamente distintas.


2.2. A impossibilidade de experimentar minha própria morte

No nível ontológico de sua análise, Heidegger identifica o propriamente morrer, parte integrante do poder-ser do Dasein. Esse propriamente morrer impregna o Dasein desde seu nascimento. No nível ôntico, que Heidegger não considerará, ele distingue entre dois tipos de fim, dos quais se ocupam as ciências ônticas: 1) o perecer, que é próprio do animal, dado que ele é incapaz de se interessar pela morte como tal, e 2) o falecimento, acontecimento pontual que Heidegger descreve como sendo intermediário entre o propriamente morrer e o perecer. O falecimento expressa a fase derradeira do Dasein; é o próprio Dasein enquanto o único ente capaz de ter acesso à morte como morte.
O Dasein só pode falecer na medida em que, ontologicamente, está morrendo. Com efeito, somente o Dasein – um ser-para-a-morte – está pronto para propriamente morrer. Somente ele pode falecer, portanto.
É necessário esclarecer que, consoante Heidegger, o Dasein não pode ser sua morte – quando por morte entendemos o estado de morte, o qual escapa a uma experiência possível por quem morre. Heidegger nega ser possível a quem morre a experiência de sua própria morte. O Dasein não sente esse deixar de ser. A morte, como estado de morte, não pode ser integrada à estrutura própria do Dasein. Somente o pode o propriamente morrer. O Dasein só experimenta a morte ontológica, que é o propriamente morrer. A esta altura, é urgente ter em conta a distinção entre o estado de morte e o propriamente morrer. O primeiro é inacessível ao Dasein e se situa no domínio ôntico; o segundo integra a estrutura do Dasein e se situa no domínio ontológico. Essa distinção se tornará mais clara ao longo desta exposição.
Em certa medida, Heidegger retoma a posição de Epicuro, para quem enquanto existimos, a morte não está; e quando ela estiver, nós já não estaremos mais. Em outras palavras, enquanto o Dasein existe, o estado de morte não se atualizou; quando ele se atualizar, o Dasein já não existirá. O estado em que se “encontra” o defunto é o de não-mais-ser, ou seja, o de destruição total e irreversível do indivíduo humano.
Tanto Epicuro quanto Heidegger situam a morte, entendida como estado de morte, exteriormente ao sujeito. O estado de morte é, deveras, cotejável com um encontro ao qual o Dasein não comparece. A presença de um significa necessariamente a ausência do outro. Se admitirmos, com Epicuro, que o estado de morte não faz parte da experiência do morto, segue-se daí que a morte significa o desaparecimento total e irreversível da pessoa, a volta ao vazio do Dasein. Ela é a impossibilidade possível da existência, a impossibilidade eterna dos meus projetos, da realização de minhas possibilidades.
A existência do Dasein é um acidente entre dois vazios representados pela concepção e pela morte. Ela parte do nada e se representa como objeto afetivo da angústia. O Dasein é atravessado por uma finitude original e radical. Ele é o ser-para-a-morte que tem seu fim inserido ontologicamente em sua própria estrutura.
Retomarei o conceito de ser-para-a-morte na próxima seção, já que ele ocupa um lugar de destaque na analítica existencial de Heidegger. Prosseguirei, por ora, apresentando o modo como Heidegger demonstra a impossibilidade de se experienciar o estado de morte a partir da experiência com a morte do outro.
Uma vez assegurada a certeza da impossibilidade de o defunto experienciar sua própria morte, Heidegger se debruçará sobre a questão de saber se essa experiência do estado de morte é possível por meio da experiência com a morte do outro.
Os que continuam a viver constatam, a respeito do estado de morte, em primeiro lugar, o acontecimento ôntico de morrer, o falecimento; em segundo lugar, a condição externa do cadáver que conserva sua aparência humana por algum tempo. O cadáver se faz presente sob a forma de representação corporal da pessoa que há pouco tempo estava viva. Por fim, constatam as consequências dessa morte sobre si mesmos e sobre a comunidade humana.
Heidegger observa que o cadáver, longe de constituir uma coisa material, ainda se encontra num estado que denomina de o ser-somente-ainda-ai. O defunto não é abandonado, mas, ao contrário, inspira preocupações dos vivos que o acompanham prestando-lhe homenagem nos cultos fúnebres.
Não obstante essas diversas experiências com a morte do outro, os que permanecem vivos não chegam a experienciar, deveras, o estado de morte em que se acha o defunto, tampouco experienciam a essência da transformação que ele sofreu tendo morrido. O sobrevivente-espectador não dispõe de meios de vivê-la internamente, não assume o ponto de vista do morto, já que permanece sempre exterior ao morto ou à morte do outro.
Os que ainda vivem só podem assistir o estado de morte. Esse estado se lhes afigura como uma perda justamente porque eles a experimentam como uma perda. Mas eles não experimentam, a rigor, o estado de morte que tornou uma pessoa antes viva um cadáver.
Em suma, os espectadores só têm acesso à morte do outro enquanto representação de uma perda que eles “sofreram”. Também o falecido não sofreu sua própria morte, no sentido de que quem morre, já que, por definição, não mais existe, não pode experienciar a própria morte. Heidegger não se preocupou em pensar sobre a perda existencial sofrida por aquele que sobrevive ao falecimento de um ente amado, tampouco levou em conta a importância do trabalho de luto. Claro parece que a morte de um ente querido pode provocar-nos – e com frequência nos provoca – um questionamento sobre nossa visão de mundo, um abalo existencial, tal como o sofrido pelo jovem Agostinho.
Quando consideramos um ato de amor e amizade que une duas pessoas, não nos é custoso compreender que para aquele que permanece vivo a morte é essencialmente uma perda do ser e da vida terrestre. O sobrevivente é levado, pela experiência diante do defunto, que se despediu definitivamente do mundo, a deduzir, por analogia, que chegará também o dia em que ele terá de se despedir da vida.
Heidegger mantém que o morrer ôntico (o falecimento) e o morrer ontológico (o propriamente morrer) são essencialmente meus, isto é, ninguém pode morrer a minha morte. Cumpre, em suma, sublinhar duas ideias caras à argumentação de Heidegger. A primeira consiste em insistir na impossibilidade de os que sobrevivem experienciar a morte dos outros. A segunda ideia é a de que a morte é a minha possibilidade mais própria e intransferível.
Ontologicamente, eu morro sempre só, mesmo que, onticamente, enquanto cadáver, eu esteja acompanhado de pessoas que choram por meu falecimento, que velam o meu corpo. É somente ao morrer que posso dizer absolutamente que “eu sou” (nesse sentido, Heidegger estabelece seu próprio cogito), visto que a morte é constitutiva da essência do Dasein. O caráter exclusivo da morte e sua intransferibilidade constituem a característica essencial da subjetividade.


2.3. O ser-para-a-morte

Vimos que Heidegger rejeita ser possível ter acesso à morte do outro, como também nega ser possível ao defunto a experiência de seu estado de morte. Não obstante, Heidegger persegue o problema que consiste em compreender a morte como tal. Importa-lhe, nesse sentido, compreender a totalidade do Dasein, articulando-a a sua imutável incompletude.
Para tanto, duas observações se impõem no caminho da reflexão heideggeriana. Primeiramente, não tendo mais nada em face de si, o Dasein é fundamentalmente aberto e incompleto, ou seja, aberto a possibilidades e definitivamente incapaz de experimentar a sua totalidade, a sua completude, o seu acabamento.
Heidegger se confronta com o problema da coexistência entre incompletude e totalidade; no entanto, não deixa de atacá-lo, para o que ele lança mão dos conceitos de ainda-não-ser e fim, sempre de um ponto de vista ontológico.
Convém lembrar alguns pontos dessa discussão. Heidegger está a empreender uma análise ontológica do Dasein e da temporalidade (que supõe uma experiência interna do tempo). A morte ontológica é denominada por ele de o propriamente morrer. A questão que o ocupará, doravante, é a de determinar se uma análise ontológica do Dasein e da temporalidade pode conduzir a uma fenomenologia da morte. Em outros termos, posso compreender a morte tal como é a partir do exame ontológico da estrutura do Dasein e da temporalidade?
O propriamente morrer é entendido tendo como referência a estrutura ontológica “projetiva” do Dasein. Isso significa dizer que o Dasein não é pura e simplesmente ser dado, ser no presente, mas é um existente (ele ek-siste) na medida em que se lança para a sua possibilidade, mantendo-se fora do domínio do “ente-aí-defronte”.
A categoria da possibilidade é ontologicamente constitutiva do Dasein. É ele “prioritariamente ser-possível”, sempre aberto para uma gama infinita de possibilidades de existir. Enquanto estiver existindo, o Dasein sempre terá diante de si a possibilidade de ser. Enquanto existir, ele agirá em conformidade com seu fim que é poder-ser – que expressa seu caráter antecipativo. O Dasein está sempre a caminho de suas possibilidades, está sempre encaminhando-se para o querer-ser propriamente, o poder-ser de si mesmo.
Ora, vê-se que essa característica projetiva do Dasein expressa seu ser como “possibilidade no porvir” . Ele deixa de ser no momento em que o por vir não vem de maneira radical. O futuro tem primazia sobre o presente e o passado, ou seja, a temporalidade se realiza originalmente a partir do futuro, “lugar” de possível atualização das possibilidades do Dasein.
Heidegger rejeita a concepção vulgar do tempo como retenção-protensão, que remonta a Husserl e também rechaça a posição de Agostinho, segundo a qual o presente é o domínio principal. Para Heidegger, é o futuro que é o sentido donde todos os existentes extraem sua origem. Assim, o Dasein é sempre antecipado em relação a si mesmo em seu ser. Ele é já sempre “além de si”. Ele se volta sempre para um poder-ser que é ele próprio. O poder-ser é a essência do Dasein.
Dado que é originariamente projeção para seu próprio poder-ser, sempre voltado para o porvir, o Dasein é fundamentalmente um ser-na-frente-de-si. Retome-se aqui a ideia de incompletude que atravessa a estrutura do Dasein. O Dasein é irremediavelmente incompleto, ou seja, ele se caracteriza por um estado de incompletude perpétua, porquanto seu poder-ser de ser si mesmo ainda não se “realizou”. O que é esse poder-ser de ser si mesmo não realizado? Heidegger argumenta que há um limite final, uma possibilidade última própria do Dasein, uma possibilidade de ser que ainda está por vir.
Com vistas a elucidar essa possibilidade última do poder-ser do Dasein, faz-se mister dar a conhecer as duas acepções em que Heidegger faz uso do vocábulo fim. Há duas maneiras de compreender o fim, segundo Heidegger. Quando referido ao Dasein, fim significa o fato de chegar realmente ao termo, ou seja, é ser-no-fim. Nesse sentido, o fim é o termo de processo de atualização de possibilidades. Segue-se daí que a morte, de um ponto de vista ôntico, é a conclusão do Dasein, é seu termo. É claro que a experiência cotidiana patenteia, com muita frequência, que a morte surpreende o ser humano privando-o de suas possibilidades futuras, de seus projetos promissores. Está fora de dúvida que a morte nem sempre ocorre como o estágio final de uma série de possibilidades realizadas. Dizemos de alguém que morreu na flor da idade que foi privado de realizar seus projetos. O fim do Dasein não coincide, portanto, necessariamente, com a sua conclusão.
Por outro lado, não há dúvida de que o fim é uma relação com o termo: o ser-para-o-fim. O não-ainda do fim não é a antecipação de uma completude futura, nem é alguma coisa a ser realizada no porvir. O não-ainda-ser não é exterior ao ser, mas pertence formalmente ao presente porque é um elemento constitutivo do Dasein, que é sempre-já-seu-não-ainda. Seu poder-ser constitui a essência do Dasein; na medida em que existe, o Dasein deve “não-ser-sempre-ainda uma coisa”. É porque ele é que ele é seu não-ainda, que é sua morte, no sentido de que ele é um ser-para-o-fim.
A morte se enxerta nessa tensão própria do Dasein para seu fim. O fim próprio do Dasein não é exterior a ele e não se dá num futuro distante, mas é inerente a seu ser. O Dasein “já é seu fim”, ou seja, sua morte.
Para Heidegger, o Dasein jamais atinge sua completude; no entanto, se dirige para a realização dela até que a morte lhe venha interromper o movimento projetivo de totalização. O poder-ser íntimo do Dasein, sua morte, é intangível. O Dasein existe enquanto ser que se projeta para seu fim. O propriamente morrer é expressão de uma relação do Dasein com seu fim necessário que o impregna a partir do momento em que aparece na mundanidade. Daí a fórmula referida por Heidegger, já apresentada no limiar desta exposição – “Tão logo um homem chega à vida ele já está velho bastante para morrer”. A morte pertence ao Dasein por excelência – repitamos: é sua possibilidade mais própria.
Heidegger fundamenta o solipsismo existencial, o princípio de individuação do Dasein, no “estou morrendo”, ou no “estou destinado a morrer”, o qual dá sentido ao “eu sou”. O propriamente morrer é objeto de uma certeza absoluta e serve de fundamento para as outras certezas. O Dasein é sua morte, visto que é propriamente morrer que torna possível o “eu sou” (cogito heideggeriano: ‘morro, logo sou’).
A possibilidade da impossibilidade de ser constitui a estrutura do Dasein, o fundamento de seu ser. O propriamente morrer precede o sou e lhe confere sentido. O ser do Dasein é o ser-possível orientado para o extremamente possível que é a morte.
A certeza absoluta do propriamente morrer, que Heidegger demonstra ser independente das experiências ônticas, está fundamentada numa ontologia da temporalidade, a qual recobre as categorias de possibilidade, porvir  e de fim. Essa certeza se acompanha, todavia, da incerteza sobre o momento do falecimento, que escapa a toda determinação. Destarte, a morte é o que há de mais certo e, ao mesmo tempo, indeterminado.
A noção de possibilidade – cumpre esclarecer – define o propriamente morrer, uma dentre as possibilidades de ser do Dasein. O propriamente morrer é a possibilidade pura e simples impossibilidade. Mas essa possibilidade, que deve ser entendida no nível estritamente ontológico, jamais pode ser atualizada, não se realiza. Ela exprime o fato ontológico de o Dasein tender para a realização de sua completude, sem que jamais chegue a atingi-la porque destinado a morrer. Não obstante, essa possibilidade se expressa como movimento de relação com a possibilidade extrema da morte. O ser para a morte caracteriza o Dasein enquanto ser que se projeta para seu fim. O fim inerente ao ser-antes-de-si se depreende de sua própria finitude. Esse fim é sua morte, a qual nega todos os possíveis.
O Dasein é, em sua essência, um ser-para-a-morte, o que faz da morte uma possibilidade certa e uma impossibilidade possível devido à indeterminação que caracteriza o momento do falecimento, cuja vinda é factual.
É forçoso protelar para outra ocasião o tratamento da questão que Heidegger define como atitude de antecipação da morte, que nada tem que ver com a realização concreta da morte. Circunscrevo-me a notar que essa atitude de antecipação da morte torna possível vivenciar a angústia em si como angústia em face do vazio.


2.4. Crítica à tanatologia de Heidegger

Sem visar à exaustão – na verdade, sendo bastante esquemático -, é preciso fazer  ver que constitui um problema no estudo sobre a morte levado a efeito por Heidegger o ter rejeitado que a experiência com a morte do outro, mormente se ele é um ente querido, torna claro o fim do ser-antes-de-si, o meu propriamente morrer.
Da tensão do Dasein para o porvir não se segue, logicamente, a conclusão de que sua existência supõe um fim. O fim não está contido ontologicamente no ainda-não-ser, nem no ser-antes-de-si. Parece razoável que não se pode conceber a condição do ser-para-a-morte com base exclusivamente na condição de ser um possível orientado para o futuro.
Novamente, o ter negligenciado a experiência com a morte do outro como meio pelo qual chego à compreensão de mim enquanto ser-para-morte é uma lacuna não contornável pela alegação da abertura fundamental do ser-antes-de-si. Seu futuro não está limitado de modo essencial.