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domingo, 12 de outubro de 2014

"A morte é a maneira de ser que a realidade humana assume desde que passa a existir. Tão logo um homem começa a viver, já é suficientemente velho para morrer".(Heidegger)



A morte como minha possibilidade própria

A interpretação existencial da morte de Marin Heidegger


Os passos abaixo de Fernando Pessoa, dois dos quais colhidos de seu O Livro do Desassossego, servirão para ancorar o desenvolvimento deste breve e despretensioso estudo sobre como o problema da morte foi abordado na filosofia de Martin Heidegger (1889-1976).
O primeiro enunciado de Pessoa, que se topa logo abaixo, rejeita a separação entre sensibilidade e razão, entre sensação e pensamento. Essa indissociabilidade entre pensar e sentir deve, desde já, ser conectada à noção de compreensão de que se serviu Heidegger, a qual encerra a sensibilidade. Ademais, essa indissociabilidade deve também se articular ao modo como o homem tem acesso ao próprio ser. Heidegger dirá que a existência é, primeiramente, sentida. Não é chegado ainda o momento em que faremos incursão no pensamento de Heidegger; por isso, consideremos, por ora, o segundo passo de Pessoa.


 “O que em mim sente está pensando”.
    

Neste passo a seguir, Pessoa põe o pensamento a serviço do sentir e identifica o pensar com o viver. Sentir e pensar são o mesmo que viver. É importante retermos essa indissociabilidade entre pensar, sentir e viver, em primeiro lugar, porque a própria experiência de leitura é forma de vivência que articula pensar e sentir; em segundo lugar, porque desejo que o leitor, mais do que pense com Heidegger, compreendendo aquilo de que ele deu testemunho, sinta também, a seu modo próprio, evidentemente, o modo como ele procurou dar conta da dimensão existencial da morte.


  “Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar”    (p.101).


Sem tencionar uma análise do excerto abaixo, limito-me a externar sobre ele algumas palavras. Seu tópico textual é a morte, conforme se vê claramente. Chamo atenção para o fato de que Pessoa reconhece o que Heidegger, conforme veremos, já havia reconhecido: mesmo em face de um morto, nós não temos uma experiência de morte. Experimentamos o pesar, o luto, mas jamais o evento existencial da morte. Trata-se, nesses casos, da morte como um fato do qual tomamos consciência imediata, de uma morte alheia. É desse modo que o homem imerso na cotidianidade percebe a morte: a morte é percebida como um acontecimento do mundo, genérico. Certamente, há muito que se por a descoberto no texto de Pessoa; no entanto, deixo ao leitor essa tarefa de escavação de sentidos. Deleite-se!



“Considero então que coisa é esta a que chamamos de morte. Não quero dizer o mistério da morte, que não penetro, mas a sensação física de cessar de viver. A humanidade tem medo da morte, mas incertamente, o homem normal bate-se bem em exercício, o homem normal, doente ou velho, raras vezes olha com horror o abismo do nada que ele atribuiu a esse abismo. Tudo isso é falta de imaginação. Nem há nada menos de quem pensa que supor a morte um sono. Por que o há-de ser se a morte se não assemelha ao sono? O essencial do sono é acordar-se dele, e da morte, supomos, não se acorda. E se a morte se assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela. Não é isso, porém, o que o homem normal se figura: figura para si a morte como um sono de que não se acorda, o que nada quer dizer. A morte, disse, não se assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo, nem sei como alguém pode assemelhar-se a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência dela, ou coisa com que comparar. A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida. O cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira” (p. 71).



1. Martin Heidegger (1889-1976)



       Heidegger é reconhecidamente um dos filósofos alemães mais importantes que atuaram no século XX. Nascido em Messkirch, foi professor na Universidade de Freiburg (1916), onde estudou com Hurssel.
Sua obra mais importante é Ser e Tempo (1927). Esse estudo, inacabado, marca seu distanciamento relativamente à fenomenologia de seu mestre Hurssel e inaugura um modo próprio de encaminhar a reflexão filosófica sobre o sentido profundo da existência humana, bem como sobre a metafísica, e o significado de sua influência no desenvolvimento do pensamento ocidental.
A tradição o situa entre os filósofos da Existência, muito embora ele próprio, Heidegger, recusasse esse rótulo. Os estudiosos de Heidegger concordam, em geral, em que ele é um filósofo cujo pensamento é extremamente difícil de entender, o que torna a tarefa de estudar sua filosofia bastante espinhosa, mormente para aqueles que, sem algum treinamento prévio, entram em contato diretamente com sua obra.
As dificuldades que estorvam a busca pela compreensão de Heidegger são de duas ordens. A primeira das quais diz respeito ao vocabulário de que se serviu o filósofo (sabe-se que Heidegger criou uma terminologia própria, a fim de dar forma às suas concepções). A segunda dificuldade repousa na incompletude de sua obra, o que torna seu discurso reticencioso.
Tais dificuldades não devem constituir razão suficiente para nos desencorajar de experienciar a originalidade de seu pensamento. Heidegger buscou recuperar a importância fundamental da questão do ser, que, na esteira do pensamento moderno, foi relegada em favor de questões atinentes ao conhecimento e à ciência. Seu objetivo consistiu em recuperar o sentido original do ser, não sem antes lançar por terra a ontologia tradicional.


2. O ponto de partida: a morte é constitutiva da essência da existência

Porque se situa no limite da existência, a morte é, por definição, o não-experimentável. Ainda que se postule a possibilidade de uma continuidade do ser, após a morte, a experiência do fim continuaria impossibilitada enquanto evento existencial.
Heidegger tomará como ponto de partida de suas reflexões sobre a morte a concepção da morte como constitutiva da existência mesma. Em Ser e Tempo, seu esforço consistirá em mostrar que a morte é um evento singular, uma possibilidade própria de cada um, e não uma mera negação da existência.



             2.1. O sentido original do Ser

Antes de me deter a considerar como o problema da morte foi desenvolvido por Heidegger, é necessário esclarecer a busca do sentido original do ser, levada a efeito por ele (sentido negligenciado pela metafísica, que remonta a Platão e a Aristóteles).
Heidegger notará que, na metafísica tradicional, a diferença ontológica entre ser e ente se diluiu, de modo que a pergunta pelo sentido do ser se reduziu à pergunta pela essência dos entes. Mas o ser de que nos falava, por exemplo, Parmênides, não é o ente, mas a condição de possibilidade dos entes. Perguntar-se pelo sentido do ser equivale, portanto, a perguntar-se pelo horizonte em que o ser se constitui como possibilidade de compreensão (aqui se deve entender “entrar em relação com”) dos entes. O ser é da ordem da condição que torna possível a existência dos entes, que são os indivíduais. O ser é da ordem do acontecimento inaugural, presença totalizante, do qual os entes, tomando parte, são dados imediatamente acessíveis à experiência sensível. Daí a trivialidade que Heidegger redescobrirá: todo ente é no ser. É aí que reside o espanto para os gregos. O ente recolhido no ser tornou-se para os gregos o mais espantoso, nota Heidegger.



            2.2. O Dasein e o mundo

O ser humano, para Heidegger, é existência. Heidegger pensará o ser humano como ser-no-mundo. Em primeiro lugar, cumpre notar, com Heidegger, que, desde o nascimento, antes mesmo de desenvolver qualquer reflexão teorética sobre o mundo, o ser humano está envolvido com o mundo, nas diversas atividades de que participa: brincando, estudando, trabalhando, convivendo, etc. O mundo, portanto, não é externo ao homem; não preexiste a ele. Por isso, o homem surge como ser-no-mundo, isto é, envolvido com o mundo; e o mundo é copresente com o homem. O homem é um ente ocupado com o mundo; o mundo e a existência deste ente privilegiado que é o homem, porque é ele que se pergunta pelo sentido do ser – são dados de forma imediata.
Vale frisar esta ideia: não há ser humano sem mundo, nem mundo sem ser humano. Esclareça-se o termo Dasein, agora. O Dasein se costuma traduzir como ser-o-aí. Essa forma de tradução sugere que a condição humana está sempre lançada numa situação ou circunstância no mundo. Acrescente-se que o Dasein é um índice formal da condição humana, que, diferentemente do que sucede com os demais entes, existe na indeterminação de seu ser. O homem ou Dasein é ente indeterminado em seu ser. Basta dizer, por ora, que estamos longe da concepção tradicional de homem como ser racional.
Tome-se, agora, a indeterminação do Dasein, enquanto ser-no-mundo. Como ser-no-mundo, o Dasein está irremediavelmente lançado nesta condição: estar no mundo estrutura fundamentalmente o seu ser. Esse ser é sempre indeterminado, é ser de possibilidades. Somos o que somos em função do que realizamos em dadas circunstâncias; e sempre realizamos com base nas possibilidades que se abrem em contextos previamente fixados. Aqui cabe dizer que a postura teorética é sempre posterior a essa relação primeira e engajada do Dasein com o mundo.
O ser humano não só propõe a questão sobre o sentido do ser, mas já é o ente que compreende implicitamente esse sentido, ente que compreende os demais entes com que se relaciona e o ser que ele é.
Em vista do exposto, cabe reter que Heidegger mostrará que a busca pelo horizonte de compreensão do ser impõe a análise prévia do ser humano, graças à qual se revela a estrutura da compreensibilidade do ser. Compreende-se que se deve buscar o sentido do ser pela análise existencial do Dasein. Essa tarefa recebeu o nome, em Ser e Tempo, de Analítica Existencial.


3. A analítica existencial

Cumpre, nesta etapa, compreender qual é o objetivo a que se destina a analítica existencial. Notemos, desde já, que esse objetivo é revelar o horizonte humano de compreensão do ser. Mas não se trata de procurar uma nova definição do ser humano. O Dasein não pode ser explicado por meio de categorias precisas; ele é pura indeterminação. Urge salientar que, agora, não há mais um fundamento metafísico em que se deve apoiar a existência humana. O ser humano é um projeto; como tal, ele se realiza na existência. Como projeto, o Dasein se faz a si mesmo a partir das possibilidades abertas nos contextos em que se encontra.
Conquanto seja o ser humano um ente que existe no modo de possibilidades, sempre a fazer-se, não se segue daí que as possibilidades de existir no mundo sejam ilimitadas. Somos seres de possibilidades, mas essas possibilidades são limitadas por contextos geográfico, político, econômico, social e cultural. A isso Heidegger chamou de facticidade. A facticidade é o fato de o Dasein estar sempre lançado em possibilidades limitadas pela estrutura do mundo.
A morte terá um lugar de destaque no quadro da analítica existencial, porquanto a morte, em sua imprevisibilidade, indica a indeterminação da essência humana. A importância de pensar a morte nesse quadro de análise repousa no fato de que ela, a morte, introduz o elemento da finitude e torna possível pensar a temporalidade da existência. Pela morte, torna-se possível pensar o Dasein em sua condição existencial.
Portanto, Heidegger não está interessado em examinar a morte como fenômeno biológico ou como um fenômeno genérico de extinção. Devemos antecipar um ponto que trataremos de desenvolver mais adiante. Heidegger não se ocupa de pensar a morte como um fato que atinge a todos os seres humanos, mas como uma possibilidade própria de cada um. Evidentemente, ele reconhecerá que a forma de conceber a morte como fato do mundo é comum ao homem imerso na cotidianidade. Mas veremos, em tempo, que a morte, considerada no quadro da analítica existencial, é uma dentre as possibilidades – a possibilidade suprema, decerto – abertas ao Dasein.



            3.1. A existência decadente

Segundo Heidegger, a experiência comum e cotidiana da morte mascara seu sentido originário. É justamente por sua condição de ser-no-mundo que o homem facilmente acaba por existir na não-verdade, compreendendo a si mesmo e o mundo a partir das representações coletivas, das crenças recorrentes em sua sociedade. Esse modo de existir na não-verdade Heidegger chamará de decadência.
O mundo das ocupações cotidianas é também um mundo compartilhado. Os outros estão dados de modo tão imediato quanto o mundo e a própria existência. Sucede, contudo, que, no cotidiano, o convívio assume a forma de uma absorção no modo de ser dos outros. Pensemos, por ora, na função dos padrões culturais. Os indivíduos que vivem num dado contexto cultural assumem modos de ser, sentir, agir e pensar determinados pelos padrões estabelecidos por sua cultura. Cada um é como o outro é em seu modo de ser. A própria necessidade de identificação com o grupo depende da incorporação de certos hábitos de pensar, agir e sentir fixados pela cultura a que pertence os indivíduos.
É fácil ver como, no cotidiano, o homem é absorvido no impessoal. O impessoal não é ninguém determinado; mas é o modo padronizado de conduzir a existência, que cada um assume, sem disso ter consciência. Heidegger dirá que, no mundo cotidiano, “cada um é igual ao outro e nenhum é ele mesmo”.
Há, portanto, um modo de ser fundamental da cotidianidade, qual seja, o da decadência. O que é esse modo de ser? É o que o ser humano é na cotidianidade: um ente de tal modo ocupado com o mundo, que se deixa absorver por esse mundo, sem disso aperceber-se. Trata-se de uma condição tranqüilizadora, embora inautêntica. Mas a própria inautenticidade é uma possibilidade dentre as possibilidades de ser. Na impessoalidade, o Dasein não se reconhece como ser de possibilidades, tampouco assume sua condição de agente responsável pelo próprio ser. Ele tão-só deixa-se conduzir pelo modismo, pelas opiniões correntes, repisadas, pelos modos de se comportar gerais, os quais são assumidos como “o jeito certo de ser”.
No tangente à morte, na inautenticidade, o Dasein a assume como evento alheio, como um fato do mundo, como ocorrência que arrebanha a todos os outros. Morre-se todos os dias; a morte é um acontecimento conhecido, já dado no mundo. Na cotidianidade, o homem foge da morte na medida em que a trata como um acontecimento que lhe é comum (não só eu morrerei como os outros também), estranho (trata-se da percepção da morte como a morte dos outros), e por vir (situada fora do domínio de sua existência, enquanto ser ocupado com o mundo).



             4. O ser-para-a-morte


A compreensão existencial da morte supõe a admissão de que o Dasein é também um ser-para-a-morte. Mas ainda não atingiu a autenticidade quem não singularizou o ser-para-a-morte.
Inicialmente, deve-se entender que a expressão ser-para-a-morte caracteriza a condição de estar destinado à morte. Mesmo no modo impessoal de existir, as pessoas costumam aceitar que caminham para a morte; elas têm certeza de que morrerão, mas esse caminhar para a morte é ainda generalizado; afinal, todos caminhamos para a morte inevitável.
Heidegger, no entanto, argumentará que, no cotidiano, o homem não consegue perceber a morte em seu sentido pleno, a saber, enquanto fenômeno existencial irrecusavelmente próprio e irremediavelmente indeterminado. Esse ente absorvido no modo do impessoal se acostumou a esquivar-se de considerar a iminente possibilidade da própria morte. Na medida em que o Dasein é um projeto (seu ser é indeterminado), sempre aberto a possibilidades, deve ele assumir a possibilidade da própria morte, sob pena de incorrer numa “inconsistência existencial”. Destarte, ele continua impossibilitado de alcançar uma compreensão autêntica de seu ser.
Percebendo a morte como sempre possível, um sempre aí inscrito na estrutura de sua existência, o ser humano reconhece-se como sempre inacabado, em construção, como projeto a realizar-se em suas possibilidades de existência; por outro lado, a perspectiva da certeza da própria morte e da indeterminação de seu acontecimento, revela aquilo que talvez não se realize.
A interpretação existencial da morte pretende, portanto, revelar a estrutura ontológica da morte como ser-para-o-fim, articulando-a à compreensão fenomenológica do ser humano como projeto lançado no mundo. Como ente lançado no mundo, o homem está constantemente construindo a si mesmo a partir de possibilidades não determinadas. Uma vez sendo no mundo, o Dasein tem em face de si inúmeras possibilidades de ser, donde resulta a constatação ôntica segundo a qual jamais se pode predizer, no momento do nascimento, o que será e como viverá uma pessoa.
Por outro lado, sendo projeto, o ser humano está desde sempre sujeito à possibilidade suprema – que é a morte: “a morte está sempre flertando com as possibilidades do ser humano” (Doro, 2011, p. 138). Evidentemente, ela é da ordem da impossibilidade, do nunca mais das realizações humanas. A morte é a possibilidade da impossibilidade das possibilidades humanas. Até aqui, creio estar claro que a morte é, para o ser humano, como um abismo para o qual se orienta a caminhada. Por isso, “para morrer basta estar vivo”. A morte é interrupção sem deixar nada pendente, uma vez que o ser humano é caminho aberto, nunca completado.
Da libertação da concepção cotidiana da morte depende a compreensão que o homem tem de si como ser-para-o-fim. Ele só pode alcançar essa compreensão quando remover as formas de encobrimentos do mundo público do impessoal. Mas aquela compreensão não se alcança por meio da reflexão; o acesso ao próprio ser só se dá pelos sentimentos. A existência, dirá Heidegger, é primeiramente sentida. Desses estados de humor pelos quais o homem compreende-se verdadeiramente como ser-para-a-morte, destaca-se o papel da angústia.
A angústia, não tendo um objeto próprio, é gerada por nada, ou pelo próprio existir no mundo (condição esta indeterminada). Ao contrário do medo, que tem uma causa que o desencadeia (medo de altura, de barata, etc.), a angústia é desprovida de causa ou objeto. Ela se acompanha do tédio, o qual revela a gratuidade insignificante do mundo das ocupações: as coisas e as tarefas se esvaziam de sentido e a existência se experiencia em sua facticidade. Ou seja, a angústia esfacela a tranquila familiaridade do mundo cotidiano, do que resulta seja a condição de ser lançado sentida profundamente.
Uma vez rompida a tranquilidade do mundo das ocupações, uma vez liberto do modo de ser impessoal, pela angústia, o homem se dá conta do modo como, de fato, está no mundo: entregue à própria responsabilidade. Agora, o homem experiencia-se como o autor da própria vida; por isso, sua responsabilidade sobrecai-lhe como um peso: ele é responsável pelas possibilidades de ser. É nesse instante mesmo em que se percebe responsável pelas possibilidades próprias de ser que a possibilidade mais própria, qual seja, a de ser-para-a-morte, se revela intransigente e insuperável.
O tédio, que acompanha o estar angustiado, é o sentimento de urgência para passar o tempo. Por isso, o homem tende a não hesitar em recorrer aos passa-tempos, como meio de escapar à angústia. Ora, ocupando o tempo, o passa-tempo não permite que o tempo convoque o homem a assumir suas possibilidades existenciais.
O homem só existe para a morte: é um ser-para-o-fim. É essencial e constitutivamente um ser-para-a-morte, o que significa viver angustiado. Advirto o leitor de que não deve interpretar o “para”, em “existe para a morte”, como índice de finalidade; mas de ‘direção’. Essa condição a que o homem está lançado irremediavelmente quando do seu nascimento não deve paralisá-lo. O ser-para-a-morte é ser angustiado, é verdade; mas essa condição é também libertadora. Estar angustiado não se confunde com melancolia ou desânimo. Estar angustiado é o estado existencial de quem assume total responsabilidade pelo próprio existir. Por isso, a angústia, em vez de paralisar o homem, o liberta da alienação – isto é, da inautenticidade determinada pelo impessoal, de tal modo que ele se torna livre para escolher suas próprias possibilidades de ser. “Eu sou minhas possibilidades”, escreve Heidegger..




5. De que modo a compreensão da possibilidade da morte é decisiva para a condução da existência?


Com a questão que dá título a esta seção, levo a cabo este texto. Heidegger sustentará que é tão somente pela consciência da finitude e da gratuidade da vida que o ser humano pode determinar o curso de sua existência, sem o peso das influências do meio social – influências estas que a controlam.
Eis, portanto, o núcleo do conceito existencial da morte, segundo Heidegger: encarada como possibilidade própria e intransferível, a morte torna possível a condução autêntica da existência.
Compreender-se como o ser-para-a-morte significa tomar o indivíduo humano enquanto ente que antecipa a possibilidade da morte. Não se trata, evidentemente, de por-se sob o risco de morrer, tampouco de compreender a morte como um fato. Ser-para-a-morte é perceber, num nível fundamental da existência, a dimensão afetiva da angústia como modo de o homem sentir-se como ser-no-mundo, ser entregue à sua responsabilidade. Não é a reflexão – insisto nisto – que dá ao ser humano o acesso ao seu ser; mas a angústia que o faz de modo originário. Tampouco o medo diante da morte o faz.
Um exame detido da estrutura do Dasein deveria levar em conta, entre outras, a dimensão que, necessariamente ligada à morte, foi, no entanto, desconsiderada: a da temporalidade. O Dasein está entretecido no tempo; seu ser é fundamentalmente futuro. Contente-se o leitor com o fato de que eu não poderia jamais estender-me para além dos limites fixados pelo estágio de minha compreensão da filosofia de Heidegger. Minha contribuição foi bastante modesta: mais do que provocar no leitor um entendimento de Heidegger, gostaria de que  incorporasse o sentido existencial da morte num nível pré-reflexivo; enfim, que ele sentisse o que significa o “tão logo nasce, o homem já é suficientemente velho para morrer” (Heidegger).











sexta-feira, 3 de maio de 2013

"A angústia é a disposição fundamental que nos coloca perante o nada." (Martin Heidegger)


                    


                        
                                    Há salvação para o homem?




Há, em nossa sociedade, onde o índice de analfabetismo está entre os maiores do mundo e onde o desenvolvimento em educação está entre os piores, um preconceito, infelizmente, bastante disseminado em relação à filosofia, segundo o qual filosofia não serve para nada, muito porque, segundo se crê, versa sobre questões que não tocam ao viver cotidiano do homem comum. É provável que essa má fama da filosofia entre nós se deva muito a sua redução à metafísica e, particularmente, a uma interpretação vulgar e equivocada da filosofia de Platão, que, propondo um realismo das ideias, chamou de real ao mundo inteligível ou das ideias, cuja existência acreditava ser independente do pensamento e do conhecimento. Em Platão, há uma subversão do modo comum como entendemos o mundo: o mundo dado à experiência sensível é um mundo das aparências (dos objetos, seres que vemos, tocamos); o mundo real e verdadeiro é o mundo das Formas ou Ideias perfeitas. Tradicionalmente, a metafísica é definida como a ciência das causas e princípios primeiros. É nela que se situa a grande questão com que a filosofia ficou marcada no imaginário popular, qual seja, a questão do ser. A metafísica encerra, portanto, a ontologia (estudo do ser), em cujo interior se pode situar uma doutrina do Ser Divino ou do Absoluto.
Surpreendentemente ou não, é possível encontrar, em obras de introdução à filosofia, o reconhecimento pelo autor da inutilidade da filosofia. Um caso ilustrativo disso está no trabalho de Roberto Rossi, intitulado de Introdução à filosofia – história e sistema (2004), em que o autor, embora reconheça a inutilidade da filosofia, vê nela uma vantagem:


“A própria inutilidade da filosofia é sua força, porque é ela que a torna livre. Se eu devesse pensar em função de alguma vantagem, de uma urgência, de um interesse, deveria dar só aquela resposta e somente aquela. Na verdade, a liberdade não existe na natureza. Pelo contrário, para ela é inútil e nociva” (p. 15)


Implícita aqui está a ideia de que a filosofia, enquanto prática racional pela qual o homem exercita sua liberdade e seu pensamento, a fim de compreender a si mesmo e o mundo em que vive, é uma forma de expressão de sua transcendência em relação à natureza. Essa ideia parece-me mais clara no passo a seguir:

“A liberdade é a essência do homem, precisamente porque o homem é capaz também de pensar sem a pressão das necessidades fisiológicas, sem se sujeitar apenas às obrigações práticas e ao utilitarismo funcional. (...) Atacar a filosofia, declarando-a inútil, significa, então, ter o mundo animal como padrão do homem, revelar cerda saudade da vida instintiva, cega, egoísta, da qual os animais representam a expressão máxima”. (pp. 15-16)

Quanto a mim, prefiro seguir a sugestão de Luc Ferry (2010) e ver na filosofia um caminho pelo qual o homem, com o concurso da razão, busca “salvar a si mesmo” – ou melhor, busca “salvar-se de si mesmo”. A minha experiência pessoal com a filosofia tem me ensinado que ela é, acima de tudo, uma atividade que se exerce por meio do pensamento reflexivo, através da qual domesticamos nosso próprio desconforto em face do mundo. A isso acrescente-se que é ela um caminho pelo qual aprendemos a lidar com a presença  percebida da morte no coração da vida. Nesse tocante, escreverá Ferry (2010):

“(...) é exatamente isso o que, num momento ou noutro, atormenta esse infeliz ser que é o homem, já que apenas ele tem consciência de que o tempo lhe é contado, que o irreparável não é uma ilusão, e que é preciso que ele reflita bem sobre o que deve fazer de sua curta vida”.
(p. 23)


Ensina o filósofo francês que a filosofia oferece ao homem meios de “salvar a própria pele”, não pelo caminho das ilusões, mas pelo caminho que o conduzirá à verdade sobre sua condição. O instrumento proposto pela filosofia é a razão. De posse dela, o homem pode trilhar esse caminho com suas próprias forças, o que supõe audácia e firmeza ( Ferry, 2010, p. 30).
Se quiséssemos provar quão equivocada é a crença na dissociabilidade entre filosofia e vida, sem que, para isso, precisássemos nos demorar em longos rodeios sobre a História da Filosofia, bastaria, referir, por exemplo, às contribuições dos estóicos, cuja sabedoria se aproxima claramente do budismo tibetano, ao propor que a esperança está entre as maiores adversidades da vida do homem. Ter esperança é colocar-se num estado de tensão que não se saciará, num estado de falta.
Diga-se, de passagem, que encontramos nos antigos gregos preciosas reflexões sobre como o passado e o futuro são prejudiciais à vida humana, ou seja, sobre como eles podem representar para os homens fonte de angústia, que os impede de viver a única forma real de vida: a do instante presente.
Aceita por uma grande parte de filósofos, quer sejam antigos, modernos ou contemporâneos, é a ideia de que o medo da morte impede o homem de viver. O medo da morte torna sua vida um tormento. Veremos, adiante, quando me ocupar, em linhas gerais, da filosofia de Martin Heidegger, que a angústia provocada pela consciência da finitude é intrinsecamente constitutiva do Dasein.
Para nós, modernos, que vivemos em condições marcadas por um ritmo de vida bastante acelerado, contentar-se em viver o instante presente pode parecer um modo de vida irrealizável, muito porque estamos continuamente projetando nossas vivências para além do aqui e agora, estamos traçando objetivos cuja realização se dará num futuro mais ou menos distante. Veremos, com Heidegger, que essa impossibilidade de o homem contentar-se em viver o instante presente se deve à própria constituição do Dasein, um ente que está sempre adiante de si, que se projeta para o futuro, que se autotranscende.
Sem mais delongas, façamos uma breve incursão na filosofia de Martin Heidegger (1889-1976), conhecido, na tradição da filosofia, como um dos maiores filósofos existencialistas da modernidade. Pouco importa aqui que seu projeto se distanciasse consideravelmente do de seus contemporâneos franceses. A sua principal obra Ser e o Tempo (1927) foi extremamente influente no movimento existencialista.
Um breve resumo de sua biografia não pode dispensar o fato de ter sido professor na Universidade de Freiburg (1916), onde se tornou aluno de Husserl.
Com a publicação de sua mais influente obra Ser e o Tempo (1927), Heidegger se afasta da fenomenologia de seu mestre, Husserl, e dá início ao seu empreendimento filosófico, cujo objetivo fundamental era investigar o sentido mais profundo da existência humana. Não se limitou a isso, no entanto. De sua agenda filosófica, fazia parte uma reflexão sobre as origens da metafísica e o significado de seu impacto sobre o pensamento ocidental.
Decerto, a preocupação basilar de Heidegger foi recolocar ou repensar a questão do ser que, na tradição do pensamento moderno, foi negligenciada em função da problemática do conhecimento e da ciência. Julgou necessário, assim, demolir a ontologia tradicional para trazer à cena do pensamento filosófico moderno o sentido original do ser. Heidegger propõe, então, que a existência só pode ser devidamente compreendida com base na análise do Dasein (traduzido como “ser-aí”). Há diferentes formas de definir e pensar o Dasein, conforme se verá. De um modo geral, no entanto, podemos pensá-lo como o ser humano que se abre à compreensão do ser.
Também figurou em sua agenda filosófica a reflexão sobre a questão da verdade, uma questão clássica na tradição filosófica. Nesse tocante, sua preocupação foi relacioná-la aos conceitos de ser e de conhecimento, com vistas a determinar sua gênese e seu sentido.

Dasein

Heidegger assumirá que o Dasein é um ente muito particular que permitirá o acesso à compreensão do ser. O Dasein é o único ente que coloca seu ser em questão, que está envolvido com o próprio ser e para quem a existência constitui um problema. É na relação de compreensão do Dasein sobre o mundo que se pode ter algum acesso ao ser dos entes. É somente através do Dasein que as coisas se revelam.
Heidegger propõe que o Dasein não se define por uma essência ou natureza previamente dada. Essa visão, decerto, motivou Sartre a escrever, posteriormente, a fórmula “no homem a existência precede a essência”. O Dasein é entendido também como um ser-no-mundo, ou seja, um ser-com-outros, um ser que assume uma situação no mundo. Todavia, ele não está completamente imerso no mundo. O Dasein é ser que se interpreta a si mesmo.
Como ser-no-mundo, somente o Dasein pode não ser si-mesmo, caso em que se encontra na condição de inautenticidade. Dela trataremos adiante. Heidegger atribui ao Dasein a propriedade existencial. Com base nela, o Dasein se difere dos demais entes, que se definem por categorias, que são suas propriedades essenciais.
É preciso compreender melhor a ideia de ser-no-mundo. Com ela, Heidegger quer dizer que o Dasein está essencialmente no mundo e que dele é inseparável. O Dasein está imerso no dia-a-dia da vida no mundo. Ele se interessa em explicar o que torna o mundo sua casa ou sua morada. O seu mundo é um mundo em contexto ao qual ele associa projetos e significados. O Dasein é “o que não é”. Ele sempre se projeta para possibilidades futuras.

Disposições

Sem perder de vista a importância do conceito de Dasein no trabalho de compreensão do sentido profundo do ser, levado a efeito por Heidegger, considero, agora, o conceito de disposições. São elas existenciais fundamentais do Dasein. Não devem ser vistas como fraquezas ou desvios da racionalidade. Na verdade, as disposições é que levam o Dasein (o impulsionam) a se defrontar com um enigma para cuja compreensão a razão se lhe demonstra insuficiente. Dentre as disposições mais importantes para a razão, a compreensão e conhecimento, destacam-se as paixões e os desejos. Heidegger entende que o ser se revela sem impedimento nas disposições. São disposições, além das duas referidas, a culpa, a ansiedade, o tédio e o medo.

À-mão

Por à-mão, Heidegger entende a forma como o Dasein se relaciona com as coisas. Essa noção envolve a ideia de praticidade e imediaticidade na forma como essa relação se dá. As coisas estão disponíveis para o uso pelo Dasein.
Tanto o conceito de ser-no-mundo quanto o conceito de à-mão apontam para o fato de que a filosofia de Heidegger visa a compreender o homem em sua existência concreta, da qual se destaca a importância de sua vida cotidiana. Heidegger ensinará que as coisas úteis estão necessariamente em uma situação e estão sempre relacionadas com outras coisas úteis numa rede de associações. A essa rede de associações em que as coisas estão dispostas potencialmente para uso, Heidegger chama totalidade instrumental.
A filosofia deve, então, voltar-se para a cotidianidade onde melhor nos situamos para apreender o ser, embora sempre de modo limitado. O mundo, em Heidegger, é o mundo prático da vida diária. O ser-no-mundo, portanto, envolve o manuseio das coisas e implica sua vinculação à prática. Importa entender que, para Heidegger, pressuposta em nossa percepção do mundo há sempre uma compreensão. Toda percepção envolve uma interpretação. O mundo existe de modo prático para a percepção de modo já significado na interpretação ou na suposição.

Estar-lançado

O estar-lançado é o aí contingente, é o fato de estarmos entregues a uma situação (aí) e de reconhecermos essa situação como contingente, de tal modo que essa situação poderia ter sido diferente do que é. Pense-se no fato de que você, leitor, nasceu, sem qualquer razão, numa família de classe média do Rio Grande do Sul, dela recebeu um nome e através dela desenvolveu sua individualidade. Mas poderia ter se dado que você nascesse entre aborígines da Nova Guiné. Portanto, o estar-lançado recobre o fato de que estamos entregues à contingência sem qualquer razão. É o que entendo como “ser arremessado à existência”. Está claro aqui que a filosofia de Heidegger nega a possibilidade de existir um Ser Superior que determinaria nossa situação no mundo.

Compreensão

Este conceito inclui a ideia de que o Dasein, uma vez lançado em direção ao futuro, torna possível a sua liberdade. O Dasein está sempre consciente de suas possibilidades. O conceito de compreensão destaca as possibilidades do Dasein. Lembro que o Dasein é aquele que ainda não é, que se projeta para o futuro, não sem traçar objetivos e motivar-se por ambições. Ele é sempre uma possibilidade de ser.
Heidegger, no entanto, ao contrário de Sartre, entende que temos certas possibilidades definidas e que nossa compreensão dessas possibilidades está sempre, ainda que parcialmente, determinada pelo nosso passado e por nossas disposições. Para Sartre, há uma ruptura entre o passado e o presente ou entre o presente e o futuro.
Subjacente ao conceito de compreensão está também a convicção de Heidegger segundo a qual há sempre, na interpretação, uma pressuposição de alguma coisa que é apresentada a nós. Por exemplo, percebendo a natureza de um apito antecipamos, com base na experiência, a imagem de um trem que se aproxima. A percepção da natureza do som do apito evoca a pressuposição de que, no mundo em que vivemos, trens têm apito. Assim, interpretamos o som percebido como “o som do apito de um trem”.

Ser-para-a-morte

O Dasein se define também como um ser-para-a-morte. A perspectiva da morte lhe confere unidade e completude. É preciso, no entanto, reconhecer, com Heidegger, que o Daisen, que é ser-no-mundo, vive, em sua cotidianidade, como se fosse imortal. Isso torna sua existência uma existência inautêntica.
Para Heidegger, compreender, de fato, a inevitabilidade da nossa própria morte significa reconhecer uma verdade ontológica constitutiva do Dasein. Heidegger propõe que aceitemos nossa própria morte, que aceitemos que somos “entes-para-a-morte”. É só por meio dessa aceitação que o Dasein se torna autêntico. Existir autenticamente é compreender o significado do próprio existir.
O grande problema, aqui, segundo Heidegger, consiste na tendência de o Dasein evitar considerar a própria morte. Na verdade, nós agimos como se não fôssemos morrer. Tendemos, ao contrário, a ver a morte como um fato que atinge “todo mundo”. A morte é, assim, reconhecida como um acontecimento do qual ninguém escapa, mas não como uma possibilidade real para mim mesmo no agora.
Heidegger propõe, então, que “antecipemos a própria morte”, o que significa confrontar-se com a possibilidade da realidade de nossa própria morte. Não pensar na morte como um acontecimento que só implica os outros.
Heidegger reconhece que, em geral, o Dasein não leva em conta a perspectiva de sua própria morte. Para ele, há dois modos inautênticos de compreender a morte: o medo e indiferença. A indiferença se divide em dois tipos: um é a indiferença em relação à morte tal como expressa por Epicuro. Para Epicuro, quando estamos vivos, a morte não existe; e quando a morte existir, nós não estaremos mais aqui. Ao óbvio dessa formulação se prende o ensinamento segundo o qual não devemos nos afligir com a morte, já que não podemos experienciar a sensação de estar morto. Quando a morte ceifar nossa vida, não estaremos mais aqui para nos preocupar com ela. O segundo tipo de indiferença consiste em pensar que a morte é um acontecimento que envolverá a todos nós indiscriminadamente. Ou seja, a indiferença aqui é justamente a atitude em face do fato de que a morte chega para todos nós. Na perspectiva de Heidegger, a inautenticidade dessa atitude em face da morte consiste em considerar a morte como um acontecimento que atinge o outro. A pessoa, na inautenticidade, não considera a possibilidade de sua própria morte.
O medo é outro modo de inautenticidade diante da morte. No medo, o sujeito considera a morte objetivamente, mas não subjetivamente, não como “a sua possibilidade mais própria”. Nesse caso, a morte é encarada como uma realidade futura, projetada para o futuro. O Dasein, temendo a morte, mas tratando-a como realidade distante e objetiva, foge à sua finitude. Ter consciência da finitude é, para o Dasein, aceitar a possibilidade de sua própria morte, da morte como uma realidade possível, a qualquer momento, que é sua e apenas sua.
Em Existencialismo (2013), Jack Reinolds sintetiza a relação do  Dasein com a morte, nos seguintes termos:

“A morte é uma estrutura existencial que subjetividade humana, e isso significa que a possibilidade de morrer é parte da estrutura de nosso mundo à medida que o experienciamos agora, não apenas como alho que é adiado para mais tarde. Em uma linguagem mais filosófica, podemos dizer que a morte é uma possibilidade futura que é constitutiva do “agora”, do presente”.
(p. 68)


Lembremos aqui o trecho da canção Por enquanto da Legião Urbana: “o pra sempre sempre acaba”. Ou seja, o presente só é na medida em que o compreendo como finito, como um espaço de tempo que não prosseguirá para sempre.
Que benefício, se pudermos dizer assim, haveria em seguir a proposta de Heidegger de aceitação de nossa própria morte, ou melhor, de encarar a perspectiva de nossa própria morte como possibilidade do ‘agora’? Para Heidegger, é justamente esse reconhecimento da realidade de nossa própria morte, como sempre possível, que nos permite estruturar nossa vida significativamente. A consciência genuína de nossa finitude motiva-nos à realização de nossos projetos. Reconhecemos que a morte não dá aviso prévio; ela pode nos surpreender a cada um de nós a qualquer momento. Por isso, mobilizamos nossas disposições para perseguir nossos objetivos, no sentido de atingi-los. Insiste Heidegger também que a morte, sendo um impedimento em potencial para a realização de nossos projetos, é uma condição necessária para a nossa liberdade e individualidade. Conforme nota Reinolds (p. 69), “somente se estivermos conscientes de nossa própria finitude seremos impelidos a agir agora e com urgência”.
O modo como Heidegger desenvolve a questão do ser-para-a-morte leva-nos a concluir, corretamente, que qualquer crença na possibilidade de uma vida pós-morte é não só ignorar o significado da morte e da existência, como também viver na inautenticidade. Donde se conclui que todos os religiosos que creem numa vida pós-morte vivem inautenticamente.
Finalmente, quero considerar duas outras noções implicadas no ser-para-a-morte, quais sejam, a de ansiedade (ou angústia) e a de decadência.
Antes de considerá-las, cumpre salientar que, no momento em que reconheço que eu devo morrer, eu passo a me compreender como um indivíduo. O reconhecimento da possibilidade sempre aí de nossa própria morte me individua. Não sou mais um na multidão. Essa individuação que a consciência da possibilidade da própria morte engendra leva a que o indivíduo reconheça que o outro não pode morrer em seu lugar. Não devemos pensar o outro na condição de mártir (aquele que sacrifica a própria vida por um amigo). Dizer que o outro não pode morrer em nosso lugar é dizer que o outro não pode antecipar por mim a minha própria morte. Novamente, trago à cena as palavras de Reinolds, que observa:

“(...) Heidegger sugere que o si-mesmo-impessoal evita uma compreensão autêntica da morte manipulando a indefinição do momento da morte – nós não sabemos  quando ela acontecerá, e por isso não entendemos completamente que vamos morrer – mas ele também argumenta que isso é claramente um truque”.
(p.72)

A ansiedade pode ser tomada como sinônimo de angústia. Empregarei esse último termo. Em termos gerais, a angústia, em Heidegger, diz respeito ao sentimento de insegurança diante do nada. O sentimento de que fomos lançados ao mundo, sem qualquer razão, para morrer é fonte de angústia.
É preciso distinguir angústia do medo. Na angústia, não há um objeto real a nos causar apreensão ou aflição; ao contrário, o medo supõe a presença de alguma coisa que nos ameaça. Assim, a perspectiva da morte causa em nós o sentimento de angústia. Somos um ser-no-mundo destinados a morrer e nada podemos fazer contra isso. Mas Heidegger não está preocupado em considerar a morte como dado empírico, mas a relação da vida com a perspectiva da morte. Sua preocupação recai sobre a relação do Dasein como ser-no-mundo que reconhece a possibilidade se sua própria morte. Assim, argumentará Heidegger, contra Epicuro e Sartre, que não precisamos estar à beira da morte, não precisamos estar desenganados pelo médico, sentenciados para morrer, para que nos demos conta de que “caminhamos em direção à morte”. Somos ser-para-a-morte, o que significa reconhecer que a possibilidade da morte é constitutiva da estrutura do Dasein.
O que significa a decadência, então, segundo Heidegger? Consiste ela na convicção de que todos iremos morrer e, nesse caso, não levamos em conta a possibilidade mesma de nossa própria morte. Pensamo-nos como um na multidão.
A angústia nos faz sentir que o mundo não é mais nossa casa.  Mas uma compreensão autêntica da morte leva-nos a entender que os papéis sociais que assumimos, que nossa identidade que se vai construindo em nossas vivências sociais não são senão ilusões. A própria identidade que construímos para nós revela-nos que “não temos possibilidades necessárias”, ou seja, não é necessário que, em face de um conjunto de possíveis, eu seja professor e um pai de família, por exemplo. Disso se segue que o significado de nossa existência dependerá tão somente de nós. Aqueles papéis ou aquelas identidades não definem quem realmente somos. Daí a autotranscendência do Dasein, daí também a sua projeção para possibilidades futuras. O Dasein é ser-no-mundo, mas não está enraizado no mundo, não está completamente determinado num contexto sócio-histórico dado.
Estou ciente de que a descrição que fiz de uma parte da filosofia de Heidegger foi apressada. Espero, contudo, não ter cometidos grandes falhas. Deixo ao leitor a tarefa de tirar as consequências da perspectiva de Heidegger sobre condição humana para considerá-las como contributos ao esforço para “salvar-se de si”. Deveríamos considerar a filosofia de Heidegger como uma filosofia do desespero? Estaria ela imbuída de uma visão pessimista sobre a existência humana? Ou será que ela pode constituir um caminho para o bem viver?
Decerto, para tentar responder a essas questões, deveríamos nos aprofundar na filosofia de Heidegger a fim de compreendê-la mais satisfatoriamente. Não obstante, as perguntas aqui sugeridas – que não esgotam todas as questões possíveis – servem-nos como estímulo para estudos mais aturados e extensos.