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quinta-feira, 23 de maio de 2013

"Deus é um conceito pelo qual medimos o nosso sofrimento." (John Lennon)






A tábua do sofrimento
Um caminho de retorno a Deus



Por que escrevo? Porque preciso pôr alguma ordem às ideias, porque preciso disciplinar o pensamento. Para que escrevo? Para me entreter. Escrever é entreter-me. Nada espero de minha escrita. Sou apenas mais um numa multidão de blogueiros. Não sou um autor; sou apenas o agente de minha escrita, mas não o senhor dela; há um Outro que fala através de mim, que escreve comigo. Sou um sujeito e, como tal, constituído pela ideologia.
Do exposto, é forçoso depreender-se que não levo a sério este trabalho com as palavras. Mas, ao dizê-lo, talvez, eu minta. É verdade, no entanto, que pouco ambiciono. Não suponho haver qualquer sentido transformador em minha escrita. Ela é egocêntrica; só satisfaz a mim mesmo, ou se esforça para tanto.
Neste texto, lançarei olhares sobre a questão do sofrimento no sistema doutrinário cristão. Estou, particularmente, interessado na investigação do papel desempenhado pelo sofrimento na ideologia cristã. Assumo, desde já, que, em meu empreendimento analítico, o sofrimento será tomado como signo, e é justamente seu papel simbólico (no sentido lato da palavra) no interior da ideologia cristã que tratarei de examinar. É mister fazer algumas considerações preliminares.
A fim de investigar o papel simbólico desempenhado pelo sofrimento no cristianismo, necessário é definir o símbolo. Nesse momento, faço a distinção tradicional entre símbolo e signo. O símbolo é um objeto concreto ou físico a que se associam diversos significados. O símbolo é sempre um objeto físico ou uma coisa que representa ideias abstratas. Por exemplo, o círculo pode simbolizar o absoluto, a unidade ou a perfeição; a balança é símbolo da justiça, e assim por diante. O signo, a seu turno, é uma entidade linguística, constituída dicotomicamente de um significante (imagem acústica) e de um significado (conceito). Embora o signo não se cinja ao domínio da palavra (um morfema é um signo, uma frase é um signo e mesmo um texto é um signo complexo), para os meus propósitos, basta entender que signo será aqui tomado como sinônimo de palavra. Mas voltemos ao símbolo.
No cristianismo, sabe-se que a cruz simboliza o sofrimento. Um cristão católico poderia objetar que, na realidade, a cruz para a Igreja católica apostólica romana, é símbolo da salvação. Todavia, é preciso dizer que todo símbolo é polissêmico (o mesmo vale para o signo, evidentemente). O significado ‘sofrimento’ atribuído à cruz coexiste com o significado de ‘triunfo’, que já se situa no campo semântico de ‘salvação’. Mas, no mundo antigo, entre os judeus, a cruz era um escândalo, era sinal de suplício e, portanto, algo extremamente indecoroso. Ao que parece, foi na iconografia cristã, que se estabeleceu a transposição do significado original ‘sofrimento’ para o significado ‘salvação’ ou ‘superação da morte’. Atualmente, para os cristãos, a cruz de Cristo, de onde brotam flores e folhas, simboliza a superação da morte e a salvação.
Essa consideração sobre o simbolismo da cruz servirá de ponto de partida para que compreendamos como o sofrimento, enquanto signo, passou a receber entonações ou valores positivos. A cruz, originalmente, símbolo de sofrimento e suplício, foi reinterpretada pelos cristãos proto-ortodoxos no longo desenvolvimento do movimento cristão, como símbolo da salvação. Pelo sofrimento e morte na cruz, Cristo salvou a humanidade. Não surpreende que o sofrimento passe a ser valorado como um caminho para um bem maior.
Convém também considerar que não estou negando a realidade subjetiva do sofrimento. O sofrimento é uma evidência irrecusável. Assim, entendo o sofrimento como uma perturbação violenta, quer de ordem física, quer psíquica, experimentada por uma pessoa. O sofrimento é uma realidade constitutiva da condição humana. O ser humano não só sofre, mas sabe que sofre. Embora possível em psicanálise, não faço distinção entre dor e sofrimento. Portanto, sofrimento envolve dor. O texto do Catecismo da Igreja Católica (2000) reconhece a indissociabilidade entre o sofrimento e a condição humana:

“A enfermidade e o sofrimento sempre estiveram entre os problemas mais graves da vida humana. Na doença, o homem experimenta sua impotência, seus limites e sua finitude. Toda doença pode fazer-nos entrever a morte”.
(p. 412)


O texto se refere também à causa do sofrimento: a enfermidade, a doença. Diz-nos que esses fatos nos avivam a consciência de nossa impotência e finitude. E acrescenta, a seguir, que a enfermidade pode levar uma pessoa à angústia e à revolta contra Deus – atitude esta natural e esperada. Por outro lado, o próprio Catecismo observa que a doença pode tornar a pessoa mais madura, ajudando-a a discernir, em sua vida, entre o que é essencial e o que não é essencial, de modo a conduzi-la às coisas essenciais. Não é custoso inferir que, entre as coisas essenciais, está, evidentemente, Deus. O sofrimento (doença, enfermidade) provoca no sofredor um anseio por buscar a Deus, por retornar a ele. Há também um sentido moral no sofrimento, porquanto é graças a ele que o homem orienta sua vida pelo discernimento entre as boas e más paixões, entre o que é essencial e o que é supérfluo. No sofrimento e através dele, o homem revê, repensa seus valores, aperfeiçoa-se moralmente.
Até aqui, vim procurando descrever como o sofrimento, enquanto signo, se articula à lógica doutrinária cristã. Antes, entretanto, de avançar, preciso dizer algumas palavras sobre os conceitos de valor e virtude. Em primeiro lugar, situando-me no âmbito filosófico, noto que o valor se relaciona ao que é bom, ao que é útil e positivo. Num sentido prescritivo, o valor é algo que deve ser realizado. No domínio da ética, por valores entende-se os fundamentos da moral, das normas, das regras. Assim, são os valores que alicerçam nossos modos de conduta, de comportamento. Não ignoro haver uma perene discussão sobre o conceito de valor. Para alguns filósofos, o valor é tudo que visa à felicidade; para outros, o valor deve ser definido segundo os fins a que servem, de modo que há bons e maus valores.
Assumirei, desde já, que o sofrimento, no interior do sistema ideológico cristão (discutirei a questão da ideologia mais adiante), é um valor, no primeiro sentido exposto. Ou seja, o sofrimento é, no cristianismo, um valor porque é útil, porque serve a um bem, a um propósito benéfico.
No tangente à noção de virtude, atendo-me ao âmbito filosófico, originalmente, a virtude é a qualidade ou a potência que está na natureza de algo. Do ponto de vista ético, recobre a qualidade positiva de um indivíduo que o leva a praticar o bem a si mesmo e aos demais. Em Platão, a virtude era considerada uma qualidade inata; em Aristóteles, ao contrário, podia ser ensinada e resultava do hábito. Para o filósofo estagirita, a virtude é uma disposição que o homem adquire por vontade e que se define pela razão. Um homem virtuoso age refletidamente buscando um meio-termo, uma medida justa entre o excesso e a falta.
A teologia cristã, que se moldou, em parte, pela filosofia aristotélica, conceberá a virtude como “uma disposição habitual e firme para fazer o bem” (CIC, 2000, p. 485). A pessoa virtuosa se inclina ao bem, busca praticar atos bons. O cristianismo católico distingue entre quatro virtudes cardeais, quais sejam, a justiça, a prudência, a temperança e a fortaleza. Esta última nos interessa aqui. A fortaleza é a virtude cardeal que dá segurança ao homem nas dificuldades, que o mantêm firme nas tribulações. Ela o capacita a vencer os medos, inclusive o da morte, a perseverar em face das provações e também o ajuda na aceitação do sofrimento e na renúncia a algum meio de resistência a ele. O homem dotado dessa virtude crê que seu sofrimento é necessário para o alcance de um bem; ele sofre tendo em vista um bem, se sacrifica por uma causa justa.
Em vista do exposto, assumirei que, para o cristão, resignar-se ao sofrimento, é virtuoso. O cristão sofredor, que compreende ser seu sofrimento necessário para o atingimento de um bem, é um homem dotado de virtude.
O tema do sofrimento é constante na Bíblia, muito embora as respostas oferecidas pelos diversos autores bíblicos à questão de “por que existe sofrimento num mundo criado por um Deus bom? sejam insatisfatórias (veja-se a esse propósito Ehrman, Bart D. O problema com Deus). Os homens do Antigo Testamento experimentavam o sofrimento em face de Deus. Eles se queixavam de seu sofrimento a Deus. Imploravam a cura a ele.
Uma ideia basilar, inferida, sem muitas dificuldades, após examinar a problemática do sofrimento na doutrina teológica cristã, é que a enfermidade, a dor, o sofrimento tornam-se um caminho para a conversão.
O Problema do Mal é, sem dúvida, o problema mais espinhoso e dramático para a fé cristã. E o é porque essa fé supõe a existência de um Deus todo-poderoso e moralmente bom e perfeito. O grande desafio é responder à questão: Por que um Deus todo-poderoso e perfeitamente bom permite a existência do mal e do sofrimento no mundo? Essa questão global suscita outras, tais como “por que esse Deus permite que pessoas justas e inocentes, crianças, inclusive, sofram, padeçam de dores atrozes e morram?” A fé em tal Deus não se sustenta em face da evidência inegável do mal e do sofrimento no mundo. Embora seja absurdo atribuir a maldade à natureza (a natureza não pode ser avaliada segundo nosso senso de moralidade, ela é indiferente, é amoral), é inegável que ela é fonte de sofrimento para os seres humanos e para os animais de consciência superior.
Leio sobre um tornado que devastou o estado de Oklahoma, nos Estados Unidos, matando 51 pessoas, dentre as quais crianças. Das 60 pessoas que ficaram feridas, 12 são crianças. Em face de acontecimentos como este – por sinal tão comuns, tão frequentes, como é possível, ainda assim, manter a crença na existência de uma Providência, de um Deus criador, todo-poderoso e bom?
Vimos que o Catecismo reconhece ser o sofrimento uma realidade intrinsecamente ligada à condição humana. Mas é preciso dizer que também os animais de consciência superior e dotados de um sistema nervoso central (mamíferos, aves, incluindo polvos, etc.) sofrem. Reconhecer simplesmente o sofrimento um mal a que está fadado o ser humano é insuficiente para conferir à doutrina cristã alguma validade. Ao contrário, só o reconhecimento acarretaria graves problemas para as suas alegações. É bem verdade que os problemas persistem, embora tenham sido ardilosamente disfarçados pelos floreios da casuística cristã.
Se um Deus bom criou um mundo bom, como, então, foi possível o sofrimento penetrar o mundo? A resposta da teologia das religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo) é fornecida pela doutrina da Queda do Homem. O sofrimento e o mal no mundo decorrem do pecado original cometido por Eva, do qual tomou parte Adão, inocentemente. Por essa razão, todas as gerações posteriores carregam o estigma do pecado e cada bebê que nasce precisa ser batizado para depurar-se dessa mácula. Ignoremos o absurdo dessa esdrúxula doutrina, qual seja, a culpa estendida a toda uma geração de inocentes pelo erro cometido por seus antepassados.
O pecado é uma ofensa a Deus. Sinaliza o afastamento do homem em relação a Deus. O pecado original, cometido por Eva, caracterizou-se pela desobediência a Deus. Reza a doutrina da Queda que o homem pretendeu ser como deuses, tornando-se conhecedor do bem e do mal. O pecado recobre a vaidade humana, o seu brio. Peca o homem que tem orgulho de si, que exalta a si mesmo e despreza a Deus.
No cristianismo, o homem tem de ser rebaixado e humilhado para só, então, arrependendo-se dos seus pecados, alcançar a redenção. Em seu livro Um rosto para Deus (2005), Maria Clara Bingemer, também reconhece que a experiência do sofrimento era comum aos antigos israelitas:

“(...) a presença de Deus é percebida pelo povo [de Israel] no meio de acontecimentos, como guerra, a vitória e a derrota, a passagem do Mar vermelho e a liberação do Egito e o exílio. Ou melhor: onde outros viam a guerra, a vitória, a derrota, um acaso ou uma fatalidade, o povo de Israel via a presença de seu Deus à frente e por dentro de todos estes fatos”.
(p. 44)

Esse trecho é ilustrativo do fato de que a questão da ideologia, tal como a abordarei aqui, com base em Bakhtim e Althusser, se insinua. O trecho nos ensina que a experiência da dor, do sofrimento, dos fracassos, mas também do sucesso e da vitória era vivida e ancorada sobre a crença numa participação direta de Deus nos acontecimentos. É nesse cenário histórico que se forja a crença, entre os antigos hebreus, segundo a qual Deus se revela também na história. O que, para nós, céticos e ateus, soa como uma impostura que ganhou, entre os judeus e cristãos, status de verdade inquestionável.

De que Deus se trata?

Usei até aqui, sem escrúpulos filosóficos, a palavra Deus, supondo, evidentemente, que o leitor sabe a que Deus me refiro. No entanto, o Deus criador da Bíblia hebraica e o Deus de amor (embora disposto a lançar ao inferno os transgressores) do Novo Testamento não é o único deus produzido pelo espírito humano. Por conseguinte, quando uso a palavra Deus, quero referir-me a um Ser criador e pessoal, onipotente, onisciente, dotado de perfeição moral, demasiado interessado na vida humana e que funda uma relação para com o homem no mandamento do amor. Esse Deus foi forjado pela fé de homens que viveram no antigo Oriente Próximo há aproximadamente 2.000 a.C. Essa estimativa remonta à tradição judaica. O Deus a que me refiro tem suas raízes na tradição judaico-cristã. É, portanto, o Deus de Israel, de Abraão, de Moisés, de Isaías, de Jacó, mas também de Jesus Cristo e do apóstolo Paulo. É um Deus que, embora tenha desenvolvido uma personalidade que se inclina a um relacionamento mais próximo e exclusivista com o povo eleito (o povo de Israel), demonstrou um potencial para universalizar-se e estender sua soberania sobre os recantos mais longínquos do mundo. É o Deus a quem os antigos hebreus se socorriam para lutar contra o jugo, a dominação, a escravidão mantida pelos povos conquistadores. É o Deus que estabeleceu uma aliança com seu povo e que a reforça prometendo bem-aventurança em troca de obediência e fé.
Com o advento do cristianismo (I d.C.), esse Deus é rebaixado à condição humana, é instado a manter um relacionamento pessoal e paternal com o homem. Esse Deus se encarna em Cristo, se identifica com Cristo. Cristo passa, então, a reunir em si as naturezas humana e divina. Cristo é o próprio Deus. A esse respeito, não poderia deixar de notar que essa foi a visão vitoriosa, a visão dos grupos proto-ortodoxos. Outros grupos cristãos primitivos dos séculos II e III d.C tinham uma visão diferente. A bem da verdade, a visão proto-ortodoxa, de que Justino foi um representante e defensor ferrenho, afirma que Jesus era plenamente humano e plenamente divino, o que não deixa de ser um absurdo. Não só porque humano e divino pertencem a ordens incomensuráveis, mas porque a ideia de plenitude não pode ser atribuída separadamente a duas naturezas num mesmo ser: ou ele era plenamente humano e, portanto, não tinha nada de divino, ou, ao contrário, era plenamente divino, e não tinha nada de humano. Ou a qualidade divino totaliza seu ser ou a qualidade humano o totaliza. É, logicamente, impossível que seja, em si mesmo, inteiramente humano e inteiramente divino. Para mim, esse é um caso bastante emblemático do abuso da lógica, da inconsistência do sistema de pensamento religioso. A lógica cristã ignora os limites do bom-senso ou os subverte.

Como entender Deus em nossa análise?

Agora, peço ao leitor que me acompanhe nas considerações que farei sobre como se deverá entender Deus neste trabalho. A operação mental que se deve fazer, doravante, consiste na transposição da categoria de Ser para a de signo. Deus não será considerado um Ser transcendente cuja existência é inquestionável. Para efeito de análise, considero Deus um signo linguístico que expressa a autoridade máxima, atemporal e transcendente ao mundo e que cumula as entonações ideológicas de comunidades cristãs (sacerdotes, teólogos, filósofos, leigos). Considero-o um signo através do qual a hierarquia sacerdotal expressa sua autoridade na história. Deus é um signo ideológico. Veremos, com Bakhtin, que todo signo é signo ideológico.

Deus como signo ideológico

Todo signo verbal é dotado de uma dupla materialidade: é uma entidade linguística, ao mesmo tempo, físico-material e sócio-histórica. Chamo atenção para a influência marxista nessa concepção do signo verbal. Ela foi desenvolvida por Bakhtim. A influência a que me refiro diz respeito ao materialismo histórico (Karl Marx), o qual designa os processos de transformação social que se dão por meio do conflito entre os interesses das diferentes classes sociais.
Os signos têm a propriedade de perpassar todas as esferas sociais. A eles é associado um ponto de vista. Através deles, a realidade é representada a partir de um lugar valorativo (verdadeira, falsa, boa, má, positiva, negativa, etc.). O ponto de vista, o lugar valorativo, bem como a situação são sempre determinados sócio-historicamente. O discurso é o palco onde eles se constituem e se materializam.
Signo e palavra serão usados aqui indiscriminadamente. Portanto, é preciso entender o seguinte. Para Bakhtin, todo signo é signo ideológico. Como signo ideológico, a palavra reúne as entonações dos diálogos vivos aos valores sociais, incorporando em seu cerne as modificações ocorridas na infra-estrutura (base econômica, material de uma sociedade), mas também, ao mesmo tempo, pressionando uma mudança nas estruturas sociais.
Não se pode ignorar, segundo Bakhtin, a importância da comunicação na vida cotidiana e seu vínculo com os processos de produção material da sociedade. Para ele, é nos encontros casuais e corriqueiros do cotidiano que a ideologia encontrará seu cimento. Esses encontros vão povoando o universo de signos, e cada signo vai-se tornando parte da unidade da consciência, que é verbalmente constituída. A consciência, em Bakhtim, é um fenômeno socioideológico. A realidade da consciência é o signo. A consciência do sujeito, constituída de signos, pode, através da palavra, entrar em contato com o mundo exterior, também construído e povoado de palavras. Assim, o sujeito compreende o mundo no confronto entre as palavras da sua consciência e as palavras circulantes na realidade.
Bakhtim nos ensina que as menores mudanças sociais repercutem imediatamente na língua. Os sujeitos inscrevem nas palavras, nos acentos apreciativos, nas entonações, na escala de valores, nos comportamentos ético-sociais, as mudanças sociais. As palavras funcionam, assim, como agente e memória social, visto que uma mesma palavra figura em contextos diferentes e variados. Toda palavra é entretecida de inúmeros fios ideológicos, contraditórios entre si, uma vez que se construíram e freqüentaram todos os campos de relações e conflitos sociais. Vejam-se, por exemplo, palavras como Deus, Jesus, democracia, sem-terra, etc. Vimos um exemplo disso quando mencionei a disputa entre grupos cristãos chamados de heréticos e os proto-ortodoxos em torno da natureza de Jesus. As entonações do grupo vitorioso (dos proto-ortodoxos) prevaleceram. Os significados produzidos por eles e associados à palavra Jesus tornaram-se parte do cânone da Igreja cristã.
Um fato importante precisa ser enunciado: todo signo verbal ou toda palavra compõe-se de múltiplos sentidos. Todo signo possui muitos acentos ideológicos, uma vez que não consegue eliminar totalmente outros concorrentes ideológicos.
Uma propriedade fundamental da palavra consiste na sua capacidade de participar de todo ato consciente. A palavra opera tanto nos processos internos da consciência, mediante a compreensão e interpretação do mundo pelo sujeito, quanto nos processos externos de circulação das palavras nas esferas socioideológicas.

O que é ideologia para Bakhtin?

Um dos méritos de Bakhtim, no tocante à questão da ideologia, foi ter insistido que não há ideologia fora da linguagem. Ele mostrou que tudo que é ideológico é signo, que o discurso é o lugar próprio onde se constitui a ideologia. Para o filosofo e linguista russo, a linguagem é sempre uma realidade social. Nela, o sujeito se constitui na relação com o outro. Fora da linguagem, não há sujeitos.
Mas qual é a concepção de Bakhtin de ideologia? Em primeiro lugar, Bakhtim, embora assuma, como ponto de partida, a perspectiva marxista de ideologia como “falsa consciência”, ocultamento da realidade social, obscurecimento das contradições da existência, não o faz completamente. Na verdade, ele procurará reelaborá-la ou reconstruí-la, evocando a necessidade de considerar, ao lado da ideologia oficial, uma ideologia do cotidiano. Essa reelaboração redundará em que, para Bakhtin, não faz sentido definir a ideologia como falsa consciência. Para ele, a ideologia expressará uma tomada de posição determinada sócio-historicamente. O sentido pejorativo do termo, que constitui herança do marxismo, se esvaece ou, ao menos, não é imanente ao termo. O que se deve destacar é a função da ideologia. A ideologia pode funcionar para legitimar relações de dominação de uma classe sobre outra. Pode servir para justificar condições de opressão e desigualdades entre as classes sociais. A ideologia pode servir para manter e reproduzir o status quo. Mas – convém insistir - em Bakhtim, ela é um sistema de representação de mundo e da sociedade, que se constrói nas interações entre os indivíduos organizados em grupos sociais, por meio do discurso. É graças a esse sistema de representação e interpretação do mundo que se pode falar em um modo de pensar e de ser de um dado indivíduo ou grupo social. A ideologia expressa a orientação social ou a linha tomada socialmente por um indivíduo ou grupo.
Precisamos retomar aqui a natureza do signo ou palavra, com vistas a chamar atenção para um aspecto importante da relação entre o signo e a ideologia. Bakhtim ensina que a palavra apresenta a propriedade de neutralidade. Isso não quer dizer que ela seja neutra em relação à ideologia, mas que ela pode assumir qualquer função ideológica. Em outras palavras, o signo é sempre passível de receber uma carga significativa ou valorativa. Um mesmo signo, aliás, pode comportar acentos ideológicos contraditórios. Tendo isso em mente, Bakhtim mostrará que a superestrutura só existe na relação constante com a infra-estrutura, mediante os signos. Vimos que os signos podem fazer-se presentes em todas as relações sociais. Por isso, eles têm a capacidade de relacionar a superestrutura com a infra-estrutura. Segundo Bakhtim, a ideologia serve à expressão, organização e regulação das relações sociais entre os sujeitos.
Como a ideologia se estabiliza? Disse que Bakhtim reconheceu que, a par da ideologia oficial, deve-se considerar uma ideologia do cotidiano. Disso se segue que são as interações entre os sujeitos no cotidiano o nascedouro da ideologia; é nessas circunstâncias que a ideologia começa a tomar forma, a se constituir. No momento em que a ideologia do cotidiano, então constituída nas interações sociais, se organiza em um sistema superior, em interações já mais bem definidas e estáveis, dá-se a estabilização da ideologia. Nessas circunstâncias, padrões mínimos de sentidos postos em circulação vão se estabelecendo. É o caso em que a ideologia do cotidiano é reelaborada ou assume uma forma mais padronizada em grupos sociais organizados, tais como sindicalistas, profissionais liberais, estudantes, grupos religiosos, grupos não-governamentais, etc. A estabilização da ideologia se dá à medida que penetra instituições tais como imprensa, ciência, literatura, religião, leis, etc.
Uma operação básica na ideologia é o que se pode chamar de refração. Para Bakhtim, a ideologia refrata a realidade social, no sentido de que uma classe dominante confere ao signo ideológico um caráter intangível, imutável, atemporal, a-histórico, transcendente às próprias classes sociais. Disso se segue, então, o abafamento ou o ocultamento da luta dos índices sociais de valor, de modo a se propagar um discurso monovalente e monossêmico. A fim de ilustrar essa concepção e, assim, contribuir para o entendimento do leitor, retomo a questão em torno da qual grupos de cristãos primitivos disputaram o sentido verdadeiro ou correto. Essa luta por estabelecer a crença correta, a perspectiva certa foi uma luta, ao mesmo tempo, política, teológica e ideológica. Precisarei discorrer brevemente sobre os acontecimentos implicados aí. Nos séculos II e III da era cristã, havia muitas formas de cristianismos, muitos grupos cristãos que disputavam entre si para determinar quem estava de posse da fé correta. Entre esses grupos havia o dos cristãos docetas. O termo tem origem no grego DOKEO, que significa “dar a impressão de”. Os cristãos docetas defendiam que Jesus não era um ser humano, mas que era completamente divino. Jesus era Deus; apenas parecia ser homem. Marcião se destaca dentre os cristãos docetas dos primeiros séculos do cristianismo. A ele se opuseram dois padres proto-ortodoxos chamados Irineu e Tertuliano. Estes consideravam a crença de Marcião uma verdadeira ameaça à fé cristã. Só havia uma fé correta e esta era a defendida por Irineu e Tertuliano. Mas qual era a visão de Marcião? Para Marcião, Paulo era o verdadeiro seguidor de Jesus. Com base na observação de que, em algumas de suas cartas, Paulo distingue entre a lei (de Moisés) e o evangelho, concluiu Marcião que a salvação só viria com a fé em Jesus Cristo e não na obediência à Lei de Moisés. A oposição entre a lei judaica e o evangelho era tão clara e forte, que Marcião sustentou que o Deus do Antigo Testamento, que estabeleceu a lei e a delegou a Moisés não poderia ser o mesmo Deus de que nos falou Jesus. O Deus do Antigo Testamento era o Deus criador, o Deus do povo de Israel. Mas, segundo Marcião, Jesus originou-se de um Deus grandioso, distinto, que o enviou à Terra para salvar os homens do terrível Deus judaico. Disso concluiu Marcião que, não provindo Jesus do Deus criador do mundo, não poderia o Messias ser um homem de carne e osso. Jesus não pertencia a esse mundo. Marcião levou às ultimas consequências suas especulações: sustentou que Jesus, na verdade, não tinha sequer um corpo físico, que não tinha nascido, que não derramou sangue algum e que não morreu de verdade. Para Marcião, isso era apenas aparência.
Tertuliano não ficou satisfeito com essa interpretação e se dedicou ferrenhamente a bani-la da história cristã. Ele argumentou que, se Jesus não fosse humano, não poderia salvar a humanidade, que, se não tivesse derramado seu sangue, nunca teria trazido a salvação, que, se não tivesse de fato morrido, sua morte “aparente” não redundaria em benefício algum. Tertuliano e outros assumiram, portanto, a crença tenaz de que Jesus era divino e plenamente humano. Ele realmente derramou sangue, sofreu com as dores do martírio, foi crucificado e morreu; ressuscitou dos mortos e, fisicamente, ascendeu aos céus onde está sentado à direita de Deus Pai Todo-poderoso. Essa crença também incluía a expectativa de seu retorno iminente.
Como compreender esse acontecimento à luz do conceito de refração próprio da ideologia, segundo Bakhtim? O que se verifica nessa luta política, teológica e ideológica em torno da natureza de Jesus é que as entonações ideológicas dos docetas foram ocultadas. Prevaleceram os valores, as ‘vozes’ dos cristãos proto-ortodoxos. É a memória social desses grupos que a palavra Jesus, passou, ao longo da história, a conservar. Cada grupo de cristãos primitivos eram portadores de índices sociais de valor e eles se esforçaram por incorporar esses valores no signo Jesus. Mas, na luta desses índices, saíram vitoriosos os valores dos grupos proto-ortodoxos, de que Tertuliano e Irineu foram eminentes representantes.
A condição para que seja conservada a divisão social e que se perpetue a hegemonia da classe dominante é que os sinais contraditórios ocultos em todo signo ideológico sejam mantidos apagados. E foi justamente o que aconteceu ao longo do desenvolvimento da história do cristianismo. Havia sinais de contradição entre a visão dos docetas e a dos proto-ortodoxos. Como esses cristãos gozavam de maior poder sócio-político, teológico e ideológico, eles conseguiram apagar os valores dos cristãos docetas, permitindo assim que o signo ideológico Jesus passasse a significar aquilo que eles queriam que significasse. Instaurou-se por força dessa vitória proto-ortodoxa (o grupo dominante) a monovalência ou monossemia do signo “Jesus”.
Contrariamente à crença judaico-cristã, não é Deus que faz ou intervém na história; como se pode ver, são os homens os verdadeiros agentes dos processos históricos (que são sociais, políticos, econômicos, culturais e ideológicos).
Encerrando esta seção, gostaria de acrescentar que os signos comportam uma ambivalência, porquanto não só refletem a realidade, como também a refratam. Nesse sentido, podem permitir que a apreensão dela seja feita com fidelidade ou com distorção. Ponderemos sobre este passo de Leandro Konder, em A Questão da ideologia (2002), em que o autor nos lembra duas coisas importantes: a primeira é que os signos se constituem sempre numa organização social; a segunda é que a consciência dos indivíduos, bem como seus sentimentos, emoções, personalidade são formados em processos socioideológicos em uma dada organização social de que eles fazem parte.

“Por mais diferentes que sejam, entretanto, os signos têm em comum o fato de só poderem se constituir como sistema a partir de alguma forma de organização social. O social, portanto, precede o individual. A própria complexidade do mundo interior dos indivíduos depende da complexidade da organização social no interior da qual eles existem”.
(p. 115)


A ideologia em Louis Althusser


Diferentemente de Bakhtim, que se preocupou em varrer para fora do domínio semântico do termo ideologia qualquer sentido pejorativo, Althusser, de certo modo, o conserva. Para este filósofo, “a ideologia é uma representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (2007, p. 85). Para ele, a ideologia não corresponde à realidade.

“Nas ideologias, os homens representam-se, de forma imaginária, suas condições reais de existência”.
(p. 86)


Mais adiante, em seu trabalho, Althusser refinará essa definição, de sorte a fazer ver ao seu leitor que o que os homens representam, de forma imaginária, na ideologia não são suas reais condições de existência, mas as relações que eles estabelecem com essas condições. Consoante entende Althusser, é nessa relação com as condições reais de existência que se acha a causa da deformação imaginária na representação ideológica do mundo real.
Antes de atacar o modo como Althusser compreende, especificamente, a ideologia religiosa cristã, não posso deixar de referir sua contribuição para o entendimento da natureza do sujeito. Começo, então, notando que, para Althusser, só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito. O sujeito é uma categoria constitutiva de toda ideologia. A ideologia interpela os indivíduos em sujeito. Por exemplo, autor e leitor são sujeitos que se constituem no interior de formações ideológicas que se materializam nos discursos. Disso se segue também que Deus é um Sujeito, pois que construído na ideologia religiosa.
Atendo-se à ideologia religiosa, Althusser escreverá o que ela, segundo ele, nos diz:

“Ela diz: Dirijo-me a ti, indivíduo humano chamado Pedro (todo indivíduo é chamado por seu nome no sentido passivo, não é nunca ele que se dá um nome), para dizer que Deus existe e que tu deves lhe prestar contas. Ela acrescenta: É Deus quem se dirige a ti pela minha voz (tendo a Escritura recolhido a Palavra de Deus, a Tradição a transmitido, a Infalibilidade Pontifícia a fixado para sempre quanto às questões “delicadas”). Ela diz: Eis quem tu és: Tu és Pedro! Eis a tua origem, tu foste criado pelo Deus de toda eternidade, embora tenha nascido em 1920 depois de Cristo! Eis o teu lugar no mundo! Eis o que tu deves fazer! Se o fizeres, observando o “mandamento do amor”, tu serás salvo, tu Pedro, e farás, parte do Glorioso Corpo de Cristo, etc.”.
(pp. 99-100)


Eis aí um fragmento do pensamento de Althusser importante e que nos demanda uma análise cuidadosa. Pedro, que pode ser qualquer cristão, é interpelado em sujeito. Essa interpelação lhe veda qualquer autonomia. Não é ele quem se nomeia; ele é nomeado. É-lhe fixada uma identidade (um nome, uma origem, um Pai criador). É-lhe determinado um lugar na sociedade, no mundo, no universo. Também ele é posicionado em relação a Deus (ele precisa prestar-lhe contas, obedecer-lhe ao mandamento). É-lhe determinado um modo de conduta, calcado sobre o mandamento do amor. Particularmente interessante é ver aí que o amor cristão precisa ser balizado por um mandamento. Deus ordena amar acima de tudo a ele mesmo e depois ao próximo. Isso lança suspeitas sobre a genuinidade do amor cristão. Por ser um amor, cuja manifestação, é pré-determinada por Deus, na forma de mandamento, redunda daí sua opacidade, sua vocação para um dever, no entanto, interesseiro. Ora, tenho de amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo para ganhar prestígio aos olhos de Deus.
Mas é possível ver a questão sob outra perspectiva. Uma vez assumindo ser Deus um signo ideológico que não é outra coisa senão o reflexo de uma autoridade eclesiástica e terrena, embora apareça à consciência coletiva, como um Ser transcendente, uma autoridade sobre-humana, o mandamento do amor, ao qual devemos acrescentar o temor a Deus, configura uma típica situação de relação desigual entre subalternos e seu líder. Um líder que queira expandir sua soberania e conservá-la, sem que os dominados se revoltem contra essa condição, precisará combinar o amor e o temor. Em outras palavras, precisará infundi-lhes amor e temor. A figura de Deus é representada como um ser que deve ser amado e, ao mesmo tempo, temido. Como Deus não é senão um signo ideológico, ele é o meio verbal pelo qual a Igreja decreta o amor e infunde o temor ou o medo. É provável que esse medo tenha sido mais forte no passado, ou melhor, tenha assumido outra forma, tenha servido a outros propósitos. No entanto, o medo de que o abandono da fé, a prática da heresia, ou de que a vida não tenha sentido transcendente algum ainda persiste, mesmo que num nível subconsciente nas grandes massas religiosas. É preciso frisar: os religiosos – assim creio – não amarão e temerão as suas igrejas, embora até possam nutrir tais sentimentos em relação às figuras carismáticas como padres, bispos, pastores e o papa. O amor e o temor é, em primeiro lugar, a Deus, mas entendendo Deus como um mero mecanismo ideológico mediante o qual a Igreja conserva e alimenta esses sentimentos nos indivíduos.
Sem pretender me delongar sobre este tópico, vale atentar para o que nos ensina Freud, em O Mal-estar na cultura (2010), sobre a ineficiência do mandamento “amarás o teu próximo como a ti mesmo”:

“(...) O mandamento “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” é a defesa mais forte contra a agressão humana, e um exemplo excelente do procedimento nada psicológico do supereu cultural. O mandamento é impossível de ser cumprido; uma inflação tão grandiosa do amor apenas para diminuir o seu valor, sem resolver o problema. A cultura negligencia tudo isso; ela apenas admoesta que quanto mais difícil for obedecer ao preceito, tanto maior o mérito em obedecê-lo”.
(p. 180)


Basta entender que religião e Igreja são instituições culturais, que não será custoso concluir que “o amar a Deus sobre todas as coisas” e “o amar o próximo como a si mesmo” são exigências que extrapolam às inclinações humanas. O que nos martela a religião e a Igreja é que “quanto mais difícil for obedecer ao preceito, tanto maior o mérito em obedecê-lo”.
Voltando, contudo, ao sujeito Pedro, em Althusser, e lançando mão do conceito lacaniano de Outro, é interessante ver que o sujeito Pedro é submetido a toda uma comunidade de valores, crenças, dogmas, discursos materializada na forma de Escrituras Sagradas, de uma tradição teológico-doutrinária. Quem lhe fala é essa comunidade representada no signo Deus. Também lhe é determinada uma condição para a sua Salvação, bem como um destino. Obedecendo ao mandamento e vivendo segundo o que lhe foi determinado (entre outras coisas, que Deus é quem o criou; portanto, saiba-se uma criatura!; que Jesus é seu único salvador; portanto, reconheça-se como pecador!, etc.), ele participará da majestosa Família de Deus (o Corpo de Cristo, a comunidade cristã, composta pelos eleitos e acolhidos no amor de Deus).
De tudo que foi dito, devemos concluir o que se segue. Ao contrário de Bakhtim, Althusser entende a ideologia como um sistema de representação que deforma a realidade. Não é que essa visão esteja de todo excluída da abordagem do filósofo russo, mas, decerto, sua perspectiva é mais alargada. Para ele, todo signo é signo ideológico e a ideologia é um sistema de representação e interpretação da realidade social e do mundo. Todo discurso, em Bakhtim, é constituído do que poderíamos chamar de formação ideológica (embora esse termo não tenha sido cunhado por ele). Não há discurso sem ideologia, na visão de Bakhtim.
Para examinar como o sofrimento, enquanto signo ideológico, entra a fazer parte da constituição de uma trama ideológico-doutrinária sobre a qual se calcarão teologias cristãs, assumirei a visão de Althusser sobre ideologia, sem deixar de articular a ela a perspectiva de Bakhtim sobre a natureza ideológica de todo signo.

O sofrimento: uma escada que leva a Deus

Vimos que o sofrimento é consequência da Queda; mas também é o meio pelo qual o homem se redime perante Deus.
O sofrimento, sempre entendido como signo ideológico, se articulará à ideia de que a vida terrena é um vale de lágrimas. Nela, o ser humano deverá se esforçar por reparar seu erro que o maculou desde o nascimento.
No entanto, o sofrimento tem o potencial de alavancar uma verdadeira transformação. O fracasso que ele nos lega nos conduz à vitória. Ele instaura uma lógica, quase nunca percebida, segundo a qual, aviltando o pecador, amaldiçoando-o, Deus o concede a salvação. Pascal Bruckner, em seu livro A euforia perpétua – ensaio sobre o dever de felicidade (2010), oferece-nos uma preciosa constatação:

“Não basta, pois, experimentar o sofrimento, é preciso amá-lo”.
(p. 32)


A doutrina cristã prescreve: “É preciso sofrer!” “Resigne-se ao sofrimento e cairá nas graças de Deus!”. Mas o cristão não está sozinho em seu sacrifício, em seu culto ao sofrimento. Cristo lhe serve de modelo de sofrimento; o fiel cristão se "inspira" na Paixão de Cristo quando se vê à volta com a dor do sofrimento. No cristianismo, a morte do Cristo-Deus, em agonia, na cruz, é o cerne de seu ritual. Jesus se torna proprietário da morte. Ele afirma e nos lembra o trágico da condição humana, mas também confirma a promessa de sua superação, mediante a ascensão à condição sobre-humana na ordem da esperança (que assim seja!) e do amor (infinito e elevado!).
Para o cristão que padece, Jesus é um irmão de sofrimento. O cristão, mesmo aviltado, sobrepujado pelo sofrimento, pela culpa do pecado deve ver em Jesus um amigo e um guia em seu calvário pessoal. “Deus dá a cruz segundo nossa capacidade para carregá-la”, diz o senso-comum fundado na ideologia cristã.
O sofrimento sujeita o homem à condição de impotência, arranca-lhe as forças, condena-o à resignação. O homem não pode salvar-se por si mesmo. A salvação é uma graça de Deus. À salvação precede a humilhação, o aviltamento do homem.
É do fundo do seu sofrimento atroz que o homem ascende a Deus. O sofrimento é uma escada que o leva até ele. O signo do sofrimento instaura uma dependência do homem a Deus. Ela não seria possível sem o imperativo do sofrimento, o qual reaviva na consciência do homem sua condição de criatura mortal e inferior. Simone Weil escreveu: “só o sofrimento salva a existência”. Sofrimento e salvação são indissociáveis, de tal modo que se pressupõem reciprocamente. Não haveria sentido, no cristianismo, proclamar a salvação, sem a introdução na doutrina da crença em que o sofrimento faz sentido, já que constitui o caminho que conduz à salvação. Salvação da morte, salvação do mundo onde grassa o pecado. Salvação do próprio sofrimento. Novamente, Simone Weil dá-nos testemunho dessa lógica viciosa cristã: o sofrimento “é tão melhor quanto mais for injusto”. Eis aqui um dito moralmente inaceitável. Uma clara aceitação do sofrimento gratuito de inocentes. Para Simone Weil, só o sofrimento injusto pode nos conduzir à sabedoria e ao colo de Deus. Eis uma prova do abandono da atitude filosófica, e mesmo a rejeição a qualquer tentativa séria de refletir sobre o problema do sofrimento à luz de uma teodiceia, mesmo que ela seja pouco convicente.
Em relação ao cristianismo, escreverá Bruckner, “poucas religiões insistiram como esta no lixo humano ou manifestaram esse “sadismo de piedade” (p. 34). E, mais adiante, acrescenta: “o sofrimento é a norma... É preciso amar o homem, mas primeiro humilhá-lo, rebaixá-lo (ib.id.)”.
Que outros índices de valores se acumularam na palavra sofrimento? Vemos nele também a ideia de progresso espiritual. Na medida em que nos leva a aproximarmo-nos de Deus, o sofrimento é interpretado como um progresso. Esse deslize semântico, operado pelo sistema ideológico religioso, da “estagnação”, do “mal” para o “progresso”, para o “bem maior” leva a que o sofrimento não seja mais visto como uma condição contra a qual devemos mobilizar esforços para lutar. O cristianismo nos diz: “resta sofrer junto de Cristo aceitando-o como um amigo de sofrimento”. A miséria traz a paz interior; traz a alegria espiritual. O cristão que sofre, experimenta, paradoxalmente, a alegria quando crer-se unido a Cristo em sofrimento, quando, comparando seu sofrimento ao de Cristo, pune-se por qualquer pensamento queixoso que se lhe assome à consciência. Consciente de que seu sofrimento não se compara ao de Cristo em intensidade e profundidade, o Cristão sofre resignado, não sem evocar a Cristo para que o conforte e o vele em seu sofrimento. Novamente, Bruckner nos lembra “com a religião, o sofrimento torna-se um mistério que não deciframos, a não ser sofrendo” (p. 35). O cristão, no momento em que sofre, crê haver um sentido em seu sofrimento, mesmo que não lhe seja imediatamente transparente ou acessível. E não nos surpreendamos que, após cessada a tempestade de dor, ele se regozije com a descoberta do sentido, que tardou, mas se lhe revelou cristalino. Bruckner faz uma breve referência ao trabalho ardiloso de teólogos na produção de teodiceias:

“E os teólogos irão desenvolver tesouros de casuística e de sutileza para legitimar a existência do mal sem atentar à bondade de Deus”.
(p. 35)


E diga-se, de passagem, que a própria concepção de sofrimento como uma forma de progresso, como um meio de retorno a Deus é já fruto de uma teodiceia denominada na tradição de pedagógica.
Vimos, no limiar deste texto, que no Catecismo, o sofrimento nos aviva a consciência de que somos seres destinados à morte. Que relação pode-se estabelecer entre o sofrimento e a morte, no interior da doutrina cristã? Se o sofrimento é uma escada que nos conduz a Deus, a morte é um passaporte para a verdadeira vida. A morte nos liberta das tentações mundanas, dos pecados deste mundo. O mundo não é nada mais do que um lugar de exílio, onde grassam a dor e o sofrimento.
Não exageramos ao notar que, na história cristã, propôs-se aceitar voluntariamente sofrer e renunciar a toda e qualquer medida contra a dor. É preciso participar da Paixão de Cristo. Bruckner nos fala de “eloqüência da cruz”, com que se busca justificar a imobilidade de esforços de piedosos na tentativa de melhorar as condições de existência humana neste mundo. A felicidade não pertence a esse mundo, mas ao outro mundo que está por vir. A eloqüência da cruz desencoraja os mais interessados em amenizar a dor dos desgraçados.

Palavras finais

Ainda que a concepção mais bem intencionada sobre a natureza de Deus não se sustente à luz da evidência das formas como o sofrimento se manifesta neste mundo, continua ela a ser uma representação consoladora e acalentadora da crença em que a existência humana seja portadora de um sentido transcendente. O sofrimento é o cabresto que prende os fiéis a Deus (Igreja). É a chave para a compreensão do maquinário ideológico cristão, que constitui o sistema de representação, de forma imaginária, das relações dos homens com suas reais condições de existência. Nessas relações, os homens se vêem, ou melhor, se representam, na imaginação, como criaturas de Deus.
O cristianismo é uma religião que se aproveitou do sofrimento como fato irrecusável, transformando-o, pela ideologia (na representação imaginária) em gatilho de toda teia de ideias e dogmas de que se forma sua doutrina. O sofrimento, antes de constituir um obstáculo à fé em Deus, a reforça, a torna mais intensa, mais viva. O homem que sofre é aquele que espera em Deus, que espera obter uma recompensa por ter-se obstinado na condição de sofredor resignado.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

"Tornei-me mais esclarecido quando compreendi que os homens se fizeram crentes de que foi Deus que os criou" (BAR)


                            



   Os ebionitas e os marcionitas
  Afinal, de que Deus se trata?





E se fosse dada a imensa maioria de pessoas que acredita em Deus e que habita este imenso território chamado Brasil a oportunidade de ter acesso a estudos sérios, desenvolvidos por renomados especialistas na história dos cristianismos primitivos e da confecção da Bíblia, que vantagens poderiam obter essa grande parcela da população? Este texto será escrito de modo que se aproxime ao máximo dos gêneros da conversação informal. Vou até baixar o nível de formalidade deste texto.

E me dirijo a leitores que, provavelmente, não lerão este texto. Me dirijo a pessoas que vivem a falar de Deus, pessoas que já de manhã cedo postam no facebook  algo como “vamos aproveitar esse dia lindo que Deus nos proporciona”. Como eu disse, essas pessoas não lerão este texto, coisa que eu lamento. Mas não lamento a tal ponto de me recusar a escrevê-lo, embora eu ache que eu deveria estar manifestando as ideias que aqui se encontrarão num livro publicável. Os leitores que me acompanham há tempo, talvez se admirem do que escreverei, aprendam alguma coisa, mas certamente não se surpreenderão.

Começarei do princípio e vou me esforçar para que esse princípio não se prolongue tanto. Duas idéias básicas ficaram estacionadas em meu espírito agora. Ei-las a seguir:

Ideia 1: é necessário que se faça ver um ateísmo esclarecido;

Ideia 2: é desejável que se faça ver uma fé esclarecida.


Vou agora explicar estas ideias. Um ateu esclarecido é aquele que não se limita a atacar cegamente um sistema de crenças ao qual se opõe, sem conhecer a história que o produziu. Em outras palavras, dizer que Deus é uma ilusão, que é um “amigo imaginário”, entre outras coisas, é percorrer um caminho “argumentativo” infrutífero. Um ateu esclarecido buscará antes saber como foi possível crer nesse Deus. Qual é a sua origem? Como se construiu a ideia de Deus? Em que contexto sócio-histórico Deus ganhou voz? Estas são algumas perguntas que deverá se fazer um ateu esclarecido e cujas respostas deverá buscar. Um ateu esclarecido deverá ter em mente que está lidando com um Deus – seja lá de que forma ele, ateu, o entenda – que é produto de uma herança milenar (na verdade, de mais de dois milênios; isso para ficarmos no Deus cristão, séc. I d.C).

Agora, no que diz respeito à possibilidade de uma fé esclarecida, aí estamos lindando com algumas complicações. É verdade que a Igreja católica vem vendendo a ideia, já faz algum tempo, da necessidade de conciliar fé e razão; nenhum religioso admite que se considere sua fé uma “fé cega”. O problema é que quando se propõe a conciliação entre fé e razão não entra aí a importância de esclarecer as massas religiosas (mais especificamente, cristãs) dos fatos históricos que se encontram na origem do cristianismo então vitorioso (a visão proto-ortodoxa que nos chegou, não sem sofrer uma série de cisões) e da história da fabricação da Bíblia. A consciência desses fatos talvez contribuísse para que os cristãos leigos (uma observação: leigos porque não iniciados nas ordens eclesiásticas) compreendessem as verdadeiras razões por que professam a fé que então herdaram, por que, hoje, acreditam no que dizem acreditar. Se tal conhecimento poderia levá-los a questionar sua fé, a namorar, ainda que por alguns instantes, o agnosticismo, ou mesmo, a entregar-se de corpo e alma aos braços do ateísmo, eu não saberia, por ora, dizer. E meu objetivo não é esse.

Terei de pedir ao leitor, que suponho acredite em Deus, que admita o que se segue:

1) Tudo que sabemos sobre Deus veio pelas mãos de muitos homens que viveram em uma época remota, em regiões muito distantes, em culturas que não são a nossa;

2) Sabemos de Deus, portanto, aquilo que esses muitos homens escreveram sobre Deus.;

3) Ninguém – insisto NINGUÉM – tem acesso direto a Deus (ninguém nunca o viu, nunca o tocou, nunca sentiu seu cheiro, nunca conversou com ele). Tudo que sabemos de Deus são tão-só representações de Deus.



Preciso esclarecer este ponto. Dizer que só temos acesso a Deus pelas representações que fizeram dele determinadas classes de homens, que viveram em uma cultura muito diferente da nossa, num período de tempo remoto e pelas representações que nós fazemos dele graças à herança judaico-cristã que, juntamente da herança greco-romana, veio a formar a cultura ocidental, não deveria surpreender os iniciados em estudos filosóficos. Muitos filósofos e cientistas concordam que não temos acesso direto ao mundo, que nossas relações, incluindo aí as formas de conhecê-lo, é mediada por representações desse mundo. Basicamente, construímos modelos mentais para interagir e compreender o mundo. Nossos discursos desempenham aí um papel fundamental. Neles e através deles, não só interagimos com o mundo, mas o compreendemos. Não quero que o leitor pense que a representação é uma forma de “espelhar” o mundo (essa é uma visão aristotélica, já não mais aceita). Nietzsche, aliás, a rejeitava. Representações envolvem conceitos, abstrações. O mundo representado não é o mundo tal como é, mas tal como nos parece ser. Melhor será falar em “reconstrução do mundo”. Também não assumo o extremo de defender que o mundo extralinguístico, tal como apreendemos pelos sentidos, não exista. Mas estou com Charaudeau (2010), ao nos ensinar que não há uma realidade fixa, que existe independentemente da linguagem.

É importante aceitar o postulado da construção discursiva do mundo, para melhor compreender os acontecimentos dos quais lhe falarei adiante. É claro que nessa construção entram fatores perceptuais-cognitivos, linguísticos, culturais e históricos. Todo discurso é uma realidade dotada de materialidade histórica. Sem complicar mais a cabeça do leitor, o fato é que, quando se considera o conceito de Deus, essa visão de que Deus é uma entidade de discurso, é construído discursivamente é a única capaz de explicar por que houve, na história dos cristianismos primitivos, tantas visões divergentes sobre a natureza e identidade de Deus (mas não só sobre ele, evidentemente; outros aspectos da doutrina que se oficializou também não foram aceitos unanimemente; houve muitas contendas, disputas, conflitos e até assassinatos em torno de qual seria o cristianismo verdadeiro e, é claro, a visão verdadeira de Deus).

Falta uma última coisa a ser considerada. Trata-se da Escrita da História da Bíblia. Em primeiro lugar, a Escrita da História na Bíblia conta muito mais com a criatividade do autor do que com seu compromisso em relatar os fatos tal como ocorreram no passado. É claro que podemos encontrar relatos do que realmente aconteceu, mas não era este o objetivo principal dos autores. Em segundo lugar, os escritores da história da antiga Israel escreviam para responder problemas de seu tempo. Tratava-se da escrita de uma historia nacional e coletiva, ao mesmo tempo literária e que tinha por objetivo recordar o passado e avaliar o significado de seus eventos. Ao recuperar literariamente o passado, os autores buscavam as causas das condições do presente.  Há outras coisas importantes para saber. Uma delas é que as profecias hebraicas não prediziam o futuro. O profeta hebraico não tinha a intenção de predizer o que iria acontecer futuramente, mas sim de fazer uma crítica social e religiosa de seu tempo. O leitor poderá conhecer mais sobre a história do Antigo Testamento, lendo o livro Como ler a Bíblia – História, profecia ou literatura (2007), de Steven L. Mckenzie.



Prossigamos...

Sem mais delongas, dou-lhe, leitor, um testemunho da imensa diversidade dos cristianismos primitivos. Na verdade, só tratarei de dois grandes grupos que compõem essa diversidade, mas é interessante que o leitor saiba que, nos séculos II e III, eram muitas as visões cristãs a respeito de Deus, de Cristo, do significado de sua morte, entre outras coisas. Por exemplo, havia cristãos que acalentavam a crença em que Deus criou o mundo; outros, porém, não pensavam assim. Para estes, o mundo tinha sido criado por uma divindade inferior ou subordinada e ignorante. Para esse segmento de cristãos, isso explicava por que o mundo é tão cheio de sofrimento, miséria e maldade. Mas não me estenderei sobre esse assunto. Remeto o leitor ao livro Evangelhos Perdidos (2008), de Bart D. Ehrman, livro em que me baseio na presente exposição.

Estamos situado no período que se estende do século II ao IV d.C, época em que certos cristãos, chamados ebionitas, entraram em cena. A origem do nome é desconhecida, embora muito provavelmente se prenda à palavra hebraica ebyon, que significa “pobre”.  Segundo Ehrman (p. 152), é possível que esses cristãos, seguindo fielmente o ensinamento de Cristo sobre o desapego aos bens materiais, tivessem renunciado às propriedades e se resignassem a viver na pobreza. Mas o que me importa é trazer à cena a doutrina ebionita. No que acreditavam os ebionitas?

Em primeiro lugar, os ebionitas, tal como o era Jesus, eram judeus. Eram judeus que seguiam os ensinamentos de Jesus. Os ebionitas não deixaram nada escrito, ou melhor, nada do que teriam escrito foi preservado. O que deles se sabe vem das mãos de seus opositores, os cristãos proto-ortodoxos, representados, por exemplo, na figura de heresiólogos (oponentes de heresias), tais como Orígenes de Alexandria (183-254), filósofo e escritor cristão. Ehrman (ib.id.) nos lembra ser possível que houvesse vários grupos ebonitas, cada qual com sua visão teológica.

Os ebionitas, então, acreditavam que Jesus era o Messias judeu, que fora enviado pelo Deus judeu ao mundo para salvar o povo judeu, cumprindo, assim, o que diziam as Escrituras hebraicas. A divergência com os proto-ortodoxos começa agora. Os ebonitas também defendiam que, para seguir a Cristo, a pessoa deveria, em primeiro lugar, seguir a lei judaica. Deveria tornar-se um judeu, o que significa observar o Sabá e a dieta kosher (por exemplo, deveriam evitar comer carne de porco e mariscos); além, é claro, de se submeter à circuncisão. A doutrina ebionista estava, assim, em claro desacordo com os ensinamentos de Paulo. A esta altura, é bom lembrar que eles não propunham nada além do que sabiam a respeito de Jesus e de seus discípulos: eles eram judeus e viveram segundo a tradição judaica.

Para sustentar suas perspectivas, os ebonitas recorriam à autoridade de Pedro e do próprio irmão de Jesus, chamado Tiago, líder da igreja de Jerusalém, depois da suposta ressurreição do Messias.

Outro aspecto interessante da visão ebionita dizia respeito à identidade de Jesus. Eles não aceitavam a ideia de que Cristo preexistia à encarnação em Jesus, não estava ele junto a Deus antes de vir a Terra. Também não aceitavam a crença, católica, de que Jesus teria nascido de uma mulher virgem. Essa é uma crença ensinada no catolicismo. Outros segmentos do cristianismo a rejeitaram (o absurdo tem lá seus limites!).

Os ebionitas, que não tiveram acesso à versão do Novo Testamento que chegou até nós (uma falsificação de outras tantas que a precederam), sustentavam que Jesus era filho de Deus não porque tinha uma natureza divina, mas por adoção. É isso mesmo: Deus adotou Jesus para seu filho. Jesus, para os ebonitas, era um homem, de carne e osso, que nascera da união sexual entre seus pais. Mas era, evidentemente, um homem moralmente exemplar, que seguiu fielmente a Lei judaica proclamada por Deus ao seu povo.  Assim, Jesus morrera na cruz para a expiação dos pecados do mundo, cumprindo assim o que estava escrito nas Escrituras hebraicas. Como Jesus resignara-se ao sofrimento e ao seu destino funesto, Deus lhe concedeu ressuscitar dos mortos e o glorificou, conduzindo-o ao Paraíso. Abro parêntesis neste momento. É que sempre achei a doutrina da Salvação pelo sacrifício do cordeiro, que fora Jesus, esdrúxula, para dizer o mínimo. Ponderemos. Como era de costume entre os primeiros judeus, oferecia-se a Deus, no Templo, um animal sacrificado, para que, assim, se perdoassem os pecados. Os cristãos proto-ortodoxos compreenderam o sacrifício de Jesus segundo esse modelo ritualístico judaico. Cristo é o cordeiro de Deus oferecido em sacrifício para a expiação dos pecados do mundo. O cristão fiel enche a boca e fala com orgulho e com penosa e fervorosa gratidão que Jesus salvou cada um de nós (seja cristão ou não). Jesus morreu pela salvação da humanidade. Está certo. Mas morreu para nos livrar do quê? Ora, nada é mais claro: da ira de Deus que estava disposto a punir a humanidade pelos seus pecados (possivelmente, Deus estaria disposto a repetir o que fizera na época de Noé (é claro que a história do dilúvio e de Noé é um mito). Mas, enfim, se Cristo morreu para nos salvar, ele o fez para nos livrar da destruição que sobre nós recairia pela ira de Deus. Agora, compreendamos. Deus enviou seu filho e determinou seu sacrifício, para que ele, Deus, se contentasse e decidisse não mais acabar com o mundo. Isso faz algum sentido? Que espécie de Deus perverso e repugnante é este que destina ao suplício e à morte o próprio filho, para, assim, se comprazer e decidir não mais dizimar a humanidade? Essa doutrina só poderia sair da cabeça de um louco. Vamos pensar um pouco mais. Um pai ou um filho pode sacrificar sua vida em favor da vida um do outro. Um filho pode morrer para que seu pai viva, ou vice-versa. Mas não é isso que acontece nesta história repugnante. Deus tinha todo o poder para decidir não dizimar a humanidade; sendo um ser dotado de conhecimento perfeito, deveria se valer de outro recurso para tentar “salvar” a humanidade. Mas isso não incluía enviar seu próprio filho para que fosse crucificado. Os cristãos veem nisso um ato de amor de Deus, porque deu seu próprio filho em sacrifício. Mas sacrifício para quem? Para ele mesmo Deus!!! Quem vê nisso um ato de amor está moralmente esclerosado. Deus não precisava sacrificar seu próprio filho, se lhe estava ao alcance do poder (já que ele é dotado de poder infinito) agir de outro modo, por exemplo, perdoando os pecados, revelando-se como vinha se revelando aos profetas hebraicos. Deixemos o absurdo desta histórica, moralmente repugnante, embora crível e papagaiada por milhões de cristãos até hoje.

Voltemos aos ebionitas. Eles condenavam o sacrifício de animais. Para eles, o verdadeiro cristianismo consistia numa prática de estrita obediência aos ensinamentos judaicos de Jesus, que era Deus por adoção.

Vejamos agora outro grupo de cristãos considerados pela visão dominante, a dos cristãos ortodoxos, como hereges. Entram em cena os marcionitas. Eu os referi, em outro texto. Esse grupo tinha esse nome em virtude dos ensinamentos do teólogo, que vivera no século II, chamado Marcião.

Ao contrário dos ebonitas, os marcionitas eram antijudaicos. Eles rejeitavam não apenas os costumes judaicos, mas principalmente as Escrituras e o seu Deus. Quais eram as posições teológicas de Marcião, que causou alvoroço entre os líderes proto-ortodoxos? Ele, seguindo de perto Paulo, entendia que Cristo era o caminho para o verdadeiro conhecimento de Deus. Era preciso ter fé em Cristo para poder alcançar a salvação de Deus. (veja-se como a doutrina trabalha a dependência e a necessidade de salvação relativamente a Deus). Há uma relação tutelar entre Deus e o homem. Para Marcião, não importava a Lei. O Evangelho era a boa nova. A Lei abrigava mandamentos severos, culpa, julgamento, inimizades, punição e morte (ver. Ehrman, p. 159).

Tendo observado (e este é um ponto importante, quando adotamos a perspectiva da relação entre real e linguagem, que anunciei no início deste texto) que a imagem do Deus das Escrituras hebraicas (Antigo Testamento) não era compatível com o a imagem do Deus de que nos falou Jesus, nos Evangelhos, Marcião concluiu se tratar de dois Deuses diferentes. O Deus irado, vingativo, assassino dos judeus não era o mesmo Deus misericordioso, amoroso e gracioso anunciado por Jesus. Marcião foi mais adiante e desenvolveu a concepção de que o Deus dos judeus é o que criou o mundo; e o Deus de Jesus até àquela altura nunca tinha se comprometido com o mundo. Dele nunca ninguém, na verdade, tinha ouvido falar, até a vinda de Cristo. O Deus do Antigo Testamento era o Deus do povo de Israel. Era um juiz que concedeu a seu povo a Lei. O Deus de Jesus, por outro lado, não considerava os judeus seu povo; e não era um Deus que instituiu uma Lei. Agora, percebam como, a partir do reconhecimento por Marcião de duas formas distintas de representação de Deus (não que ele acreditasse se tratar de “representações”, é claro; para ele existiam realmente dois deuses), a história do sacrifício de Cristo muda sensivelmente.

Enquanto, para Marcião, o Deus judaico era um Deus que exigia obediência e punia transgressões e, por isso, vivia encolerizado, o Deus de Jesus, de quem até então ninguém havia ouvido falar, veio a este mundo, através de Jesus para livrar as pessoas do Deus vingativo dos judeus. Como observa Ehrman,



“(...) Jesus veio de forma completamente inesperada e fez o que ninguém poderia jamais ter esperado: sofreu a punição pelos pecados de outras pessoas, a fim de salvá-las da ira justa do Deus do Velho Testamento”.

(p. 160)


O que vemos aqui, caro leitor? Tudo bem, o Deus de Jesus, sendo mais poderoso, poderia ter dado cabo do Deus judaico, sem precisar sacrificar o próprio filho; mas agora estamos diante de uma razão mais aceitável por que Jesus foi sacrificado. Aceitável, do ponto de vista lógico, mas não justificável, do ponto de vista moral. Que fique bem claro! De qualquer modo, a história não deixa de ser menos crível e estranha. Porque, afinal, o sacrifício de Jesus haveria de  surtir o efeito pretendido? Ou seja, o mero sacrifício de Jesus fez com que o Deus judaico desaparecesse, deixasse de existir, em algum sentido? Continuo insistindo em que o Deus cristão deveria ter evitado o sacrifício do próprio filho, adotivo ou não, mas filho. E não é menos verdade que os judeus continuam adorando YHWH, o Deus cujo nome é impronunciável.

Para Marcião, portanto, o Evangelho era a boa-nova que não poderia vincular-se aos velhos escritos judaicos. Marcião acreditava (e nisso tenho de concordar com ele, uma visão sóbria que não se encontra mais entre os cristãos de nosso tempo) que um Deus bom não poderia criar um mundo cheio de miséria, desastres, doenças e morte. Esse Deus só poderia ser mal. Para ele, um Deus responsável pelo próprio mal; um Deus criador do mal. Era o Deus de Jesus que era bom.

E quanto à natureza de Jesus? Marcião ensinou que Jesus não era um homem de carne e osso. Na verdade, achava que ele sequer tinha corpo. Também acreditava que ele sequer tinha nascido. Ele só parecia ser humano.

Devo reconhecer, a esta altura, que o sacrifício de Jesus não parecia ter o objetivo de liquidar o Deus judaico, mas tão-só libertar as pessoas de sua tirania. Vejamos o que nos ensina Ehrman a esse respeito:



“Jesus pagou o preço pelos pecados de outras pessoas ao morrer na cruz. Tendo fé em sua morte, pode-se escapar aos espasmos do encolerizado Deus dos judeus e ter a vida eterna com o Deus de amor e misericórdia, o Deus de Jesus. Mas como Jesus poderia morrer pelos pecados do mundo se ele não tinha um corpo real? Como poderia seu sangue derramado trazer expiação se ele não tinha sangue de fato?”

                                       

                                               (pp. 160-161)



Deixando de lado os problemas de ordem lógica, na doutrina de Marcião, interessante é entender que “a morte de Jesus era um tipo de armadilha que enganou o ser divino que controlava as almas humanas perdidas pelo pecado, e que o Deus dos judeus foi forçado a libertar as almas daqueles que acreditavam na morte de Jesus, sem perceber que, na realidade, a morte foi só aparente” (p. 161).

Agora, sim! O Deus dos judeus não foi aniquilado numa batalha cósmica contra o Deus de Jesus. O que ocorreu, na visão de Marcião, foi o uso de um estratagema pelo Deus cristão para ludibriar o Deus judaico, forçando-o a libertar as almas dos pecadores. Restaria saber se Marcião teria alguma resposta para a pergunta: O que foi feito, então, do Deus judaico? Ele continua a existir em competição com o Deus de Jesus? Teria ele se aliado a Satanás para atentar a humanidade? Infelizmente, ficaremos sem saber as respostas. Antes de apresentar as conclusões a que podemos chegar, quero elencar as diferenças entre as visões ebionitas e marcionitas, a título de síntese.

Os ebionitas defendiam que:

a) era preciso tornar-se judeu para seguir corretamente a Deus;

b) havia apenas um Deus;

c) era necessário permanecer fiel às leis do Antigo Testamento e o considerar como a revelação única do Deus verdadeiro;

d) Jesus era um ser completamente humano.



Os marcionitas defendiam que:

 a)      seguir a lei judaica era inapropriada para que se conseguisse ter uma relação correta com Deus;

b)      havia dois deuses;

c)      as leis judaicas deveriam ser rejeitadas e que o Velho Testamento fora inspirado por um Deus inferior;

d)      Jesus era inteiramente divino.



Outras diferenças podiam ser apontadas, mas não me preocupei em ser exaustivo. Concluamos, então.



Comecei este texto propondo a necessidade tanto de um ateísmo esclarecido quanto de uma fé esclarecida. Um ateu esclarecido pode mostrar, com base nos seus conhecimentos históricos da formação do cristianismo, dos quais são testemunho este texto, que cada grupo cristão acreditava deter a verdade sobre Deus. Cada qual tinha uma visão sobre quem foi Jesus, de modo que foi um acidente histórico o fato de, hoje, se acolher um conjunto de crenças que são consideradas “verdadeiras” ou “corretas”. No livro, Ehrman especula sobre o que teria sido o cristianismo, se os grupos vitoriosos fossem ou os ebionitas ou os marcionitas. Certamente, o cristianismo hoje não seria o mesmo.

Um ateu esclarecido, ao invés de martelar a ideia de que Deus é um ser imaginário, uma ilusão, mostrará que não se pode confiar na Bíblia como um testemunho fidedigno da existência de Deus. Certamente, por muitas razões, como a de que o Deus do Antigo Testamento – e isso reconheceu muito bem Marcião – não pode ser o mesmo Deus do Novo Testamento. Mas não devemos nos apressar em julgar ser o Deus do Antigo Testamento completamente distinto do Deus do Novo Testamento. Não nos esqueçamos de que podemos ler em Mateus 18: 8:



“Portanto, se tua mão ou o teu pé te escandalizar, corta-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida coxo, ou aleijado, do que, tendo duas mãos e dois pés, seres lançados no fogo eterno”.



E em Mateus 8:12:



“E os filhos do reino serão lançados nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes”.



O Deus de Jesus também tinha um inferno destinado aos ímpios, o que mostra que, pelo menos quem escreveu Mateus, afinou os ensinamentos de Jesus com o imaginário judaico de Deus. Na verdade, o autor de Mateus defendia a ideia de que a salvação só viria com a observância de todos os mandamentos.  O Jesus de Mateus foi construído numa visão estritamente judaica.

O ateu esclarecido deverá apenas tomar o cuidado quando da consideração dos evangelhos, porque seus autores discordaram entre si. Há uma série de inconsistências entre os textos.

Quanto ao leitor, precisa reter o seguinte: a) vimos que, na história do cristianismo, uma história complexa e marcada por diversidade de perspectivas e interesses, muitas eram as formas como Deus era pensado; muitas eram as formas como Deus era construído. O que nos chegou foram as construções discursivas de Deus do grupo vitorioso, o dos proto-ortodoxos; b) não dispomos de meios para determinar se as construções discursivas de Deus que nos foram legadas são as verdadeiras. Claro está que não há como provar que Marcião estava errado. Ele até obteve muito sucesso, fundando igrejas por onde passou.

Um Deus que se acredita grandioso e dotado de infinita sabedoria deveria ter-se revelado de tal modo que não desse margem a muitas especulações a seu respeito. A história prova que cada grupo cristão tinha uma visão sobre quem era Deus, sobre como agia, sobre como se relacionava com Jesus, etc.

Um Deus transcendente é, na verdade, uma construção discursiva; na verdade, Deus é imanente ao discurso produzido por seres humanos. Deus é imanente ao processo histórico em que seres humanos estão envolvidos.

Se não assumirmos, com base no que apreendemos sobre a diversidade de evangelhos, alguns perdidos para sempre, outros descobertos, com base nas evidências de que foram necessários muitos conflitos e disputas para o estabelecimento da visão ortodoxa (correta) do cristianismo (sem que Deus tenha feito nada a respeito para pôr fim às disputas e revelar quem estava com a razão), que, afinal de contas, foi forjado na imaginação de muitos homens que precisavam suportar as condições de opressão em que viviam, como, então, podemos explicar por que foram possíveis diversas visões teológicas nos primórdios do cristianismo?

Não encare, leitor, este texto como a expressão de um ataque a fé ou à religião. Eu apenas procurei elucidar os interessados sobre uma parte da verdadeira história cujo processo explica o cristianismo tal como o conhecemos hoje. Tenho de reconhecer, contudo, que também acalentei a esperança de que os leitores viessem a perceber que o Deus em que creem é um Deus que tem uma história, que esse Deus tem raízes na história do antigo Oriente Médio. É um Deus que, graças muito ao papel do imperador romano Constantino (séc. III d.C), se impôs a maior parte do mundo. Não obstante, o fato de o Deus judaico-cristão não ter alcançado autoridade entre todos os povos do mundo (haja vista a diversidade religiosa em todo o mundo; os haitianos, por exemplo, adeptos da religião vodu, o ignoram) deveria ser uma evidência de que ele é um Deus que não transcende à história; é, ao contrário, um Deus que tem uma história. Qualquer pessoa que teve o privilégio de concluir sua escolarização média aprendeu, por exemplo, que povos das Américas do Sul e Central conheceram o cristianismo católico pela força dos colonizadores; povos que antes cultuavam muitos deuses se viram forçados a aceitar a adoração a um único Deus, que se impôs como o verdadeiro. Não é novidade alguma que a expansão da fé cristã num Deus único já vinha se dando, pelo menos desde que Constantino ascendeu ao poder de Roma. Quero dizer que sozinho Deus não se faria presente para muitos povos. Acho isso tão óbvio, tão claro. Deus existe não como ser transcendente ao mundo, mas como entidade ideológica (ideológica porque produzida por um sistema de valores, ideias e crenças) forjada num processo histórico determinado. Se Deus é carecido de materialidade natural (ele não é como a natureza e todo que nela há), não lhe falta materialidade histórica.

É simples aos que creem em Deus justificar o desconhecimento de Deus por outras comunidades humanas pela ignorância de seus indivíduos ou pela crença de que eles estão enganados sobre suas crenças religiosas, de que estão enganados sobre seus deuses, que não são reais, que não são verdadeiros. Trata-se de uma justificativa ideológica, porque mascara as verdadeiras razões por que eles desconhecem ou não têm necessidade do Deus cristão. Não é que eles estejam enganados (aliás, eles podem estar tão enganados quanto os próprios cristãos em relação ao seu Deus); eles simplesmente, criaram um sistema cultural que não contempla a crença num Deus único e transcendente; a razão por que não precisam acreditar num Deus tal como o do cristianismo, o do judaísmo ou do islamismo, é que lhes basta seu sistema de crenças sobrenaturais e suas divindades.  Esse sistema de crenças e as divindades referidas por ele funcionam em sua cultura. Se atendem às suas necessidades de sobrevivência em grupo, então não é necessário recorrer a outro sistema de crenças e a outra divindade.

Então, quando você acordar pela manhã e agradecer a seu Deus o dia lindo que lhe proporciona e desejar convocar a todos para que tomem parte nessa gratidão, lembre-se de que você está assumindo a existência de um Deus que não, necessariamente, será aceito por todo o mundo, de que muitos, pelas razões que apontei e por outras tantas que me escaparam, simplesmente o ignoram, e lembre-se também de que tudo que sai de sua boca a respeito de Deus tem uma história e isso é verdadeiro também em relação a todos os nossos discursos. Não espero que isso  o/ a leve a assumir o ateísmo ou o agnosticismo, mas que possa fazer com que se interesse, ao menos, por compreender melhor sua própria fé.