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quinta-feira, 26 de novembro de 2015

"Nietzsche foi um bon vivant: ele soube desferir seus golpes" (BAR)

                                      


                

                  Contra o cansaço endêmico


Em entrevista a Silvie Jaudeau, o filósofo romeno E. M. Cioran responde a diversas perguntas sobre sua vida e obra. A certa altura, Jaudeau pergunta ao filósofo: por que o senhor rompeu com a poesia? -  ao que responde Cioran:[1]


“Por esgotamento interior, por enfraquecimento da minha capacidade de emoção. Chega um tempo em que se fica ressecado. O interesse pela poesia está ligado a essa frescura do espírito sem a qual rapidamente os artifícios são percebidos. O mesmo vale para a prosa. Na medida em que fico mais velho, escrever não me parece essencial. Livre de um ciclo de tormentos, descubro enfim a dor da capitulação (...)”.



O esgotamento interior e o ressecamento a que se refere Cioran não são apenas sintomas do envelhecimento e da proximidade do fim da vida. São sintomas da apreensão da vanidade de tudo que, outrora, lhe parecia indispensável. Na juventude, para enfrentar suas crises de insônia e evitar que, afundado em seus tormentos, viesse a pôr fim a sua vida, Cioran dedicou-se a escrever. Escrever, segundo ele mesmo confessou, foi sua única alternativa para evitar o suicídio. A resposta de Cioran é reveladora de um homem já cansado da vida; mas esse cansaço não é meramente um estado fisiológico tardio; trata-se de um estado que o acompanhou durante quase toda a sua vida, que marcou profundamente sua obra. Que este cansaço  tenha-o mortificado ainda na juventude prova-o o texto Esgotamento e agonia de Nos Cumes do Desespero, no qual o jovem Cioran escreveu “quero morrer, mas lamento querer morrer”[2]. As páginas de Cioran não são, para mim, simples objetos de estudo e reflexão; são testemunhos de experiências que me são congênitas. Todo o sentido da filosofia, para mim, se justifica nessas páginas. A atmosfera asfixiante, de um pessimismo clarividente e desesperador, combinado com um ceticismo corrosivo, deleita meu espírito tanto quanto se parece com a atmosfera em que, há alguns anos, compus muitos de meus textos.
Ainda uma segunda pergunta dirigida a Cioran acarreta uma resposta que deve ser aqui referida. Jaudeau pergunta ao filósofo romeno: A sua verdade não reside no silêncio oposto hoje aos que ainda esperam livros do senhor?. Leia-se a resposta.


“Talvez; mas se não escrevo mais é por estar farto de caluniar o universo. Sou vítima de uma espécie de desgaste. A lucidez e a fadiga venceram-me – falo de uma fadiga filosófica tanto quanto biológica -, algo se rompeu em mim. Escreve-se por necessidade, e a lassitude elimina essa necessidade. Chega um tempo em que nada disso interessa mais.”



Eis aí, mais uma vez, o testemunho de alguém que foi vencido pela vida; não porque foi inapto fisiologicamente para suportá-la, mas justamente porque soube resistir a ela tão profundamente que a desmascarou para apresentá-la tal como é: um acontecimento sem sentido e sem propósito. A lucidez lhe foi o ônus por ter suportado durante tanto tempo a vida. A lucidez, porquanto é um estado de compreensão penetrante, cirúrgica, inquietante, revela aquilo que se mantivera encoberto por nossas ilusões (no sentido freudiano, a saber, por crenças motivadas pelo desejo). Por isso, em Do inconveniente de ter nascido, ele asseverou: “Relativamente a todo e qualquer ato da vida, o espírito desempenha o papel de desmancha-prazeres”.[3] Esse papel é extensivo à lucidez; no entanto, mais do que ser um estraga-prazeres, a lucidez costuma fustigar a ponto de, como no caso de Cioran, tornar-nos lassos. O tempo em que a lucidez atinge seu ápice é o tempo em que “nada mais interessa”.
De que modo busco compensar o cansaço contaminante de Cioran é o que minhas próximas linhas hão de explicar. A explicação, a fim de que seja o mais inteligível possível, deve começar pelo esclarecimento do significado deste meu enunciado: “Ter um alvo, um adversário sobre o qual possamos lançar nossos ataques – é este meu remédio contra o cansaço endêmico da vida”.
Esse enunciado, eu o produzi entre um trecho e outro de Nietzsche. Enquanto me mantinha debruçado sobre o livro A Vontade de Potência, ocorreu-me que Nietzsche pôde viver a vida que tanto o ocupou em sua filosofia, em meio aos seus tormentos costumeiros, porque soube aproveitar a vontade de viver para atacar seus adversários com o refinamento de quem sabe esperar o tempo oportuno. Quem são os adversários aos quais se opunha o autodenominado primeiro imoralista? É o próprio Nietzsche que nos esclarece, em Ecce Homo (Por que sou um destino?):


No fundo, são duas as negações que encerra em si a minha palavra imoralidade. De um lado, eu nego um tipo de homem que até agora tem sido considerado como superior: o dos bons, dos benévolos, dos caridosos; de outro, contradigo uma espécie de moral que chegou a adquirir certa preponderância, chamada mais claramente a moral decadente, a moral cristã”.


A filosofia nietzschiana combinou duas formas de entusiasmo: um entusiasmo ofensivo, combativo, que identificou os adversários para atacá-los  em suas trincheiras; e um entusiasmo afirmador, graças ao qual nos ofereceu belas páginas de uma lucidez fortificante. Contra o veneno que enfraquece a vida, Nietzsche ofereceu um antídoto: o seu Zaratustra, o seu homem dionisíaco, o seu amor fati. Nietzsche, que se insurgiu ferozmente contra as tendências negadoras da vida – reunidas sob as categorias do niilismo e do pessimismo, em suas formas diversas – não evitou o reconhecimento de que a vida é desfazimento, é dor, é sofrimento. Sua ousadia consistiu em condenar aqueles que, enfraquecidos pela consciência desta verdade, insistiam em desaprová-la, em condená-la.

A condição de existência do homem é a mentira; de forma diversa, seria não querer ver de modo recalcitrante como é feita, no fundo, a realidade. Esta não é tecida de forma a estimular a todo momento os instintos de benevolência, nem muito menos de maneira a permitir em qualquer ocasião a ingerência de mãos estúpidas e boas”.



Segundo Nietzsche,  o otimista é tão decadente quanto o pessimista; mas, ainda consoante Nietzsche, o otimista talvez seja um tipo mais nocivo porque nunca diz a verdade. Costumeiramente afirma sua “felicidadezinha” na mentira. É um tipo caluniador da vida.


Eu sou o primeiro imoralista; por isso, sou também o destruidor por excelência”.


O primeiro imoralista foi um destruidor que se pretendia também criador, que profetizava um tempo em que os homens seriam artistas.
Seu ateísmo foi reconhecido como instintivo, conforme atesta na passagem seguinte do texto Por que sou tão inteligente:

““Deus”, “imortalidade da alma”, “redenção”, “além”, todos esses são conceitos que nunca levei em conta; nunca com eles sacrifiquei o meu tempo, nem mesmo em criança; talvez nunca fosse bastante ingênuo para fazê-lo? Para mim, meu ateísmo não é uma consequência, nem mesmo um fato novo: existe comigo por instinto. Sou bastante curioso, suficientemente incrédulo, demasiado insolente para contentar-me com uma resposta tão grosseira. Deus é uma resposta rude, uma indelicadeza contra nós, pensadores; antes, dizendo-se a verdade, não é senão um tosco empecilho contra nós mesmos: não deveis cogitar dele!”.



O Deus cristão esteve, sem dúvida, na linha de frente dos ataques ferinos de Nietzsche. Deus – bem notara o filósofo – era a própria antítese da vida. O cristianismo paulino não é senão a expressão da decadência. O cristianismo, retirando da vida qualquer valor em favor de um “além-mundo”, caracterizado por levar à fadiga os instintos, é uma religião niilista. Nietzsche acusa o cristianismo – e a prática missionária de Paulo, particularmente – de estimular a má consciência “contra o sentimento de dignidade da alma nobre”. Contra o Deus que enfraquece, Nietzsche escreveu:

Ensino o não em face de tudo quanto torna fraco – de tudo quanto esgota. Ensino o sim em face de tudo quanto fortifica, do que acumula forças, do que justifica o sentimento de vigor”[4]


A radicalidade da crítica do conceito de Deus, levada a efeito por Nietzsche, repousa no fato de ele ter conseguido, como poucos, operar uma incisão semântica que permitiu expor os sedimentos de sentido perniciosos encobertos por um longo trabalho de doutrinação. Em Ecce Homo, lemos:

“O conceito de “Deus” foi arquitetado como antítese ao de vida, tendo sido reunido nele, em terrível unidade, tudo o que havia de abjeto, de venenoso, de calunioso: todo o ódio mortal contra da vida”.


Com a invenção do conceito do Deus cristão, o homem torna-se culpado; a vida, objeto de renúncia; a “mundanidade”, de desaprovação.
O que as páginas de Nietzsche nos ensinam, em essência, é que a filosofia só pode estar a serviço da vida (e não pode ser diferente!) se for para afirmá-la contra as diversas tendências que se orquestram para enfraquecê-la, para negá-la.  A vida, enquanto vontade de poder, é um pathos – o fato donde resulta um devir e uma ação.
De que modo, afinal, compenso o peso do cansaço mortificante das páginas cioranianas? A resposta salta evidente: é necessário sorver o vigor nietzschiano compreendendo que o impulso para o "viver mais" depende da força com a qual atacamos as tendências que conspiram para aniquilá-lo.





[1] CIORAN, E. Entrevistas. Porto Alegre: Sulina, 2001, p. 29.
[2] CIORAN, E. Nos Cumes do Desespero. São Paulo: Hedra, 2011, p. 29
[3] CIORAN, E. Do inconveniente de ter nascido. Lisboa: Letra Livre, 2010, p. 44.
[4] NIETZSCHE, F. Vontade de Potência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 201.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

"O conhecimento é uma chaga para a vida, enquanto a consciência é uma ferida aberta no âmago da vida" (Cioran)

                            

          A filosofia do desespero: o Nada e o Indivíduo [1]


Apresentação e Justificação

Inscrevendo-se no lugar de encontro entre a filosofia trágica e a filosofia pessimista, este projeto vincula-se ao programa de pesquisa em cujo escopo repousa a questão da inscrição do sagrado no pensamento filosófico contemporâneo, reconhecidamente afetado pelo niilismo, que será posicionado, no próprio trâmite investigativo, em cotejo com a metafísica cristã. Nosso intento consiste em investigar o modo como a hierofania (manifestação do sagrado) se inscreve no pensamento dos filósofos Sören Kierkegaard (1813-1855) e Emil Cioran (1911-1995), dois expoentes do que podemos chamar de filosofia do desespero. O instrumental conceitual de que nos serviremos para empreender nossa investigação será fornecido por Nietzsche e Heidegger, filósofos que, como patenteia Cabral (2014), abrem caminho para pensar a inscrição do sagrado na experiência niilista que profundamente marca a vida e o pensamento filosófico contemporâneos. A Nietzsche tomaremos os termos vontade de poder, diosinio, eterno retorno e além-do-homem, os quais, a despeito de suas especificidades semânticas, se enfileiram num campo hermenêutico que sustenta sua filosofia, enquanto filosofia de afirmação da vida. Todos esses termos dão testemunho do esforço empreendido pelo filósofo para superar o niilismo, cujas raízes ontológicas podem ser compreendidas pela consideração da questão da morte de Deus. Já em Heidegger, na medida em que a questão da reinscrição do sagrado se articula à verdade do acontecimento do ser enquanto tal, estaremos interessados em acompanhá-lo no percurso de seu método fenomenológico-hermenêutico, que lhe serviu para investigar a vida fática do ser aí humano. De modo algum, temos a pretensão, de resto infactível, de recobrir toda a extensão da analítica heideggeriana. Estaremos, por isso, interessados em, partindo do seu apelo a que se retome a questão do Ser em geral, acompanhá-lo em sua análise do Dasein (ser-no-mundo), naquilo que ela nos aproveita para a investigação do modo como o sagrado se inscreve e se ressignifica num pensamento que pensa o ser-no-mundo  a partir do lugar do desespero.
Urge dizer que a primeira questão que se nos apresentou de modo premente, antes mesmo de nos pormos a redigir este projeto, e que acena ao primeiro e fundamental desafio, consiste em como pensar a hierofania no interior de um pensamento filosófico que se faz na relação de um eu desesperado com um mundo esvaziado de qualquer sentido orientador. Não menos urgente é assinalar a importância que terá o conceito de modo de ser em nossa pesquisa. Nesse tocante, nossa investigação se norteará pela hipótese segundo a qual o niilismo, sobre o qual discorreremos mais adiante, enquanto acontecimento histórico e estrutural, foi decisivo para a produção do modo de ser próprio do homem contemporâneo: o homem desesperado. Daí a pertinência da questão sobre como é possível pensar a reinscrição do sagrado nessa existência desesperada.


  1. O Niilismo e a Morte de Deus

1. 1. O Niilismo como princípio de determinação

Principiamos com a observação de que, segundo Cabral (2014, p. 12)[2], o niilismo é um princípio de determinação da história ocidental. A morte de Deus, que é uma conjuntura do nosso tempo, por seu turno, revela a positividade do niilismo. Citemos o autor: o niilismo “é o acontecimento fundamental de nossa história atual” (p.16). Não perdemos de vista, com base em Cabral, o fato de que o niilismo não pode ser pensado reducionalmente em termos de deteriorização dos antigos princípios vinculativos (p. 23). Ainda segundo Cabral (p. 25), a caracterização negativa do niilismo que toma como causas os sintomas, quais sejam, “negação da instituição familiar, dissolução dos paradigmas políticos, rejeição da autoridade dos antigos saberes”, remonta ao romance do escritor russo Ivan Turguêniev.

“As interpretações hodiernas se mostraram insuficientes, pensando o niilismo como perda dos princípios vinculativos da tradição, e as interpretações não se preocupam em questionar a condição de possibilidade dessa perda. Sintomatológicas, elas gestaram diversas estratégias nostálgicas e remoralizadoras (...). Trata-se de assumir o niilismo como conjuntura atual do Ocidente e reconduzi-lo à sua condição de possibilidade” (Cabral, 2014, p. 26)


No esforço por repensar o niilismo, é indispensável, portanto, trazer à tona, na investigação, suas raízes ontológicas. O niilismo não se reduz às suas manifestações culturais. O que é preciso investigar é o lugar de determinação de sua essência.
A compreensão do niilismo como um fenômeno com raízes ontológicas torna razoável nossa hipótese de que ele contribui decisivamente para “produzir” um modo de ser característico do homem pós-moderno[3]: o modo de ser desesperado. A estrutura ontológica do mundo é abalada. O mundo não é mais a casa, o lar em que se encontra o homem. O mundo não mais se apresenta como um campo de sentidos sólidos, garantidos por uma heteronomia. A relação entre o homem e o mundo sofre uma irreparável fissura, através da qual irrompe no ser do homem o desespero. Essa relação entre o homem e o mundo passa a ser uma relação desesperada, uma relação em que o homem experiencia um excruciante abandono. Tome-se o que entendemos por “mundo”.
Note-se, de inicio, que sem linguagem, não há psiquismo, mas tão-somente processos fisiológicos, porquanto o que define o conteúdo da consciência são fatores sociais. A consciência se constitui do conjunto dos discursos que o indivíduo interioriza ao longo de sua vida. O homem aprende a compreender o mundo pelos discursos que interioriza e, na maior parte do tempo, os reproduz em sua fala.
O que chamamos de mundo humano não é somente a totalidade das coisas existentes como dadas à experiência sensorial humana. O conceito de mundo não se reduz, evidentemente, à noção de planeta em que habitamos.
O que é, então, o mundo? Num primeiro momento, realçando a importância da dimensão do simbólico na definição de “mundo”, podemos dizer que o mundo é um campo experiencial entretecido de significados em relação ao qual se constitui o homem e onde ele se conhece. O mundo só existe para o homem, porque é apenas para ele que esse mundo pode ser nomeado. O mundo é tudo aquilo que pode ser dito; é a totalidade ordenada passível de ser nomeada, de modo que as coisas só podem existir para uma consciência humana na medida em que são passíveis de receber um nome. Mas o vocábulo “coisas” designa não só os objetos materiais, acessíveis à nossa experiência sensível, mas também as entidades mentais, como ideias, sentimentos, entes imaginários, etc.
Não há existência possível para o homem fora da dimensão simbólica: tudo que existe para o homem tem um nome. Aquilo que não tem nome, em última instância, não existe, tanto no mundo exterior quanto no mundo interior da mente. O que não tem nome não pode ser pensado; e se não pode ser nomeado nem pensado, não existe.
Embora a linguagem verbal seja o sistema fundamental de criação e significação do mundo – a base fundamental da cultura e da sociedade -, não ignoramos a existência de outras formas de linguagem, como a da matemática, a das artes, as gestuais, etc. Aliás, a linguagem corporal é parte constitutiva do processo de produção de nossas interações verbais. Quando falamos, fazemos gestos com as mãos, revelamos expressões faciais, por exemplo, franzindo as sobrancelhas quando não concordamos com o que nos dizem, etc. As expressões de nosso corpo estão em sintonia com o significado de nossas expressões linguísticas. Não franzimos as sobrancelhas ao mesmo tempo em que demonstramos verbalmente contentamento. Franzir as sobrancelhas pode sinalizar reprovação e é de esperar que se acompanhe de expressões linguísticas que demonstrem reprovação ou insatisfação.
O mundo humano é também um gigantesco acervo de conceitos e conhecimentos. Quanto mais palavras conhecemos, quanto mais conceitos conseguimos articular, maior será o nosso mundo, maior é a extensão e alcance de nossa consciência. A extensão de nossa linguagem é proporcional à extensão do conhecimento que temos do mundo.
Num segundo momento, devemos reconhecer que estamos ativamente envolvidos com o mundo; tanto o mundo como as coisas são então percebidos como dotados de significado em função desse envolvimento ativo. A objetividade do mundo deriva de nossa experiência subjetiva com ele. Essa experiência subjetiva é primária. Os nossos processos cognitivos têm por base mesma a percepção e nossas capacidades sensório-motoras. Nossa cognição resulta dessas capacidades e de nossas ações no mundo.
O Dasein é sempre um ser interessado no mundo. O significado das coisas deriva do nosso interesse nelas, e disso resulta o caráter de nosso envolvimento com elas. Naturalmente, nosso envolvimento com o mundo não é tão-somente intelectual ou teórico, mas também emocional, prático, estético, imaginário, etc.
Nossa experiência é sempre um mundo pleno de significados. O mundo que um indivíduo percebe é, em certo sentido, o seu próprio mundo, diferente do mundo percebido por outro indivíduo. Esse mundo próprio é um mundo significativo e os significados que têm são aqueles que o indivíduo percebe.
Uma vez que o mundo é o horizonte a partir do qual é possível a experiência humana, o mundo não se reduz ao meu próprio mundo. O mundo e as coisas que nele encontro têm uma propriedade que independe de meus desejos e de meus interesses, de modo que grande parte dos significados das coisas que nele se topam são significados que encontro no mundo. A ideia de mundo como totalidade de significados implica a assunção de que as coisas só ganham significado na sua relação com outras coisas e seus significados, no horizonte da totalidade do mundo.
Finalmente, o sujeito, que não existe senão no mundo e em sua relação ativa com o mundo, é sempre sujeito que age sobre o mundo e sofre dele uma ação. Esse sujeito não se identifica com uma consciência abstrata, mas é sujeito corporificado. A experiência que temos do mundo tem como base nosso corpo: o mundo não é só objeto de reflexão e de interpretação; é mundo que experimentamos com o corpo, ao qual respondemos subjetivamente com o corpo. Em última instância,  o mundo, antes de ser mundo que compreendemos, é mundo que sentimos.
Com vistas a compreender melhor a dimensão do abalo niilista, ponderemos, brevemente, sobre o significado de existir. Existir é, decerto, mais do que o viver biológico. Se os animais são, se a planta é ( em-si, segundo Sartre), o homem é ser para-si, ao que nós acrescentaríamos, ser-com. Existir é um movimento relacional com o sentido, que é seu fundamento. Para o homem, existir é estar consciente da relação com o em-si. A existência do para si (a consciência humana), dirá Sartre, é liberdade e transcendência, pois que nega sua facticidade tanto quanto os objetos. O homem existe sabendo o que não é. E a relação com o sentido é sempre de abertura para um além de sua facticidade, de sua condição natural. O sentido é lugar de transcendência do homem em relação a essa condição, que não pode negar completamente, é claro (não pode deixar de ser finito), mas que lhe permite continuar a existir na condição de ser-para-a-morte (Heidegger). Ora, se o Dasein é constitutivamente um ser-para-a-morte, se a morte é sua possibilidade mais autêntica, se essa condição é fonte de angústia, não pode o homem abrir mão do sentido, de existir tecendo sentido. Se existir é correr para a morte inevitável; se, como notara Durkheim, a sociedade é um bando de homens que caminha em direção à morte inevitável, o homem está condenado, ao longo dessa corrida, a produzir sentidos, a tecer de significados as malhas de sua existência.
Um exemplo extremamente interessante que ilustra a indispensabilidade do sentido para o existir humano é o fenômeno do suicídio.  É um truísmo dizer que somente os seres humanos são capazes de se suicidar, mas o que daí se segue tem importância filosófica. O homem é o único ser que, deliberadamente, pode dar cabo de sua própria vida e não deixa de ser espantoso, para muitas pessoas, que alguém que goze de perfeita saúde  possa se matar. É possível que as razões para explicar o suicídio variem bastante, mas vistas em conjunto, de uma perspectiva filosófica, elas indicam a percepção pelo indivíduo da absurdidade de sua existência. O suicídio também ajuda-nos a ver a importância da dimensão do sentido para a própria conservação da existência. O suicídio parece testemunhar em favor do fato de que, para o ser humano, a manutenção do viver é dependente de sua coerência simbólica. Pessoas se matam porque a vida deixou de fazer sentido para elas. O niilismo dilui o enraizamento ontológico do homem no mundo, de modo que o homem se sente existindo num vácuo que lhe inspira terror.
Tomemos, agora, a importância do anúncio da morte de Deus. Novamente é Cabral (p. 26) que nos adverte de que a questão da morte de Deus, longe de servir à caracterização definitiva do niilismo, constitui o caminho para a compreensão de suas raízes ontológicas.
É claro que o niilismo exibe um caráter histórico, mas apenas na medida em que marca a presentidade de um processo histórico. O niilismo não só é “um princípio constitutivo de nosso presente histórico”, como também “vigora como determinante do desdobramento de nosso tempo” (p. 27). O niilismo é estrutural, e o é porquanto não se reduz às suas manifestações culturais, mas “acomete o modo de determinação do mundo histórico que é o nosso” (p. 27).



2. O niilismo, segundo Heidegger

Heidegger se lançou à investigação fenomenológica do niilismo, tendo em vista a descrição de suas raízes históricas e mais profundas. Para tanto, situou sua análise no lugar de abertura do ser, na ‘clareira’ (Litchung) do próprio ser.  É este o lugar de abertura de revelação-ocultamento do ser ao homem, que caracteriza a história do pensamento ocidental.
O homem ocidental experiencia o ente que se lhe apresenta de diversas formas, ao longo do tempo: algo gerado pela natureza ou artefato, criação divina, coisa extensa, objeto, matéria submetida à análise, à prova e à pesquisa cientificamente orientada. Vê-se, pois, que o “ser do ente” é algo que se apresenta cada vez de um modo diferente.
Heidegger observa, no entanto, que o homem, cada vez em que se debruça sobre a compreensão do que são os entes em seu ser, ele transcende o plano dos entes. Essa transcendência é metafísica. A metafísica é, portanto, para o homem ocidental, o modo fundamental de compreensão do ser do ente. A metafísica acontece no “apresentar-se” do ente, de uma certa forma, ao homem que se ocupa de compreendê-lo.
Quando o ente é definitivamente compreendido e determinado num dado momento histórico, por exemplo, como vontade de poder ou como trabalho, quando o que mais importa é se apropriar do ente como fonte possível de energia como coisa a serviço do trabalho técnico-científico, a abertura originária do ente, isto é, seu ser suscetível de diferentes compreensões se fecha. Disso resulta não só o esquecimento do ser, como também o esquecimento desse esquecimento. É justamente essas duas formas de esquecimento que caracteriza, para Heidegger, o niilismo. O niilismo, na visão heideggeriana, é esta situação em que “não há mais nada” do ser – donde a necessidade premente de retomar a pergunta sobre a essência do ser.



3. A morte de Deus como imperativo histórico

Em primeiro lugar, é premente considerar a pergunta “o que é Deus, para Nietzsche?”. Para Nietzsche, Deus congrega em si diversos conceitos metafísicos tradicionais: o ser, o incondicional, o Bem, o verdadeiro, o perfeito. Deus, nesse sentido, dota o devir de um estrutura de sentido sob uma pluralidade de elementos aparentemente caóticos (p. 29). Mas Deus também representa o princípio que articula e determina as diversas ações humanas, mormente em razão da influência do pensamento medieval cristão. Segundo Cabral (ib.id.), “o conceito de Deus aparece também como sentido existencial para as ações e, assim, justifica o devir teórico e praticamente”.
O que sucedeu, então? O acontecimento histórico da morte de Deus acarretou no homem o sentimento de abandono, visto que esse acontecimento significou a dissolução da estrutura sólida de caráter metafísico-existencial (p. 29-30). Enfatize-se que Deus encerrava em si o princípio metafísico e o sentido último da existência. Daí se segue que Deus era o signo que permitia pensar o absoluto, ter acesso a ele. Deus também representava a instância de estruturação e normatização das ações e dos pensamentos. Sua morte, portanto, assinala o desmoronamento daquele sentido último estruturante da existência. Sua morte impede o acesso ao absoluto ou ao “em si”, já que estes não mais existem. O devir carece de fundamento ontológico, e as ações não mais encontram apoio em um sentido último e absoluto.

“(...) O acontecimento da morte de Deus, que nada mais é do que um imperativo histórico de nosso tempo, permite a abertura de um novo campo hermenêutico que se diferencia do pensamento metafísico, por não se desdobrar com vistas ao em si. Isso porque a morte de Deus deflagra, dentre outras coisas (...), a instabilidade da perpetuação das metanarrativas ocidentais, o que produz o descerramento de um horizonte interpretativo não mais marcado pelo gesto metafísico de busca por fundamentos últimos ou absolutos dos entes e do mundo” (Cabral, 2014, p. 30, grifos nossos).


É oportuno retomar aqui a concepção do sentido como algo em aberto com vistas a compreender o que se pode concluir dessa abertura de um novo campo hermenêutico que se distingue do pensamento metafísico. Ora, o pensamento metafísico opera sempre com base na crença na unicidade do sentido e no controle sobre o sentido. Esse pensamento, na sua modalidade religiosa, se estrutura num discurso autoritário, onde mais expressamente se manifesta a dominação pelo uso da palavra. Por outro lado, o campo hermenêutico que se abre, com o imperativo da morte de Deus, não é mais coagido por um “em si” que sustenta a unicidade do sentido. Sua abertura é, pois, um alargamento do horizonte de possibilidades de sentido.



4. O suicídio

Num horizonte pessimista, o suicídio aparece como uma questão premente. Afinal, é razoável supor que um pessimismo exacerbado pode culminar com a própria negação da vida num domínio não mais teórico, mas prático. Camus – é oportuno lembrar – foi assertivo ao considerar o suicídio, em seu O Mito de Sísifo (2009).  Logo de início, ele escreve: “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia” (p. 17). De modo algum, estamos a sugerir que todo pessimismo filosófico traz em germe o desejo pela consumação do suicídio, tampouco que os filósofos denominados de pessimistas recomendam como solução última para o drama da existência, para a absurdidade do homem, o suicídio. Notemos que Schopenhauer afirma ser o suicídio um ato insensato. Vale acompanhar a posição de Schopenhauer nesse tocante, a qual será apresentada aqui de modo bastante esquemático. Para Schopenhauer, o suicídio é o aniquilamento do indivíduo, enquanto fenômeno, e não da vontade. O que se nega no suicídio não são os males da vida, mas sim as alegrias. O suicida deseja a vida, quer a vida. Sua insatisfação não decorre senão das contradições de que está impregnada a vida. Prossegue Schopenhauer, argumentando que, ao destruir o corpo, o suicida renuncia à vida, sem jamais negar o querer-viver. O suicida deseja a vida e até aceitaria a existência, se ela não fosse continuamente marcada por circunstâncias infelizes e penosas.
Ocorre que o suicídio – e aqui reside um aspecto importante para a nossa argumentação – se nos revela a contradição do querer-viver consigo mesmo. No grau mais elevado da objetivação da vontade, isto é, no indivíduo humano, essa contradição se manifesta com uma força poderosa: o indivíduo declara guerra contra si mesmo; ele quer ardorosamente a vida ao mesmo tempo em que, com ímpeto, se lança à tarefa de remover as adversidades; mas a vontade individual prefere suprimir o corpo a deixar-se sucumbir à dor. Schopenhauer concluirá dando-nos a conhecer a seguinte condição paradoxal: o suicida cessa de viver porque não pode deixar de querer. Não interessa nos deter nas consequências envolvidas na tentativa de Schopenhauer rejeitar o suicídio como solução para a dor de existir. Parece-nos, em todo caso, que Schopenhauer desloca o problema do suicídio da dramaticidade da existência individual (diríamos, com Merleau-Ponty, da corporeidade do vivido) para o domínio do em-si indestrutível e abstrato, de uma Vontade que não carece nunca de fenômenos. Schopenhauer parece recomendar uma resignação do indivíduo à essência da vontade, que é a dor, como um caminho para a salvação que deseja e que, ao contrário do que crê, não alcançaria com a morte, pois esta, eliminando o fenômeno, permite que a Vontade se afirme. A necessidade acompanha o aparecimento da vontade, e o indivíduo é impotente para suprimi-la, e ilude-se ao supor que o faz pondo termo a sua vida corporal. Há uma série de pressupostos que, forçosamente, silenciamos, como, por exemplo, o de que, para Schopenhauer, a morte não é aniquilação, o de que o suicídio não nos oferece o não-ser, o de que o suicídio constitui ele mesmo um obstáculo à redenção, etc.
É preciso abandonar, no entanto, o curso dessas reflexões para assinalar o que, deveras, concerne à nossa argumentação: no horizonte do pessimismo filosófico, a problematicidade do suicídio parece suscitar a necessidade da consideração da reinscrição do sagrado como uma presença silenciosa que desencoraja a consumação desse ato ao qual a vida debilitada no desespero se inclina. Faz-se mister uma observação aqui: acreditamos poder encontrar em Kierkegaard – como esperamos fique claro mais adiante – um terreno seguro em que nos movimentaremos para pensar a questão do desespero; mas, na medida em que a questão da reinscrição do sagrado deverá ser pensada à luz de uma filosofia do desespero que não se orienta por nenhuma promessa metafísica, ou melhor, de uma filosofia em cujo horizonte desapareceu o lugar de Outro transcendente que responde pelo sentido último, segue-se daí que o desespero deverá ser interpretado como desesperança, isto é, como perda profunda e irremediável de qualquer esperança numa redenção por uma transcendência. O estado de desespero é, portanto, aquele experienciado por quem já não aguarda, não espera nada mais além do real, por quem orienta sua vida unicamente pela imanência. O desespero, quando consumado, pode, no entanto, ser alegre e ativo (ativo porque liberta o homem da passividade suposta na esperança). Estamos, neste momento, pensando com Spinoza, ao definir a alegria, em sua Ética (2011: 141), como “a passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior”. Trata-se de encaminhar uma reflexão sobre o desespero em que ele se revele não como mera perda e abandono, mas como estado em que o homem, não sem esforço, não sem enfrentamento de si mesmo, quer realizar a sua perfeição. Esse estado de perfeição, Spinoza chamou de beatitude (p. 232).
Diferentemente do que sucede em Kierkegaard, em cujo pensamento ainda se vê Deus como a instância ontológica responsável pela origem do sentido existencial em relação à qual o homem se esforça por realizar a síntese entre o finito (corpo) e a alma (infinta), em Cioran, essa instância dá lugar ao Nada. Cioran pergunta-se sobre o modo como pode encontrar sentido em seus tormentos, o que sugere que o sentido pudesse de algum modo ser descoberto nas regiões desérticas e aterradoras do seu ser. A intuição do Nada e a evidência do sofrimento elidem a possibilidade do sentido. O sentido se põe então como um problema para a existência desesperada: não se trata mais de buscar sentido, esperar um sentido já posto, mas de produzi-lo, construí-lo. É o homem (o indivíduo humano) que precisa construir sentido em face de um universo indiferente, infinito e escuro. Do que se expôs até aqui, segue-se a urgência da questão: o que há na condição humana desesperada que a move em seu desespero? O que a faz, apesar do desespero, prosseguir em sua marcha, de resto, absurda? A nossa hipótese nos encaminha à busca por uma resposta mediante a especulação sobre a reinscrição do sagrado.





[1] Este texto é parte do miniprojeto Niilismo e Teofania: a reinscrição do sagrado na filosofia do desespero : uma abordagem de Kierkegaard e Cioran, submetido à FAPERJ como requisito para obtenção de uma bolsa de iniciação à pesquisa (UERJ).
[2] CABRAL, Alexandre Marques. Niilismo e Hierofania: Nietzsche, Heidegger e a tradição cristã – Nietzsche, cristianismo e o deus não-cristão, vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad, Faperj, 2014.
 [3] LYTOARD, J.F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olimpyo, 2008.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

"É preciso sofrer depois de ter sofrido, e amar, e amar mais, depois de ter amado". (Guimarães Rosa)

                              
                   

                                 No horizonte da depressão
                           Estilhaços filosóficos



Os sintomas são recorrentes. Hoje, pela manhã, eles me acometeram. Estou irritadiço, enfadado, fadigado, e profundamente desanimado; mas disposto a me tratar. Reconheço-me doente e preciso tirar algum proveito disso. Volto aos livros... Camus: “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio.”
A filosofia só me serve se, de algum modo, me ensina a viver bem; de outro modo, não me serve sequer para “pregar um prego”. Ontem, uma amiga da UERJ me ligou, preocupada e atenciosa; disse que precisa de mim e de meu potencial, que o mundo precisa de meu potencial; isso me alegrou momentaneamente e me gestou alguns pensamentos. Pois sou um educador, e nada me dá tanto contentamento quanto provocar o desejo pelo saber. Sei que a docência, neste país, sofre de muitos poréns; as dificuldades e as frustrações acompanham a lida diária do professor; elas são reais e até o desencorajam... Mas há algo que me é visceralmente verdadeiro: VIVER É SEMPRE RESISTIR. O sofrimento pode ser fonte de criação. Viver é resistir ao não-ser, à tendência da vida a destruir, a arruinar... Daí que existir é trabalho de edificação, e se a filosofia não se põe a serviço desse trabalho, de nada serve realmente, pois que filosofia “é a vida tentando se pensar”; onde há pensamento há resistência, fôlego... Mas acho sinceramente que isso é destino (que os gregos tematizavam como necessidade absoluta) – diríamos hoje predisposição genética – porque nem todos se dispõem ao exercício da filosofia, ou à arte da poesia, que também é uma forma de pensar, distinta, se bem que mais elevada...
A academia matou a filosofia... Hoje a experiência que os estudantes de filosofia têm com a filosofia na universidade é semelhante à que os vivos têm com os mortos ou à que o jardineiro tem com o jardim; eles nutrem por ela uma deferência ou a cultivam; mas essa experiência está longe da experiência originária dos gregos... Em todo caso, é preciso passar pela filosofia acadêmica para depois abandoná-la, (re)criando um modo próprio de fazer filosofia, de vivê-la... Não viso ao diploma por si mesmo; já os tenho; viso à fruição do prazer que a filosofia pode proporcionar e de que no momento estou sendo privado. Ou não totalmente privado, porque mesmo ausente das aulas, não estou ausente dos livros que me ensinam a filosofar, a saber, a viver.
O que sou senão apenas mais um dentre os que sofrem e precisam dar sentido ao seu sofrimento, para resistir na existência, que é tarefa, que é trabalho de edificação, pois a morte está imiscuída na estrutura de uma única célula, a fazer seu trabalho continuamente... Por isso, as condições de manutenção da vida são sempre frágeis... É preciso resistir... existir, resistir, ou desistir – todas se prendem ao latim SISTERE (‘tomar posição’, estar fixo).
Os antigos preconizavam que o essencial é viver o instante, é pedir ao presente o que ele pode dar... É também aproveitar o momento propício (Kairós), a densidade da duração, aquela ponta de tempo. Trata-se de ser indiferente ao passado e ao futuro. É alegrar-se na experiência do momento sem esperança de retorno. Quão difícil é isto quando o momento é impregnado de sofrimento! Não obstante, o que esta  lição oferece se revela profundamente verdadeiro: o presente é o real; o real é o presente.

“Aristipo lamenta que a maioria não saiba encontrar o júbilo onde ele se encontra: na adesão ao instante, na expansão de si limitada ao presente do qual é preciso tirar proveito como de uma oportunidade que não volta a se apresentar. O pecado pagão consiste em perder o presente”.

O tédio: tema sério. Filosoficamente importante. No sonho, como pensava Nietzsche, as configurações do real aparecem como produto de um processo criativo do qual o homem se reconhece como agente produtor e criador... No sonho, cada indivíduo é artista pleno, observou Nietzsche. Justamente o que nos falta na vida em vigília... E na experiência estrutural do tédio existencial.

Mas, e se não houver religião suprema nem sentido político perfeito para a vida? E se o sentido da vida for a própria vida, e vivê-la com sabedoria e ternura for o único propósito que lhe pudermos dar? Então a via cômica pode nos salvar de nós mesmos, persuadindo-nos a nos levar menos a sério (...)”.

A falta de sentido exuberante da vida é o que pode nos enrobustecer o amor pela vida e pela vida dos outros com quem a compartilhamos. É por esse caminho que me esforcei por pensar a reinscrição do sagrado numa filosofia do desespero, como a de Kierkegaard e a de Cioran. Afinal,

Não sabemos por que a Terra, a nossa mãe provedora, porém indiferente, nos pariu, e ela talvez não saiba também; mas aqui estamos, lançados na exuberante falta de propósito do ser. Parece uma pena não desfrutar dela por si só. Mas, antes de podermos contemplar esse estado feliz, teremos de pensar novamente nos monstros que reprimem a alegria humana – e nas pessoas notáveis, poucas em qualquer geração que resistem a eles” (p. 168-169).