O fundo escuro da
consciência religiosa
“Divertimento
Não tendo os homens
podido curar a morte, a miséria, a ignorância, resolveram, para ficar felizes,
não mais pensar nisso”.
“Condição do homem.
Inconstância, tédio,
inquietação.
(Blaise Pascal)
Mesmo que seja lugar-comum dizer que a história que se
torna conhecida da posteridade é a história contada do ponto de vista dos
dominadores, não deixa de ser isso uma verdade persistente no desenvolvimento
da historiografia. Basta nos debruçarmos sobre a história dos cristianismos
primitivos ou lançarmos olhares atentos para a historiografia da filosofia no
ocidente liberal. Estudando a historiografia do cristianismo, não será custoso
reconhecer que a visão que se saiu vitoriosa foi a dos grupos de cristãos
proto-ortodoxos. Outras tantas perspectivas teológicas, como as dos ebionitas e
adocionitas, foram, nesse longo processo histórico predatório, sobrepujadas
pelas crenças teológicas dos grupos dominantes, de sorte que o que chegou aos
leigos cristãos hoje foi um conjunto de crenças e perspectivas teológicas que
venceram as disputas para determinar quem tinha a fé correta.
O filósofo Michel Onfray
ensina que a historiografia dominante no ocidente e, particularmente, a
história da filosofia grega são platônicas. Como o ponto de vista platônico
tenha sido até hoje predominante na narrativa da história da filosofia entre
nós, ocidentais, fomos convencidos de que são verdadeiras certas visões que uma
investigação mais acurada e ampla trataria de provar serem equivocadas. Por
exemplo, por força da imagem associada aos sofistas no platonismo, aceitamos
como verdadeira a ideia de que eles eram “mercenários da filosofia para os
quais a verdade não existe e aos olhos de quem só conta o que tem êxito”
(Onfray, 2010, p. 8). Essa distorção histórica serviu ao propósito de não
tornar acessível à modernidade o conhecimento de sistemas de pensamento
antiplatônicos, tais como o relativismo, o nominalismo e o perspectivismo. No
seu livro A potência de existir (2010),
Onfray escreve a respeito do sonho platônico para cuja realização, em outros
casos, a historiografia oficial desempenhou um papel decisivo:
“De fato, Platão aspirava acender um grande braseiro
para nele precipitar todos os livros de Demócrito! A soma considerável de
obras, seu sucesso, a presença de seus textos em muitos lugares levaram dois
pitagóricos – Amiclas e Clínias – a dissuadir Platão de cometer esse feito. Um
filósofo inventor do auto de fé moderno...”.
(p. 9)
Decerto, o modo como os
sofistas aparecem em trabalhos de Platão é determinante da concepção segundo a
qual eles eram mestres ardilosos do discurso, que cobravam para discursar e que
se preocupavam menos com a verdade do que em persuadir seu auditório -
concepção que perdurou ao longo da história e que tornou pouco interessante a
sofística a muitos que se dedicam a estudar filosofia ainda hoje.
O que sabemos de Sócrates
é, basicamente, o que dele nos contou Platão. O Sócrates que endossa a Ideia
platônica seria ultrapassado, caso pudéssemos ouvir atentamente o Sócrates de
Diógenes de Sinope ou de Aristipo de Cirene. O ponto de vista platônico
impediu-nos de reconhecer a importância de um sofista como Antífon – precursor
da psicanálise.
Novamente, é forçoso
reconhecer que uma distorção dez vezes, cem vezes, mil vezes repetida ganha
status de verdade. Se é verdade que a verdade gosta de esconder-se, é
igualmente verdade que mentiras se metamorfoseiam facilmente em verdades que,
de tão incessantemente reproduzidas por instituições cujo poder se nos
apresenta como inquestionável, entram para a história e, na memória coletiva,
se enterram como tesouros que mantemos intocáveis. Consoante observa Onfray, em
Contra-história da filosofia – as
sabedorias antigas (2008),
“Platão reina então como mestre porque o idealismo,
fazendo os gatos mitológicos serem tomados por lebres filosóficas, permite
justificar o mundo como está, convidar a se desviar do cá embaixo da vida,
deste mundo, da matéria do real, para ficções com as quais se compõem as
histórias para as crianças a que se reduzem todas as religiões: um céu das
ideias puras que escapa ao tempo, à entropia, aos homens, à história, um
além-mundo povoado de sonhos aos quais se atribuiu mais realidade do que o real
(...)”.
(pp. 15-16)
Seguem-se, abaixo,
estampadas as ideias que servem de caminhos os quais trilha meu pendor
filosófico. Eu não as desenvolverei neste texto; se as externo aqui, é para que
sirvam de âncoras para as minhas reflexões que, doravante, se desnudarão:
a) Toda filosofia se
reduz à confissão de um corpo (Nietzsche e Onfray);
b) Todos os filósofos
pensam a partir de sua própria existência (Onfray);
c) A prova do filósofo é
sua vida (Onfray).
A teologia é a ciência de
sujeição da massa, escreverá Onfray (2010, p. 41). E acrescentará:
“Enquanto Deus triunfa, a moral é uma subseção da
teologia. Desde o Sinai, o Verdadeiro, o Bom, o Bem, o Justo provêm do
decálogo. Não é necessário filosofar,
procurar os fundamentos, a genealogia, uma origem, Deus basta e serve de resposta
para tudo. Tábua da Lei, Tora, Evangelhos, Epístolas paulinas agem em
minutos divinos. Quando Deus se dá ao trabalho de ele próprio expor, ou quando
delega essa missão a seus mais fiéis enviados, a matéria imperiosa de todo
comportamento entre si e si, si e os outros, si e o mundo, quem pode ter a
insolência e a perfídia de discutir e contestar? Que personagem é arrogante o
suficiente a ponto de tomar explicações de Deus – a não ser o filósofo -,
contanto que faça verdadeiramente jus a esse nome...”.
(grifo meu)
Estas palavras são
facilmente perduráveis por séculos como arautos de uma verdade que não se
silencia com o barulho insistentemente produzido pelo coro de tenores de Deus.
Indelével também é a verdade que se põe permeável à consciência perscrutadora
no seguinte passo de Gonzaga de Bem, em Confissões
de um filósofo desesperado (2009).
“Ouvir pela enésima vez um texto de Paulo e ignorar a
existência de Gregório de Nazianzo; voltar a construir o presépio todos os anos
e não saber o que eram as querelas fundadoras do arianismo ou o concílio sobre
a iconofilia; assistir à missa de Natal e nada saber da recuperação pela Igreja
da data pagã do solstício de inverno em que se festejava o sol invictus, assistir aos batismos, casamentos e enterros familiares
diante do altar e nunca ter ouvido falar dos evangelhos apócrifos; expor-se sob
crucifixos e ignorar a informação de que pelo motivo considerado contra Jesus
em seu processo não se crucificaria mas se apedrejava; e tantos outros impasses
culturais por causa da fetichização de ritos e práticas, o que constitui
problema para um hipotético exercício esclarecido da religião”.
(p. 94)
Decerto, pretender
conjugar esclarecimento com religião ou aproximar essas duas palavras para
compor uma unidade sintagmática só parece possível no domínio poroso e etéreo
das hipóteses. Religião e esclarecimento são palavras antitéticas, são inimigas
mortais. No excerto referido de Gonzaga de Bem, topamos uma série de fatos
ignorados por uma maioria esmagadora de fiéis. Tanto esses fatos, de que nos dá
testemunho Gonzaga, quanto os que virão à luz ao longo do desenvolvimento deste
texto, são ignorados por uma moça que vi caminhar com uma bíblia conduzida
junta a um dos seios. A mim, ela aparecia como quem portasse o livro da Verdade
que se deve prezar, pregar e preservar para todo o sempre. Quiçá, ela também
pertença ao grupo de fiéis que apreciam dar testemunho de que são leitores
dedicados da Bíblia, não se preocupando em mensurar a frequência com que
destacam trechos para citá-los, dando aos que deparam com eles a impressão de
que sabem, de fato, o que é a Bíblia. Veremos que a toda citação de uma
passagem bíblica deve preceder, necessariamente, um ato de seleção entre os
trechos que depõem a favor do intento do fiel, visto que outros tantos podem
ser claramente escandalosos para as sensibilidades modernas; e o fiel, por mais
fervoroso que seja na observância de sua fé, provavelmente, não estaria
disposto a endossar o conteúdo dos trechos que a seleção forçosamente deixa silenciados.
A saga dos primeiros
hebreus, o desenvolvimento do conceito do Deus judaico (Javé no reino do sul;
Elohim, no reino do Norte), a história da confecção dos manuscritos ou livros
que viriam a ser reunidos para formar a Bíblia, o surgimento e desenvolvimento
dos muitos e variados movimentos de cristianismos primitivos nos primeiros
séculos da Igreja abrigam muitos e complexos acontecimentos que escapam à
consciência dos religiosos cuja fé tomou forma e se desenvolveu na fornalha de
ideologias, crenças, valores, práticas, rituais, aspirações, fervores, guerras,
suplícios, injustiça social que era o Antigo Oriente Próximo, há
aproximadamente 1.200 a.C.
Este texto é mais uma
etapa do trabalho a que venho me dedicando e que visa a recuperar as raízes
históricas de Deus. A fé que anima a alma dos cristãos é uma fé cujo desdobramento
e impacto talvez não lograssem êxito sem a mobilização de ações, movimentos,
disputas que culminaram com o apagamento
da memória histórica das gerações que viriam a se tornar seguidoras da nova
fé. Somente por esse apagamento é possível aos cristãos de hoje alimentarem a
convicção de que Deus é um ser a-histórico, transcendente, sobre-humano, Alfa e
Ômega, Criador do Universo e que, por uma razão desconhecida (por um Mistério
da Fé) decidiu “revelar-se” a um determinado povo que viveu e floresceu próximo
às cabeceiras dos rios Eufrates e Tigre que fazem parte do Golfo Pérsico ou nos
desertos próximos.
Volvendo olhares para o
trecho de Gonzaga de Bem, gostaria de esclarecer quem foi Gregório de Nazianzo,
o que foi o arianismo e o que significa a expressão Sol invictus. Gregório de Nazianzo (ou Nazianzeno) foi um teólogo e
escritor cristão e Padre da Igreja. Junto de Basílio Magno e Gregório de Nissa,
ele integrou a congregação dos Padres Capadócios. Nasceu em 329 ou 330 d.C,
perto de Nazianzo, na Capadócia, Ásia Menor, e faleceu em 390 d.C. Gregório é
lembrado como “teólogo trinário”, visto ter desempenhado um papel extremamente
importante na instituição da teologia da Trindade. Ele se demonstrou um
ardoroso combatente do arianismo, uma antiga doutrina teológica cristã ensinada
por Ário, um sacerdote de Alexandria, Egito. Por volta de 318 d.C., Ário e seus
seguidores se opuseram à doutrina da Trindade, segundo a qual o Deus único é
também três pessoas: Pai, o Filho e o
Espírito Santo. Ário negava que Jesus fosse inteiramente divino e sustentava
que, na verdade, Jesus fora criado por Deus, de tal modo que não poderia ser
senão inferior ao Pai.
O Sol invictus, também conhecido pelo nome Deus Sol Invicto, era o
nome atribuído a três diferentes divindades cultuadas no Império Romano. O
Natal era uma data festiva destinada à celebração do nascimento do Deus Sol no
solstício de inverno. No século III d.C, a Igreja Católica, interessada na
conversão dos pagãos, apropriou-se da prática e a adaptou à doutrina cristã.
Assim, a celebração do nascimento do Deus Sol passou, no cristianismo, a ser
uma celebração do nascimento de Jesus Cristo, datada de 25 de dezembro, dia em
que, nos países de cultura cristã, se comemora o Natal.
1. O percurso histórico
1.2. Os
Evangelhos apócrifos
Do latim apokryphu, apócrifo significa “oculto”
ou “secreto”. À medida que o tempo avançava, apócrifos eram fatos ou obras
destituídos de autenticidade, ou cuja autenticidade não se aprovou. No mundo
antigo, apócrifos eram os livros pertencentes a seitas secretas.
Posteriormente, por uma extensão semântica, passou a qualificar também os
manuscritos considerados “espúrios” ou produtos de heresia.
A Bíblia mais antiga é a
Bíblia judaica. No entanto, a Bíblia judaica só foi finalizada quando do
aparecimento dos primeiros cristãos. Assim, a grande maioria dos manuscritos
que viriam a constituir essa Bíblia já era usada e considerada escrituras
autorizadas pelas comunidades de judeus, havia muito tempo.
Judeus e cristãos
adotavam certo número de manuscritos pré-bíblicos que eram traduções de antigos
manuscritos do hebraico para o grego. Essa versão grega é uma espécie de Bíblia
cuja estrutura, linguagem e pressupostos ajudam a explicar as diferenças
existentes nas Bíblias de hoje.
A tradução para o grego
da Bíblia hebraica resultou num conjunto de livros chamado de Septuaginta.
Conta uma lenda que Ptolomeu II, conhecido como Filadelfo, que governava o
Egito em 285-246 a.C.,
desejou ter em sua biblioteca uma cópia dos cinco primeiros livros da Bíblia (o
Pentateuco). Ele, então, chamou setenta e dois tradutores judeus provenientes
da Alexandria para a realização do trabalho, que durou setenta e dois dias. É
claro que, na verdade, a tradução durou séculos, mas o termo Septuaginta se
consagrou na história para fazer referência aos setenta e dois tradutores e os
setenta e dois dias necessários ao empreendimento da tradução. A lenda, na
verdade, ganhou lugar na tradição graças a um texto falsificado, conhecido como
Carta de Aristeas, um pagão que pertencia à corte do rei egípcio Ptolomeu. O
falsificador apoiava o judaísmo. Ehrman, em Quem
escreveu a Bíblia? Por que os autores da Bíblia não são quem pensamos que são
(2013), conta-nos sobre esse acontecimento:
“Como a Carta de Aristeas foi supostamente escrita por
um não judeu oferecendo um relato mais ou menos “desinteressado” de como a
Bíblia hebraica fora traduzida para o grego, tem toda a aparência de estar
descrevendo os fatos”como de fato eram”. Mas, na realidade, a carta é uma
falsificação produzida por um judeu de Alexandria no século II a.C. Ela foi
escrita, em parte, com o objetivo de mostrar a inspiração divina dos textos
sagrados judaicos, mesmo em sua tradução para o grego”.
(p. 35)
Jerônimo, patriarca da
Igreja Católica (347-420 d.C.), responsável por traduzir a Bíblia para o latim,
entre 305 e 405, qualificou os livros que não entraram a fazer parte do cânone
das Escrituras hebraicas de “apócrifos”. Jerônimo tinha a intenção de
distingui-los dos livros originais da Bíblia, de modo que ele decidiu incluir
os livros para os quais não havia originais em hebraico no final do Antigo
Testamento. Mas eles foram incorporados e reconhecidos oficialmente pela Igreja
Católica como parte, ainda que secundária (“deuterocanônica”), da Bíblia.
1.3. Como se forjaram os Evangelhos?
Talvez, possa ser
surpreendente para muitos fiéis o fato de ter havido, nos primeiros anos da Era
cristã, uma profusa tradição oral que, gradativamente, foi assumindo a forma de
registros escritos. Mas não é possível identificar um texto original, donde os
demais provieram. Na verdade, nunca existiu um texto original. Nunca existiu um
proto-Evangelho. Existiam, na verdade, muitos manuscritos em circulação, obras
confusas, que se tornaram, ao longo do tempo, mais sofisticadas, não sem
sofrerem toda sorte de deformações, alterações para benefício de uma seita ou
autoridade.
Quando nos dedicamos a
compreender em que se baseavam os Primeiros doutores da Igreja para conferir
autenticidade aos evangelhos, fica claro, de início e sem dificuldade, que eles
não estabeleciam critérios rigorosos, mas se serviam apenas da sua autoridade
ou da autoridade de quem julgava os textos. Os Evangelhos canônicos não
deixaram de ser contestados ao longo do tempo e continuam a sê-lo ainda hoje.
Embora não seja um conhecimento largamente disseminado em nossa sociedade e,
portanto, não surpreendendo que este fato seja ignorado pela maioria dos
cristãos, sabe-se que os autores dos quatro Evangelhos que constam da Bíblia
não são as pessoas cujos nomes se estampam nas páginas destes livros.
Os milagres e feitos de
Jesus eram considerados, na hora de determinar se um manuscrito era autêntico
ou não. A Igreja considerava alguns milagres mais aceitáveis que outros; uns
mais verdadeiros; outros simplesmente “risíveis”. Os chamados livros canônicos
são os livros considerados sagrados pela Igreja Católica. Melhor ainda: são os
únicos “inspirados pelo Espírito Santo”, que, por algum motivo escuso, só teria
inspirado os quatro Evangelhos - todos escritos anonimamente e só muito depois
atribuídos aos discípulos de Jesus - as Epístolas, os Atos dos Apóstolos e o
Apocalipse de João.
Para justificar a
inclusão apenas dos quatro Evangelhos então conhecidos hoje, Irinieu, assim, se
expressou, num estilo literário que se serve de analogias e floreios
linguísticos impregnados de metáforas teológicas e num discurso que não se
estrutura com argumentos razoáveis, digamos, produzidos após uma pesquisa
histórica. O trecho se acha em Apócrifos
II – Os proscritos da Bíblia (2005), na seção de introdução:
“O Evangelho é a coluna da Igreja; a Igreja está
espalhada por todo mundo, o mundo tem quatro regiões, e convém, portanto, que
haja também quatro Evangelhos... O Evangelho é o sopro do vento divino da vida
para os homens, e pois, como há quatro ventos cardiais, daí a necessidade de
quatro Evangelhos... O Verbo criador do Universo reina e brilha sobre os
querubins, os querubins têm quatro formas, eis porque o Verbo nos obsequiou com
quatro Evangelhos”.
Quem foi Irineu? Irineu
compôs o grupo dos autores cristãos proto-ortodoxos dos séculos II e III, do
qual faziam parte também Justino Mártir, Tertuliano, Hipólito, Clemente de
Alexandria e Orígenes. Todos esses autores foram responsáveis por moldar as
visões que vieram a se tornar ortodoxas. O processo de consolidação de suas
visões se deu em disputas com pontos de vistas de outras comunidades cristãs,
como os ebionitas e os marcionitas.
A história da construção
do cânone das Escrituras cristãs demandaria muito mais tempo e trabalho; o
leitor, no entanto, poderá conhecer um pouco sobre ela em outros textos
divulgados neste blog. Na próxima seção, vou discorrer sobre como a Bíblia veio
a tornar-se um livro.
1.4. Como surgiu a Bíblia?
A Bíblia inclui textos
produzidos em épocas e lugares diversos. Estima-se que a Bíblia hebraica (o
Antigo Testamento cristão) inclua livros que datam de mais de 1.000 anos, dos
quais o mais antigo remonta a 1.200
a.C. Suas fontes podem ser situadas na Mesopotâmia,
Canaã, Egito, chegando a abranger todo o Crescente Fértil do antigo Oriente
Próximo. A Bíblia inclui textos de gêneros diversos (mitos de origem, poesia
devocional, biografias, etc.) Em Desvendando
a Bíblia (2010), Swenson nota que “durante o período de desenvolvimento da
Bíblia hebraica, a maioria das pessoas não sabia ler nem escrever” (p. 64). A
produção dos textos competia, portanto, a uma pequena elite, que os destinava a
um pequeno grupo de colegas acadêmicos. Os textos também podiam ser produzidos
em um estilo oral, que se prestava à recitação, facilitando o uso deles pelas
massas.
Determinar a autoria,
durante o período em que a Bíblia se desenvolvia, não constitui tarefa fácil.
Na verdade, os manuscritos não eram produtos dos esforços de um único autor
criativo, cujas palavras, uma vez escritas, permaneciam imutáveis. Segundo
Swenson, quase toda literatura bíblica é atribuída a pessoas que não chegou a
escrevê-la. A maioria dos textos bíblicos foi escrita anonimamente (especialmente
os da Bíblia hebraica), e seus autores eram pessoas que podiam aprender a ler e
a escrever – em geral, escribas,
ensinados no templo.
Os escribas produziam
textos com base nas tradições existentes e com base em textos como,
por exemplo, narrativas orais, poesia, anais, oráculos que foram
preservados e que se transmitiam graças aos esforços de discípulos de um
profeta. Cabia aos escribas copiar e editar esses textos de acordo com as
circunstâncias e a teologia que adotavam.
Se a Bíblia não foi
entregue por Deus, tampouco constituía um projeto conscientemente levado a
efeito por seus autores. O conjunto de livros ou manuscritos que viriam a ser
reunidos para compor a Bíblia circulava em partes independentes, muitas das
quais assumiam a forma de rolos de pergaminho, em vez de códices, à semelhança
dos nossos livros de hoje. Disso se segue que a sua organização e ordem não
eram fixas.
Vamos considerar, agora,
a chamada Hipótese Documental e o problema da autoria do Pentateuco.
A crença de que Moisés
escreveu os cinco primeiros livros da Bíblia encontra raízes em tradições
bastante antigas. Não obstante, um leitor hoje, mesmo não suficientemente
instrumentalizado em hermenêutica, não teria dificuldades em aceitar a visão de
que a composição do Pentateuco foi resultado de diferentes fontes literárias.
Há 150 anos, o estudioso alemão Julius Wellhausen argumentou, com base em suas
pesquisas, que os cinco primeiros livros da Bíblia tiveram origem em diferentes
épocas e lugares (Swenson, p. 66). Ele propôs haver quatro fontes literárias
que se mesclaram ao longo do tempo para constituir o que hoje conhecemos pelo
nome de Pentateuco.
Ainda que haja alguns pontos controversos em sua hipótese, a
tese tem mantido o consenso entre os especialistas. Entre os fatos que a
corroboram, estão: 1) a referência a
diferentes nomes de Deus; 2) um
grande aglomerado de vocabulário, perspectivas e estilos literários diferentes.
Assim, por exemplo, em 1
Gênesis, Deus é chamado Elohim e representado como um Outro Magnífico. Nessa
narrativa, Deus cria o mundo em seis dias por meio de seu discurso (logos). Os
seres humanos são criados simultaneamente à imagem de Deus. Em 2 Gênesis, por
outro lado, Deus é referido pelo nome Yhaweh Elohim (Senhor Deus) e é
representado como um Deus que caminha e se vale de suas mãos para criar e
modelar uma dada região e suas criaturas. Aqui, Deus criou a terra, e primeiro
o homem, depois, dando-se conta da solidão do homem e considerando que “não era
boa”, fez a partir dele a mulher. Destarte, há, nos dois capítulos primeiros do
Gênesis, duas imagens diferentes de Deus e duas narrativas diferentes sobre a
criação dos seres humanos. Acrescente-se que os estilos literários também
diferem entre si: em 1 Gênesis, o texto apresenta uma construção poética, o que
não sucede em 2 Gênesis. Os dois estilos literários se combinam para formar uma
narrativa ainda maior.
A Hipótese Documental de Wellhausen
permite ver que as fontes literárias do Pentateuco não estão organizadas em
blocos, mas figuram mescladas umas com as outras, por vezes, sobrepondo-se em
alguns lugares, disso resultando contradições e dispersões (Swenson, p. 67).
Chamando-nos a atenção para o problema da autoria do Pentateuco, pondera
Swenson:
“Provavelmente, nenhuma das quatro fontes literárias
hipotéticas foi composta por uma só pessoa; antes, as quatro representam as
tradições orais e escritas de várias partes, provavelmente não juntas em uma
sessão, mas ao longo do tempo. Ou seja, cada uma das fontes foi construída
sobre outras fontes, e reflete um processo de transmissão que permite edição e
alteração o tempo todo. E a forma final reflete uma combinação intencional de
textos recebidos”.
(ib.id.)
Com base na Hipótese
Documental, a fonte mais antiga do Pentateuco usa o nome divino Yahweh. Por
isso, é chamada de Javista (Javé) e abreviada com a letra J (porque os alemães escrevem Yahweh com J). Essa fonte reflete os
interesses do reino do sul e data do século X a.C. Essa é a fonte que deu
origem à história de Adão e Eva em 2 Gênesis.
Posteriormente, se
desenvolveu a literatura que optou pelo nome Elohim. Por isso, é chamada de
eloísta e abreviada pela letra E.
Essa fonte sinaliza os interesses do reino do norte e data do século IX a C. É
mister esclarecer que reinos do norte e do sul fazem referência às duas
monarquias formadas pelos israelitas em 1000. a. C, depois que o sistema tribal se
demonstrou pouco eficiente. O reino do norte era Israel, o mais próspero; o do
sul era Judá.
Em conjunto, J e E
relatam histórias que foram recolhidas antes de outras pessoas começarem a
expandi-las, editá-las, reescrevê-las ao longo do tempo. Os editores,
possivelmente, reuniram J e E num conjunto JE, ao mesmo tempo em que
acrescentaram seus próprios textos. Uma terceira fonte literária, no entanto,
se apresenta em bloco. Trata-se do trabalho que deu origem ao livro
Deutoronômio (D). Esse livro também, provavelmente, reflete os acontecimentos
do período pré-exílico nortista, do século VII a.C, no reino do sul; e
pós-exílico. A Hipótese prevê que o grupo que editou J, E e D exerceu suas
atividades durante o período de exílio, com vistas a codificar uma base de fé e
identidade (Swenson, p. 68).
“Eles são chamados escritores sacerdotais (...),
porque acrescentaram material especialmente voltado ao funcionamento das
instituições religiosas, refletindo ideias dessas instituições. Os escritores
sacerdotais recolheram, organizaram e editaram o material que vemos fixado no
Pentateuco. Eles estruturaram a obra, adicionando novo material conforme a
necessidade”.
(p. 68)
2. A Bíblia é
uma obra humana
Qual não seria a surpresa
da moça que caminhava portando sua bíblia se lhe fosse dado saber que, dentre
as 13 cartas atribuídas tradicionalmente a Paulo, 6 delas não foram escritas
por ele. O tema das falsificações dos livros do Novo Testamento é apresentado e
discutido por Bart D. Ehrman, em seu livro Quem
escreveu a Bíblia? Por que os autores da Bíblia não são quem pensamos que são
(2013).
São cartas que NÃO foram
escritas por Paulo: 1 Timóteo, 2
Timóteo, Tito, 2 Tessalonicenses, Efésios, Colosensses. São de autoria de
Paulo: Romanos, 1 Coríntios, 2
Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicenses e Filemon. Ehrman observa
que, no grupo das cartas que não foram escritas por Paulo, o consenso entre os
estudiosos é maior quanto às três primeiras cartas. Swenson (p. 38), a seu
turno, nota que Colosensses e Tessalonicenses 2 acarretam dificuldades para a
determinação de sua autoria. Alguns estudiosos acreditam que elas foram
produzidas por Paulo; outros, no entanto, acreditam que foram escritas não por
Paulo, mas por discípulos dele. Ainda segundo Swenso, Timóteo 1 e 2 e Tito são
livros produzidos em tempos posteriores à morte de Paulo. Portanto, não são de
autoria paulina.
Hebreus, segundo a
autora, também não é uma Epístola de Paulo, tampouco de qualquer outra pessoa
ligada ao seu círculo. Ela, na realidade, resulta de uma interpretação
alegórica da Bíblia hebraica, combinada com a filosofia grega, para sustentar
ser Jesus o Sumo Sacerdote e Messias real. Foi produzida por um cristão anônimo
(Swenson, p. 39).
Vários livros que constam
do Novo Testamento não foram escritos pelas pessoas tradicionalmente
consideradas como seus autores. Esses livros tiveram sua autenticidade
contestada já nos primórdios do cristianismo. Estudiosos cristãos dos séculos
II e IV travavam debates, a fim de determinar quais os livros deveriam ser
incluídos nas Escrituras. Um terço dos
livros do Novo Testamento foram
escritos anonimamente (Ehrman, p. 30). São livros cujos autores nunca se
identificaram. Nenhum dos evangelhos traz o nome do autor. Ehrman nos
esclarece:
“Apenas mais tarde os cristãos os chamaram de Mateus,
Marcos, Lucas e João; e escribas posteriores acrescentaram, então, esses nomes
aos títulos dos livros”.
(ib.id.)
Também são anônimos o
livro dos Atos e as epístolas 1, 2, 3 atribuídas a João. O autor de Hebreus não
se identifica, ainda que pretenda levar seu leitor a supor se tratar de Paulo.
Ehrman destina uma seção
para tratar da definição e compreensão dos conceitos de anônimo, pseudônimo, pseudográfico (escrito sob nome falso) e falsificação. O autor entende por
falsificação “um texto que alega ser escrito por alguém (uma pessoa conhecida)
que, na verdade, não o escreveu” (p. 31).
Embora fossem comuns
falsificações no mundo antigo, aqueles que as perpetravam, quando descobertos,
eram condenados por mentir e enganar seus leitores. Se a intenção do
falsificador era claramente enganar seus leitores, suas motivações para tanto
eram várias. Casos havia em que o falsificador visava a obter lucro. Em outros
casos, o falsificador desejava endossar certas posições políticas, teológicas
ou militares.
Outros textos
falsificados que constam do Novo Testamento são as Cartas que ostentam os nomes
1 Pedro e 2 Pedro. Um livro chamado Apocalipse de Pedro quase foi incluído no
cânone. Não vou-me deter a apresentar as evidências que sustentam a
inautenticidade das cartas atribuídas a Pedro, discípulo de Jesus. No entanto,
preciso notar que uma forte razão para que 1 Pedro, por exemplo, não seja de autoria
de Pedro é que seu autor alega escrever na cidade de Roma e a chama de
Babilônia, palavra que, no fim do século I, tanto cristãos como judeus
empregavam para designar a cidade que era inimiga de Deus em sua época. Por conseguinte, é muito provável que o autor
de 1 Pedro tenha escrito a carta em algum momento posterior à destruição do
Templo por Roma em 70 d.C. Acontece que, segundo reza a tradição, Pedro teria
morrido, em 64 d.C, quando Nero ainda exercia o poder em Roma. No momento da
catástrofe, Pedro já estava morto havia seis anos (Ehrman, p. 74).
2.1. O que é a Bíblia,
afinal?
A Bíblia hebraica é
produto de acontecimentos sócio-históricos que se desenvolveram ao longo de
muito tempo e representa as ideias, crenças e valores do povo protojudaico que
falava a língua hebraica e que viveu no Oriente Médio nos primeiros séculos da
nossa era. A Bíblia é produto de um esforço por construir uma identidade pela
interpretação de acontecimentos históricos à luz de representações de Deus. A
fidelidade do povo a Deus fez com que esse povo responsabilizasse única e
exclusivamente a si mesmo pelas adversidades que teve de enfrentar.
A Bíblia hebraica é uma
coletânea de livros que expressam muitas histórias sobre o povo escolhido de
Deus. Tais acontecimentos dizem respeito às formas como esse povo descumpriu a
aliança com o seu deus e como ele foi punido por essa falta.
No tangente ao Novo
Testamento, ele abriga um conjunto de livros reunidos por pessoas de fé, e não
por historiadores preocupados em determinar fatos a respeito da vida de Jesus.
Jesus, a personagem principal desses escritos, era um profeta apocalíptico
judeu. Na época em que Jesus viveu, havia vários tipos de judaísmo, e os judeus
não estavam sempre de acordo quanto às suas crenças e visões teológicas. O
cristianismo surge como uma seita judaica que rompe com certos aspectos da
tradição e com ideias caras e fundamentais a alguns judeus. Eram poucos os
judeus que aceitavam a crença, acalentada entre os seguidores de Jesus, segundo
a qual ele era o Messias que cumpria as profecias judaicas (veja-se Isaías 53).
Não eram raros os judeus que julgavam heréticas as afirmações sobre a divindade
de Jesus. Esses judeus rejeitavam-nas por acreditarem que Deus não podia
assumir a forma de um ser mortal. Em outras palavras, para muitos judeus, era
um escândalo acreditar que Deus encarnaria num ser humano cujo destino seria o
martírio, a crucificação e a morte.
2.2. O uso da Bíblia e o caso de Maria Madalena
Não se acha, em nenhum
lugar da Bíblia, qualquer menção ao fato de Maria Madalena ou Magdala
(referência à sua cidade de origem que fica em Nazaré), ter sido uma
prostituta. Se a Bíblia não endossa essa visão, como ela se sedimentou nas
representações coletivas entre nós? Essa visão é apoiada pela Igreja Católica e
coube ao papa Gregório I (604 d.C) reanimá-la em um sermão no qual Maria
Madalena era comparada a pecadores que lavaram os pés de Jesus. A imagem de
Maria Madalena se funde com a imagem da mulher anônima surpreendida em
adultério. Segundo Swenson,
“Mais do que qualquer outra, Maria Madalena aparece de
forma consistente em todos os quatro evangelhos e ela o faz como testemunha dos
momentos cristológicos mais significativos. Os evangelhos estão em notável
concordância quanto a sua presença na morte, sepultamento e ressurreição de
Jesus. Não apenas isso, mas, segundo o final longo de Marcos e o Evangelho de
João, é para esta Maria apenas, de todos os seus seguidores, que o Jesus
ressuscitado aparece em primeiro lugar”.
(p. 207)
Alguns estudiosos acreditam
que Maria Madalena possa ter desempenhado um papel mais importante nos
primeiros anos da igreja cristã. Ela pode ter sido uma líder, exercendo,
inclusive, poder sobre os seguidores masculinos de Jesus. Essa suspeita se
torna plausível com a descoberta do evangelho gnóstico de Maria, no qual
ficamos sabendo sobre a incredulidade de Pedro sobre a ressurreição do Messias,
conforme dela deu testemunho Maria Madalena.
A crença de que a Bíblia,
como um todo, pode servir de base para nortear nosso comportamento moral só se
sustenta pela não percepção de que ela inclui materiais que endossam
comportamentos e práticas que são moralmente inaceitáveis para as
sensibilidades modernas. Consoante nota Swenson,
“(...) a Bíblia condena e ordena o assassinato, o
divórcio, o ritual religioso, e a colocação da família em primeiro lugar. A
menos que você compreenda a situação social de onde estes textos vêm, e algo
sobre as peculiaridades da antiga literatura do Oriente Próximo, pode parecer
que a Bíblia diz tudo e nada. Sem saber
alguma coisa sobre o desenvolvimento da Bíblia, o leitor ficaria
compreensivelmente confuso tentando descobrir exatamente quantos animais
deveriam estar na Arca de Noé, com base na ordem de Deus para pegar, primeiro,
um par, e, depois, sete pares de animais puros e um par de impuros, para
não falar do tamanho que tal barco deveria ter (...) A Bíblia está ao nosso
redor, mas nos é tão estranha quanto qualquer ET”.
( grifo meu, pp. 20-21)
Que fique claro: a Bíblia
não se presta a uma leitura linear; ela não relata os acontecimentos numa ordem
direta e cronológica. Muitas pessoas leem a Bíblia supondo que cada um de seus
livros tem uma origem única. Enganam-se, conforme tenho me esforçado por
mostrar. A própria biografia da Bíblia – ela se desenvolveu durante um período
de tempo vasto e seu desenvolvimento contou com acréscimos de várias épocas,
lugares e de perspectivas variadas – garante que ela diz muitas coisas, por
vezes, contraditórias. As pessoas leem a Bíblia supondo também a transparência
de seu significado. Mas seus textos revelam ambiguidade e estão entretecidos
por contradições. Novamente, devemos ouvir Swenson, que nos ensina:
“Entendendo que a Bíblia foi composta durante um longo
período por muitas pessoas diferentes, e tudo isso há muito tempo, podemos
avaliar mais facilmente como, hoje em dia, pessoas diferentes extraem
diferentes significados dela. Muito do
que está na Bíblia não foi escrito com o objetivo de se tornar bíblico. A
maior parte de seu conteúdo foi considerada como autorizada e como escritura
sagrada apenas muito tempo depois que os textos foram primeiramente
desenvolvidos e usados. Esses fatos tornam a interpretação hoje, tanto a
secular quanto a religiosa, uma atividade rica em camadas”.
( grifo meu, pp. 23-24)
O leitor deve ter em
conta esta ideia: os autores bíblicos
não estavam escrevendo a Bíblia. Em outras palavras, a produção dos
livros que, reunidos, alterados, editados, expandidos, comporiam a Bíblia não
se destinava a trazer à existência a Bíblia.
2.3. Os profetas:
Amós e Oséias
As religiões
da intolerância
No culto de Javé, desde o
episódio do Sinai, os profetas insistiam na crença de que Deus estava a favor
dos pobres e oprimidos. Em Uma história
de Deus (2008), Karen Armstrong ensina-nos sobre a relação entre os
israelitas e Javé:
“A diferença era que agora os próprios israelitas eram
castigados como opressores. Na época da visão profética de Isaías, dois
profetas já pregavam uma mensagem semelhante no caótico reino setentrional. O
primeiro, Amós, não era aristocrata como Isaías, mas um pastor que vivia
originalmente em Técua, no reino meridional”.
(p. 64)
Os profetas eram homens
solitários e suas atividades visam a romper com hábitos e deveres de seu
passado. Amós foi o primeiro profeta a pregar a importância da justiça social e
da compaixão. À semelhança de Buda, ele estava consciente do sofrimento humano.
Sua voz se fazia sentir pelo deserto em favor dos oprimidos e dos pobres.
Se, por um lado, a
aliança estabelecida por Deus com Israel significava que todos os israelitas
receberiam de Deus um tratamento especial; por outro lado, garantia a Deus o
direito de intervir na história para impor a justiça social, nem que, para
isso, tivesse de punir aqueles que entre os israelitas se comportassem como
opressores de seus conterrâneos. Deus poderia, inclusive, lançar mão do
exército assírio, a fim de assegurar a justiça na terra.
Não admira que os
israelitas relutassem em aceitar o diálogo com Javé. Muitos preferiam continuar
observando o ritual no Templo ou a prosseguir com os antigos cultos da
fertilidade de Canaã. Nota Armstrong que ainda hoje são poucos que seguem uma
religião da compaixão; a maioria das pessoas religiosas se satisfazem com a
adoração na sinagoga, na igreja, no templo, na mesquita.
No século XII a.C., havia
entre os hebreus os que acreditavam ter Javé uma esposa, como tinham outros
deuses. Observa Armstrong que arqueólogos encontraram inscrições referidas a
“Javé e sua Asera”. É claro que Oséias se irritava especialmente com esse fato.
Para ele, a aliança de Javé com Israel supõe uma “cláusula” inviolável: não era permitido aos israelitas adorar
outros deuses, como Baal. Para Oséias, Javé quer amor e não sacrifício.
Quer exclusividade na adoração e não concorrentes.
Era bastante comum a
adoração pelos israelitas aos deuses dos povos dominadores. Quando os
israelitas se instalaram em Canaã, se dedicaram à adoração de Baal, a quem se
atribuía o poder sobre a fertilidade da terra. É preciso reconhecer que o
conceito de Deus foi-se modificando, ou seja, o Javé dos judeus se transformou.
O Deus de Abraão, que exige o sacrifício de Isaac, e o Deus do Êxodo, que
liberta os hebreus do cativeiro e os conduz à Terra Prometida fere as
sensibilidades modernas, já que sua imagem é a de um Deus cruel, sádico,
despótico e caprichoso.
O Deus de Moisés, que, ao
ser interpelado sobre sua identidade, responde “Eu sou quem eu sou”, é um Deus
que não deseja estabelecer uma relação de intimidade com os homens, um Deus que
não se permite manipular por eles, à semelhança dos deuses pagãos. Armstrong
ensina que a resposta de Deus a Moisés deve ser compreendida como “Não é da sua
conta”. Ou seja, Javé é o Incondicionado e ele será o que quiser ser. Ele
apenas promete intervir na história de seu povo, a fim de favorecê-lo. O mito
do Êxodo tornou-se decisivo para acalentar a esperança num futuro próspero, em
condições bastante hostis e adversas.
Se Amós combatia a
injustiça social, Oséias estava mais preocupado com o modo como o povo de
Israel se relacionava com Javé. Oséias advogava uma religião calcada sobre um
vínculo espiritual ou interior com Deus. Oséias preocupava-se particularmente
com o culto da fertilidade, o que sugere que sua esposa, Gomer, tenha sido uma
figura importante no culto do deus Baal.
Os profetas contribuíam
muito para a construção de uma imagem antropomórfica de Deus. Armstrong insiste em que sempre que os profetas
atribuíam a Javé os sentimentos e experiências deles, estavam produzindo um
deus à imagem deles (p. 68).
“Isaías, membro da família real, viu Javé como rei.
Amós atribuiu a Javé sua própria empatia com os povos sofredores; Oséias via
Javé como marido traído que continuava suspirando pela esposa. Toda religião deve começar com certo
antropomorfismo. Uma divindade absolutamente distante da humanidade, como o
Motor Imóvel de Aristóteles, não pode inspirar uma busca espiritual”.
(p. 68)
Todos os profetas
repudiavam a idolatria, e Oséias não era uma exceção. Ele acreditava ter
previsto a vingança divina contra as tribos de Israel devido ao culto a outros
deuses. Ele acreditava que os homens manifestavam profunda reverência às suas
imagens. No entanto, conforme observa Armstrong, os cananeus e os babilônios
nunca concebiam esfinges como realmente divinas; eles não se prostravam em face
delas para adorá-las. Elas apenas simbolizavam a divindade. Nem a estátua de
Marduc, nem as pedras eretas de Asera em Canaã eram consideradas como deuses,
“mas (...) pontes focais que ajudavam os fiéis a se concentrar no elemento
transcendente da vida humana” (p. 69).
Oséias entedia que esses
deuses eram meros objetos de ouro e prata fabricados por um artesão. Eles,
embora tivessem olhos, não podiam ver e, tendo ouvidos, não podiam ouvir.
“(...) não andavam e tinham de ser carregados por seus
devotos; não passavam de seres subumanos abrutalhados e estúpidos, semelhantes
a espantalhos numa plantação de melão”.
(p. 69)
Para Oséias, Javé era
infinitamente superior e os odiava. Armstrong nos faz ver que a intolerância
sempre foi uma característica marcante do monoteísmo. E por estarmos tão habituados a ela, não nos apercebemos de
que essa aversão a outros deuses constituía uma nova atitude religiosa. Ao
contrário, o paganismo era uma fé tolerante. Admitia que novos deuses pudessem
integrar seu panteão, desde que eles não afetassem os cultos tradicionais.
Se as religiões como o
budismo e o hinduísmo estimulam seus adeptos a não se apegar aos deuses,
tampouco a se revoltarem contra eles, o monoteísmo javista não era tolerante
para com a adoração a outras divindades. Os profetas de Israel eram hostis a
divindades que consideravam rivais de Javé.
“Nas Escrituras judaicas, o novo pecado da
“idolatria”, adoração de “falsos” deuses, inspira algo parecido com nojo – ou,
talvez, com a repulsa de alguns Padres da Igreja pela sexualidade. Tal reação
não é racional, mas expressa profunda ansiedade e repressão”.
(p. 70)
É muito provável que os
profetas não estivessem cientes de que a forma como eles mesmos concebiam Javé
era tão antropomórfica quanto o era a idolatria dos pagãos, que tanto horror
lhes provocava. É importante salientar que uma crença tácita na existência dos
deuses pagãos era acalentada pelos israelitas. O próprio Oséias era
extremamente preocupado em demonstrar que Javé era um deus da fertilidade
superior a Baal. Mas, por ser concebido como masculino, Javé não conseguia
superar deusas como Asera, Ishtar e Anat, que eram veneradas por muitos
israelitas, mormente mulheres.
“(...) a vitória de Javé foi difícil. Envolveu tensão,
violência e confronto, e sugere que a nova religião do Deus único não se
consolidou com tanta facilidade entre os israelitas quanto o budismo e o
hinduísmo entre os povos do subcontinente. Javé não parecia capaz de
transcender as velhas divindades de maneira natural e pacífica. Teve de
expulsá-las à força”.
(p. 71)
3. Para compreender a formação da
consciência religiosa
Desde já, emprego a
palavra consciência como sinônimo de eu e self
(si mesmo), sem pretender, contudo, reduzir a complexidade do fenômeno da
consciência às questões suscitadas pela noção de “eu” ou “self”. Como eu não
esteja preocupado em explorar a questão da consciência, evidentemente,
simplesmente assumo a identificação, comum em psicologia, psicanálise e
filosofia, da consciência com o “eu”. A nossa consciência é povoada de signos.
A realidade da consciência é o signo (Bakhtin). A consciência é o que nos põe
em contato com a realidade exterior e que nos permite o sentimento do “eu”
(autoconsciência). Evidentemente, a consciência pressupõe uma autoconsciência.
Para eu estar consciente de algo fora de mim, preciso, primeiramente, estar
consciente de que estou consciente dessa coisa. A consciência é a sede de
nossas percepções, sentimentos, conhecimentos, subjetividade, memória, etc. A
expressão consciência religiosa
designa, então, uma modalidade da consciência que, com ser um fenômeno
estrutural (não só porque suas qualidades se relacionam entre si, mas também
porque nela podem-se distinguir níveis), resulta da influência das experiências
religiosas, as quais expõem os fiéis a todo um complexo de estruturas de
crenças, pensamentos, valores, ideologias e significados que vão dando forma a
essa modalidade de consciência.
Nesta última seção,
considerarei a validade de quatro conceitos que, se bem compreendidos e
articulados entre si, podem contribuir para dilucidar o modo como se vai
construindo a consciência religiosa, enquanto domínio de uma dada representação
de mundo, da natureza humana e do devir histórico, ideologicamente estruturada.
Neste texto, não poderei
avaliar a operacionalidade de tais conceitos, para o que seria necessário
coletar material para análise. Vou-me limitar a defini-los e explorar sua
relevância para o tratamento da formação da consciência religiosa. Não
obstante, proponho que a operacionalidade destes conceitos seja testada
analisando-se amostras de gêneros do discurso religioso.
Proponho, pois, que a
formação da consciência religiosa seja investigada com base na compreensão de
quatro fenômenos que estão intimamente ligados à experiência religiosa: alienação, ideologia, representações
coletivas e tradição. É no discurso, entendido como uma etapa da prática
social, que essas noções podem ser apreendidas como fenômenos estruturantes da
consciência religiosa. O esforço analítico deve consistir na apreensão dos mecanismos
discursivos pelos quais esses fenômenos se expressam ou se manifestam. Minha
hipótese é que o discurso é a realidade imediata e privilegiada em que se pode
avaliar como esses quatro fenômenos concorrem para formar uma consciência
religiosa.
a) Alienação
No senso comum, diz-se de
um indivíduo que é alienado se ele,
pautando sua existência pelos padrões estabelecidos por sua sociedade, não
demonstra estar claramente consciente de seu papel como sujeito no processo
sócio-histórico. O senso comum o vê como um indivíduo despreocupado com os
problemas socialmente relevantes, como um indivíduo que se submete, sem
exercitar um pensamente crítico, aos valores e instituições de sua sociedade,
não tendo consciência dos problemas que o atingem diretamente.
No entanto, o termo alienação tem também um sentido
especializado, tendo sido introduzido na filosofia ocidental pela pena de
Hegel. Para o filósofo idealista alemão, a alienação designa a ação pela qual
um indivíduo se torna um outro, seja assumindo a qualidade de coisa ou objeto,
seja se tornando estranho a si mesmo.
Assim, em Hegel, a alienação designa o fato de um ser, a cada etapa do devir,
aparecer na forma de um outro que se distingue da forma que tinha num momento
anterior.
O conceito de alienação torna-se
especialmente importante na crítica desenvolvida por Marx sobre o sistema
capitalista. Em Marx, a alienação é
entendida como uma situação econômica na qual o proletário se acha numa relação
de dependência para com o capitalista. Nessa relação, o operário vende sua
força de trabalho como uma mercadoria, em troca de um salário. Como não é uma
relação de igualdade, o proletário torna-se um escravo do capitalista. A
alienação, então, consiste na perda pelo proletário de sua essência, visto que a
propriedade privada e a divisão do trabalho produzem a separação do trabalhador
do seu trabalho e o priva do produto do seu trabalho. Marx, embora considerasse
a alienação religiosa, via-a como um reflexo da alienação mais fundamental que
se verifica na esfera econômica (infra-estrutura).
A alienação também foi um
tema de que se ocupou Feuerbach, em sua análise antropológica da religião. Em
seu modelo, a alienação religiosa é a situação em que o homem não se reconhece
mais como criador dos deuses e da religião, visto que, na alienação religiosa,
o homem projeta para fora de si sua essência, transformando-a num ser que se
define por aquilo que o homem não é. Deus, assim, revela e esconde a essência
do homem. Marx foi influenciado pelo pensamento de Feuerbach, embora tenha
denunciado a sua orientação idealista.
Se, em Hegel, a religião
é o domínio em que a alienação mais claramente se expressa, visto que nele o
homem inventa e mantém o mundo da crença e da autoridade que se torna estranho
ou externo a ele mesmo, Feuerbach, por sua vez, entendia que a alienação pela
religião se dá no momento em que os seres humanos não se reconhecem como os
verdadeiros criadores dos conceitos religiosos de que eles mesmos se servem
para se humilharem. Esses conceitos, segundo Feuerbach, não são senão
expressões alienadas de seus próprios processos mentais.
Convém retomar a
perspectiva de Marx, a fim de que se
esclareça o impacto que a noção de alienação exerceu sobre a compreensão
moderna do modo como se manifesta a existência social no sistema capitalista.
Na perspectiva de Marx, dizer que o trabalho no capitalismo é trabalho alienado
significa dizer que no trabalho o proletário é despossuído do produto de seu trabalho. A alienação é, portanto,
entendida por Marx como um estado no qual os seres humanos perdem a si mesmos
(são privados de sua humanidade) e se tornam despossuídos de seu trabalho e do
fruto de seu trabalho no processo de produção capitalista. Marx toma o termo a
Hegel e o introduz no pensamento social.
Coube a Marx também
estender a crítica de Feuerbach ao domínio da vida política e econômica na
sociedade burguesa. Para Marx, o Estado e a propriedade privada capitalista
constituem formas de expressão social da alienação iguais ao mundo da crença e
das instituições religiosas. Mas a alienação do trabalhador no sistema de
produção capitalista –preciso frisar
– é mais fundamental, de modo que a
alienação religiosa não é mais que um reflexo daquela. Marx entendia que as
relações de classe são relações de alienação.
No processo de produção
capitalista, o trabalhador assalariado é destituído da propriedade dos meios de
produção (ou seja, os instrumento de trabalho, a máquina, as ferramentas, as
instalações, etc, e também a matéria-prima sobre a qual incide o trabalho
humano), de modo que ele não tem outra escolha senão vender sua força de trabalho (capacidade para
trabalhar) como uma mercadoria ao empregador capitalista. Este, uma vez
instalada a relação de desigualdade, pela destituição do trabalhador dos meios
de produção, passa então a ter o controle sobre esses meios de produção e sobre
o produto do trabalho do trabalhador. No pagamento de um salário ao
trabalhador, o empregador capitalista extrai um valor excedente (mais-valia),
que é o tempo de trabalho não-pago. Esse tempo de trabalho não-pago constitui o
lucro do capitalista.
Compreendida a forma como
se dá essa relação de expropriação, a alienação consiste no fato de o
trabalhador, no processe de produção e de troca, ser privado tanto dos meios de
produção quanto do produto de seu trabalho, que constituem propriedade privada
do capitalista.
A esta altura, cumpre
dizer que Marx via o trabalho como a expressão da essência do homem, donde se
segue que a alienação, nesse processo de privação ou estranhamento do
trabalhador, na própria atividade de trabalho, é a perda de sua própria
humanidade. Na alienação estaria a origem da desigualdade crescente, da pobreza
da maioria em contraste com a riqueza de poucos, do antagonismo social e da
luta de classes. Os próprios capitalistas, no entanto, não estariam, segundo
Marx, livres desse estranhamento, sempre que procuram enriquecer-se pela
competição e à custa do declínio econômico ou falência uns dos outros.
Marx compreendia a
alienação como a perda do self. Por
isso, é mister ter em conta que a alienação é vista por ele como um processo de
desumanização do homem. Na produção, o homem se torna uma mercadoria tanto
quanto o produto de seu trabalho. O trabalhador torna-se mais pobre quanto mais
riqueza produz em benefício de um outro que o subjuga. O trabalhador torna-se
uma mercadoria tanto mais barata quanto maior é o número de bens que produz.
Vejamos como Marx
descreve a situação de alienação do trabalhador, em seu Manuscritos Econômicos Filosóficos (2006):
“(...) quanto mais o trabalhador se esgota a si mesmo,
mais poderoso se torna o mundo dos objetos, que ele cria diante de si, mais pobre ele fica na sua vida interior,
menos pertence a si próprio. O mesmo se passa na religião. Quanto mais o
homem atribui a Deus, menos guarda para si mesmo. O trabalhador põe sua vida no
objeto, porém agora ela já não lhe pertence, mas sim ao objeto. Quanto maior a
sua atividade, mais o trabalhador se encontra objeto. O que se incorporou no
objeto de seu trabalho já não é seu. Assim, quanto maior é o produto, mais ele
fica diminuído. A alienação [ênfase
no original] do trabalhador no seu produto significa não só que o trabalho se
transforma em objeto, assume uma existência externa,
mas que existe independentemente, fora
dele e a ele estranho, e se torna um poder autônomo em oposição a ele, que
a vida que deu ao objeto se torna uma força hostil e antagônica”.
(grifo meu, p. 122)
Constituem ideias-chave
para compreender adequadamente o conceito marxista de alienação as ideias de reificação, estranhamento e poder autônomo. A alienação do
trabalhador implica a transformação tanto do trabalhador quanto do seu trabalho
em objetos (reificação). Nesse processo, o trabalho, transformado em objeto,
passa a ser visto pelo trabalhador como uma realidade externa a si e
independente de si; donde o estranhamento, visto que o trabalhador alienado não
se reconhece no produto de seu trabalho. O produto de seu trabalho, portanto,
já transformado em objeto, e não sendo senão a expressão de tempo de trabalho e
da força de trabalho do trabalhador, passa a exercer sobre este um poder que o
constrange, que o domina.
Em tais condições, o
trabalhador sente profundo mal-estar e infelicidade. O trabalho torna-se para
ele um sacrifício, já que é visto como trabalho forçado. A alienação ocorre,
portanto, não só no resultado do trabalho (no estranhamento do trabalhador em
relação ao produto de seu trabalho), mas também no próprio ato de produção. A
própria atividade de produção é uma atividade alienada. No trabalho, concluirá
Marx, o trabalhador sente-se fora de si. Atentemos para o que nos ensina Marx
sobre como se estabelece a relação do trabalhador e do trabalho no processo de
produção que assume a forma alienada:
“(...) o seu trabalho não é voluntário, mas imposto, é
trabalho forçado. Não constitui
satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras
necessidades. O trabalho externo, o trabalho em que o homem se aliena, é um
trabalho de sacrifício de si mesmo, de martírio. O seu caráter estranho resulta
visivelmente do fato de se fugir do trabalho, como da peste, logo que não
existe nenhuma compulsão física ou qualquer outro tipo”.
(ênfase no original, p. 114)
O trabalho visto como
algo exterior ao trabalhador é o trabalho que deixou de ser a realização de sua
humanidade, para torna-se propriedade de outro (o capitalista). Em suma, dizer
que o trabalho não pertence mais ao trabalhador é dizer que o trabalho é
propriedade do capitalista.
Marx via esse processo de
estranhamento e exteriorização na experiência religiosa também, desde que nela
“a atividade espontânea da fantasia humana, do cérebro e do coração humanos
reage independentemente como uma atividade estranha, divina ou diabólica, sobre
o indivíduo” (p. 114). Tanto no domínio da produção capitalista quanto no domínio
da experiência religiosa, a alienação se manifesta no sentimento de perda de si
que experimenta o homem. Nos dois domínios, o homem sente um estranhamento
tanto em relação à atividade que exerce quanto em relação ao produto ou
resultado dessa atividade (os sentimentos e experiências que tem são
considerados como provindos de outro domínio, um domínio que os transcende). A
alienação religiosa se manifesta, tal como sucede na produção capitalista, no
sentimento que tem os fiéis de que os objetos de culto, como as divindades,
exercem sobre si um poder que os excede.
Cumpre enfatizar que Marx
não ignorava o fato de que os agentes sociais podiam sentir-se felizes em seu
estado de alienação, como nas situações em que o crescimento econômico favorece
ganhos que lhes permitem dar a sua família pequenas regalias. Isso, contudo,
não os torna menos alienados quanto o são nas condições normais em que o
salário que lhes é pago é o mínimo necessário para que possam subsistir. Eles
continuam tão alienados quanto os religiosos absorvidos em êxtase.
A alienação tem
correlatos psicológicos, como deve ter ficado claro. Autores posteriores se
dedicaram a distinguir dimensões psicológicas da alienação. Robert Blauner, por
exemplo, em Alienation and Freedom (1964), apontou
quatro dimensões: impotência,
insignificância, isolamento e autoestranhamento.
Quando tomamos a Igreja
Católica, por exemplo, como uma instituição sócio-histórica, reconhecemos nela
uma organização hierárquica de alienação. Nessa hierarquia, a alienação atinge
os estratos superiores do poder, o primeiro dos quais é o Episcopado, em que se
encontram o Papa, cardeais, patriarcas, arcebispos, bispos e outras
designações; o segundo é o presbiterado, em que se situam os padres; o terceiro
é o diaconado, onde se acham os diáconos, auxiliares de padres e bispos. Em
estratos mais baixos, encontram-se os consagrados e os leigos – estes formam a
comunidade religiosa que participa da missa e, muita vez, tem a missão de
testemunhar o Evangelho. Os consagrados podem ser leigos ou clérigos que se
organizam em ordens religiosas ou institutos seculares e que decidiram
consagrar sua vida a Deus, por meio de celibato, clausura monástica, obediência
e pobreza.
Embora todos esses
agentes religiosos exerçam atividades alienadas, embora todos eles se encontrem
em estado de alienação mais ou menos acentuado, os que gozam dos privilégios do
poder aproveitam-se da alienação dos que estão excluídos das esferas de poder
para garantir a perpetuação das relações de dominação e do exercício do poder
autoritário.
A alienação é produzida e
reproduzida pelo discurso religioso em seus diversos gêneros. A alienação e a
ideologia se determinam mutuamente. A fim de que compreendamos como a
estrutura da instituição religiosa é
determinante da formação de consciências alienadas, vou-me socorrer da
contribuição de Bourdieu, em A economia
das trocas simbólicas (2011), ao discorrer sobre a gênese e estrutura do
campo religioso.
Interessa-me considerar,
na abordagem de Bourdieu, o conceito de capital
religioso, que se correlaciona com os conceitos de capital social e capital
cultural, e a posição e influência do corpo sacerdotal na constituição de
uma estrutura de alienação.
Começo, pois, notando que
o campo pode ser definido, segundo
Bourdieu, como um sistema que, mesmo exibindo certa autonomia, não deixa de ser
estrutural e funcionalmente determinado, em virtude da posição que ele ocupa no
interior do campo de poder. O campo consiste num sistema de posições,
determinadas previamente, no interior do qual se acham classes de agentes
beneficiários de propriedades de um determinado tipo, socialmente constituídas.
A autonomia do campo
religioso se expressa na tendência de seus especialistas se cingirem num
sistema autárquico de saber acumulado (ou seja, num sistema de saber que basta
a si mesmo) e numa produção de caráter esotérico que, inicialmente, se
destinava aos produtores. Aqueles especialistas compõem o corpo sacerdotal, que
está diretamente ligado à racionalização da religião. A legitimidade desse
corpo decorre de uma teologia transformada em dogma cuja validade e perpetuação
ele garante. Esse corpo de especialistas religiosos monopoliza a gestão dos
bens de salvação e é, socialmente, reconhecido como portadores exclusivos da
competência específica e necessária à produção e à reprodução de um corpus de conhecimentos secretos
deliberadamente instituído (Bourdieu, p. 39).
Segundo Bourdieu, o campo
religioso envolve o impedimento daqueles que dele são excluídos da apropriação
dos mecanismos de seu funcionamento interno. Os “excluídos” se convertem, por
isso mesmo, em “leigos”. Os leigos, aos quais se nega participação na gestão do
funcionamento do campo religioso, são, assim, destituídos do capital religioso
(“trabalho simbólico acumulado” (Bourdieu, p. 39). Deve-se salientar que os
leigos reconhecem a legitimidade dessa desapropriação pelo simples fato de que a
ignoram enquanto tal. Bourdieu chama a essa desapropriação de objetiva. O que
seria, então, a desapropriação objetiva?
Consiste ela na relação objetiva que os grupos ou classes, situados numa
posição inferior na estrutura de distribuição
de bens religiosos, mantêm tanto com o novo tipo de bens de salvação, que deriva da dissociação entre trabalho material
e trabalho simbólico, bem como dos avanços da divisão do trabalho religioso. Se
é verdade que a desapropriação objetiva não implica necessariamente um
“empobrecimento” religioso, ou seja, um acúmulo e concentração nas mãos de um
grupo particular de um capital religioso até então distribuído igualmente entre
todos os membros da sociedade, não é menos verdade que esse “empobrecimento”
pode ocorrer por força da desvalorização desse capital, quando vinculado a
outras formas novas de capital. O conceito de capital tem, evidentemente, uma
filiação com a doutrina de Marx, mas não significa a mesma coisa em Bourdieu.
Bourdieu distingue entre capital social
e capital cultural. Com o primeiro, o
autor buscou explicar a razão por que alguns grupos logravam sucesso na
transmissão de sua posição socioeconômica privilegiada. Segundo Bourdieu, a
razão consiste em que eles mobilizam o capital, ou seja, a totalidade de recursos (propriedades materiais, saberes, influências,
etc.) que se liga a um indivíduo ou grupo, por força de sua participação em
redes de relações permanentes, que têm certo grau de institucionalização, que
se revestem de familiaridade e reconhecimento. O capital cultural serve à avaliação do papel que desempenha o
conhecimento e os gostos culturais no processo de formação de classe. Segundo
Bourdieu, o capital cultural cumpre um papel cultural na transmissão do poder e
de prerrogativas às gerações. O capital cultural compreende as ideias e
conhecimentos de que lançam mão as pessoas a fim de participar do mundo social.
O capital cultural pode abrigar desde regras de etiqueta até a competência para
falar e escrever segundo padrões de linguagem socialmente prestigiados. Esse
conceito permitia a Bourdieu teorizar sobre a distribuição desigual dos
produtos da atividade cultural em sociedades estratificadas e sobre o modo como
essa desigualdade privilegia certas minorias.
Para Bourdieu, as
diferentes formações sociais podem ser organizadas em função do grau em que se encontra o
desenvolvimento e a distinção de seu aparelho
religioso, entendendo-se por aparelho religioso “as instâncias
objetivamente incumbidas de assegurar a produção, a reprodução, a conservação e
a difusão dos bens religiosos” (p. 40). A função exercida pelo aparelho
religioso depende da distância que há entre os bens religiosos e os polos extremos
do consumo religioso (desses bens pelos religiosos) e da monopolização total da
produção religiosa (atividade que envolve saberes, pedagogia, administração de
sacramentos, rituais, etc.) pelos especialistas. A esses dois extremos da
estrutura de distribuição do capital religioso, correspondem:
1) tipos antagônicos de
relações e experiências diretas com os bens religiosos e, mais especificamente,
tipos antagônicos de competência religiosa, a saber, “o domínio prático de um
conjunto de esquemas de pensamento e de ação objetivamente sistemáticos,
adquiridos em estado implícito por simples familiarização” (p. 40) e o domínio
erudito de um “corpo de normas e conhecimentos sistematizados pelos
especialistas”, que atuam numa instituição socialmente incumbida de reproduzir
o capital religioso por meio de uma ação pedagógica explícita. Desnecessário
dizer que os membros do grupo religioso põem em prática os esquemas de
pensamento adquiridos de modo pré-reflexivo.
2) tipos claramente
diferentes de sistemas simbólicos, como sistemas de mitos e rituais e as
ideologias religiosas, que assumem a forma de teogonias, cosmogonias e
teologias que resultam de um trabalho de interpretação por um corpo de
especialistas letrados, levada a efeito para atender aos novos encargos e
funções internas, que se correlacionam à existência dos agentes religiosos, e para atender às
funções externas, que decorrem, por exemplo,
da constituição do Estado (instrumento de expressão e garantia do poder
da classe dominante) e da divisão de classe, funções estas que favorecem a
existência das grandes organizações religiosas com seu projeto de
universalização de sistemas de representação de mundo disciplinadores de uma
Verdade garantida, em última instância, por um Poder Supremo que se impõe do
alto aos que aqui embaixo não podem senão aceitar.
Portanto, o modo como se estrutura o
funcionamento do campo religioso, com seu mecanismo de desapropriação objetiva, com a atuação do aparelho religioso, com
sua série de divisões internas que culminam com a exclusão dos membros
religiosos das esferas de produção religiosa, com sua distribuição desigual do
capital religioso; enfim, com a atuação dos especialistas na sistematização de
ideologias numa pedagogia que assume um caráter dogmático explícito, estabelece
as condições de que resulta a alienação. A alienação é um fenômeno constitutivo
e decorrente da estruturação do campo religioso.
Assim, por exemplo, no momento em que, em
função das condições do funcionamento do campo religioso, se transforma numa “verdade de fé” (uma verdade revelada) a
crença de que a Bíblia é uma obra, um produto de um trabalho inspirado ou
guiado por Deus e no momento em que essa crença entra a fazer parte, pela
tradição, das representações coletivas,
por meio das práticas linguísticas, produz-se, nos fiéis, uma consciência
alienada, na medida em que, por força da ideologia, eles se tornam incapazes de
reconhecer que, na origem do desenvolvimento dos manuscritos que vieram a
compor a Bíblia, se acham ações e acontecimentos cujos únicos agentes são os
próprios homens. A consciência religiosa alienada atribui a um Outro (Deus) uma
força acional (ele age, atua) vendo os seres humanos como meros instrumentos de uma atividade exercida
por Deus (Deus atua através do homem).
Basta um pequeno passo de raciocínio para elaborar a crença de que a Bíblia é
uma obra sobre-humana (A Palavra de Deus).
Não posso deixar de notar
que Marx estava ciente do sentido jurídico da palavra alienação e, de certo modo, ele aproveitou traços desse sentido. No domínio
jurídico, “alienar” é, grosso modo, o
ato de transferir uma propriedade a outro. A ideologia, responsável por
apresentar a realidade de “ponta-cabeça”, trata de completar o trabalho
ocultando-lhes à consciência as verdadeiras causas do surgimento da Bíblia.
Da mesma forma, quando a
religião é entendida como uma realidade transcendente e divina e não uma
realidade imanente à história e produzida pelo homem, a consciência religiosa
se aliena, já que o que é produto da atividade humana passa a ser visto como
estranho à vontade e à ação humanas e, portanto, encarado como uma realidade
produzida por um Outro que as transcende. Também quando Deus é concebido como
um ser atemporal, a-histórico, transcendente, afirmado como o Absoluto, a
Realidade Primeira e Incriada; em suma, quando, por uma operação de abstração,
os religiosos pensam Deus como um Ser “descolado”, “desenraizado” das condições
sócio-históricas em que ele, enquanto conceito e signo de aspirações, de poder,
de um projeto político e identitário, também se deixam absorver num estado de
alienação.
b) Ideologia
Ideologia, não custa lembrar, é um termo que congrega várias perspectivas. Sãos
muitas as definições de ideologia, dependendo de quem o emprega e da abordagem
teórica que adote. Não obstante, não se pode negar que sua importância para as
ciências humanas torna-se patente na obra A
ideologia Alemã, de Marx e Engels. Nela, o termo ideologia aparece para referir-se, criticamente, à concepção
idealista de filósofos como Hegel e Feuerbach, cujas análises filosóficas eram
orientadas pelo plano das ideais, sem contemplar o domínio material donde
aquelas se originam, ou seja, sem levar em conta as relações sociais e a
estrutura econômica da sociedade.
Marx situa a ideologia
como um fenômeno pertencente à superestrutura e a define como uma espécie de falsa consciência, como uma forma de
pensamento que mascara as causas reais das condições sociais de existência, ou
seja, os valores, representações, práticas, instituições, que são de natureza
material, a saber, social e econômica. Parafraseando Marx, não é a consciência
que determina as relações sociais; ao contrário, são as relações sociais que
determinam a consciência. Em outras palavras, a infra-estrutura, o domínio das
relações econômicas, é que determina o domínio da produção das ideias
(superestrutura). A infra-estrutura é
a causa e substrato da superestrutura ideológica (crenças religiosas, morais,
estéticas, jurídicas, filosóficas, etc.) A estrutura econômica da sociedade
constitui a base real por que se deve explicar a superestrutura das
instituições políticas e jurídicas. A superestrutura compreende o domínio da
cultura, das instituições, das ideologias de uma sociedade. Os críticos de Marx
não deixaram de notar que ele exagerou ao sustentar uma determinação direta do
domínio econômico sobre a consciência dos agentes sociais.
A ideologia, para Marx e
Engels, serve à reprodução e à legitimação das condições sociais de existência,
produzindo a aceitação pelos indivíduos dessas condições. Ela inverte a relação
entre as ideias, que representam o real, e o próprio real, que deveria
explicá-las. Na ideologia, o mundo aparece para a consciência dos agentes
sociais de modo invertido. A ideologia serve à satisfação dos interesses da
classe dominante, na medida em que faz parecer que esses interesses são os
interesses da sociedade como um todo.
A ideologia, na medida em
que serve para legitimar as relações que não expressam senão os interesses de
uma classe dirigente, contribui para manter a coesão social, evitar conflitos e
conservar as condições de dominação, que não são percebidas como tais (por
força mesmo dos mecanismos ideológicos).
Uma das formas de a
classe dominante exercer seu domínio é através de suas ideias, conforme notam
Marx e Engels, em A Ideologia Alemã
(2008):
“As ideias da classe dominante são, em todas as
épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é a força material
dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A
classe que dispõe dos meios de produção material dispõe também dos meios de
produção espiritual, o que faz com que sejam a ela submetidas, ao mesmo tempo,
as ideias daqueles que não possuem os meios de produção espiritual”.
(p. 78)
Do excerto acima citado,
deve-se concluir:
a) As ideias dominantes
expressam, no plano ideal, as relações materiais dominantes;
b) As relações materiais
dominantes assumem a forma de ideias;
c) Essas ideias refletem
as relações que conferem o poder de dominação a uma classe;
d) As ideias que exercem
domínio são as ideias da dominação dessa classe.
A ideologia, em Marx e
Engels, é vista como um instrumento de poder de que se serve a classe dominante
para exercer sua dominação e legitimá-la, de modo a reproduzi-la. Atentemos
para o que acontece quando as ideias dominantes tomam existência independentes,
ou são vistas como tais, da classe que as produziu:
“Uma vez que as ideias dominantes estejam separadas
dos indivíduos dominantes e, principalmente, das relações que surgem de um dado
estágio do modo de produção, e que com isso chegue-se ao resultado de que são
sempre as ideias que dominam na história, é muito fácil abstrair dessas ideias
“a ideia”, quer dizer, a ideia por excelência, etc., como elemento dominante na
história e nessa medida conceber todos esses conceitos e ideias particulares
como “autodeterminações” do conceito que se desenvolve ao longo da história. A
seguir, também é natural fazer derivar todas as relações humanas do conceito de
homem, do homem representado, da essência humana, do homem em si”.
(p. 81)
Este texto é
explicitamente referido como uma crítica à filosofia idealista e,
particularmente, à filosofia idealista de Hegel. Não obstante, ele nos ajuda a
iluminar a compreensão do processo de apagamento das raízes históricas do
conceito de Deus, tema que discuti em outro texto.
Como produto de processos
socioideológicos, culturais, políticos, que configuram determinadas condições
sócio-históricas, o conceito de Deus não deixou de sofrer transformações em seu
domínio semântico. No momento em que ele se universaliza, graças aos esforços
das forças socioideológicas e políticas encarnadas por seres humanos reais,
quase sempre vinculados a determinadas comunidades teológicas, que tomam parte
das esferas de poder (político, espiritual, econômico), o conceito de Deus
aparece à consciência dos indivíduos das gerações futuras como se tivesse uma
existência independente das condições sócio-históricas e ideológicas nas quais
foi forjado e se desenvolveu. Tendo sido abstraído das conjunturas históricas,
o conceito de Deus pode então representar um Ser sobre-humano, supernatural,
atemporal, a-histórico; em uma palavra, transcendente, cuja existência
reveste-se de um valor de verdade que deve ser protegido das investidas dos
espíritos críticos com os apelos do coração resignado. No trecho abaixo, Marx e
Engels enfatizam a relação necessária entre a infra-estrutura e a
superestrutura e nos dão a conhecer o modo de operação da ideologia:
“A produção das ideias, de representações e da
consciência está, no princípio, diretamente vinculada à atividade material e o
intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. As
representações, o pensamento, o comércio espiritual entre os homens, aparecem
aqui como emanação direta de seu
comportamento material. O mesmo ocorre com a produção espiritual, tal como
aparece na linguagem política, das leis, da moral, da religião, da metafísica,
etc., de um povo. São os homens os produtores de suas representações, de suas
ideias, etc., mas os homens reais e atuantes tal como são condicionados por um
desenvolvimento de suas forças produtivas e das relações a eles
correspondentes, até chegar às suas mais amplas formações. A consciência nunca
pode ser outra coisa que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo
vital. E, se, em toda ideologia, a
humanidade e suas relações aparecem de ponta-cabeça, como ocorre em uma câmara
escura, tal fenômeno resulta de seu processo histórico de vida, da mesma
maneira pela qual a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de
vida diretamente físico”.
(grifo meu, p. 51)
Claro deve, pois, parecer
ao leitor que a ideologia, em Marx, deve ser compreendida na dinâmica das
relações materiais (econômicas). A ideologia envolve duas operações espirituais
básicas, inferíveis da descrição que faz Marx do modo como ela opera: a inversão e o ocultamento. A inversão ideológica se dá quando se parte da
consciência para explicar a realidade, ou melhor, quando se considera a
realidade como reflexo das ideias. O ocultamento operado pela ideologia consiste
no processo por meio do qual se mascaram as causas reais de uma dada realidade
(social, política, cultural, etc.), com racionalizações que não são outra coisa
senão reflexos do parecer social, das
formas como a realidade social aparece à consciência imediata dos indivíduos.
Em certo sentido, Marx
segue a tradição platônica, ao postular, quando enfoca a noção de ideologia, a
distinção entre a esfera das aparências (o mercado) e a esfera das essências
(das relações no domínio da produção). A ideologia, assim, impediria que a
consciência atingisse o nível da essência das relações sociais, fazendo crer
que a totalidade do real se reduz ao parecer
social, ao nível do imediatamente experienciado. É assim que a ideologia
faz crer ao homem comum que, em seu trabalho, ele se encontra numa relação de
igualdade com o seu empregador, pelo simples fato de que, nessa relação, ele
recebe um salário que acredita ser justo. O que a ideologia lhe oculta é que
ele é despossuído dos meios de produção, do produto de seu trabalho, da força
de trabalho, que vende como uma mercadoria, que, ao final de um mês, recebe um
salário cujo valor não corresponde à totalidade de tempo que consumiu
trabalhando.
Outras abordagens de
ideologia se seguiram à de Marx. Destacarei a definição de Durkheim, porquanto
nos ajuda a compreender como a religião exerce seu poder ideológico. Para o sociólogo francês, a ideologia recobre um conjunto de
pré-concepções ou ilusões que substituem o real na consciência dos indivíduos,
distorcendo-o e gerando um “mundo imaginário”.
O discurso como lugar privilegiado da ideologia
Se quisermos compreender
como os processos ideológicos atuam no sentido de produzir hegemonia (Gramsci),
a saber, de produzir a adesão e o
consentimento das massas, necessário se faz que nos detenhamos a investigar
a materialidade linguística dos processos de produção de sentido no discurso.
Claro é que a esse intento deve preceder uma concepção de discurso, clara e
adequada aos propósitos estabelecidos para a análise. Já me ocupei da
materialidade ideológica de todo signo linguístico e do fenômeno discursivo
como espaço de manifestação de formações ideológicas, quando trouxe à baila, em
outro texto, as ideias de Bakhtin. Por isso, nesta oportunidade, vou tão-só
apresentar os modos de operação da ideologia no discurso, à luz da Análise
Crítica do Discurso.
Um discurso será
considerado ideológico, sempre que suas representações e pressupostos estiverem
ligados a relações de dominação e estiverem a serviço de sua reprodução. As
relações de poder são, assim, mais eficazmente sustentadas por meio de
significados que se veiculam de modo tácito. A não-percepção desses
significados pelos indivíduos garante o estabelecimento da hegemonia, ou seja, da universalização de perspectivas de
classes particulares. Uma teoria crítica de ideologia mantém que toda
ideologia tem caráter hegemônico, desde que ela está a serviço do
estabelecimento e da manutenção de relações de dominação.
Com base em Thompson, em Ideologia e Cultura moderna (1995),
pode-se distinguir entre cinco modos gerais de operação da ideologia. Elenco
esses modos e os defino abaixo:
1) legitimação: a legitimação torna possível que as relações de
dominação se estabeleçam e se sustentem por serem representadas como justas e,
portanto, como merecedoras de apoio.
2) dissimulação: na dissimulação, as relações de dominação são
produzidas e sustentadas por meio da negação ou ocultamento de sua realidade
injusta e necessariamente assimétrica.
3) unificação: a unificação permite que as relações de dominação se
estabeleçam e se sustentem por meio de construções simbólicas que engendram
relações ou comportamentos percebidos como expressão de uma unidade.
4) fragmentação: nesse modo de operação, as relações de dominação
podem ser reproduzidas pela separação de indivíduos ou fragmentação de grupos
que, quando unidos, podem obstaculizar a manutenção do poder.
5) reificação: através desse modo, a ideologia faz parecer permanente,
definitiva e inalterável uma realidade transitória, por meio da ocultação de
sua realidade sócio-histórica que é, por definição, o devir (ou seja, o que,
embora existindo, está destinado a transformar-se ou desaparecer).
Cada um dos modos de
operação da ideologia inclui certo número de estratégias discursivas em que
eles se baseiam. Ciente de que me alonguei demais, não discorrei sobre todas
elas. No entanto, a título de ilustração, tomo apenas duas das quatro
estratégias abrigadas pela reificação,
quais sejam, a naturalização e a eternalização. Por meio da estratégia
de naturalização, uma realidade
social é apresentada como se fosse um dado natural, independente da ação
humana. Na estratégia de eternalização,
os fenômenos históricos são considerados como realidades permanentes e
inalteráveis. Por exemplo, com base na primeira estratégia, já se justificou,
no passado, as desigualdades sociais como fatos decorrentes de diferenças ou
desigualdades biologicamente determinadas. A segunda estratégia pode servir,
por exemplo, para manter relações de dominação com base na ideia de que “as
coisas sempre foram assim não há como mudá-las”, produzido o conformismo
social.
c) Representações coletivas
Competiu a Durkheim
cunhar a expressão representações
coletivas, com vistas a designar certos tipos de “fatos sociais” que se
situam no domínio psíquico dos indivíduos em coletividade. As representações
coletivas compreendem as crenças, as
ideias, os valores, os símbolos, os pontos de vista que estruturam modos de
pensamento e de sentimento que são gerais e estáveis numa sociedade ou grupo
social. As representações coletivas são compartilhadas pelos indivíduos em
coletividades e servem para nortear suas práticas e organizar suas vidas. Elas
são elementos constitutivos da cultura.
Segundo Durkheim, para
agir no mundo, as pessoas precisam representá-lo em sua consciência e prever as
consequências de suas ações. Assim, as representações coletivas são arranjos de
crenças, ideias, representações, etc. que, sendo partilhados, capacitam os
indivíduos para atuar tanto no mundo natural quanto no mundo social.
Uma vez que compreendamos
a função que desempenham as representações coletivas para a existência do homem
como ser social, seguir-se-á, naturalmente, daí que a realidade é sempre
socialmente construída. Na visão de
Durkheim, as representações coletivas se manifestam como uma “consciência
coletiva” ou “percepção social”, que é exterior aos indivíduos, ou seja, que
preexistem como realidade objetiva e que perdurará mesmo depois da morte deles.
Ensina ainda Durkheim que os indivíduos nascem em contextos sociais já
constituídos de um grande conjunto de representações coletivas, que são
interiorizadas por eles no processo de socialização. Elas são experienciadas
como realidades dotadas de um sentido de obrigatoriedade, portanto, como
realidades que limitam as ações dos indivíduos e as relações que eles constroem
uns com os outros. As representações coletivas são partes constitutivas das
instituições sociais. Em outros termos, as instituições sociais se constroem na
base de representações coletivas. As instituições sociais sedimentam as
relações sociais em padrões diferentes e recorrentes, transformando-os, muitas
vezes, em costumes. Toda sociedade supõe, evidentemente, indivíduos que se
relacionam mediante representações compartilhadas.
Na perspectiva da
psicologia social, pode-se pensar as representações coletivas como formas de
organização de atitudes e opiniões em estruturas cognitivas. Trata-se de
estruturas mais diversificadas e fluidas quando se consideram as condições das
sociedades modernas. Nestas, os meios de comunicação de massa exercem uma
influência decisiva na disseminação e transformação dessas representações.
d) Tradição
Por tradição, entende-se um sistema de significados ou ideias,
culturalmente produzido, que se transmite de gerações passadas para gerações
futuras. As tradições, assumindo a forma de significados sustentados e
comunicados pelos membros de uma dada sociedade, vão gerar cadeias de
significados que constituem as memórias coletivas, as representações
compartilhadas e as formas costumeiras de realizar certas atividades ou
tarefas.
As tradições são
adquiridas na socialização, processo ao longo do qual elas são percebidas como
“coisas” que persistem por um longo período de tempo, sem sofrer grandes
mudanças. As tradições são instituições sociais que influenciam o comportamento
dos indivíduos, inculcando-lhes hábitos de ação, que se manifestam de modo
irrefletido e sem deliberação racional.
Cumpre notar, finalmente,
que as tradições tendem a ser herdadas por meio de mecanismos sutis de coerção
e são inculcadas na consciência dos indivíduos como assuntos que não são
passíveis de questionamentos. As tradições se lhes apresentam à consciência
como fatos sociais estabelecidos.
Pondo termo a este texto,
gostaria de salientar que estas reflexões devem ser compreendidas no interior
de um projeto mais amplo e em contínuo desenvolvimento que se norteia pela
proposição segundo a qual um ateísmo
esclarecido supõe uma base de conhecimento sobre a História dos
cristianismos primitivos, do desenvolvimento da Bíblia e da produção e
desenvolvimento do conceito do Deus judaico-cristão.