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sexta-feira, 25 de maio de 2012

"Que a vontade de saber esteja sempre convosco"


          O espírito antijudaico cristão



Malgrado o cristianismo ter-se originado do judaísmo, o cisma sucedeu no momento em que cristãos cuja atividade se seguiu à morte de Jesus passaram a propalar ensinamentos antijudaicos. Como se deu a separação? É disso que me ocuparei neste texto. Todavia, não me limitarei à exposição da história dos acontecimentos que levaram o cristianismo a se fortalecer e a se separar definitivamente do judaísmo. À descrição dos eventos subjaz um interesse argumentativo, qual seja, defender a tese segundo a qual quanto mais pudermos conhecer a história do cristianismo tanto menos dispostos a seguir suas doutrinas ficaremos. Á medida que avançamos nossos estudos com o objetivo de entender como pôde o cristianismo, depois de 2000 anos, chegar a predominar sobre as demais religiões no mundo, rompendo as fronteiras do Mediterrâneo Oriental (Oriente Médio) para tornar-se a religião oficial do Império Romano (em 392 d.C.), e daí estender sua influência à Europa na Idade Média, para chegar até nós graças às ações de missionários na era dos Descobrimentos, deixamos de atribuir a essa religião qualquer marca divina; vemos senão as marcas, não raro atrozes, das ações humanas. A despeito dos sofrimentos e mortes à custa dos quais o cristianismo se expandiu para todo o mundo, ao longo desses vinte séculos, não encontramos nenhum sinal de Deus. A história se desenvolveu sem o seu interesse ou influência.

Antes de me deter a apresentar como se deu o desenvolvimento do antissemitismo cristão, passo a considerar, em linhas gerais, a história judaica. Quem são os judeus? Quando e onde essa religião foi criada e se desenvolveu? Veremos que a história judaica é caracterizada por opressão e perseguições perpetradas por outros povos.



1. O Judaísmo: uma breve incursão histórica


Embora não se saiba quando o judaísmo surgiu, tampouco como surgiu, seu início pode ser situado num vasto e remoto período de tempo recoberto pela Bíblia hebraica (o Antigo Testamento da Bíblia cristã). Duas figuras foram determinantes do surgimento do judaísmo: o patriarca Abraão e, posteriormente, Moisés. Abraão migrou da Mesopotâmia (atual Iraque) para Canaã, situado no Mediterrâneo Oriental. Forçados pela fome, seus descendentes tiveram de migrar de Canaã para o Egito, onde se tornaram escravos. Mais tarde, o líder Moisés os conduziram de volta para Canaã, que, segundo acreditavam, era a terra prometida a eles por Deus. Foi durante o trajeto que Moisés recebera de Deus as tábuas da lei judaica, no monte Sinai. Tal acontecimento teria ocorrido no séc. XIII a. C. Sabemos, contudo, que não há comprovação histórica desse episódio, tampouco se pode ter certeza da existência do próprio Moisés. Não obstante, foi naquele momento que se estabeleceu o pacto entre Deus e o povo judeu, que passaria a ser considerado o povo eleito por Deus. É lícito dizer que a essência do judaísmo consiste nesse pacto ou aliança entre Deus e o seu povo. A ironia começa a mostrar suas malhas pungentes, pois que, depois de um período em que os judeus gozaram de autonomia sob o regime dos reis Davi e Salomão, vieram as conquistas e as perseguições.

Em 586 a.C., o reino de Judá, em Canaã, veio a ser invadido e conquistado pelos babilônios, durante o reinado de Nabucodonosor. Eles destruíram o Templo em Jerusalém e submeteram os judeus ao exílio na Babilônia, onde alguns judeus começaram a escrever os primeiros capítulos da Bíblia hebraica. Nos séculos que se sucederam, os judeus sofreriam com uma série de invasões por povos estrangeiros, que os subjugariam. Em 538 a.C., os persas, que viriam a conquistar a Babilônia, permitiram que os judeus voltassem para seu lugar de origem. Tendo estado sob o jugo grego no séc. II, os judeus se rebelaram, não sem a liderança de Judas Macabeu. A vitória lhes permitiu edificar um novo Templo em Jerusalém e estabelecer uma nova dinastia. Mas em 63 a.C. a dinastia sucumbiu ao poder dos romanos, e o Templo foi derrubado. Durante o domínio romano, o rei Herodes o Grande (37-34 a.C.), reconstruiu o Segundo Templo com pompa, mas quando os romanos determinaram que seus próprios funcionários governassem a província da Judeia, deu-se uma nova rebelião judaica. Em 70 d.C, no entanto, o poder romano sobrepujou as forças rebeldes judaicas, e o Segundo Templo, então reconstruído, foi derrubado. Não restou aos judeus senão desistir da empresa política e dedicar-se ao desenvolvimento do saber. Grupos como os fariseus vieram a produzir muitos eruditos insignes, tais como Hillel, um liberal judeu, e Shammai, cujo rigor com que interpretava a lei judaica era notório.

Pudemos ver até aqui que a história judaica veio se desenvolvendo em períodos em que se intercalaram relativa prosperidade e sofrimento. Mas o fardo judaico não findaria. O ano de 392 d.C (séc. IV)., quando o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano, sob o regime de Teodósio, inauguraria uma era de intensas e incessantes perseguições aos judeus. Àquela altura, os cristãos já contavam com uma Igreja centralizada e forte. Mais adiante, pormenorizarei como se desenvolveu o antissemitismo cristão. Por ora, basta-nos saber que as comunidades cristãs passaram a perseguir os judeus, expulsando-os de vários países. Eles também foram forçados a se converter ao cristianismo, perderam empregos com melhor remuneração e tornaram-se comerciantes e agiotas. Outros mais viviam na pobreza, embora tivessem se tornado sábios notáveis. Durante toda a Idade Média, os judeus tiveram de suportar uma vida marcada por perseguição na Europa cristã. Houve, contudo, judeus que alcançaram prosperidade econômica com o comércio e se beneficiaram com viagem e exílio, quando puderam participar da diplomacia internacional.

Sob os auspícios do Iluminismo, o povo judeu teve seus direitos reconhecidos, nos séculos XVIII e XIX. Não obstante, alguns Estados ainda coagiam alguns judeus a se converter ao cristianismo. Havia pensadores, contudo, que relutaram contra a conversão, permanecendo fiel à sua tradição religiosa. O rabino alemão Abraham Geiger estava entre os eruditos que impulsionaram o movimento de reforma da lei judaica. A busca por uma convivência pacífica com seus vizinhos levou os judeus a abandonarem certos preceitos que tolhiam a boa convivência com os não-judeus. Apesar do esforço para adequar o judaísmo à era moderna, alguns judeus rejeitaram a reforma e voltaram a adotar as práticas e valores tradicionais do judaísmo ortodoxo; outros aderiram ao judaísmo conservador. No final do século XIX e início do século XX, um segmento judaico acalentava a esperança de retorno à pátria O movimento ficou conhecido como sionismo (referência a Sião, o nome bíblico de Jerusalém).

Todavia, foi também no fim do século XIX que o antissemitismo ganhou novas feições. Desde então, os antissemitas dirigiam sua intolerância não mais para a religião dos judeus, mas sim para o que eles entendiam ser a raça judaica. Assim, ser judeu não significava mais, para o intolerantes, pertencer a uma religião, mas ser uma raça ou a uma etnia. De traço cultural, o judaísmo passou a definir um tipo humano, na base de traços biológicos.

Decerto, o aspecto mais aterrador e abominável desse antissemitismo viria a manifestar-se na II Guerra Mundial, com a ascensão do nazismo. Em 20 de janeiro de 1942, se daria “a solução final” para o que se considerava o problema judaico. Na Europa oriental, campos de concentração recebiam milhões de judeus para trabalhar até a morte. Caso resistissem, seriam mortos em câmeras de gás. Corpos foram queimados em grande crematórios operados pelos próprios judeus. Em 1945, cerca de 6 milhões de judeus foram mortos, num evento genocida que ficou conhecido como Holocausto. O Holocausto foi a consequência final e hedionda da ideologia nacional-socialista alemã que rezava a superioridade da raça ariana (caucasianos brancos) sobre as demais, mormente sobre os judeus.

Em 1945, fundou-se o Estado de Israel, e os judeus puderam retornar a casa, onde se estabeleceram. Muitos se comprouveram com a possibilidade de adorar a Deus na terra que lhes havia sido prometida por ele. Assim, os judeus edificaram uma nação forte. Mas os desafios e as tragédias ainda perduram na convivência com seus vizinhos árabes da Palestina.

Vale observar que, a despeito de a religião judaica fundar-se na crença numa aliança entre Deus e o seu povo (os próprios judeus), que supõe a proteção daquele, a história judaica alimenta-nos, ao menos, a suspeita da existência do próprio Deus. É inegável que não houve a intervenção de Deus com vistas a poupar os judeus de seus pungentes sofrimentos. Isso me leva a pensar na possibilidade de raciocinar no sentido de que, se faltam evidências para atestar a existência de Deus, sobram fatos que nos permitem negá-la. Não cabe aqui desenvolver uma argumentação nesse tocante. No entanto, sugiro que os ateus repensem a ideia de que o ônus da prova recaia apenas sobre os crentes. Embora comumente se admita que a prova, nesse caso, se imponha aos que acreditam na existência de Deus, não há razões para dizer que não se possa valer-se de evidências que indicam a inverdade subjacente à proposição ‘Deus existe’. Eles podem não se sentirem obrigados a provar a inexistência de Deus, mas podem (e devem, quando necessário) esforçar-se por mostrar a grande improbabilidade de existir um deus com as qualidades alegadas para o Deus judaico-cristão.  Insisto em que a crítica ateísta deve ser orientada para o confronto entre o que a tradição judaico-cristã nos ensina sobre Deus e o modo como o mundo funciona. A argumentação deverá partir de considerações ontológicas prévias sobre Deus. Valeria cotejar a ideia de Deus com a ideia de Papai Noel, tendo em conta o pressuposto de que ambos são entidades imaginárias, ou seja, desprovidas de matéria. Nem um nem outro ocupa espaço.

Proponho aqui uma breve digressão. Vimos que os judeus sofreram com perseguições, ao longo de muitos séculos, a despeito de eles haverem feito um pacto com Deus. Partimos dos pressupostos de que Deus existe e de que o pacto em que acreditavam os judeus tenha ocorrido. O pacto supõe um compromisso de Deus com os judeus, no sentido de livrá-los do sofrimento. Mas o sofrimento os atingiu e eles, por vezes, se viram obrigados a imigrar para outras regiões, a fim de escapar à opressão estrangeira. Mas esse Deus dos judeus é grandioso, todo-poderoso. Por que então não fez nada para ajudá-los? Teria ele então rompido com o pacto (os cristãos posteriores advogaram que sim). Mas por que razão deus rompera com o pacto? Ficou ele magoado, conservou rancor por alguma ofensa perpetrada pelos judeus? Mas, se é assim, não nos parece ser esse Deus bastante humano, a tal ponto de se zangar e se magoar com uma possível ofensa? Deus não é misericordioso? Em suma, quero dizer que seja lá qual fosse a razão por que Deus rompera com o pacto,  a forma como ele pune os judeus (ou seja, abandonando-os à própria sorte) é demasiado humana e, portanto, desconforme aos padrões de um Deus cuja sabedoria é infinitamente superior à humana. Caberia fazer ver uma reflexão cuidadosa sobre a psicologia de Deus. De qualquer modo, um Deus que pune seu povo eleito, ignorando completamente as grandes dificuldades por que ele viria a passar, por uma suposta desobediência deles à sua lei, não se comporta senão semelhantemente a como se comportaria um ser humano. Tal indiferença é incompatível com um Deus grandioso, como o é o Deus judaico-cristão.

2. Uma religião antijudaica


O limiar da Igreja cristã no século IV não fora próspero. De 303 a 311, os cristãos sofreram uma das piores perseguições de sua história. Milhares deles foram mortos. Naquela época, ainda predominava o paganismo dos romanos. Tal estado-de-coisas mudaria com a conversão de Constantino ao cristianismo em 312. O Imperador passaria a acreditar-se um servo de Deus e instauraria uma política de tolerância às práticas religiosas pagãs, embora as considerassem falsas ou produtos da superstição. Portanto, Constantino não fora um perseguidor, muito embora favorecesse amplamente a Igreja cristã. Sua conversão ao cristianismo foi sincera. Dois anos antes de sua conversão, as perseguições aos cristãos já haviam cessado, já que, àquela altura, o cristianismo já gozava do mesmo status social que o paganismo.

Claro é que Constantino exerceu um papel determinante do nascimento da cristandade. Coube a ele derrotar um suposto perseguidor dos cristãos, chamado Licínio. Com a morte de Licínio, pôde Constantino restabelecer a unidade do Império. Foi ele quem produziu, portanto, as condições sócio-políticas que favoreceram o estabelecimento e a predominância da religião cristã. Consoante nos ensina Paul Veyne, em Quando nosso mundo se tornou cristão,


“O cristianismo dispunha daí em diante desse imenso império que era o centro do mundo e que se considerava com a mesma extensão da civilização. Aquilo a que se chamará por longos séculos de Império Cristão, sim, a Cristandade acabava de nascer.”

(p. 19)

O Imperador instaura uma Igreja poderosa. Esse acontecimento foi determinante da extensão do domínio da religião cristã para todas as práticas da vida. Assim, o cristianismo tomou a forma de uma Igreja rigidamente hierarquizada fundada no princípio da autoridade. Assim, escreve Veyne:



“(...) o cristianismo tinha uma particularidade que o tornava único no mundo: essa religião era também uma Igreja, uma crença exercendo autoridade sobre aqueles que dela compartilhavam, apoiada sobre uma hierarquia, um clero superior em natureza ao laicato num quadro geográfico. Lado a lado com o amor, com o ascetismo e com uma pureza desinteressada por este mundo de cá de baixo, a psicologia dos cristãos incluirá também o gosto pela autoridade”.


(p. 65)


Não nos surpreendamos com o suposto paradoxo da conciliação da pregação do amor com o gosto pela autoridade. Lembro que os dois pilares dos ensinamentos de Cristo foram “amar a Deus sobre todas a coisas” e “amar ao próximo como a si mesmo”. Tais enunciados tomam a forma de injunções. A elas subjaz o princípio de autoridade, tão caro à religião cristã. Esse princípio permitiu não só que o amor fosse imposto de fora, mas extrapolado nos padrões humanos. Não nos surpreende que o amor cristão seja inatingível ao ser humano. Colocar Deus acima dos valores essenciais à vida, como pais e família, e amar a um estranho como podemos amar a nós mesmos é, sem dúvida, uma atitude que excede à natureza humana.

Podemos agora compreender como se deu a separação entre o cristianismo e o judaísmo. Trago à cena as palavras de Bart. D. Ehrman, em Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?

“(...) como a religião inteiramente judaica de Jesus se transformou tão rápido em uma religião de gentios. Como o cristianismo deixou de ser uma seita dentro do judaísmo e se transformou em uma religião virulentamente antijudaica em menos de um século?”

(p. 255)


Sabe-se que a passagem do cristianismo de seita para religião contou com o papel decisivo de Constantino, que exerceu com fidelidade a essa religião a sua soberania política. Passemos a entender como o cristianismo se separou do judaísmo e como veio a tornar-se, após a morte de Cristo, uma religião antijudaica.


2.1. A identidade de Jesus: um profeta apocalíptico judeu


Jesus era judeu. Mais precisamente, um profeta apocalíptico judeu. Os ensinamentos de Jesus eram afinados com a lei judaica: “(...) não havia na mensagem ou na missão de Jesus nada que fosse externo ao judaísmo” (p. 255). Ele não tinha a intenção de fundar uma nova religião. É bem verdade que construiu uma imagem de Deus diferente do Deus carrancudo e irado do Antigo Testamento. O Deus de Jesus era caracterizado pelo amor incondicional e misericórdia infinda (muito embora, paradoxalmente, tenha preparado um lugar de sofrimento para os pecadores:



“Lançai, pois, o servo inútil nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes” (Mateus 25:30).



Sabemos, contudo, que seja lá quem escreveu o evangelho de Mateus, não foi o apóstolo que teria convivido com Jesus.

É preciso insistir em que Jesus era filho de pais judeus e fora criado na cultura judaica. Como profeta apocalíptico judeu, Jesus ensinou que o Reino de Deus (literalmente) viria a ser instalado na Terra, não sem antes ter Deus aniquilado as forças do mal. Segundo Jesus, para que as pessoas pudessem entrar a fazer parte desse Reino, elas teriam de cumprir com as leis judaicas, especialmente com os dois mandamentos anteriormente referidos: o do amor a Deus e do amor ao próximo. Era necessário amar a Deus com toda força, com todo o coração.

2.2. O antijudaísmo cristão


Sucedeu que os seguidores de Jesus, após sua morte, cuidaram que ele estaria fundando uma nova religião. A religião de Jesus era o judaísmo, embora interpretada contrariamente à interpretação dos fariseus e saduceus. Os seguidores de Jesus, no entanto, não viam assim. Para eles, Jesus estava lançando as bases de uma nova religião. Com a expansão do cristianismo por todo o mundo, os que não comungavam das crenças cristãs passaram a ser rotulados de hereges.

Entre os que insistiam em que Jesus seguia a lei judaica, estavam os ebionitas. Eles argumentaram que o próprio irmão de Jesus, Tiago, procedia assim. Tiago era o líder da igreja de Jerusalém. Assim, se a lei diz que os meninos devem ser circuncidados, então é imperiosa a circuncisão. O Evangelho de Mateus corrobora a fidelidade de Jesus à lei judaica.

É certo dizer que Paulo exerceu um papel importante na distinção entre as duas religiões. Foi ele quem negou veementemente a crença de que seguir a lei judaica era indispensável para agradar a Deus. Para Paulo, sacrifícios de animais e remoção de prepúcios não tinham nada que ver com a salvação. Esta só veria pelo reconhecimento da natureza messiânica de Jesus. Vale dizer que os judeus não acreditavam que Jesus era o Cristo (ou seja, o messias). Leiamos com atenção as palavras de Ehrman:

“Paulo e Jesus defendiam a mesma religião? Essa é uma pergunta histórica fundamental, e é difícil negar a resposta. Jesus ensinou seus seguidores a cumprir a lei como Deus determinara, para entrar no reino. Paulo ensinou que seguir a lei não tinha nada a ver com entrar no reino. Para Paulo, apenas a morte e a ressurreição de Jesus importavam. O Jesus histórico ensinou a lei. Paulo ensinou Jesus.”


(p. 257)


Paulo não criou a nova religião, já que ele foi herdeiro das tradições que viria a defender. Mas, certamente, ele distinguiu entre uma religião de Jesus e uma religião sobre Jesus. Seguidores posteriores a Paulo desenvolveram ainda mais as crenças do herege convertido. Marcião, um famigerado teólogo do século II, viria a defender a ideia de que havia dois deuses: o Deus judaico (um Deus colérico do qual Jesus veio livrar seu povo); e o Deus de Jesus, fonte do Evangelho (“a Boa-Nova”). Não havia senão antagonismo entre o Deus judaico e o Deus cristão. Para Marcião, o livro do Antigo Testamento é produto do Deus judaico e não deveria compor o cânone cristão.

Pensadores da mesma época de Marcião houve que tiveram uma interpretação contrária à de Marcião. Barnabé, por exemplo, um dos companheiros de Paulo, advogava que o Antigo Testamento era um livro cristão. Para ele, os judeus eram ignorantes dos ensinamentos deste livro. Barnabé culpa os judeus pela ruptura com o pacto que Deus fizera com eles. Barnabé argumenta que, no momento em que Moisés quebrara as primeiras tábuas dos Dez mandamentos, deu-se o fim do pacto com Deus. Deus nunca mais restaurara o pacto com os judeus, passando a estabelecê-lo com os seguidores de Jesus.

O erro dos judeus, segundo Barnabé, foi ter interpretado a lei literalmente. Assim, segundo nos ensina Ehrman:



“Barnabé tem uma impressionante capacidade de encontrar Cristo e a mensagem cristã nas páginas do Antigo Testamento. Apenas um exemplo: ele argumenta que a circuncisão, o sinal do pacto dado ao pai dos judeus, Abraão, sempre foi equivocadamente entendida pelos judeus como que determinasse que eles deveriam cortar o prepúcio de seus bebês. Nunca foi isso. Na verdade, circuncisão significa que a pessoa tem de acreditar na cruz de Jesus. Como Barnabé prova isso? Ele observa que no Antigo Testamento Abraão coloca seu exército de 318 servos em batalha, mas os prepara para a vitória primeiramente os circuncidados (Gênesis 14:14; 17:23). Qual é o significado do fato de que 318 servos foram circuncidados? – pergunta Barnabé. É um número simbólico. (...) O número 318 é composto das letras gregas tau, iota e eta. Barnabé destaca que tau, que se parece com a nossa letra t, tem a forma da cruz, e que iota e eta são as primeiras duas letras do nome de Jesus. A circuncisão não tem a ver com prepúcios. Tem a ver com a cruz de Jesus.”


(p. 259)


O antijudaísmo da doutrina de Barnabé é resultado da sua compreensão segundo a qual os judeus são ignorantes de sua própria religião e o Antigo Testamento é um livro cristão. O Antijudaísmo cristão viria a fortalecer-se com o passar do tempo. Autores cristãos posteriores acusariam os judeus de culpados pela destruição da cidade de Jerusalém pelos romanos em 70 d.C. Deus os teria punidos por terem matado o seu filho. Outros cristãos reforçaram ainda mais o já robusto antijudaísmo, afirmando que, na medida em que Jesus era divino e que os judeus não reconheceram a divindade de Jesus, são os judeus os responsáveis por matar a Deus.

A crença no deicídio judaico fora expressa nos escritos de um autor do fim do século II, chamado Melito. Ele era bispo da cidade de Sardis. Em meados do século XX, estudiosos encontraram um sermão produzido por ele. O escrito fora produzido na época do Pessach judaico, período em que os cristãos também celebravam a Páscoa. Ehrman dá-nos a conhecer alguns trechos deste escrito. Vejamos um deles:

“ “Ele foi assassinado. E onde foi assassinado? No centro de Jerusalém! Por quê? Porque ele curava seu manco, purificara seus leprosos, guiara seus cegos com luz e ressuscitava seu morto. Por essa razão ele sofreu” (capítulo 72)”



                                                           (p. 260)

Antes de levar a cabo este texto, convém sumariar as cinco formas com as quais os cristãos rejeitavam o valor do judaísmo:


1º) Jesus era o Messias (os judeus não pensavam assim);

                     2º) O Messias tinha de sofrer pelos pecados das pessoas;

                     3º) A morte do Messias representava o modo pelo qual Deus tornava seu povo justo;

   4º) A lei nada tinha que ver com Salvação;
                      
                       5º) Os judeus tinham de acreditar em Jesus para não serem rejeitados por Deus.


Para os cristãos da época, os judeus foram rejeitados por Deus, porque eles não seguiam a lei corretamente. Eles não mais eram o povo eleito de Deus; Deus, desde então, fizera um novo pacto, mas com os seguidores de Jesus. É interessante ver que os cristãos, para corroborar sua crença de que os judeus compreendiam erroneamente as suas Escrituras, se valiam de trechos delas a fim de fundamentar sua argumentação.

Encontraremos em Romanos 9: 11 e, sobretudo, em Romanos 11: 1-26, Paulo refletindo sobre a questão judaica e defendendo a rejeição do povo judeu. Paulo, contudo, quando ainda não era cristão, achava os seguidores de Jesus ofensivos. Em João (19-20), os judeus são considerados culpados pela morte de Jesus.

Em meados do século II, cresce a virulência com que os cristãos atacavam os judeus. Justino Mártir e Tertuliano produziram textos nos quais lançava seu repúdio aos judeus. Insistiram em que eles interpretavam erroneamente o significado da própria lei e da sua religião, que ignoravam as profecias que diziam respeito a Jesus, que Deus os rejeitara porque eles rejeitaram seu próprio Messias. Para Justino, a circuncisão significava apenas um sinal de que o povo de Deus tinha de ser perseguido. Tratados semelhantes continuaram a circular mesmo depois do século II.

Com a conversão de Constantino, sucederam conversões em massa. Assim, no final do século IV, metade do império era cristã. Também nessa época o imperador Teodósio proclamou o cristianismo como a religião oficial do império. Estavam estabelecidas as condições para que o ataque aos judeus, que antes situava-se no âmbito retórico-discursivo, passasse para o domínio da ação. Vale notar que o antijudaísmo não existia nos mundos grego e romano, nem mesmo em outras sociedades, antes do advento do cristianismo. Claro é que alguns autores gregos e romanos criticavam os judeus, porque lhes parecia ter costumes bizarros, como retirar prepúcios, não comer carne de porco ou não trabalhar no sábado. Mas é claro também que eles rejeitavam qualquer pessoa que não fosse grega ou romana; não eram os judeus um povo especialmente repudiado. Com os cristãos, os judeus passaram a ser considerados maus e teimosos.

Ao considerar o que aconteceu quando o cristianismo se tornou, pelo poder de Teodósio, a religião oficial do Império Romano, ensina-nos Ehrman:


“(...) Desde os primeiros dias da Igreja, a antipatia em relação aos judeus tinha sido expressa retoricamente; em pouco tempo se tornou uma questão de ação. Funcionários romanos que tinham se tornado cristãos levaram a sério o discurso de seus antecessores e viram o povo judeu literalmente como inimigo da verdade, e devia ser punido por rejeitar Jesus. A política oficial do império no século IV não exigia a perseguição aos judeus, mas pessoas no poder, como os governadores cristãos de províncias romanas, com fequência fechavam os olhos ou a apoiavam veladamente. Sinagogas foram queimadas, propriedades confiscadas e judeus escarnecidos publicamente, e algumas vezes submetidos à violência das massas”.

                                        (pp. 263-264)

É com as palavras de Ehrman que encerro esta exposição, que visa senão esclarecer mais um capítulo da vasta história de consolidação do cristianismo no mundo.


“E, assim, temos uma das grandes ironias dos primórdios da tradição cristã. A religião profundamente judaica de Jesus e seus seguidores se tornou a religião violentamente antijudaica tempos depois, levando às horríveis consequências da Idade Média, aos progroms e às tentativas genocidas que infestaram o mundo até recentemente. O antissemitismo como chegou até nós é a história das reações especificamente cristãs aos judeus não cristãos. É uma das piores invenções da Igreja cristã”.