terça-feira, 9 de junho de 2015

Deflacionismo e modalização

                                Resultado de imagem para Lógica




                                          A Sophia linguística
                               Pela necessidade de ruptura com o senso comum


1. Um breve recorte histórico

Embora sob o domínio das especulações filosóficas por mais de dois mil anos, as questões linguísticas passaram a fazer parte, pelo menos com a publicação da obra Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure, em 1916, da alçada da Linguística, que então, na letra de seu próprio pai, deveria ser uma ciência autônoma. É bem verdade que a Linguística, enquanto ciência, já existia a partir  dos últimos anos do século XVIII e que o impacto da publicação do Curso de Saussure só se deu no fim da década de 1920. Também é verdade que a Linguística moderna, cujo pai é considerado Saussure, não seguiu, com fidelidade, os passos determinados por seu fundador, para o qual o objeto de estudo desta ciência deveria ser a Langue, ou seja, a língua tomada em si e por si mesma (e isso tem mais que ver com seu desenvolvimento revisionista-crítico do que com uma mera infidelidade às teses saussurianas). Quero dizer que, ao longo das décadas, ficou claro aos linguistas que a língua não se reduzia a um sistema de signos autônomo, que seu estudo, caso pretendesse fornecer um modelo descritivo adequado da realidade linguística,  deveria contemplar fatores de ordem social que influenciam o uso da língua.
A Linguística é, hoje, reconhecidamente uma ciência, que dispõe de um objeto e métodos próprios. Nas décadas seguintes – no Brasil, especialmente as de 1960 e 1970 – à publicação do Curso, os modelos formalistas (estruturalismo e gerativismo) se tornaram os modelos hegemônicos. Em comum, têm eles o interesse pela forma da língua, a saber, por sua estrutura, sem qualquer consideração de variáveis sociais que influenciam o uso que os falantes fazem da língua. Na década de 1970, nos Estados Unidos e na Europa, linguistas houve que reatualizaram princípios funcionalistas, que já encontravam repercussão em trabalhos de linguistas anteriores a Saussure – trabalhos produzidos no final do século XIX.  As teorias funcionalistas trouxeram em seu bojo o interesse fundamental não mais pela forma dos enunciados, mas pelas funções a que serve o uso da língua. Embora diversas, as teorias funcionalistas estão de acordo no tocante à primazia da função sobre a forma: o uso da língua influencia a forma assumida pelos enunciados – eis o postulado central do funcionalismo. Os modelos funcionalistas inscreveram a dimensão social da linguagem no horizonte de interesse dos estudos linguísticos. O uso da língua, que é o verdadeiro escopo de investigação dos modelos funcionalistas, é de natureza fundamentalmente social. Mas o uso da língua não só exibe uma face social; exibe também aspectos cognitivos. Foi então que década de 1980 conheceu a chamada virada cognitivista nos estudos linguísticos. Toda ação, inclusive as ações linguísticas (estas objeto de estudo da Pragmática), é acompanhada de processos cognitivos. Não tardou para que se eliminasse a separação clássica entre processos de ordem cognitiva e fenômenos sociais, ou seja, entre o que acontece no interior da mente dos usuários da língua e o que acontece no exterior dela. Com base no postulado segundo o qual a cognição é produto das nossas ações e de nossas atividades sensório-motoras, surgiu a perspectiva sociocognitivista-interacionista, então preocupada em compreender como os processos cognitivos acontecem em sociedade, e não somente nos indivíduos. Essa perspectiva incorpora aspectos sociais, culturais e interacionais à compreensão daqueles processos.
Como se vê, a Linguística, hoje, é uma ciência pluridisciplinar, estando em constante diálogo com disciplinas tais, como a sociologia (sociolinguística), a psicologia (psicolinguística), a História, a Psicanálise (as Análises do Discurso) e a própria Filosofia. A interdisciplinaridade que atravessa o campo da Linguística é, em última instância, uma consequência da natureza do próprio objeto de estudo dessa ciência: a língua, que se revelou aos estudiosos como uma realidade heterogênea e heteróclita. Língua é, fundamentalmente, uma prática social, uma atividade intersubjetiva, uma realidade sócio-histórica. A língua só existe no uso, nas práticas linguajeiras de que participam sujeitos históricos.

2. O Deflacionismo e sua questão linguística

Mesmo consciente de que não se pode esperar que todos os filósofos profissionais ou estudantes de filosofia manifestem adequado domínio teórico na exposição de suas intuições linguísticas costumeiras, é lícito deles exigir o cuidado no emprego que fazem de certas noções com vistas a expressar aquelas intuições. Esse cuidado se expressa numa preocupação com a exatidão na definição do significado dos termos empregados. Um caso ilustrativo disso é o uso da noção de “ênfase” para explicar a ocorrência de construções como “é verdade que”, em enunciados como (a) É verdade que dois mais dois são quatro. É sinal de prática teórica ingênua o explicar o uso de “é verdade que” como uma marca de ênfase, como se, na falta de uma compreensão melhor desse uso, se pudesse dizer acertadamente que essa expressão é um recurso de que se vale o falante para marcar ênfase. Tal modo de proceder metalinguisticamente acaba por converter a noção de “ênfase” numa espécie de dispositivo ad hoc, além de ignorar o fato de que se pode marcar a ênfase por meio de atividades epilinguísticas (quando o produtor do texto opera conscientemente ajustes em seu texto a fim de melhor expressar as possibilidades de sentido: p. ex., o uso repetido de “tudo”, em “Coma tudo, tudo, tudo!”, marca ênfase, se comparado com a forma do enunciado correlato “Coma tudo”.), ou por meio de recursos supra-segmentais, como entonação, altura da voz ( p. ex.: na pronúncia do “NÃO”, em “NÃO quero!”).
Concentremo-nos, doravante, na questão linguística prevista na posição do deflacionismo, a fim de esclarecê-la sem recorrer a explicações simplistas que apelam para a noção de ênfase. Começo por esclarecer o que sustenta o deflacionismo.
Em epistemologia, o deflacionismo mantém que a verdade não é uma propriedade substancial da proposição. O deflacionismo pretende dessubstantivar a verdade. Em última instância, pode-se dizer que o deflacionista dessencializa a verdade, destitui-a de qualquer carga metafísica. O filósofo deflacionista sustenta que a verdade não é, absolutamente, um predicado, não é uma propriedade “real”. A verdade é redundante, porque o que se fala sobre a verdade é algo puramente formal.
Vejamos como o deflacionista defende sua posição. Ele diz que, numa proposição como (b),
(b) É verdadeiro que dois mais dois são quatro.

a expressão em itálico “é verdadeiro” não constitui um predicado substancial da proposição. Ela figura no enunciado por razões pragmáticas, performáticas, subjacentes ao uso da linguagem. Cabe esclarecer, portanto, o que significa dizer que a expressão “é verdade” deve sua ocorrência a fatores pragmáticos.
À luz de uma abordagem pragmática da língua, ou seja, uma abordagem que leve em conta o uso da língua e, portanto, os usuários da língua, seus propósitos sociocomunicativos, e o próprio contexto comunicativo, observa-se que o falante que produz “é verdadeiro que”, ou “é verdade que” marca, em seu enunciado, uma atitude epistêmica, que se expressa na forma de adesão ao conteúdo do enunciado. Essa adesão a, ou comprometimento com, engajamento com o conteúdo do enunciado tem um evidente efeito argumentativo. Portanto, do ponto de vista argumentativo, o falante, ao usar “é verdadeiro/ verdade que p”, está marcando seu comprometimento, seu engajamento com certa orientação argumentativa na produção de seu próprio discurso. É claro que esse engajamento só pode ser descrito quando consideramos o enunciado como parte de uma totalidade discursiva e não isoladamente. Tome-se, portanto, o seguinte evento interacional, no qual dialogam os interlocutores A e B:

A – Pedro disse que a irmã dele não estava em casa ontem. Mas acho que ele não disse a verdade.
B – Não sei se você foi até à casa dele para verificar, mas é verdade que ela ia sair ontem.

Note-se que o falante B, ao usar o marcador “é verdade que”, compromete-se com o conteúdo do que enuncia, dá, por assim dizer, “a cara a tapa”. Esse comprometimento se expressa também em relação à orientação argumentativa assumida por seu discurso, pois que B procura argumentar contrariamente à suspeita levantada pelo falante A. Este lança dúvida sobre à confiabilidade do que disse Pedro (“talvez ele não tenha dito a verdade”), mas B argumenta que A pode estar equivocado ao levantar desconfiança contra Pedro, porque “é verdade que ela ia sair”. Em outros termos, B assegura que está de posse do conhecimento de que Lúcia poderia não estar em casa, pois ia sair. É claro que, na prática linguística, os usuários da língua não atuam e nem sempre estão interessados em assegurar-se das fontes de seus conhecimentos sobre as ocorrências do mundo. Para o analista da linguagem, não está em questão determinar se B está justificado para dizer “é verdade que ela ia sair”, mas sim reconhecer que quem diz “é verdade que...” está se comprometendo com uma posição argumentativa, está manifestando sua completa adesão ao conteúdo comunicado. Isso tem consequências sociointeracionais. A teoria das faces verá no uso de “é verdade que” um recurso que expõe à ameaça a face positiva do próprio falante. Ou seja, quem diz “é verdade que” põe em risco sua imagem sociocultural positiva, pois que assume dispor de uma fonte de conhecimento que, se, posteriormente, verificar-se não ser uma fonte de saber, pode atrair para si alguma forma de depreciação social. Ele pode passar-se por mentiroso, malicioso, enganador, etc. É claro que o falante pode se defender contra uma suposta acusação de insinceridade. Suponhamos que A saiba que Lúcia não saiu, mas estava em casa, na cama com muita febre. Se A acusasse B de mentiroso porque disse, com alto grau de confiabilidade, que Lúcia ia sair, B pode defender-se dizendo que ele se comprometeu com a possibilidade de Lúcia sair, mas não com o fato de ela ter saído. Ora, B ouviu dizer (suponhamos da própria Lúcia) que no dia em questão Lúcia pretendia sair. Assim, B marcou sua adesão ao conteúdo do seu enunciado, que expressava um saber de que ele, B, dispunha.
Em suma, do ponto de vista pragmático, expressões como “é verdade que” não marcam ênfase. São, na verdade, modalizadores epistêmicos, pois que marcam uma adesão do falante ao conteúdo do seu enunciado em termos de um saber disponível. Assim, a diferença entre “eu sei que” e “eu acredito que” é de grau de modalização. Quem diz “eu sei que p” afirma um grau de adesão maior ao conteúdo do enunciado, afirma estar de posse de um saber do qual a proposição subsequente à conjunção “que” é expressão. Quem, por outro lado, diz “eu creio que”, marca um grau de adesão mais frouxo. Lembro que usamos “eu creio que” para marcar nossa expectativa ou desejo de que se realize o estado-de-coisas descrito na oração completiva. Por exemplo, quem diz “eu creio que o Brasil será campeão da Copa América”, expressa uma expectativa, uma confiança em que o estado-de-coisas descrito será realmente o caso.
Argumentativamente, modalizar enunciados é uma prática extremamente desejável e eficaz para que atinjamos os objetivos perseguidos. Sempre que não dispomos de evidências suficientes para fundamentar um saber, convém lançar mão de expressões do tipo “talvez”, “é provável que”, “parece que”, etc.  Modalizar  enunciados é um bom expediente para que nos protejamos dos ataques de nossos interlocutores; é um recurso de que dispomos para proteger nossas faces e as faces de nosso interlocutor. Imagine-se que num debate filosófico A sustente (c):

(c) A - É certo que Nietzsche foi um metafísico.

Mas B, discordando, afirme (d):

(d) B – Não é verdade que Nietzsche foi um metafísico.

A questão de ter sido Nietzsche um metafísico ou um antimetafísico é discutível na filosofia. E argumentos favoráveis a uma e outra tese podem ser sustentados e encontrar apoio entre os especialistas. O que interessa é notar o seguinte: por um lado, o valor de verdade da proposição “Nietzsche foi um (anti)metafísico” é dependente de disputas interpretativas autorizadas pela própria obra nietzschiana ( uma e outra interpretação pode ser autorizada pela obra do filósofo); por outro lado, os defensores de cada uma das posições marcam uma forte adesão ao conteúdo de seus enunciados, isto é, uma forte adesão à orientação argumentativa conferida ao seu discurso.
Certamente (note-se o uso desta forma modalizadora!), o uso da construção “é verdade que” (ou “é verdadeiro que”) tem um efeito de sentido que não se pode ignorar. Certamente, essa construção cumpre uma função discursiva; mas, para o deflacionista, não há uma diferença substancial epistemológica entre dizer “é verdade que p” e, simplesmente, “p” (p. ex. dois mais dois são quatro).

Para o deflacionista, portanto, afirmar p é afirmar que p é verdadeiro, e que se crê que p; e crer que p é crer que p é verdadeiro. É também crer que temos razões para crer em p (ou seja, estamos justificados para p).

Nenhum comentário:

Postar um comentário