quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

"Fazer o trágico passar do estado inconsciente ao estado consciente é uma impossibilidade: ou você tem consciência dele ou não tem consciência dele e jamais terá" (Rosset)

                                           
                             

                  Por um saber que impregne a sensibilidade

"Fazer o trágico passar do estado inconsciente para o consciente" - nisso consiste o projeto de uma "filosofia terrorista", segundo o filósofo trágico contemporâneo Clément Rosset. Rosset não crê na possibilidade de curar os partidários de ideologias de todo gênero, já que eles vivem encerrados em seu dogmatismo.
Em entrevista a Sébastien Charles, registrada no livro É possível viver como eles pensam (2006), Rosset responde, da seguinte forma, à sugestão de que seu trabalho Lógica do Pior, a considerar a impossibilidade de livrar o homem de suas posições dogmáticas, só convenceria os já convencidos.

"É impossível tirar os homens da ilusão impondo-lhes um saber que eles podem admitir no plano teórico ou abstrato, mas que não impregnará sua verdadeira sensibilidade".

Ora, "um saber que não impregnará sua verdadeira sensibilidade" é um saber que não é incorporado, que não exerceu nenhum efeito sobre a fisiologia desse homem que apenas o admite abstratamente. Esse saber que não integra à sensibilidade do homem é um saber ineficaz e estéril. Ineficaz e estéril porque não penetra sua estrutura sensível, porque não metamorfoseia seu modo de ser.
Suspeito de que essa experiência da não incorporação à sensibilidade de um saber seja uma experiência com que o professor, que pretende ensinar verdadeiramente a filosofar, se defronta, quer no nível básico, quer no nível superior de ensino. A experiência da incapacidade de o outro ser afetado fisiologicamente ou sensivelmente pelo saber suscita a questão sobre o que é ensinar a filosofar. Essa questão é tanto mais premente quando nos lembramos de que a experiência filosófica é, conforme mantém Sponville, "pensar sua vida, viver seu pensamento". Sponville, aliás, nos faz ver que não há demonstração filosófica e, se não há uma prova que dê sustentabilidade a uma ou outra posição filosófica que venhamos a assumir, o que então nos faz adotar uma posição em detrimento da outra? Trata-se, para mim, de uma evidência que reencontro nos filósofos que frequento: nosso passado, nossas experiências de mundo, as formas como somos afetados pelo mundo, nosso temperamento. É isso que nos fará tomar uma ou outra orientação filosófica, a assumir um ou outro modo de ser. Sponville nota que não fazemos uma escolha livre entre uma ou outra posição filosófica. Simplesmente, chega um momento em que temos a impressão de que "não posso pensar de outra maneira". Assim, se assumimos uma posição materialista, o fizemos por certo número de razões, que, no entanto, não precisam ser concludentes ou demonstráveis. Se, então, sou materialista, é porque não consigo pensar e sentir (pensar e sentir se fundem) de outro modo. Para Sponville, uma parte considerável da filosofia é tentar comunicar racionalmente certo número de quase evidências que nós trazemos em nós mesmos.
Voltando a Rosset, esse filósofo está convencido de que o homem não é capaz de enfrentar a ideia da morte. O homem que se vê em face de uma perda, por exemplo, de um grande amor, é lançado num estado de preparação para o grande desnorteio de se reconhecer detentor de um saber que não pode assumir. Ele sabe que morrerá, que morrerão todos aqueles que ele mais ama, mas não pode verdadeiramente assumir esse saber, isto é, incorporá-lo à sua sensibilidade. Freud – lembremos - ensinou que para o inconsciente somos imortais. Assim, vivem os seres humanos em seu cotidiano: como se jamais fossem morrer. Para Rosset, "se sua estupefação cessa, o homem não é mais trágico". O homem mediano  evita o confrontar-se com sua condição desesperadora: ver-se lançado no mundo para nele necessariamente morrer. Há algo de desesperador aí que ele vive evitando incorporar a sua sensibilidade (isto é, a sua capacidade de se deixar afetar, impressionar, sentir). Daí que, segundo Rosset,


"Todo filósofo, por mais ilustre que seja, que não concorde sobre este ponto com Cioran, Lucrécio, Nietzsche, Schopenhauer, etc., e que não passe pelo credo absoluto e sem nuance que afirma que o homem NÃO É CAPAZ DE ACEITAR PENSAR O QUE SABE, está para mim desqualificado de antemão. Posso lê-lo, é claro, porque escreveu coisas geniais sobre a relação entre a forma e matéria [vide. Aristóteles], sobre isto ou aquilo, mas para mim isso permanece da ordem do detalhe. O certo é que, quanto ao ponto que considero como fundamental, esse filósofo ainda tem tudo a aprender e está longe de desconfiar da profundidade do abismo que ladeia sem enxergar".

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