PARTE III[1]
A má consciência: inibição dos instintos
O título que demos à
primeira seção dessa terceira parte deixa entrever nossa proposta de compreensão
do problema da má consciência,
explorado por Nietzsche na Segunda
Dissertação da Genealogia. O que
nos chama atenção tão-logo nos aproximamos do tratamento dispensado por
Nietzsche ao problema da “má consciência” é o fato de ela formar-se a partir de
um conflito entre impulsos instintivos e imposições sociais. A má consciência é o efeito colateral do
processo de domesticação social a que é submetido o homem. Para integrar-se na
ordem social, o animal humano precisa ser educado em práticas disciplinadoras,
castradoras de suas tendências agressivas, antissociais. É difícil evitar a
tentação de aproximar as interpretações de Nietzsche e de Freud, à medida que
se vai descobrindo que o tratamento dispensado por Nietzsche ao tema da má
consciência parece prefigurar um horizonte de intuições valiosíssimas que
viriam a dar corpo à teoria freudiana das neuroses. No entanto, evitaremos aqui
ler a concepção nietzschiana de má consciência à luz da teoria das neuroses de
Freud. Em todo caso, registre-se que Nietzsche soube ver muitos aspectos da
neurose que Freud viria a estudar e aprofundar na Psicanálise, tais como
conflitos entre o medo, a ira (agressão) e sentimento de culpa.[2]
Evitaremos o uso do vocábulo “neurose” para nos referirmos aos sintomas da má
consciência, já que não queremos sugerir que se tome a má consciência por
neurose[3].
A fim de que possamos
compreender o que é a má consciência e qual é a sua gênese, é necessário,
primeiramente, compreender o que Nietzsche entende por consciência[4].
Em A Gaia Ciência, se topa um
fragmento em que Nietzsche nos diz, inicialmente: “A consciência é o último e
derradeiro desenvolvimento do orgânico e, por conseguinte, o que nele é mais
inacabado e menos forte”.[5] A
consciência não é uma faculdade superior; não se opõe ao corpo; não se
identifica com um “eu”, tampouco controla a vida orgânica do vivente. A
consciência é produto de processos orgânicos, é instinto entre outros instintos
– um instinto, é verdade, que, segundo Nietzsche, foi tomado como instinto predominante
sobre os outros.
Recorde-se que Nietzsche
pensava a vida como um combate incessante de forças (e estamos autorizados a
dizer: de instintos). A consciência, na medida em que é produto do
desenvolvimento do orgânico, é marcada por um incessante combate. A consciência
é também corpo, muito embora tenha instrumentalizado o corpo. É assim que a
consciência pode sentir-se como “pessoa” ou “sujeito” e, portanto, como
superior ao corpo.
Essas considerações sobre
a consciência, à luz da compreensão nietzschiana, deverão ser suficientes para
os nossos propósitos. Não posterguemos mais a consideração do problema da má
consciência. Começaremos por compreender a sua gênese, esforço este que deverá
nos encaminhar, segundo pretende Nietzsche, ao desenvolvimento da relação entre
“credor” e “devedor” e o consequente aparecimento do sentimento de culpa.
3.1. A relação contratual entre credor e devedor
A relação entre credor e
devedor constituirá o quadro teórico à luz do qual Nietzsche explicará a origem
do conceito moral de culpa, a
funcionalidade da aplicação do castigo, a equivalência entre dor e dano e o
consequente desenvolvimento da má consciência.
Segundo Nietzsche, a
origem do conceito moral de culpa está no conceito muito material de dívida, a
qual supõe a relação contratual entre credor e devedor. O castigo é reparação e
seu conceito se desenvolveu sem qualquer pressuposto de liberdade da vontade, a
partir do qual se creria que o castigado poderia ter agido de outro modo,
evitando, assim, o castigo. A aplicação do castigo como forma de reparação de
um dano causado não supunha também a responsabilidade do perpetrador, conforme
lemos no excerto a seguir:
Durante o mais largo período da história humana, não se castigou porque se
responsabilizava o deliquente por seu ato, ou seja, não pelo pressuposto de que
apenas o culpado devia ser castigado – e sim como ainda hoje os pais castigam
seus filhos, por raiva devido a um dano sofrido, raiva que se desafoga em quem
o causou, mas mantida em certos limites, e modificada pela ideia de que
qualquer dano encontra seu equivalente e pode ser realmente compensado, mesmo
que seja com a dor do seu causador.[6]
(ênfases no original)
Como se pode ver, a
motivação para a aplicação do castigo foi, durante um longo período da história
humana, a raiva que experimenta aquele que foi lesado. O que Nietzsche buscará
descrever a partir daí é o modo de funcionamento da psicologia humana antiga. O
castigo permite a quem foi lesado liberar sua raiva na forma de castigo no
causador do dano. A dor sofrida por este, como consequência do castigo que lhe
foi aplicado, funciona como uma compensação do dano sofrido. Nietzsche fará
remontar a origem da equivalência entre dano e dor à relação entre credor e
devedor. Ao ocupar-se dessa relação, Nietzsche começa observando que nela é
necessário que se façam promessas. As promessas constituem no devedor, isto é,
naquele que promete saldar sua dívida, uma memória. No momento em que, ao se
fazerem promessas, se constrói uma memória, toda uma série de punições cruéis,
duras passariam a encontrar justificação. Ao prometer, o devedor não poderá
alegar esquecimento na tentativa de escapar ao castigo ou de adiar o momento de
sua aplicação, porque, por ocasião da promessa, tem memória e, com ela, a
restituição ao credor torna-se para ele um dever ou obrigação. Assim, consoante
Nietzsche,
O devedor, para infundir confiança em sua promessa de
restituição, para garantir a seriedade e a santidade de sua promessa, para
reforçar na consciência a restituição como dever e obrigação, por meio de um
contrato, empenha ao credor, para o caso de não pagar, algo que ainda “possua”,
sobre o qual ainda tenha poder, como seu corpo, seu mulher, sua liberdade ou
mesmo sua vida (ou em certas circunstâncias religiosas, sua bem-aventurança, a
salvação de sua alma, e por fim até a paz no túmulo (...). [7]
Mas essas formas de
garantia dadas pelo devedor ao credor não subtraía a este o poder de punir o
devedor com toda sorte de aflições e torturas em seu corpo. A dor causada ao
devedor infunde no credor “uma espécie de satisfação
íntima”; e essa satisfação funciona como um equivalente ao benefício que se
seguiria do saldo da dívida. Na impossibilidade de ser ressarcido, o devedor se
regozija em poder causar sofrimento no devedor. Por isso, escreve Nietzsche “a
compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade”.[8]
Uma observação se impõe
urgente, antes de prosseguirmos. Para Nietzsche, é na esfera das obrigações
legais que devemos buscar a origem do mundo dos conceitos morais. É nessa
esfera que se desenvolverá o conceito de culpa, de consciência, de “dever”, da
“sacralidade do dever” – e não menos importante: é preciso reconhecer, com
Nietzsche, que esse mundo dos conceitos morais se constituiu com muito
derramamento de sangue e práticas de tortura, com muito gosto apurado pela
prática do sofrimento. Nietzsche identifica nesse mundo o vínculo entre culpa e
sofrimento, donde a necessidade da pergunta: em que medida o sofrimento pode
compensar uma dívida? A resposta já pode ser inferida do que se expôs sobre a
satisfação na aplicação do castigo: “fazer sofrer era altamente gratificante”[9] –
escreve Nietzsche. O sofrimento causado ao devedor compensava o desprazer
sentido pelo credor pelo dano que aquele lhe causou. Fazer sofrer, nota Nietzsche,
torna-se assim uma “grande festa”, e a crueldade passou a ser “o grande festivo da humanidade
antiga”[10]
Em Aurora, Nietzsche escreve sobre “a
alegria da crueldade”, considerando-a uma experiência predominante na condição
humana. Leia-se atentamente o que nos diz Nietzsche sobre ela.
A crueldade é uma das mais antigas alegrias da
humanidade. Julga-se, por conseguinte, que os próprios deuses se reconfortam e
se divertem quando lhes é oferecido o espetáculo da crueldade, de tal modo que
a ideia do sentido e do valor superior que há no sofrimento voluntário e no martírio escolhido livremente foi
introduzido no mundo. Pouco a pouco o costume estabelece na comunidade uma
prática conforme essa ideia doravante se desconfia de todo bem-estar exuberante
e se recobra confiança cada vez se está num estado de grande dor; então se diz
que os deuses poderiam ser desfavoráveis por causa da felicidade e favoráveis
por causa da infelicidade – desfavoráveis e de modo algum compassivos (...).[11]
Nesse trecho, Nietzsche
alude a um tema que se prende intimamente ao tema dos ideias ascéticos: o do
sofrimento voluntário e o do martírio escolhido. O problema do sofrimento no
cristianismo merecerá alguma atenção nossa antes de nos ocuparmos com o
problema dos ideais ascéticos ainda nesta terceira parte de nosso tratado. Por
ora, é conveniente continuar com a discussão que então iniciamos nesta subseção,
voltando-nos, doravante, para a questão do sentido
do castigo.
Nietzsche observa que, muito
embora a história do castigo (como toda história), tendo-se realizado pela
condensação semiótica da experiência do castigo em conceito, não possibilite o
acesso a todos os fins a que servia o castigo, é possível recuperar os diversos
fins da aplicação do castigo quando nos reportamos a um estágio anterior em que
a síntese dos “sentidos” ainda nos permite algum discernimento.[12]
Assim, Nietzsche passará a elencar a diversidade de propósitos a que servia o
procedimento do castigo. Para fins dessa discussão, importa-nos destacar dois
sentidos do castigo dentre os que Nietzsche apresenta: 1) o castigo destinado à
criação da memória; 2) o castigo destinado a incutir sentimento de culpa. Como
criação da memória, o castigo serve de advertência tanto para aquele que sofre
o castigo como para os que o testemunham. O que mais nos interessa, no entanto,
é o segundo sentido do castigo: o ser ele capaz de inspirar sentimento de culpa
naquele que é castigado. Nietzsche discordará dessa crença comum. Para ele, o
castigo não conseguiu produzir o alegado sentimento de culpa. Isso significa
dizer que o castigo não produziu a má consciência ou, o que Nietzsche
entenderá, a esta altura, como “remorso”. Para ele, o castigo somente “endurece
e torna frio; concentra; aguça o sentimento de distância, aumenta a força de
resistência”.[13]
Portanto, Nietzsche nega que a má consciência tem surgido como sentimento de
culpa decorrente da aplicação do castigo. Quem aplicava o castigo não pensava
que estivesse em face de um culpado, mas de um causador de dano. Agora,
devemo-nos perguntar: qual era a reação do infrator ao castigo recebido?
Façamos Nietzsche dizer:
(...) durante milênios
os malfeitores alcançados pelo castigo pensaram a respeito de sua “falta”:
“algo aqui saiu errado” e não: “eu
não devia ter feito isso” – eles se submetiam ao castigo como alguém se submete
a uma doença, a uma desgraça ou à morte, com aquele impávido fatalismo sem
revolta (...). Se havia então uma crítica do ato era a prudência que a exercia:
inquestionavelmente se deve buscar o genuíno efeito do castigo, antes de tudo, numa intensificação da prudência,
num alargamento da memória, numa vontade de passar a agir de maneira mais
cauta, desconfiada e sigilosa, na percepção de ser demasiado fraco para muitas
coisas, numa melhoria da faculdade de julgar a si próprio.[14]
Nietzsche não poderia ser
mais claro ao nos explicar qual é, realmente, o efeito produzido pelo castigo
naquele sobre o qual ele recai: “numa vontade de passar a agir de maneira mais
cauta”. O que sofre o castigo não tomará como lição “nunca mais devo fazer o
que fiz”, mas sim “na próxima vez, terei de ser mais cuidadoso”. Se o castigo
não causa naquele que o recebe sentimento de culpa, não deixa de causar, de
modo geral, o medo e o “controle dos desejos”. O castigo atende à domesticação do
homem; o castigo pode servir para reprimir seus instintos agressivos, para
conformá-lo às exigências da vida civilizada, mas jamais o torna melhor. Essa
conformação às exigências da vida civilizada não representa, de modo algum, um
aumento da vontade de poder no homem; é apenas um procedimento repressor que
permite mantê-lo sob vigilância, sob controle.
Terminado esse exame do
conceito de castigo, do qual demos um testemunho o mais cuidadoso possível,
Nietzsche apresentar-nos-á sua hipótese provisória sobre a origem da má
consciência. Essa hipótese não se nos apresenta na forma de um enunciado único
e definidor, que possamos apreender diretamente sem a necessidade de elaborá-lo
em consonância com os desdobramentos dela. A origem da má consciência repousa no
voltar-se de todos os instintos contra o homem – a hostilidade, a
crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – que
animavam a vida do homem livre e selvagem. A má consciência é, portanto, um
adoecimento do homem por força desse retorno contra si mesmo dos instintos que
davam à sua vida um caráter de inocência. Por que sucede esse retornar dos
instintos para o interior do homem? Porque os instintos devem ser retidos, ao
longo do processo de socialização, de desnaturalização do homem, como condição
para o ingresso no mundo da cultura. O que o homem experiencia nesse processo é
uma grande pressão interna, justamente porque seus instintos precisam ser
reprimidos, inibidos, não encontrando ocasião para a descarga. Esse é o custo para
que o homem ingresse no “âmbito da sociedade e da paz”[15].
A má consciência – “esse instinto de liberdade reprimido, recuado, encarcerado
no íntimo”[16]
é resultado de processos disciplinadores destinados ao amanssamento do animal
humano. A má consciência é o próprio sofrimento do homem que se interiorizou,
que foi forçado a reter seus instintos em seu interior, que se viu privado de
descarregar todo o quantum de suas
forças. Acompanhemos Nietzsche:
Esse homem que, por
falta de inimigos e resistências exteriores, cerrado numa opressiva estreiteza
e regularidade de costumes, impacientemente lacerou, perseguiu, corroeu,
espicaçou, maltratou a si mesmo, esse animal que querem “amansar”, que se fere
nas barras da própria jaula, este ser carente, consumido pela nostalgia do
ermo, que a si mesmo teve de converter em aventura, câmara de tortura, insegura
e perigosa mata – esse tolo, esse prisioneiro da ânsia e do desespero tornou-se
o inventor da “má consciência”.[17]
A má consciência inscreve
no interior do homem a memória do pesado custo da separação do próprio homem de sua condição originária como
animal selvagem. Doravante, o homem domesticado, corroído por um profundo
sentimento de mal-estar consigo mesmo, transforma-se numa arena de conflitos
instintivos incessantes.
3.2. A má consciência: o homem como inimigo de si mesmo
A má consciência é a
perversão da vontade de poder no homem, pois que, alcançado esse estado de
adoecimento do homem, este se serve dela para violentar a si mesmo, para
conformar-se (‘lapidar-se’). Nietzsche se refere a isso como uma “crueldade de
artista” - não do artista dionisíaco que conduzirá o homem a reconciliar-se
consigo mesmo-, mas do artista que se deleita “em se dar uma forma, como a uma
matéria difícil, recalcitrante, sofrente, em se impor a ferro e fogo uma
vontade, uma crítica, uma contradição, um desprezo, um Não”[18].
Esse homem cindido pela má consciência faz sofrer a si mesmo. Todos os ideais
ascéticos encontram aqui sua origem: ausência de si, abnegação, sacrifício, o
prazer em se mortificar, o tornar-se desinteressado, etc. O não-egoísmo como
valor moral é consequência dessa necessidade que tem o homem, a partir de
então, de se maltratar. A má consciência é a vontade de maltratar-se que
dominará o homem.
Estendamos nossas considerações,
doravante, aos seguintes tópicos sem cujo tratamento nosso estudo estaria
analiticamente fraturado. Os tópicos que passaremos a considerar são os
seguintes: 1) o desenvolvimento do sentimento de culpa; 2) a moralização da
culpa e do dever; e 3) a relação entre a má consciência e a noção de Deus.
3.3. O desenvolvimento do sentimento de culpa
Devemos, pois, procurar
examinar o seguinte problema: se o sentimento de culpa não surge da aplicação
do castigo, como, afinal, ele apareceu? O sentimento de culpa é um estágio de
agravamento da má consciência, é uma forma de doença mais terrível. Para que
compreendamos como surgiu no mundo o sentimento de culpa, devemos acolher o
convite de Nietzsche a retomar a relação de direito privado entre o devedor e o
credor, a fim de que, a partir daí, se nos esclareçam seus desdobramentos.
Nietzsche ensina que o
modelo de relação entre devedor e credor foi projetado na relação entre os
vivos e os seus antepassados. Nas comunidades tribais, a geração sobrevivente
reconhece ter uma obrigação jurídica com seus antepassados. Os integrantes da
comunidade acalentam a crença de que a subsistência da comunidade se deve aos
sacrifícios e aos grandes feitos de seus antepassados. Disso concluem que têm
para com eles uma dívida, que não cessa de avolumar-se, porquanto os
antepassados, sendo espíritos poderosos no além-mundo, continuam a beneficiar a
sua estirpe. Os membros da comunidade lhe devem, por isso, sacrifícios e
realizações. Entre esses sacrifícios e realizações, estão, segundo Nietzsche: “alimentação,
festas, música, homenagem, sobretudo obediência”[19].
A relação entre os vivos
e os antepassados assenta-se numa lógica de proporcionalidade que consiste na
seguinte:
o medo do
ancestral e do seu poder, a consciência de ter dívidas para com ele, cresce
necessariamente na exata medida em que cresce o poder da estirpe, na medida em
que ela mesma se torna mais vitoriosa, independente, venerada e temida. Não o
contrário! E todo passo para o debilitamento da estirpe, todo acaso infeliz,
todos os indícios de degeneração, de desagregação iminente, diminuem o medo do espírito de seu
fundador, oferecendo uma imagem cada vez mais pobre de sua sagacidade, de sua
previdência e da presença de seu poder.[20]
(ênfases no original).
Essa lógica, segundo
pretende Nietzsche, se levada até as últimas consequências, deverá estruturar a
seguinte perspectiva. Os ancestrais das estirpes mais poderosas se
transfigurarão em deuses por força da fantasia e do temor dos integrantes da
comunidade. Nietzsche acredita que a origem dos deuses talvez possa estar no
medo. Ainda segundo Nietzsche, a crença em que os vivos contraem dívidas para
com as divindades subsistiu ao declínio das formas de organização humana
baseada em vínculos de sangue. As gerações posteriores herdaram o compromisso
com as dívidas não pagas e o mesmo anseio de redimir-se perante os deuses. O
sentimento de culpa em face da divindade não cessou de crescer durante milênios
e sempre na mesma proporção com que o conceito e sentimento de Deus se superlativizavam.
No que toca ao aparecimento do conceito do Deus cristão, observa Nietzsche o
seguinte:
O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora
alcançado, trouxe também ao mundo o
máximo de sentimento de culpa. Supondo que tenhamos embarcado na direção
contrária, com uma certa probabilidade se poderia deduzir, considerando o
irresistível declínio da fé no Deus cristão, que já agora se verifica um
declínio considerável da consciência de culpa do homem; sim, não devemos
inclusive rejeitar a perspectiva de que a vitória total e definitiva do ateísmo
possa livrar a humanidade desse sentimento de estar em dívida com seu começo,
sua causa prima [causa primeira]. O
ateísmo e uma espécie de segunda
inocência são inseparáveis.[21]
Antes de nos ocuparmos com
a elucidação do segundo problema entre os três que definimos como objeto de
nossas considerações, convém dilucidar alguns pontos que talvez ainda
permaneçam com alguma margem de dúvida. Nietzsche propôs pensar o agravamento
da má consciência, isto é, o sentimento de culpa a partir do modelo de relação
contratual entre credor e devedor. A grande transformação ocorrida nesse modelo
para que fosse possível o surgimento da consciência de culpa foi que a relação
baseada num sentimento de dívida reúne agora os vivos como devedores e os
mortos como credores. Essa consciência de ter dívida para com os mortos era
sempre alimentada, renovada e mantida pela fantasia e pelo medo dos vivos. Pela
fantasia, os homens tomam como credor os antepassados, e por força dela também,
os que pertencem à estirpe mais poderosa transformam seus antepassados em
divindades. A mesma fantasia os faz experienciar o temor crescente em face da
possibilidade de serem punidos, caso negligenciem o cumprimento do dever que
lhes foi herdado pelas gerações precedentes. Está, pois, constituído o
mecanismo psicológico que será decisivo na moralização da culpa. O devedor imagina-se perpetuamente em dívida com
seus antepassados-deuses. A consciência de culpa é um sintoma de um processo
imaginativo que está na origem de uma série de crenças: crença num credor
sobre-humano, crença em estar em dívida com esse credor, crença na influência
benévola ou malévola desse credor, crença na “hereditariedade” do compromisso
com o credor. Como seja produto de um processo imaginativo que se reproduz
continuamente, a consciência de culpa encontra aí um terreno sólido para se
perpetuar.
No que diz respeito à
crítica avassaladora que Nietzsche dirigirá ao cristianismo, não devemos perder
de vista o fato de que ele estava muito pouco interessado no problema da
existência ou inexistência de Deus, ou na exatidão histórica das lendas
fundadoras do cristianismo. Para ele, importava muito mais considerar o
problema do valor da moral cristã. Nietzsche considerava a moral cristã “um
atentado capital contra a vida”[22]
Por fim, atentando para o
excerto citado anteriormente, o que deveremos, na próxima subseção, examinar é
justamente o modo como o sentimento de culpa foi maximizado com o advento do
Deus cristão.
3.4. A
moralização da culpa e do dever e a relação da má consciência com a noção de
Deus
A moralização da culpa e
do dever tem como pressuposto a crença no Deus cristão, agora o novo credor do
homem. Com a crença no Deus cristão, o homem contrai uma dívida que jamais
conseguirá saldar. A má consciência está mais profundamente enraizada nele, e a
culpa e o dever o afligem com uma força destrutiva jamais conhecida. Não lhe é
possível mais realizar a penitência; sua condição é de castigo eterno. Todavia,
não é só o homem que é atormentado pela culpa e pelo dever; o dever e a culpa
voltam-se também contra o credor. Primeiramente, contra o ancestral do homem,
Adão. A espécie humana agora carrega uma maldição (“pecado original”); ou ainda
se voltam contra a natureza, agora demonizada, porque dela se origina todo mal;
ou contra a existência, então destituída de qualquer valor (donde o desejo do
nada, o desprezo niilista pela vida).
O cristianismo ainda
legaria à história o mais eficaz paradoxo: o Deus sacrificado. Agora, é o
credor que se sacrifica pela culpa do homem; o credor paga a si mesmo. Somente
Deus pode redimir o homem – “o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a
seu devedor!...”[23]
Nietzsche argumenta que a
invenção da má consciência fez surgir no homem a vontade de se torturar. O
homem, que inventou a má consciência, soube ainda intensificar o mal a si
mesmo: passou a crer estar em dívida para com Deus e, assim, criou seu maior
instrumento de suplício.
Ele apreende em “Deus” as últimas antíteses que chega
a encontrar para seus autênticos insuprimíveis instintos animais: ele
reinterpretou esses instintos como culpa em relação a Deus (como inimizada,
insurreição, rebelião contra o “Senhor”, o Pai, o progenitor e princípio do
mundo), ele se retesa na contradição “Deus” e “Diabo”; todo o Não que diz a si,
à natureza, naturalidade, realidade do seu ser, ele o projeta fora de si como
um Sim, como algo existente, corpóreo, real, como Deus, como santidade de Deus,
como Deus juiz, como Deus verdugo, como Além, como eternidade, como tormento
sem fim, como inferno, como incomensurabilidade do castigo e da culpa.[24]
Deus se torna signo de
uma implacável crueldade psíquica cometida pelo homem contra si mesmo. A
vontade se torna corrompida no homem. O homem quer-se culpado, quer-se
castigado, quer-se desprezível, quer-se irredimível. Nietzsche diz que o homem deseja “cortar para
si a saída desse labirinto de “ideias fixas”[25]:
como evitar não pensar na neurotização do homem, no adoecimento psíquico do homem
- do homem que se torna um compulsivo obsessivo transtornado?
Aqui há doença, sem qualquer dúvida, a mais terrível doença que jamais devastou o homem – e quem ainda consegue ouvir (mas hoje não há ouvidos para isso!) como nessa noite de tormenta e absurdo ressoou o grito de amor, o grito do mais sequioso êxtase, da salvação no amor, voltará as costas, tomado de horror invencível... Há tanta coisa horrível no homem!... Já por muito tempo a terra foi um hospício!...[26]
3.5. Os ideais ascéticos: o autodesprezo
do homem
Nesta última seção da
terceira parte de nosso estudo, vamos enfocar a significação dos ideais
ascéticos, tendo como pressuposto o fato de eles servirem como instrumento de
hostilidade à vida. Embora Nietzsche se tenha ocupado com a figura do filósofo
ascético, nossa atenção se concentrará exclusivamente na figura do sacerdote
ascético. Essa escolha não é arbitrária. Há duas razões que a determinam: 1) o
sacerdote ascético é o principal representante da espécie de moral que
Nietzsche censura duramente – “o sacerdote ascético tem nesse ideal [no ideal
ascético] não apenas a sua fé, mas também sua vontade, seu poder, seu
interesse”[27];
2) o asceticismo do filósofo tem sua origem no asceticismo mais “sério” do
sacerdote ascético.[28]
O que nos proporemos
fazer, inicialmente, não constitui, de modo algum, um desvio do fio discursivo
pré-fixado no parágrafo anterior. Ao nos ocuparmos com o modo como Nietzsche
busca determinar o significado do
ideal ascético (pois é nisso que Nietzsche está interessado; não no que esse
ideal realizou), cuidamos haver um problema central na forma como se constituiu
esse ideal, qual seja, o problema do sofrimento.
Nesse trabalho, esforçamo-nos por enfatizar que o sofrimento para Nietzsche não deve ser razão suficiente para
desaprovar a existência; ao contrário, o sofrimento deve ser para o tipo de
homem forte – dionisíaco - um fortificante para a vida, para “mais vida”, não
porque se deve amar o sofrimento, mas porque se deve dizer “sim” à vida, se
deve querê-la, amá-la incondicionalmente, deve-se rejubilar-se em ser mais fecundo
na dor. A vida do sacerdote ascético, a vontade de poder que ele afirma, por
outro lado, é uma vontade corrompida, decadente; uma vontade que se volta
contra si mesma, que enfraquece a vida. O sacerdote ascético é um valorador,
mas seus valores são valores que conduzem o homem ao afastamento niilista da
vida. O sofrimento que o sacerdote ascético causa a si próprio é um instrumento
de punição. Esse homem doente transformou-se em pecador: o que ele quer não é
mais vida, é mais dor; nele se enraizou o desejo de mais dor. Como vontade de
poder, o tipo vital que é o sacerdote ascético também interpreta. Ele
reinterpretou o sofrimento como castigo. Com o sacerdote ascético, a má
consciência se chama pecado; nele se
dá o agravamento mais nefasto da doença do espírito. Antes de nos determos na
análise do significado do ideal ascético e na ressignificação do sofrimento
feita pelo sacerdote ascético, passemos em revista como a dogmática cristã
interpreta o sofrimento.
3.5.1. A tábua do sofrimento: um caminho de retorno a Deus
Vejamos como o significado do
“sofrimento”, segundo entendemos, se constitui no cristianismo. Comecemos por
notar que a cruz, no cristianismo, é símbolo do sofrimento. Um cristão poderia objetar-nos
que, na realidade, a cruz é para a Igreja cristã símbolo da Salvação. Todavia,
não devemos perder de vista o fato de que todo símbolo (bem como todo signo) é
polissêmico e que, por isso, à cruz se associam dois significados: o de
‘sofrimento’ e o de ‘triunfo’. Este último se situa no campo semântico da
‘salvação’. Mas no mundo antigo, entre os judeus, a cruz era um escândalo, um
sinal de suplício e, portanto, algo extremamente indecoroso e terrificante. Ao
que parece, foi na iconografia cristã que se estabeleceu, relativamente à cruz,
a transposição do significado mais original de ‘sofrimento’ para o de
‘salvação’ ou ‘superação da morte’. Os cristãos hoje veem a cruz de Cristo, de
cuja base saem folhas e flores, como símbolo da Salvação.
Essa consideração inicial sobre o
simbolismo da cruz sugere que os cristãos proto-ortodoxos, ao longo do
desenvolvimento do movimento cristão e em disputas acirradas com outros grupos
que sustentavam opinião divergente (grupos chamados, por isso, de “heréticos”),
verteram em dogma a interpretação da cruz como símbolo da Salvação. Pelo
sofrimento e morte na cruz, Cristo salvou a humanidade de seus pecados. Não
surpreende, portanto, que o sofrimento tenha sido valorado, ao longo da
tradição cristã, como um caminho para um bem maior.
O texto do Catecismo da Igreja
Católica (2000) reconhece que, na dor ou no sofrimento, o homem experimenta
sua impotência e que a enfermidade pode levar uma pessoa a angustiar-se e a revoltar-se contra Deus.
Mas, ao mesmo tempo, ensina que a doença pode tornar aquele que dela é
acometido mais maduro, ajudando-o a discernir, em sua vida, entre o que é
essencial e o que não é essencial. Nesse sentido, a dor, a doença, o sofrimento
podem conduzi-lo a valorizar as coisas essenciais. Não é custoso inferir que,
entre as coisas essenciais, está, evidentemente, Deus. O sofrimento provoca no
sofredor um anseio por buscar a Deus, por retornar a ele. Há também um
significado moral no sofrimento, porquanto, graças a ele, o homem orienta sua
vida pelo discernimento entre as boas e as más paixões, entre o que é essencial
e o que é supérfluo. No sofrimento e através dele, o homem revê, repensa seus
valores, aperfeiçoa-se moralmente.[29]
Por que o homem sofre? Como foi
possível o sofrimento penetrar num mundo criado por um Deus infinitamente bom?
A dogmática cristã fornece a resposta: a Queda do homem. O sofrimento e o mal
penetraram no mundo em decorrência do pecado original cometido por Eva, do qual
tomou parte Adão. Por essa razão, todas as gerações posteriores passaram a
carregar o estigma do pecado e, por isso, cada bebê que nasce precisa ser
batizado como sinal de aliança com Cristo e com toda a comunidade cristã. Pelo
batismo, abre-se o caminho para a Salvação Eterna.
O sofrimento, na medida em que entra no
mundo como consequência da Queda do primeiro Homem, animará o anseio humano por
libertar-se do mundo, por superá-lo, já que este mundo tornou-se então um “vale
de lágrimas”. No entanto, o sofrimento tem o poder de alavancar a verdadeira
transformação do homem. O fracasso que o homem experiencia, sempre que pesa
sobre ele sua condição sofredora, o conduz, em perseverando na fé, à vitória. Uma
vez que o pecado se avilta, se amaldiçoa, ele se crê no caminho que o conduzirá
à Salvação. Bruckner, em seu A euforia perpétua (2010, p. 32) nota bem:
“Não basta, pois, experimentar o sofrimento, é preciso amá-lo”.
A doutrina cristã prescreve: “É
necessário sofrer!”; “Resigne-se ao sofrimento e Deus o concederá sua graça”. O
cristão não está sozinho em seu sacrifício, em seu culto ao sofrimento. Cristo
lhe serve de modelo de sofrimento; o fiel cristão se “inspira” na Paixão de
Cristo quando se vê fustigado pela dor do sofrimento. O cerne do ritual cristão
é a morte em agonia do Cristo-Deus na cruz. Cristo se torna o proprietário da
morte. Ele nos lembra a nossa condição sofredora, mas também confirma a
promessa da superação dela, na ordem da esperança e do amor, pela sua ascensão
à condição sobre-humana. Para o cristão que padece, Jesus é um irmão de
sofrimento. O cristão, mesmo aviltado, sobrepujado pelo sofrimento, pela culpa
do pecado deve encontrar em Jesus um guia em seu próprio calvário. “Deus dá
a cruz segundo nossa capacidade de carregá-la” – diz o senso-comum. O
sofrimento sujeita o homem cristão à condição de impotência, arranca-lhe as
forças, condena-o à resignação, anima-lhe o ressentimento. O homem não pode
salvar-se por si mesmo. A salvação é uma graça de Deus. É do fundo de seu
sofrimento atroz que o homem ascende a Deus. O sofrimento é a escada que leva o
homem a Deus. O signo do sofrimento quer dizer, no fundo: “dependência do homem
em relação a Deus”. Essa dependência não seria possível sem o imperativo do
sofrimento, que reaviva na consciência do homem sua condição de criatura mortal
e inferior. Sofrimento e salvação são indissociáveis, de tal modo que se
pressupõem reciprocamente. Não haveria sentido, no cristianismo, proclamar a
salvação, sem a introdução da doutrina que atribui sentido ao
sofrimento. O sofrimento é o caminho: caminho para a salvação da morte,
salvação do mundo onde grassa o pecado; salvação da própria condição humana
sofredora. Em relação ao cristianismo,
escreve Bruckner: “poucas religiões insistiram como esta no lixo humano ou
manifestaram esse “sadismo de piedade” (p. 34). E mais adiante, acrescenta: “o
sofrimento é a norma... É preciso amar o homem, mas primeiro humilhá-lo,
rebaixá-lo”. (ibid.). O sofrimento torna o homem merecedor de piedade e
compaixão.
Na medida em que nos leva a
aproximarmo-nos de Deus, o sofrimento é interpretado pelo cristão como um
progresso. A miséria traz a paz interior; traz alegria espiritual. O cristão
que sofre experimenta, paradoxalmente, a alegria de estar unido a Cristo em
sofrimento; e quando algum pensamento queixoso acerca de sua condição lhe assalta
a consciência, pune-se na comparação de seu sofrimento com o de outros em
condição que ele crê mais desgraçada, ou mesmo com o sofrimento do próprio
Cristo, “infinitamente mais pungente”. Novamente Bruckner nos lembra: “com a
religião, o sofrimento torna-se um mistério que não deciframos, a não ser
sofrendo” (p. 35). O cristão, ao sofrer, atribui um sentido ao seu sofrimento,
mesmo que este sentido não lhe seja imediatamente transparente[30].
E Bruckner faz a seguinte observação sobre o trabalho ardiloso dos teólogos: “E
os teólogos irão desenvolver tesouros de casuística e de sutileza para
legitimar a existência do mal sem atentar à bondade de Deus” (ib.id.). Mesmo o
sofrimento gratuito, injustificável será submetido às tentativas escrupulosas
de justificação teológica.
3.5.2. O
ideal ascético: uma hostilidade contra a vida
O sacerdote ascético,
conforme notamos, também é um valorador. A questão que precisa, pois, ser
esclarecida, inicialmente, concerne ao modo como se dá a valoração da vida pelo
sacerdote ascético. Para tanto, vale a leitura do seguinte trecho da Genealogia:
O pensamento em torno do qual aqui se peleja é a valoração de nossa vida por parte dos
sacerdotes ascéticos: esta (juntamente com aquilo a que pertence, “natureza”,
“mundo”, toda a esfera do vir a ser e da transitoriedade) é por eles colocada
em relação com uma existência inteiramente outra, a qual exclui e à qual se
opõe, a menos que se volte contra si
mesma, que negue a si mesma: neste
caso, o caso de uma vida ascética, a vida vale como uma ponte para essa outra
existência. O asceta trata a vida como um caminho errado, que se deve enfim
desandar até o ponto onde começa; ou como um erro que se refuta – que se deve refutar com a ação: pois ele exige
que se vá com ele, e impõe, onde pode, a sua
valoração da existência.[31]
Está claro, pois, que o
sacerdote ascético valora, e a valoração que faz da vida se apóia na suposição
da existência de um mundo metafísico – de um “em si” – em vista do qual se
orienta a sua vontade de poder autodestrutiva. A sua valoração da existência
consiste em retirar dela todo valor. O sacerdote ascético nutre um profundo
desgosto pela vida, por si mesmo e sente prazer em causar dor a si mesmo. Ele é
dominado por um profundo ressentimento; sua vontade de poder subtrai da vida
toda a opulência de suas forças. Ele encontra satisfação na negação de si, na
autoflagelação e no autosacrifício. O sofrimento que o asceta causa a si mesmo
é uma forma de negação da força, da vida. No sacerdote ascético, a vida
volta-se contra a vida. Ele tem horror ao florescimento fisiológico. O ascético
trava uma luta consigo mesmo na tentativa de conservar sua existência decaída.
Embora ele seja um negador da vida, está proibido de levar sua negação da vida
às últimas consequências, isto é, ele está proibido de se matar. Segundo
Nietzsche, “o ideal ascético nasce do
instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, a qual busca
manter-se por todos os meios”. (ênfase no original).[32]
Entendamos aqui essa contradição fisiológica. A exaustão fisiológica
experimentada pelo sacerdote ascético nunca é total, pois nele a vida precisa
lutar contra a morte. Nesse sentido, Nietzsche vê no ideal ascético um
artifício destinado à preservação da vida. Ao autoflagelar-se, o sacerdote
ascético precisa continuar vivendo; suas feridas o fazem ocupar-se com a vida
que resiste, mesmo que em condição doentia e enfraquecida. Tudo isso explica,
para Nietzsche, por que esse tipo de homem pôde predominar sobre os homens na
história da civilização ou da domesticação humana. O que é o homem domesticado
senão aquele que é forçado a lutar contra seus próprios instintos? No ideal
ascético, o homem luta incessantemente contra seu desejo do “fim”. O que deseja
o sacerdote ascético? Nietzsche nos esclarece: ele deseja ser outro, deseja
estar em outro lugar. O sacerdote ascético “é o mais alto grau desse desejo,
sua verdadeira febre e paixão”[33].
Mas – outro paradoxo – justamente o poder desse desejo o acorrenta à vida. Em
outras palavras, ao desejar ser outro, ao desejar estar em outro lugar, é ainda
um desejante, e enquanto encarnação de um querer, é afirmador da vida. Eliminar
de si o querer significaria eliminar a própria vida, mas isso é coisa proibida
ao sacerdote ascético. Ele quer não mais viver, mas enquanto quer, enquanto
deseja, enquanto é desejante, é afirmador. Estando inevitavelmente preso à vida
da qual deseja subtrair-se, na medida em que quer ser outro, não lhe resta
alternativa senão se tornar “o instrumento que deve trabalhar para a criação de
condições mais propícias para o ser-aqui e ser-homem”[34].
Assim, segundo Nietzsche,
- precisamente com este poder ele mantém apegado à vida todo o rebanho de malogrados,
desgraçados, frustrados, deformados, sofredores de toda espécie, ao colocar-se
instintivamente à sua frente como pastor. Já me entendem: este sacerdote
ascético, este aparente inimigo da vida, este negador – ele exatamente está entre as grandes potências conservadoras e afirmadoras da vida...[35]
Nietzsche chama a esse
tipo doente – o sacerdote ascético – de “o grande experimentador de si mesmo”,
isto é, aquele que nutre grande satisfação em mensurar sua capacidade de
suportar a dor e o sofrimento a que se submete a si mesmo. Segundo Nietzsche,
“o não que ele diz à vida traz à luz, como por mágica, uma profusão de Sins
mais delicados; sim, quando ele se fere, esse mestre da destruição, da
autodestruição – é a própria ferida que em seguida o faz viver...”[36]
O tratamento que vimos
dando ao tema dos ideias ascéticos não pretende, evidentemente, exaurir toda a
significação de sua problematicidade. Nosso tratamento supõe um recorte
interpretativo à luz do qual certo conjunto de questões, porque consonante com
nossos propósitos, é forçosamente destacado. Com vista a conduzir a bom termo
esta terceira parte de nosso estudo, elenquemos as questões que nos cumpre
ainda examinar: 1) qual é, segundo Nietzsche, o grande perigo do homem?; 2) que
função exerce o sacerdote ascético?; 3) qual é a meta do ideal ascético?; 4) como
o pecado foi reinterpretado pelo sacerdote ascético?; 5) como o sofrimento foi
interpretado pelo sacerdote ascético?
Examinemos, pois, a
primeira questão: qual é, segundo
Nietzsche, o grande perigo do homem? Nietzsche oferece o caminho para a
resposta, assumindo que a condição normal do homem é a condição de animal
doente. Os homens que exibem pujança de alma e de corpo são casos raros e, por
isso, deveriam ser “protegidos do ar ruim, do ar de doentes”[37].
O grande perigo do homem saudável são os doentes. Para Nietzsche, são os fracos
a causa de todo infortúnio dos mais fortes. O tipo doente de homem é aquele que
está cansado do homem, é aquele que tem grande nojo ao homem, isto é, a quem
repugna “o ser homem”; em última instância, aquele que não deseja mais ser
homem. Ademais, é o tipo que nutre grande compaixão pelo homem. Ter compaixão
pelo homem é um modo de apequená-lo, de humilhá-lo, de tomá-lo por fraco,
debilitado, doente. Se combinados o nojo ao homem e a compaixão pelo homem,
teríamos o tipo de homem niilista, isto é, aquele dominado pela vontade do
nada. O tipo de homem doente é também um tipo de vontade de poder, a saber, a vontade de poder decadente. É um
tipo perigoso porque sua vontade é contaminante, é envenenadora. Nietzsche vê
toda a história da moral ocidental como a história da predominância da
valoração dos decadentes, dos fracos, dos doentes. Acompanhemos Nietzsche no
seguinte excerto:
Os doentes
são o grande perigo do homem: não os maus, não os “animais de rapina”. Aqueles
já de início desgraçados, vencidos, destroçados – são eles, são os mais fracos, os que mais corroem a
vida entre os homens, os que mais perigosamente envenenam e questionam nossa
confiança na vida, no homem, em nós. (...) “Quisera ser alguma outra pessoa”,
assim suspira esse olhar: mas não há esperança. Eu sou o que sou: como me
livraria de mim mesmo? E no entanto – estou
farto de mim!”... Neste solo de autodesprezo, verdadeiro terreno pantanoso,
cresce toda erva ruim, toda planta venenosa, e tudo tão pequeno, tão escondido,
tão insincero, tão adocicado. Aqui pululam os vermes da vingança e do rancor;
aqui o ar fede a segredos e coisas inconfessáveis; aqui se tece continuamente a
rede da mais malévola conspiração.[38]
Nosso convívio com os
escritos de Nietzsche avivou-nos a sensibilidade para identificar esses tipos
conspiradores. Estamos à volta com eles! Conhecemo-los bem, afinal! Eles nutrem
profundo ressentimento contra a vida, contra os logrados, os vitoriosos; eles
odeiam os vitoriosos. Eles apreciam censurar os que gozam da “grande saúde”, os
que encarnam força e orgulho. Consideram essas qualidades coisas viciosas. O
que querem eles? Querem sobrepujar os sãos; querem se tornar seus superiores –
“em toda parte a luta dos enfermos contra os sãos – uma luta quase sempre
silenciosa, com pequenos venenos, com agulhadas, com astuciosa mímica de
mártir”[39].
Nesses tipos doentes cresce subterraneamente o veneno do ressentimento que
aguarda o instante para ser inoculado nos sãos. É interessante atentar para o
fato de que Nietzsche procura descrever o modo como uma moral que condena a
felicidade, que quer que o homem se
envergonhe de ser feliz, pôde se tornar vitoriosa no Ocidente. O tipo doente
toma como razão para condenar a felicidade a grande quantidade de miséria, de
sofrimento no mundo. Querer ser feliz, afirmar a felicidade neste mundo é
indecoroso. E Nietzsche soube bem ver que o caráter corrosivo da vontade de
viver que essa moral encarna levou os
mais fortes, os mais logrados a começar a suspeitar de seu direito à
felicidade.
Tomemos, agora, a segunda
questão cuja resposta é impreterível elucidar: que função exerce o sacerdote ascético? Não cabe aos sãos, observa
Nietzsche, assistir os doentes. Os sãos não devem tornar sãos os doentes. O avanço da moral dos decadentes tem
necessidade de médicos também doentes que se ocupem de proteger e defender o
rebanho doente contra os sãos e também contra a inveja que esse rebanho tem dos
sãos. É preciso, afinal, ser puro de coração! Esse médico doente é o sacerdote
ascético. O sacerdote ascético ensinará ao rebanho o desprezo pela saúde. Ele é
o salvador, o pastor, o defensor do rebanho doente. Ele estenderá sua dominação
sobre os que sofrem e seu reino compreenderá a extensão dessa dominação.
Dominar os que sofrem é sua função e sua felicidade. Obviamente, somente um
tipo também doente é capaz de dispor da necessária empatia para atender às
necessidades dos doentes. Mas o sacerdote ascético deve ser também o senhor de
si, deve conservar a integridade de sua vontade de poder para que obtenha a
confiança e o temor dos doentes. Deve, além disso, representar um novo tipo de
animal de rapina, tem de combinar uma nova ferocidade com a astúcia, porque
precisa combater os animais de rapina.
O rebanho também precisa
ser defendido de si mesmo, pois que ele pode ser consumido pela perfídia e pela
malevolência. O sacerdote ascético opera uma grande mudança na direção do
ressentimento. O ressentimento, agora, volta-se contra o próprio ressentido.
Se, no ressentimento, há a necessidade instintiva de identificar um culpado do
mal sofrido – dessa forma raciocinam todos os doentes: “eu sofro, logo alguém
tem de ser culpado” -, o sacerdote ascético ensinará ao ressentido: “somente
você mesmo é culpado de seu sofrimento”. Nisso consiste a mudança na direção do
ressentimento: a culpa recai sobre o próprio sofredor que cumula ressentimento.
A terceira questão que
nos compete examinar agora toca ao fato de o sacerdote ascético dispor de uma
meta. Devemos responder, portanto, qual é a meta do ideal ascético. Vejamos o
que nos ensina Nietzsche a respeito:
O ideal ascético tem uma finalidade, uma meta – e esta
é universal o bastante para que, medidos por ela, todos os demais interesses da
existência humana pareçam estreitos e mesquinhos; povos, raças, épocas e homens
são por ele interpretados implacavelmente em vista dessa única meta, ele não
admite qualquer outra interpretação, qualquer outra meta, ele rejeita, renega,
afirma, confirma somente a partir da sua
interpretação (- e houve jamais um sistema de interpretação mais elaborado?);
ele não se submete a poder algum, acredita, isto sim, na sua primazia perante
qualquer poder, na sua incondicional distância
hierárquica em relação a qualquer
poder – ele acredita que nada existe com poder na Terra que não receba somente
dele um sentido, um valor, um direito à existência, como instrumento para a sua obra, como meio e caminho para a sua meta, para uma meta...[40]
Precisamos, nesse
momento, ativar alguns conhecimentos pressupostos em nossa memória. Lembremo-nos
de que todo processo interpretativo produz um sentido que é, ao mesmo tempo,
sintetizador e hierarquizador dos elementos múltiplos relacionais que determinam
o mundo. O ideal ascético é vontade de poder e, como tal, um sistema de
interpretação do mundo que pretende fixar o
sentido hegemônico (perspectiva). O que essa vontade de poder quer é tornar
sua interpretação a única interpretação possível do mundo. Seu querer é um
querer de primazia sobre outras vontades de poder. Tudo o mais de poder que há
deve seu valor, seu sentido a este único sentido fixado pela interpretação efetuada
pelo ideal ascético. Qual é, portanto, a meta desse sistema de interpretação
que é o ideal ascético? É tornar seu
sentido o sentido universal, o seu
valor o valor universal. Sua meta consiste em querer impor-se como a única
interpretação possível do mundo, reduzindo todos os demais poderes ou forças a
instrumentos para a realização e a consolidação dessa meta. Tal foi a
influência que sobre a ciência exerceu o ideal ascético. Nietzsche viu na
ciência “a mais nova manifestação do ideal ascético”[41];
isso significa dizer que a interpretação ascética conseguiu destilar seu veneno
na consciência científica, de sorte que a própria ciência tornou-se “um esconderijo para toda espécie de
desânimo, descrença, remorso, despectio
sui [desprezo de si, má consciência] – ela é inquietude da ausência de ideal”. (ênfases no original).[42]
As duas últimas questões
que se nos impusemos examinar deverão ser contempladas em conjunto. Nietzsche
nota que o sacerdote ascético soube muito bem aproveitar-se do sentimento de
culpa, cuja gênese – já o sabemos – encontra-se na nova forma assumida pela
relação entre devedor e credor. Nietzsche vê o sacerdote ascético como
“verdadeiro artista em sentimentos de culpa”[43].
Para que compreendamos como o sacerdote ascético fez uso do sentimento de
culpa, é preciso antes dizer que coube ao sacerdote ascético reinterpretar a má
consciência como pecado. Corroído por aflições, o animal humano enjaulado é
ávido de remédios que possam aliviar seus males. Na dificuldade de
encontrá-los, acaba por socorrer-se dos conselhos do sacerdote ascético, grande
conhecedor “das coisas ocultas”. O sacerdote ascético indica a primeira causa
do sofrer daquele que se desespera em
aflições: busque-a em si mesmo!
Buscar em si mesmo significa buscar aquilo que explique o sofrimento. O
sofredor identifica em si uma culpa: ele é culpado de seu próprio sofrimento. O
sofrimento se lhe afigura, agora, como um instrumento de punição. A culpa
torna-se agora a única causa do sofrimento do doente, isto é, do pecador. É
oportuno citar Nietzsche:
(...) o doente foi transformado em “pecador”... E
agora estamos condenados à visão desse novo doente, “o pecador”, durante alguns
milênios – jamais nos livramos dele? – para onde quer que nos voltemos, em toda
parte o olhar hipnótico do pecador, movendo-se sempre na mesma direção (na
direção da “culpa”, como a única
causa do sofrer); em toda parte a má consciência, “essa besta abominável”, no
dizer de Lutero, em toda parte o passado ruminado, o fato distorcido, o “olhar
belicoso” para toda ação; em toda parte, a incompreensão voluntária do sofrer
como sentimento de culpa, medo e castigo; em toda parte o flagelo, o cíclico, o
corpo macilento, a contrição; em toda parte o auto-suplício do pecador na roda
cruel de uma consciência inquieta, morbidamente lasciva; em toda parte o
tormento mudo, o pavor extremo, a agonia do coração martirizado, as convulsões
de uma felicidade desconhecida, o grito que pede “redenção”.[44]
Confesso a Deus-Todo poderoso que pequei muitas vezes... por
minha culpa, minha tão grande culpa![45]- o pecador reconhece-se como o único
grande culpado de seu sofrimento; sua má consciência torna-se exacerbada e ele
se consome numa profunda violência psicológica. O sofrimento é seu único
verdadeiro remédio contra o sentimento de culpa. Agora, segundo nota Nietzsche,
a vida, embora esgotada na fonte de suas forças, não se apresenta mais cansada.
Vencida a luta contra o desprazer, o sacerdote ascético se satisfaz na chegada
do seu reino. Ele, agora, quer mais dor.
Nietzsche argumenta que o
ideal ascético sempre significou o reconhecimento de que há uma falta, uma
lacuna em torno do homem. O ascético sofreu, durante longo tempo, porque não
conseguia encontrar um sentido para essa falta. Afligia-o a questão do “para
que sofrer”. Esse animal doente não negava em si o sofrimento; foi até bastante
acostumado a ele. Sua vontade orienta-se para o sofrer, desde que houvesse um
sentido para seu sofrer. O homem sofria por não encontrar esse sentido de seu
sofrer. O sacerdote ascético lhe ofereceu o sentido. Com ele, o sofrimento foi
interpretado. Consideremos este trecho de Nietzsche antes de terminar:
Nele [no ideal ascético] o sofrimento foi interpretado, a monstruosa lacuna
parecia preenchida; a porta se fechava para todo niilismo suicida. A
interpretação – não há dúvida – trouxe consigo novo sofrimento, mais profundo,
mais íntimo, mais venenoso e nocivo à vida: colocou todo o sofrimento sob a
perspectiva da culpa... Mas apesar de tudo – o homem estava salvo, ele possuía um sentido, a partir de então não era mais
uma folha ao vento, um brinquedo do absurdo, do sem-sentido, ele podia querer algo – não importando no momento
para que direção, com que fim, com que meio ele queria: a vontade mesma estaria salva. Não se pode em absoluto esconder o
que expressa realmente todo esse querer que do ideal ascético recebe sua
orientação: esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal, mais ainda
ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade
e da beleza, o anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte,
devir, desejo, anseio – tudo isto significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma
revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida, mas é e continua
sendo uma vontade... E para repetir
em conclusão o que afirmei no início: o homem preferirá ainda querer nada a nada querer...[46]
O ideal ascético, segundo
pretende Nietzsche, ao fixar um sentido para o sofrimento do homem, livrou-o do
desespero do niilismo radical, ou seja, o homem não é mais “uma folha ao vento,
um brinquedo do absurdo”. Assim, pode conservar-se enquanto vontade de poder. A
questão é: a que custo? A vontade que pode continuar querendo é uma vontade de
renúncia à vida. Toda a avidez que move esse homem doente, cuja vontade foi,
apesar de tudo, preservada, é uma avidez de fugir ao modo como a própria vida
se conforma. Ele quer escapar ao devir, à morte, ao desejo, em suma, a tudo que
se apresenta como pressupostos da vida. Mas, uma vez orientando para esse fim a
sua vontade, essa mesma vontade torna-se vontade de nada – vontade niilista,
portanto. Essa vontade niilista se afirma como aversão à vida. Ao querer
escapar a tudo quanto é um pressuposto do viver – seu caráter fenomênico, seu
devir, o tender para a morte inevitável, etc. -, a vontade desse tipo de homem
produzido pelo asceticismo religioso, então acalentado na crença de que
conseguiu transpor o abismo aberto pelo niilismo radical, conservou em si mesma
seu pendor niilista, na medida em que foi forçada a orientar-se para seu novo
ideal: o querer estar em outro lugar.
Pode-se concluir, com Nietzsche, que, ao pretender ter consumado a radicalidade
do movimento niilista, o ideal ascético deu-lhe apenas outra direção, outro
sentido.
[1] Trata-se
da terceira parte do trabalho Uma
abordagem da semântica relacional do niilismo, da má consciência e do ideal
ascético na filosofia de Nietzsche, desenvolvido como requisito para
aprovação na disciplina Ética II do curso de filosofia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
[2] Não só isso, evidentemente. Nietzsche,
antes de Freud, soube divisar a influência determinante do inconsciente sobre a
vida consciente do homem. Freud, posteriormente, viria a assumir a radicalidade
dessa visão, identificando todo o psiquismo com o inconsciente, destituindo o
“eu” do lugar de “senhor em sua própria casa”.
[3] Não se segue daí que essa interpretação
seja desautorizada nos escritos de Nietzsche. Cremos, por conseguinte, ser
possível ler a má consciência à luz da concepção de neurose.
[4] Consciência e espírito não se distinguem
em Nietzsche. Tomemo-los como termos equivalentes.
[5] Livro I, § 11.
[6] Genealogia,
Segunda Dissertação, § 4.
[7]
Ibid., § 5.
[8] Ibid.
[9]
Ibid., § 6.
[12] É interessante a observação de Nietzsche
segundo a qual “definível é aquilo que não tem história”, porque nos sugere que
o registro semiótico do vivido, sem o qual não há história, opera sempre por
processos de “apagamento” das condições originais do registro. Ademais, não devemos perder de vista o fato de que a
semiotização é já uma re-apresentação (ou transformação de ‘dados sensoriais’ em
conteúdos da consciência) de tudo aquilo com que nossa consciência pode entrar
em contato ou pode conceber, o que já supõe uma interpretação que, por sua vez,
envolve abstração e generalização das propriedades da coisa ou acontecimento
significado. O que o conceito nos fornece é sempre o resultado de uma síntese;
ou melhor, a síntese já é o conceito. Assim, por exemplo, quando se cria o
conceito de “castigo”, o que fica no registro semiótico (no signo) é apenas as
propriedades gerais que contribuam para a identificação de uma prática ou ato
como pertencente à categoria ‘castigo’; e desse registro se exclui toda uma
gama de especificidades implicadas nas experiências ou nas práticas diversas de
aplicação do ‘castigo’. Certas distinções só serão codificadas, se forem
relevantes à vida prática de uma comunidade.
[13] Ibid., § 14.
[14] Ibid., § 15.
[15] Ibid.
§ 16.
[16] Ibid.
§ 17.
[17] Ibid.
[18] Ibid., § 18.
[19] Ibid., § 19.
[20] Ibid.
[21] Ibid. § 20.
[22] Vontade
de Potência, § 162.
[23]
Op.cit. § 21.
[24] Op.
cit. § 22.
[25] Ibid.
[26] Ibid.
[27] Terceira
dissertação, § 11.
[28] Segundo Nietzsche, “a atitude à parte
dos filósofos, caracteristicamente negadora do mundo, hostil à vida, descrente
dos sentidos, dessensualizada, e que foi mantida até a época recente, passando
a valer quase como a atitude filosófica
em si – ela é sobretudo uma consequência da precariedade das condições em
que a filosofia surgiu e subsistiu: na medida em que, durante muitíssimo tempo,
não teria sido absolutamente possível
filosofia sobre a terra sem o invólucro e disfarce ascético, sem uma
auto-incompreensão ascética (...)” (§ 10, ênfases no original).
[29] Trata-se aqui de uma forma de teodiceia
chamada pedagógica. Segundo essa
linha de justificação do mal e do sofrimento, o sofrimento é indispensável para
melhorar as capacidades humanas; em última instância, o sofrimento é necessário
para que desenvolvamos maior profundidade de caráter e compaixão. Apesar de
essa forma de pensar o sofrimento contrariar nossa psicologia intuitiva (já
que, muitas vezes, o sofrimento causa mais ódio e rancor do que maturidade),
ela goza de grande acolhida entre teólogos e fiéis.
[30]
O sentido que é atribuído pelo
cristão já foi, naturalmente, fixado pelas autoridades cristãs, de modo que ele
não tem a liberdade de atribuir um sentido outro que não esteja previsto pelo
cânone hermenêutico que dá coesão à sua fé. Desse modo, ao atribuir ao seu
sofrimento um sentido, o cristão não faz senão reproduzir um sentido
preestabelecido.
[31] § 11.
[32] § 13.
[33] Ibid.
[34] Ibid.
[35] Ibid.
[36] Ibid.
[37] § 14.
[38] § Ibid.
[39] Ibid.
[40] § 23.
[41] Ibid.
[42] Ibid.
[43] § 20.
[44] Ibid.
[45] Trecho da oração Confissão pronunciada pelos católicos na celebração da missa.
[46] § 28.
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