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terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

"Um saber múltiplo não ensina a sabedoria". (Heráclito)


                                 Resultado de imagem para sábio

                  A filosofia como exercício espiritual
                                A busca da sabedoria


A filosofia, enquanto exercício espiritual, congrega práticas, quer de ordem física, como regime alimentar, quer discursiva, como diálogo e meditação, quer ainda intuitiva, como a contemplação, todas elas destinadas a cunhar modos de ser. A filosofia como exercício espiritual se destina a operar uma transformação radical na personalidade, na estrutura psicofisiológica, na sensibilidade e na visão de mundo daquele que se dedica a nela exercitar-se numa entrega que mobiliza não só a cognição, mas também sua disposição afetiva. A filosofia é um tipo de exercício que demanda o envolvimento não de um sujeito de razão, mas de um corpo vital individual, certamente dotado de uma capacidade intelectiva, mas não redutível a ela. Esse corpo vital individual é um complexo psicofisiológico, uma totalidade orgânica estruturada não só com habilidades e/ou faculdades cognitivas (percepção, atenção, associação, memória, raciocínio, imaginação, pensamento, linguagem), mas também com pulsões, afetos, necessidades várias. É, portanto, todo o corpo vital individual que é solicitado na prática do exercício da filosofia, de modo que a prática de leitura de textos filosóficos (aliás, como toda prática de leitura, em geral) não consiste numa atividade puramente intelectiva, pois o sujeito-leitor é um corpo emocionalmente afetado, e suas emoções influenciam o exercício dessa prática. Cingindo, no entanto, nossas considerações sobre a influência das emoções ou afetos no exercício da leitura à relação entre estrutura afetiva e prática da leitura filosófica, queremos frisar que a leitura filosófica não só demanda certo modo de envolvimento que se dá na ordem dos afetos, mas também produz outros modos de afecções. Em outras palavras, se, por um lado, somos movidos para a filosofia por uma disposição afetiva determinada por nossas experiências de mundo; por outro lado, o próprio exercício da filosofia, na medida em que é parte de nossas experiências de mundo (é ele um tipo de experiência feita por um corpo vital individual engajado no mundo), o próprio exercício da filosofia – repitamos – produzirá em nós disposições afetivas que passarão a integrar nosso modo de ser no mundo e de nos relacionar com o mundo.
À luz da concepção de filosofia como exercício espiritual, a sabedoria, para cuja busca se orienta a atividade filosófica, é um modo de vida. O que está em jogo nessa busca a que se entrega obstinadamente o filósofo é a transmutação de seu modo de ser; conforme sublinha Davidson em prefácio de Hadot (2014, p. 13),

a norma da sabedoria pode e deve realizar uma transformação da relação entre o eu e o mundo, “graças a uma mutação interior, graças a uma mudança total da maneira de ver e viver” (O Sábio e o Mundo, p. 326). A percepção estética, conforme destaca Hadot, é (...) um modelo da conversão da atenção e da transformação da percepção habitual que o exercício da sabedoria exige.



A filosofia, por conseguinte, não deve ser reduzida a uma prática discursiva teórica; por outro lado, Hadot não propõe qualquer divórcio entre sabedoria e discurso filosófico. O discurso filosófico integra o modo de vida. Não se deve mais contrapor discurso a modo de vida, muito embora seja verdade que a escolha de vida que o filósofo faz determinará a produção do seu discurso. Assim, segundo Hadot (1999, p. 18-19),


(...) a filosofia é, antes de tudo, uma maneira de viver, mas está estritamente vinculada ao discurso filosófico (...). A filosofia não é senão o exercício preparatório para a sabedoria. Não se trata de opor, de um lado, a filosofia como discurso filosófico teórico e, de outro, a sabedoria como um modo de vida silencioso que será praticado a partir do momento em que o discurso tiver atingido seu acabamento e sua perfeição (...).


Por isso, para Hadot, os discursos filosóficos não podem ser considerados independentemente do filósofo que os produziu. Os discursos filosóficos devem ser vistos como a materialização linguístico-histórica de um exercício espiritual, isto é, de uma filosofia que é, ela mesma, um exercício preparatório para a sabedoria.
A concepção de filosofia como exercício espiritual não está circunscrita à Filosofia Antiga, muito embora essa concepção tenha sido a forma característica como a filosofia se desenvolveu e foi praticada pelos antigos. Hadot admite, no entanto, que é possível encontrá-la no pensamento de muitos filósofos modernos e contemporâneos, “influenciados pelo modelo da filosofia antiga, [os quais] conceberam a filosofia como uma atividade concreta e prática e como uma transformação da maneira de viver ou de pensar o mundo” (ibid., p. 380). Entre os filósofos citados por Hadot, que praticaram a filosofia segundo o modelo da filosofia antiga, se topam Descartes, Kant, Montaigne, Rousseau, Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard, entre outros.


1. A filosofia como exercício espiritual: a escolha de vida e a  figura do sábio


Rechacemos, desde já, a concepção de sabedoria, típica do senso-comum, como acúmulo de conhecimento enciclopédico, como erudição. A sabedoria para a qual se volta a atividade filosófica não tem nada a ver com encontrar-se na posse de um saber profundo sobre alguma coisa em uma esfera do conhecimento humano. Portanto, o sábio não é o erudito. Mas o sábio também não é o filósofo. Este, não dispondo da sabedoria, devota toda a sua vida a persegui-la, sem nunca definitivamente alcançá-la. O filósofo se faz justamente nessa busca da sabedoria em que ele se empenha. Nessa busca, reside seu gozo, sua felicidade. A vida do filósofo é, fundamentalmente, desejo de sabedoria. A filosofia que ele produz não é tão somente um discurso teórico, mas, sobretudo, uma escolha de vida – uma escolha existencial e um exercício que ele vive ao exercitar seu pensamento.
 A sabedoria deve ser compreendida como um modo de ser, um modo de viver. Cabe agora explicitar as características gerais desse modo de viver que constitui a própria sabedoria. Ao explicitá-las, podemos ir compondo a figura do sábio.
Na Antiguidade, a sabedoria, dado que é um modo de viver (ou um modo de ser), caracterizará a condição que torna o homem que nela se encontra radicalmente diferente dos demais. Se a filosofia é uma atividade de preparação para a sabedoria, o exercício filosófico consistirá não apenas em discorrer de certa maneira, em falar segundo princípios lógicos, “mas em ser, agir e ver o mundo de certa maneira” (ibid.,  p. 313). Leia-se sobre qual é o estatuto do sábio em cada escola filosófica da Antiguidade, nas palavras seguintes de Hadot:

Em cada escola, a figura do sábio é a norma transcendente que determina o modo de vida do filósofo. E deve-se constatar que, na descrição dessa norma, há, para além das diferenças que aparecem nas diversas escolas, acordos profundos, tendências comuns que se pode descobrir (...). (ibid., p. 314).


Vejamos, então, quais são as tendências comuns que definem a figura do sábio na Antiguidade. De início e de maneira geral, o sábio é um tipo humano ideal cuja alma permanece idêntica a si mesma. O sábio, nesse sentido, não conhece conflitos em sua alma; sua alma encontra-se em perfeita harmonia com o corpo, de sorte que somente ele é verdadeiramente feliz em quaisquer circunstâncias. Tendo a alma imperturbável, o sábio vive permanentemente no estado de ataraxia. O sábio conserva as mesmas disposições, quer se encontre tendo de suportar a fome, a doença, quer se encontre fruindo a abundância. Segundo Hadot (ibid.), “ele sabe, com o mesmo desembaraço, abster-se e usufruir as coisas”.
Quando tomamos o exemplo do sábio estoico, encontramo-lo num estado de coerência consigo e de permanência de identidade. Essa coerência consigo e permanente identidade só são possíveis, porquanto o sábio encontra sua felicidade em si mesmo. A felicidade do sábio – vale frisar – independe das circunstâncias e das coisas exteriores. Nesse sentido, a vida do sábio se caracteriza principalmente pela autarquia, ou seja, pela autossuficiência, já que o sábio se basta a si mesmo; sua vida e sua felicidade não dependem de coisas supérfluas. Assim, consoante ensina Hadot (ibid., p. 315):

(...) segundo Aristóteles, o sábio leva a vida contemplativa porque não tem necessidade de coisas exteriores para se exercitar e porque encontra, com isso, em si a felicidade e a perfeita independência. Só depende de si, basta a si mesmo, e reduzir ao máximo as suas necessidades é especialmente o ideal dos filósofos cínicos.


O sábio está preocupado em reduzir ao máximo suas necessidades. Encontramos esse ideal nos filósofos cínicos. Os epicuristas, por seu turno, reduziam suas necessidades pela limitação e domínio dos desejos. Os estoicos, por seu turno, viviam para o exercício da virtude como condição necessária e suficiente da vida feliz. O estoicismo nos fornece, juntamente com o cinismo, o modelo de vida do sábio antigo. O sábio estoico - acompanhado, como exemplos paradigmáticos, dos modos de viver dos cínicos e de um cético como Pirro - é o tipo humano que não é perturbado pelas coisas exteriores, visto que não considera que as coisas sejam boas nem que sejam más em si mesmas. Por diversas razões, os sábios estoico e cínico se recusam a emitir um juízo de valor sobre as coisas, tratando-as com indiferença. O cético Pirro, por exemplo, sustentava que tudo é indiferente, porque não podemos saber se as coisas são boas ou más; não nos é possível, segundo ele, estabelecer diferença entre elas.
A indiferença do sábio não deve ser interpretada como desinteresse por tudo, mas uma conversão da atenção, um deslocamento do interesse para algo diverso daquele que atrai e domina a atenção e o interesse (o cuidado) dos demais homens. Destarte, segundo Hadot, “essa indiferença do sábio corresponde a uma transformação total da relação [dele] com o mundo”. (ibid.).
“Viver na terra como um deus entre os homens”, disse Epicuro. Eis o ideal do sábio antigo. Podemos, então, discriminar três qualidades fundamentais do sábio: igualdade de alma, ausência de necessidade, indiferença às coisas indiferentes. Nessas três qualidades, baseia-se a sua tranquilidade de alma e sua ausência de perturbação, quer na alma, quer no corpo (ataraxia).
A sabedoria antiga nos ensina que as perturbações da alma têm origem diversa. Platão, por exemplo, dizia que é o corpo, em virtude de seus desejos e paixões, que provoca a desordem e a inquietude da alma. Xenócrates, discípulo daquele, por sua vez, sustentava que a filosofia tem como meta fazer cessar a perturbação decorrente dos cuidados com os negócios humanos. Aristóteles endossa a mesma visão de Xenócrates. A vida contemplativa, à qual fez elogio Aristóteles por meio de sua obra Ética a Nicômaco, está apartada dos negócios da política, das incertezas da ação. É por isso que ela pode conduzir o homem à serenidade.
Epicuro pensava que tanto os terrores da morte e o temor dos deuses quanto os desejos desmedidos e o compromisso com os negócios da pólis carreiam inquietação aos homens. Na opinião de Epicuro, o sábio, porque conhece os limites de seus desejos e de sua ação e porque sabe eliminar suas dores, obterá a serenidade da alma e poderá, em decorrência disso, viver na Terra “como um deus entre os homens”.
Como não pretendamos discorrer exaustivamente sobre a figura do sábio na Antiguidade, vamo-nos cingir a enunciar, separadamente, as características essenciais da figura do sábio.

1)         A figura do sábio cumpre um papel fundamental na escolha de vida filosófica;

2)         A figura do sábio é, para o filósofo, mais um ideal descrito pelo discurso filosófico, do que um modo de vida encarnado num tipo humano concreto;

3)         Uma vez que o sábio representa um modo de vida radicalmente diverso do modo como vivem os mortais, a figura do sábio tende a aproximar-se da figura de Deus ou dos deuses, de modo que os desuses são sábios imortais; e os sábios, deuses mortais.


1.2. A conversão filosófica

Faz-se mister discutir brevemente e delimitar semanticamente o conceito de conversão.


1.2.1. A conversão na Antiguidade

Do latim conversio, conversão significa ‘giro’, ‘mudança de direção’ (Hadot, 2014, p. 203). Em sua acepção religiosa e filosófica, a conversão recobre a ideia de modificação da estrutura mental, que se estende desde uma simples mudança de opinião até a transformação radical da personalidade.
O termo latino conversio, segundo Hadot, corresponde a dois termos gregos cujo sentido diverge. De um lado, conversio equivale ao grego epistrophé, que quer dizer ‘mudança de orientação’ e que abriga a ideia de retorno a si; de outro lado, se acha o correspondente grego metanoia, que significa ‘mudança de pensamento’, ‘arrependimento’ e envolve a ideia de ‘mutação’ ou ‘renascimento’. Consoante ensina Hadot (ibid.), “(...) na noção de conversão, há uma oposição interna entre a ideia de ‘retorno a si’ e a ideia de ‘renascimento’. Essa polaridade de fidelidade-ruptura marcou profundamente a consciência ocidental desde o surgimento do cristianismo.”
Hadot vê na ideia de conversão um poder constitutivo da consciência ocidental. Em outras palavras, a ideia de conversão se acha entre as ideias que constituíram a consciência do homem ocidental, de tal sorte que “pode-se conceber toda a história do Ocidente como um esforço incessantemente renovado para aperfeiçoar as técnicas de conversão”. (ibid., p. 204, ênfase nossa). Tais técnicas seriam destinadas a transformar a realidade humana, “seja reconduzindo-a a sua essência original (conversão-retorno), seja modificando-a radicalmente (conversão-mutação)”. (ibid.).
Quando volvemos nossa atenção para a determinação das formas históricas de conversão, somos levados a reconhecer um fato importante: na Antiguidade, o fenômeno de conversão aparece mais frequentemente nas ordens política e filosófica, e é menos frequente na ordem religiosa. Segundo Hadot, isso se explica pela própria natureza das religiões da Antiguidade: elas eram religiões assentadas no equilíbrio relacional entre Deus e o homem, ou seja, elas dispunham de ritos que asseguravam um tipo de troca de serviços entre Deus e o homem. Ainda segundo Hadot (ibid., p. 205),

É sobretudo no domínio da política que os homens da Grécia antiga fizeram a experiência de conversão. A prática da discussão judiciária e política, na democracia, revelou-lhes a possibilidade de “mudar a alma” do adversário pelo manejo hábil da linguagem, pelo emprego de métodos de persuasão. As técnicas de retórica, arte da persuasão, constituem-se e se codificam pouco a pouco. Descobre-se a força política das ideias, o valor da “ideologia”, para retomar uma expressão moderna. A guerra do Peloponeso é um exemplo desse proselitismo político.


Escapa à alçada desta exposição uma descrição detida e aprofundada das formas históricas das práticas de conversão. Por isso, vamo-nos limitar a enfatizar o que se segue. Em primeiro lugar, segundo Hadot, embora menos difundida, a conversão filosófica, na Antiguidade, é a mais radical. Em suas origens, a conversão realizada pela filosofia é inseparável da conversão política. Em segundo lugar, a conversão, entendida como um tipo de experiência interior, atinge sua mais elevada intensidade nas religiões de “consciência infeliz”, para retomar aqui uma expressão usada por Hegel com a qual caracterizou as religiões que assentam na crença de que há uma ruptura radical entre o homem e a natureza. Constituem dois exemplos dessas formas de religião o judaísmo e o cristianismo.


A conversão religiosa reveste-se nessas religiões de um aspecto radical e totalitário que as assemelha à conversão filosófica. Ela assume, porém, a forma de uma fé absoluta e excessiva na palavra e na vontade salvadora de Deus.  No Antigo Testamento, Deus frequentemente convida seu povo a se “converter”, isto é, a se voltar na direção dele, a regressar à aliança outrora feita no Sinai. (ibid., p. 206).



            1.3. Aspectos psicofisiológicos e filosóficos da conversão

No que toca aos aspectos psicofisiológicos da conversão, limitar-nos-emos a sublinhar seu poder de transformação da personalidade. Essa transformação pode estar a serviço de certos regimes políticos que aspiram à adesão absoluta ao seu projeto, à sua ideologia, casos em que tal transformação redunda no que chamamos vulgarmente de “lavagem cerebral”.
No entanto, a transformação da personalidade pode atender a propósitos mais humanamente elevados. Na Antiguidade, por exemplo, a filosofia era essencialmente uma prática, um exercício de retorno a si, mediante “um violento desenraizamento da alienação da inconsciência”. (Hadot, ibid., p. 211). A filosofia antiga, enquanto atividade espiritual, tem todos os aspectos de uma verdadeira conversão. Mas a conversão filosófica pretende promover “o acesso à liberdade interior, a uma nova percepção do mundo, à existência autêntica” (Hadot, ibid., p. 212). Portanto, na filosofia, a conversão é depurada de suas forças totalitárias, as quais visam à adesão irrestrita às verdades da doutrina, aos dogmas, como no caso das religiões monoteístas, por parte do convertido. O filósofo, em contraste com a autoridade de uma seita religiosa ou de um regime totalitarista, tenderá a pensar que a verdadeira conversão é a conversão filosófica, visto que ela não se faz à custa da liberdade, da prática da reflexão. Por isso, segundo Hadot,

Sob todas essas fórmulas [as que desfilam na história da conversão filosófica], a conversão filosófica é desenraizamento e ruptura com relação ao cotidiano, ao familiar, à atitude falsamente “natural” do senso comum; ela é retorno ao originário, ao autêntico, à interioridade, ao essencial; ela é recomeço absoluto, novo ponto de partida que transmuta o passado e o futuro. (ibid.).