A medicina socrática da alma
Sócrates
ou o mais sábio entre os homens
Neste
texto, tenho a tenção de discorrer sobre o que é possível determinar,
levando-se em conta os testemunhos que chegaram até nós, como sendo
propriamente o pensamento socrático. Ao me debruçar sobre essa tarefa, venho
preencher uma lacuna que até então não fora preenchida neste blog: disponibilizar ao público leitor um texto cuja tenção central seja
Sócrates e o seu pensamento. Fixado, então, o objetivo basilar da presente
exposição, passo a concatenar algumas considerações preliminares que, reunidas,
compõem um preâmbulo à discussão propriamente dita do assunto a ser tratado.
1. O mundo do filósofo e o mundo
do homem comum
Toda
a discussão que será desenvolvida nas seções seguintes esteia-se sobre o
pressuposto de que a filosofia antiga, consoante propõe Hadot (2010, 2014), é exercício espiritual, é um modo de vida, uma escolha de vida.
Suas mais diversas manifestações em escolas de pensamento e em discursos
realizam verdadeiros exercícios existenciais, porque carreiam um valor
existencial que toca à nossa maneira de viver, ao nosso modo de ser no mundo.
Tais exercícios espirituais
(expressão adotada e preferida por Hadot) são parte integrante de uma
orientação no mundo, uma orientação que opera uma transformação radical da
personalidade, do modo de ser e de viver daquele que se engaja nesses
exercícios. A filosofia socrática é, pois, um exemplo de exercício espiritual, de uma escolha de vida, de uma atividade concreta e prática que visa
a cunhar modos de ser.
À
medida que se ia refinando e se aprofundando minha cultura filosófica, foi-se
tornando cristalino para mim o abismo que se interpõe entre o mundo da vida
filosófica e o mundo da vida do homem comum. Faz algum tempo, comuniquei a um
amigo da sabedoria o meu sentimento que consiste em interpretar ser o modo de
vida filosófico análogo, em alguma medida, ao de um esquizofrênico, não porque
sofra de delírios e alucinações, mas porque marcado por uma profunda e
insolúvel cisão, separação (donde o termo grego “skhízô”, que significa
‘dividir’, ‘separar’). Refiro-me, para ser mais claro, à percepção que tenho de
que o filósofo parece viver como que cindido entre dois mundos: o mundo da vida
filosófica, que é o mundo da prática do cuidado de si e do cuidado da vida do
espírito; e o mundo da vida cotidiana, onde “habita” o homem comum cujo modo de
ser é, sobremaneira, condicionado por relações de ordem prática e interesses
pragmáticos pelo mundo. Essa percepção ou sentimento confirmam-se numa página
em que Hadot faz a seguinte consideração, da qual vale aqui o devido registro:
“O
filósofo vive, assim, num estado intermediário: não é sábio, mas não é não
sábio. Ele está, pois, constantemente cindido
entre a vida não filosófica e a vida filosófica, entre o domínio do habitual e
do cotidiano e o domínio da consciência e da lucidez. Na medida em que ela
é prática de exercícios espirituais, a vida filosófica é um desraizamento da vida cotidiana, ela é
uma conversão, uma mudança total da visão, de estilo de vida, de
comportamento”. (Hadot, 2014, p. 58, grifos meus).
A
cisão entre a vida não filosófica e a vida filosófica a que se refere Hadot não
só repercute o meu sentimento à luz do qual tomei consciência do caráter
‘cindido’ ou ‘esquizo-frênico’ do modo de ser filosófico, mas também enseja e
fornece apoio a minha visão de que a vida filosófica deve ser vivida como
‘destino’, ou seja, como uma necessidade existencialmente imperiosa e
inescapável. Tendo compreendido que há uma cisão inegável entre o domínio do
habitual e cotidiano, onde se enraíza a vida do homem comum, e o domínio da
vida filosófica, onde o filósofo faz morada e exercita a vida do espírito,
impõe-se a quem quer que, como eu, aceite a inevitabilidade dessa cisão, o
problema que consiste em determinar se tais “mundos” são ou não comensuráveis
entre si. Como nem todos os seres humanos são predispostos para o exercício da
filosofia e para a vida filosófica, tendo a acreditar que o mundo do homem
comum e o mundo do filósofo são incomensuráveis entre si; jamais se confundem e
estão destinados a existir numa cisão tensionada. Disso não se segue,
evidentemente, que o filósofo, talvez na maior parte das vezes, não frequente
esse mundo comum, não tenha de partilhar interesses e ocupações típicas do
homem comum. É sempre oportuno recordar, contra o preconceito há milênios em
voga, que o filósofo não é um homem alienado do mundo, alienado da experiência
cotidiana do mundo; todavia, é igualmente certo que seu “mundo próprio” é
outro. Assim como um transeunte que, tendo frequentado os espaços públicos da
vida cotidiana precisa retornar a casa para fruir o descanso e a proteção,
assim também o filósofo, tendo frequentado o mundo da rua e, por vezes, o
perturbado com suas indagações, precisa retornar à sua morada onde frui do
convívio com os bens do espírito e a companhia vivificante da solidão da
lucidez.
É
preciso, por fim, estar bem atento à radicalidade do “desenraizamento da vida
cotidiana” experienciado pelo filósofo. Como bem ensina Hadot, a medida exata
desse desenraizamento só pode ser compreendida, se tivermos em conta o fato de
que “a prática dos exercícios espirituais implicava uma inversão total dos
valores recebidos”. (ibid.). Assim, a prática dos exercícios espirituais leva o
filósofo a renunciar “aos falsos valores, às riquezas, às honras, aos prazeres
para se voltar para os verdadeiros valores, a virtude, a contemplação, a
simplicidade de vida, a simples felicidade de existir”. (ibid.).
Se
o modo de vida filosófico se caracteriza fundamentalmente por um
“desenraizamento da vida cotidiana”, é porque a filosofia, enquanto prática de
exercícios espirituais, visa à transformação radical do modo de ser de quem
filosofa.
2. Sócrates: o filósofo e o seu tempo
Sócrates
(470 ou 469 a.C. – 399 a.C) nasceu em Atenas e viveu a maior parte de sua vida
no século V a.C. Foi nesse período que a
pólis ateniense alcançou seu apogeu
econômico, político e cultural. Fundada graças às reformas de Clístenes, no
final do século VI, a democracia ateniense se consolidou após a derrota dos
persas no século V. Seu auge aconteceu quando Péricles tornou-se arconte
(magistrado). As práticas democráticas carreavam a valorização da linguagem.
Assim, os homens passaram a se valer das palavras em vez da violência para
resolverem seus problemas e conflitos. O uso cada vez mais frequente das
palavras fez surgir os grandes oradores, a retórica, os professores da técnica
da palavra e a sofística. Homens como Protágoras, Górgias e Hípias, que se
autoproclamavam sábios, percorriam as grandes cidades gregas prometendo
ensinar, em troca de um valor monetário, a virtude da palavra.
Evidentemente,
o diálogo, gênero em que Sócrates foi mestre, é inseparável da experiência
democrática. A arte do diálogo e da dialética prende-se inextricavelmente ao
movimento geral de valorização da palavra e do reconhecimento do outro.
Decerto, a democracia ateniense, entre todas as grandes realizações do período,
ocupava um lugar central. Todavia, a democracia ateniense foi a organização
estatal que começou a desenvolver, de maneira ampla, a utilização do trabalho
escravo. Nela e por meio dela, desenvolveram-se projetos de opressão imperial
mesmo em relação às próprias cidades gregas vizinhas de Atenas. Foram esses
projetos que motivaram a Guerra do Peloponeso, que, inicialmente, envolveu
Atenas e Esparta, mas, depois, quase todas as cidades gregas. Esse conflito
estendeu-se por cerca de 30 anos (431-404), levando, finalmente, Atenas à
ruína.
Havia
grandes diferenças sociais entre os próprios cidadãos na democracia ateniense.
As mulheres sofriam opressão: não tinham direitos políticos e não participavam
das decisões políticas. Desde muito cedo, grupos poderosos, sempre preocupados
em defender seus interesses privados, contratavam profissionais de oratória
(discípulos de sofistas), manipulavam a escolha de cargos e a assembleia
popular. O povo, não obstante poder decidir e votar, era enganado, e seu voto
era feito, não raro, contra seus próprios interesses reais. Sócrates, assim
como seus discípulos, entre os quais Platão, atento a essas contradições da
democracia ateniense sempre foi crítico desse regime. Sócrates sabia quão
ilusória e formal era a liberdade ateniense; por isso, nem ele nem seus
discípulos jamais defenderam esta forma de democracia, jamais a consideravam
como a melhor forma de todos os governos. Ao contrário, como atestam Xenofonte
e Platão, Sócrates e seus discípulos idealizaram outras formas de organização
da pólis.
2.1. Sócrates e suas imagens
Todo
ato de enunciação, toda prática discursiva implica a construção de imagens
recíprocas. O locutor, ao usar a palavra, constrói uma imagem de si (ethos, para Aristóteles), ao passo que o
interlocutor constrói uma imagem da imagem que o locutor faz de si. A imagem de
si é a imagem do locutor como ser do discurso. Essa imagem de si é
discursivamente construída. Para construir uma imagem de si, não é necessário
que o locutor fale de si explicitamente, destacando suas qualidades. Para a
construção da imagem de si, são suficientes as competências linguística e
enciclopédia, as crenças implícitas e o estilo de linguagem do locutor. São
esses elementos que permitem ao locutor fazer uma representação de sua pessoa.
A imagem que o interlocutor constrói do locutor também se baseia nas
manifestações discursivas deste. Deliberadamente ou não, o locutor faz, no
discurso, uma apresentação de si. Essa apresentação de si não se restringe a
uma técnica aprendida, mas se realiza, frequentemente, à revelia dos parceiros
de comunicação, nas circunstâncias mais corriqueiras do uso da língua.
Assim,
como Sócrates nada escreveu, o que sabemos sobre ele nos vem pela pena de
outros que, tendo-o conhecido pessoalmente ou não, nos contam sobre ele. Isso
significa dizer que o que sabemos a respeito de Sócrates são as imagens dele
discursivamente construídas por outros enunciadores. Os três testemunhos
realmente diretos sobre Sócrates são os de Aristófanes, Xenofonte e Platão.
Cada um fornece-nos uma imagem discursiva
de Sócrates. Antes de dar a
conhecer o que disseram essas fontes diretas acerca de Sócrates, convém fazer
uma breve apresentação biográfica de Sócrates.
Sócrates,
nascido em 470 ou 469 a.C., foi filho de Sofronisco, um talhador de pedra, e de
Fainarete, uma parteira. Sua obra confunde-se com sua vida. Nasceu pobre e
permaneceu assim até a sua morte, em 399 a.C, quando contava 70 anos. Orgulhoso
de seu trabalho, Sócrates sempre elogiou o esforço do trabalho e fez deste o
modelo para a sua filosofia. Ele costumava andar pelas ruas de Atenas, no verão
e no inverno, descalço e vestindo sempre o mesmo manto simples. Sócrates teve três
filhos: Lamprocles, Menexeno e outro chamado Sofronisco, que tinha, como se vê,
o mesmo nome de seu pai. Sócrates foi casado com Xantipa, mulher muito famosa
por suas constantes reclamações. Sócrates dizia que de tanto discutir com ela
aprendeu a arte de dominar a si mesmo. É provável que tenha tido outra esposa,
chamada Mirto, já que a poligamia foi permitida e incentivada por decreto
durante os últimos anos do século V para solucionar o decréscimo populacional
ocorrido nas sucessivas guerras.
Sócrates
foi cidadão exemplar no exercício dos deveres políticos e militares. Malgrado o
fato de contestar filosoficamente a sabedoria das leis que regiam a cidade,
nunca deixou de obedecer a elas. Destarte, devido à sua retidão moral e à sua
busca permanente da verdadeira justiça, acabou por angariar muitos inimigos e
terminou sendo condenado à morte.
Logo
após seu julgamento, estando Socrátes na prisão à espera da execução da
sentença, Críton, um discípulo fiel, lhe propôs um plano infalível de fuga:
subornaria os carceireiros e o conduziria ao exílio na Tessália. Mas Sócrates
recusou a proposta que lhe salvaria a vida, alegando, conforme nos conta Platão
em seu diálogo Críton, que, mesmo
morrendo vítima da injustiça dos atenienses, não desobedeceria às leis da
cidade. Para Sócrates, aceitar fugir através do suborno seria cometer também
uma injustiça; preferiu, por isso, resignar-se à morte. As façanhas socráticas
e a resistência às dificuldades da guerra e da coragem provinham, tal como a
sua filosofia, do esforço e do exercício permanentes. Sócrates exercitava-se diariamente e exortava os seus
discípulos a fazerem o mesmo.
Como
já disse, Sócrates nada escreveu e não existe uma obra filosófica propriamente
atribuída a ele. Dele sabemos a partir do acesso ao que sobre ele nos disseram
outras personalidades. Os principais testemunhos, os únicos realmente diretos,
são aqueles fornecidos por Aristófanes (o autor de comédias), de Xenofonte e de
Platão (estes últimos foram seus discípulos). Todos três o conheceram
pessoalmente. Mas há ainda fragmentos indiretos do pensamento socrático que
sobreviveram graças a outros discípulos, como Antistenes, Diógenes, Euclides de
Mégara e Aristipo. Diversos outros autores antigos, tais como Aristóteles,
Diógenes Laércio, Aulo-Gélio e Cícero também reproduziram indiretamente
tradições a respeito dos feitos de Sócrates e comentaram os seus supostos
ensinamentos.
Durante
muito tempo e até hoje, os historiadores da filosofia se perguntam qual seria o
verdadeiro Sócrates ou, ao menos, qual seria aquela versão mais próxima do
Sócrates histórico. Muitos o consideram um enigma insolúvel e sustentam que
jamais o conheceremos. O problema da identidade de Sócrates é recente. Na
Antiguidade, na Idade Média, da Renascença ao Romantismo, esse problema não
existia, pois, ao longo desses períodos históricos, o Sócrates de Platão ou a
imagem que Platão construiu de Sócrates era considerada o verdadeiro Sócrates.
O problema começa quando Hegel, em sua História
da filosofia, afirma que o Sócrates histórico corresponde à versão
fornecida por Xenofonte e que o Sócrates de Platão, na verdade, é o próprio
Platão. O fato é que, atualmente, os estudiosos não se ocupam mais da questão
de determinar o Sócrates autêntico. Os estudiosos se contentam em falar de um
Sócrates provável, com base na combinação dos diferentes testemunhos sobre ele.
Assim, passados duzentos anos de pesquisa e produção de um número de livros
suficientemente grande para preencher uma enorme biblioteca, renunciou-se ao
problema do Sócrates histórico, ou melhor, aceitou-se a aporia. (Chauí, 2002).
2.1. 2. O Sócrates dos Cristãos
Os
pensadores cristãos insistiram incansavelmente em comparar Sócrates com Jesus.
De fato, ambos foram condenados por causa de seus ensinamentos, ambos
compareceram aos tribunais e não se defenderam, ambos nada deixaram escrito,
ambos criaram uma posteridade sem limites, e tudo quanto sabemos a respeito de
ambos depende de fontes indiretas, de registros escritos produzidos depois de
eles morrerem. A essas características que Sócrates tem em comum com Jesus, se
deve acrescentar que Sócrates levava uma vida ascética, simples e pautada pela
frugalidade, tal como era o modo de vida de Jesus, segundo os Evangelhos. Também
Sócrates, por meio do seu daímon,
considerava-se investido de uma missão divina.
Não
obstante, diferentemente de Jesus, Sócrates não se apresentava como divino, nem
como a encarnação da verdade (ou como o verbo de Deus). Outrossim, não tinha
nenhuma verdade divina a revelar, tampouco dogma a impor. Tudo que sabemos que
Sócrates dizia é o seu célebre “só sei
que nada sei”.
2.1.3. As imagens de Sócrates
como herói e como sábio
Houve
quem fizesse de Sócrates um herói, imagem esta que se justificaria pelo seu
comportamento na guerra e sua atitude perante a Assembleia nas três ocasiões em
que diante dela esteve. Contudo, ocorre que um herói não discute e questiona os
valores e as ideias de sua pátria. A imagem de Sócrates como herói, portanto,
não lhe parece convir. Mas, se a Sócrates não convinha associar a imagem de
herói, teria ele sido um sábio? Para responder adequadamente essa questão, é
preciso saber, em primeiro lugar, quem é
o sábio.
Desde
o Banquete de Platão, os filósofos
antigos consideravam a figura do sábio como um modelo inacessível que o
filósofo (aquele que ama a sabedoria) se esforça por imitar, esforço este
sempre renovado por um exercício praticado a cada instante. (Hadot, 2014).
Recorde-se que o pressuposto com base no qual se desenvolve o presente estudo
sobre o pensamento socrático é que a filosofia não é apenas um domínio
discursivo; mas é, sobretudo, uma escolha de vida, um exercício vivido, “porque
ela é desejo de sabedoria”. (Hadot, 2010, p. 313). E o que é sabedoria? A
sabedoria é um modo de ser, consoante
ensina Hadot (ibid.):
“A
sabedoria é considerada em toda a Antiguidade um modo de ser, um estado no qual
o homem é de maneira radicalmente diferente dos outros homens, no qual é uma
espécie de super-homem. Se a filosofia é atividade pela qual o filósofo
prepara-se para a sabedoria, esse exercício consistirá necessariamente não só
em falar e em discorrer de certa maneira, mas em ser, agir e ver o mundo de
certa maneira”.
Em
cada escola filosófica, a figura do sábio é tomada como norma transcendente
pela qual se pauta o modo de vida do filósofo. Portanto, nunca é demais lembrar
que o filósofo não é o sábio, pois o sábio é um modelo ideal de vida a que
aspira o filósofo e em relação ao qual o modo de vida filosófico se orienta.
São características prototípicas do sábio ou do modo de vida do sábio: a igualdade de alma, a ausência de
necessidade e a indiferença às
coisas indiferentes. Essas qualidades do sábio tornam-no um tipo humano
cuja vida repousa na ataraxia: o
sábio frui a tranquilidade de alma e a ausência de perturbação.
Dado
que o sábio mantém uma perfeita igualdade de alma, ele é feliz em qualquer que
seja a circunstância. No Banquete de
Platão, Sócrates conserva as mesmas disposições de alma, quer quando tem de
suportara fome e o frio, quer quando se encontra na abundância. O sábio
encontra sua felicidade em si mesmo. Assim é que o sábio estoico se caracteriza
pela coerência consigo e a permanência de identidade, porquanto a sabedoria,
aos olhos de um estoico, consiste em querer sempre e sempre não querer a mesma
coisa. Como encontre sua felicidade em si mesmo, o sábio é independente das
circunstâncias e das coisas exteriores, ou seja, o sábio possui a autarquia.
Sócrates, conforme relata Xenofonte, bastava-se a si mesmo e não se deixava
apegar-se a coisas supérfluas.
Segundo
Aristóteles, no livro X da Ética a
Nicômaco, o sábio vive uma vida contemplativa, porque não tem necessidade
de coisas exteriores para nela se exercitar e porque, exercitando-se na
contemplação, encontra a felicidade e a perfeita autossuficiência em si:
“(...)
a atividade do intelecto (...) parece tanto ser superior em mérito quanto não
visar a fim algum que transcenda a si mesma, além de dispor de um prazer que
lhe é próprio (o que intensifica essa atividade), e apresenta autossuficiência,
a presença do lazer ou ócio, e isenção de fadiga (na medida do que é
humanamente possível) – e todos os outros atributos reservados ao indivíduo
bem-aventurado [o sábio] são evidentemente aqueles vinculados a essa atividade
-, conclui-se que essa será a felicidade completa humana, desde que seja
concedida uma completa duração da existência, pois nada que diga respeito à
felicidade pode ser incompleto. (Aristóteles, 2013, p. 308, 15-27).
Na
medida em que o modo de vida do sábio é completamente diferente do modo de vida
comum dos mortais, o sábio tende a habitar na vizinhança com os deuses ou Deus.
Como pontuou Epicuro, o sábio vive como “um deus entre os homens”. Como os
deuses, o sábio vive mergulhado numa perfeita serenidade e não está, de modo
algum, ocupado com os negócios humanos. Para Epicuro, dado que a essência do
divino consiste na serenidade e na ausência de perturbação no prazer e na
alegria, de alguma maneira, os deuses são sábios imortais; o os sábios, são
deuses mortais. Aristóteles, outrossim, entendida ser o divino o modelo do
sábio. O sábio vive uma vida consagrada ao exercício do pensamento. Sua
condição humana, no entanto, torna frágil e intermitente esse exercício
espiritual, o qual está irremediavelmente disperso no tempo e sujeito ao erro e
ao esquecimento. Somente Deus é um espírito cujo pensamento se exercitará
perfeita e continuamente em um eterno presente. O pensamento divino pensará a
si mesmo, em um ato eterno. Deus ou o Primeiro Motor Imóvel, causa do universo,
para Aristóteles, conhece eternamente a felicidade e o prazer que o espírito
humano só conhece em raros e breves momentos. O que o sábio vive de maneira
intermitente Deus vive de modo contínuo. Mas, ao procurar imitar o modo de vida
divino, o sábio vive uma vida que transcende a condição humana comum e que
corresponde ao que há de essencial no homem: a vida do espírito.
Cuidando
ter esclarecido a relação entre o filósofo e o sábio, faz-se mister atender na
lição de Hadot acerca do que é, deveras, filosofar:
“Contemplar
o mundo e contemplar a sabedoria é, finalmente, filosofar, é, com efeito,
operar uma transformação interior, uma mutação da visão, que me permite
reconhecer aos mesmo tempo duas coisas às quais raramente se presta atenção, o
esplendor do mundo e o esplendor da norma que é o sábio: “o céu estrelado acima
de mim e a lei moral em mim”. (Hadot, 2010, p. 328,).
O
sábio, portanto, é aquele que realiza as grandes e difíceis virtudes: o domínio
de si (enkráteia), a moderação, equidade,
probidade, desprezo pelos valores materiais, afastamento das coisas do mundo.
Acontece que os relatos dos amigos e discípulos de Sócrates patenteiam que ele
gostava da boa mesa, do bom vinho, bebia e comia à vontade nos banquetes de que
participava. Ele gostava de sexo – do sexo viril dos gregos, em que um homem
adulto tem amantes masculinos jovens e belos (e os jovens disputavam o amor de
Sócrates). Sócrates perdia a paciência com facilidade sempre que seu
interlocutor não parecia interessar-se pela discussão. Também costumava agredir
verbalmente, zombar e fazer críticas virulentas aos adversários. A humanidade
de Sócrates parece, portanto, proibir-nos de vê-lo como um exemplar de Sábio:
ele apreciava dançar e tocar lira; entretinha-se com prostitutas e se deleitava
em grandes bebedeiras.
Não
resta dúvida, como se vê, de que o comportamento de Sócrates era excêntrico.
Quando caminhava com um amigo, costumava parar atrás dele absorto numa
meditação. Embora fosse um conviva refinado e educado, não tinha os bons modos
de chegar na hora marcada. Chegava sempre no meio do banquete; vivia sempre
como um maltrapilho, mas frequentava a alta sociedade. Conta-se que gostava
apenas de meninos, mas adorava filosofar com as prostitutas. Dizem que ele
carecia do dom da oratória, mas, quando falava, silenciava o adversário e fazia
apaixonar-se um seguidor.
Malgrado
todo o exposto, há uma sabedoria socrática e Sócrates é lembrado pela tradição
como o mais sábio entre os sábios. É o que veremos mais adiante. Considerem-se,
doravante, as imagens que Aristófanes, Xenofonte e Platão nos legaram de
Sócrates.
2.1.4. O Sócrates de Aristófanes,
Xenofonte e Platão
Aristófanes
(450-385 a.C.), como não fosse filósofo, mas comediógrafo, constrói uma imagem
de Sócrates como falso sábio. Sua comédia As
nuvens, que data de 423 a.C., foi escrita com o único fito de criticá-lo e
ridicularizá-lo. Nela, Sócrates se apresenta como corruptor da juventude e como
um homem que destrói os valores tradicionais relacionados aos deuses.
Importa-nos mais o testemunho de Xenofonte (?
– 354 a.C.), que, embora não fosse filósofo, mas amante da vida austera, da
arte da guerra e dos trabalhos agrícolas, recorda a retidão da vida de Sócrates
e as regras morais que propunha aos seus seguidores. Não obstante o fato de não
nos oferecer, com precisão, o desenvolvimento dos argumentos socráticos e de
pouco nos falar sobre os problemas teóricos complexos de que se ocupava
Sócrates, Xenofonte dá-nos uma versão imagística do filósofo que coincide, na
maioria dos aspectos, com aquela fornecida por outros autores.
Nos
testemunhos de Xenofonte, a despeito da simplicidade, Sócrates se apresenta
como aquele que destrói as ideias dominantes. Seguindo o preceito délfico – “o
conhece-te a ti mesmo” -, Sócrates começa, tanto na obra de Xenofonte quanto na
de Platão, por examinar a si mesmo e por mostrar que a aparente pobreza de sua
vida é a riqueza de sua liberdade. Sócrates é retratado como aquele que, ao
contrário dos sofistas, não recebe dinheiro por seus ensinamentos e, por isso,
é mais livre do que eles, porque não é obrigado a vender a palavra. Em
Xenofonte, Sócrates é representado como aquele que faz perguntas sobre o “ser”
das coisas: que é a virtude? Que é uma vida boa? Que é uma vida feliz? Tal como
sucede nos diálogos de Platão, o Sócrates de Xenofonte combate os sofistas,
aqueles que defendem e reproduzem as imagens dominantes, e diferencia-se deles
por não aceitar dinheiro em troca de seus ensinamentos.
A
Apologia de Sócrates é a obra mais
importante que consta dos Memoráveis,
que foi escrito, segundo Xenofonte, para provar que Sócrates foi um cidadão
altamente patriota, piedoso, justo, que fazia sacrifícios aos deuses e era fiel
aos amigos. Xenofonte afirma que a preocupação central de Sócrates recaía sobre
a ética, ou seja, sobre a virtude que, conforme veremos, Sócrates identificava
com o saber ou a ciência (só o ignorante é vicioso). Sócrates também se
preocupava com a utilidade do bem (o bem é a justiça) e com o domínio de si.
A
imagem de Sócrates discutindo na ágora
e nas ruas, perguntando aos transeuntes o que é a virtude, o que é a justiça, o
que é o bem, e deixando-os com raiva e desorientados à medida que refutava cada
uma das respostas que lhe eram dadas, provando que são ignorantes e que sequer
sabiam que não o são, é uma construção da escrita de Xenofonte.
A
imagem de Sócrates fornecida por Platão é nossa última e mais respeitável.
Platão, o discípulo amado de Sócrates, viu seu mestre como fundador da
filosofia especulativa. Em Platão, Sócrates aparece como inimigo dos sofistas e
avesso às ideias dos “socráticos menores”. Sócrates é, para Platão, o modelo de
filósofo. Com base na imagem que construiu de Sócrates, Platão se nos desnuda
as várias faces do filósofo como “amante da sabedoria”. No Fedro, o filósofo ou Sócrates é um homem-cigarra que, sem se
preocupar com a sobrevivência, canta à luz um belo canto – sua filosofia – em
homenagem às Musas, até morrer. No Teeteto,
é aquele que se distrai em relação às coisas próximas (como Tales que cai num
poço), porque justamente está muito atento às questões que investiga. No Fédon, é Sócrates que, à beira da morte
e sem temê-la, desenvolve seu discurso e questiona até o fim o significado de
viver e de morrer. Na República, o
filósofo é aquele que se liberta da caverna das ilusões e eleva seus olhos
progressivamente até o Sol que ilumina a realidade; é aquele que, por ter
realizado a escalada do conhecimento até seu termo, deve encarregar-se das
tarefas políticas e do governo da pólis.
Como
vemos, é verdade que a imagem de Sócrates varia na obra de Platão. Os primeiros
diálogos platônicos construíram uma imagem mais próxima do Sócrates histórico,
enquanto, nos últimos diálogos, Sócrates é o nome de uma personagem que fala
através de Platão. Nos diálogos da maturidade, que abordavam temas que
constituem o núcleo da filosofia de Platão – Banquete, Fédon, Fedro, Crátilo, Teeteto, República, Sócrates
representa um modo de vida, mas as teorias neles desenvolvidas são inteiramente
de Platão. É certo que o Sócrates de que nos fala Platão era realmente um homem
que se notabilizou como mestre da vida ética;
mas não chegava a ser uma espécie de Buda iluminado. Parte da perfeição moral
atribuída a Sócrates não foi mais do que resultado de um trabalho de construção
imagística elaborado pelos seus discípulos que o admiravam sobremaneira.
Platão, decerto, desenvolveu um pensamento completamente original. Assim, por
exemplo, a Teoria das Ideias foi corretamente atribuída a Platão e não a
Sócrates. Teorias como a utopia política descrita na República e nas Leis, e a
do prazer no Filebo são de
responsabilidade de Platão, e não de Sócrates. Não há dúvida de que a distinção
entre o que pertence a Sócrates e o que é de responsabilidade de Platão
encontra um limite, nem sempre facilmente determinável. Uma das tarefas deste
texto é lançar alguma luz sobre o que, no limite, constitui aquilo que podemos
chamar de filosofia socrática.
3. A filosofia de Sócrates
Principio
por notar que a ciência do cosmo é, para Sócrates, inacessível ao homem. Quem
quer que se dedique a ela tenta, em vão, conquistar um conhecimento que só um
Deus pode possuir. Ademais, para Sócrates, aqueles que se detêm nessas
pesquisas, permanecendo totalmente absortos nelas, se esquecem de si mesmos.
Ora, o que mais importa, para Sócrates, é o homem e os problemas do homem. Daí
a questão preeminentemente filosófica que deve ser examinada, na visão de
Sócrates: o que é o homem?
3.1. A alma como a essência do
homem
Para
Sócrates, todas as contradições e todas as incertezas dos sofistas decorriam do
fato de eles terem se ocupado dos problemas do homem sem que determinassem, de
maneira correta, a essência do homem. À questão que é o homem?, Sócrates responde inequivocamente: o homem é a sua alma (psyché), visto que a alma é o que o
distingue de todas as outras coisas. Ninguém antes de Sócrates entendeu por
alma aquilo que ele entendeu. Para Sócrates, a alma é a nossa consciência
pensante, a nossa razão; é a sede de nossa atividade de pensamento. A alma é o
eu consciente, é a personalidade intelectual e moral do homem. Consoante ensina
Reale (2009, p. 93), coube a Sócrates dar origem à tradição moral e intelectual
da qual a Europa se tornou herdeira. Toda a filosofia socrática pode ser
resumida nessas fórmulas convergentes: 1) conhecer
a si mesmo e 2) cuidar de si mesmo.
Conhecer a si mesmo não é conhecer o próprio nome nem o próprio corpo, mas
examinar o interior de si mesmo e a própria alma. Cuidar de si mesmo não é
cuidar do próprio corpo, mas cuidar da própria alma. Sócrates acreditava estar
investido de uma tarefa por Deus: ensinar
os homens a conhecer e cuidar de si mesmos.
Sócrates,
no Protágoras de Platão, era
apresentado como médico da alma. Ele
ensinava o homem a cuidar não do corpo e das riquezas, mas antes e acima de
tudo da alma, para que ela se torne virtuosíssima. É da virtude que advêm as
maiores riquezas. Ora, a alma (psyché)
é aquilo que em nós participa do Divino e é o que em nós tem o domínio. Platão
compreendeu isso e insistiu no fato de que Sócrates, ao contrário dos sofistas,
tendo compreendido que o homem se distingue de qualquer outra coisa pela sua
alma, pôde determinar qual era a areté
(excelência, virtude) humana. Ela é o que permite à alma ser boa, ser aquilo
que pela sua natureza deve ser. Destarte, cultivar a areté ou virtude significa tornar boa a alma; significa realizar
plenamente o eu espiritual, de sorte a alcançar o fim próprio do homem e também
a felicidade.
A
virtude, para Sócrates, é ciência (epistéme) ou conhecimento. O contrário da virtude é o vício. O
vício é a privação da ciência ou do conhecimento, a saber, a ignorância. Se o
homem é sua alma, e se a alma é o seu eu consciente e inteligente, então a
virtude é aquilo que atualiza plenamente essa consciência e inteligência, isto
é, a ciência ou o conhecimento. Eis, portanto, qual é o maior valor para o
homem: o conhecimento. É o conhecimento que faz a alma ser aquilo que ele deve
ser e que realiza o homem, cuja essência é a alma. Como pondera Reale (ibid.,
p. 101), “Sócrates revoluciona assim a tradicional tábua de valores à qual até
então se atinha toda grecidade (...)”. Os valores fundamentais da tradição eram
aqueles, sobretudo, vinculados ao corpo, quais sejam, a vida, a saúde, a beleza, o vigor físico, ou os bens exteriores como a riqueza, o poder, a
fama e congêneres. É clara a superioridade hierárquica da alma em relação
ao corpo e a identificação da essência do homem e do verdadeiro homem com a
alma e não mais com o corpo. Os valores da alma situam-se num plano ascendente
e, em particular, os valores da ciência superam todos os valores ligados ao
corpo. Entretanto, não devemos concluir daí que Sócrates tenha rejeitado
totalmente os valores tradicionais. Apenas Platão o fará, ao distinguir entre
alma e corpo e ao advogar que o corpo está hierarquicamente subordinado à alma.
Na verdade, Platão contraporá o corpo à alma. É de Platão a imagem do corpo
como cárcere da alma, ou prisão da alma. Sócrates, de fato,
subordinou os “bens” tradicionais da grecidade ao seu bom uso, e manteve que o bom uso depende exclusivamente do
conhecimento e da ciência. A ciência é um bem; a ignorância, um mal. Essa será
a consequência da tese socrática que sustenta a sua teoria ética a virtude é ciência.
Cuido
conveniente fazer aqui uma breve écbase a fim de esclarecer o que os antigos
entendiam por “ciência” e, em particular, qual é o objeto da ciência-virtude no
pensamento de Sócrates.
Os
gregos chamavam “ciência” ou épisteme
ao conhecimento teórico das coisas mediante raciocínios, provas e
demonstrações. Épisteme é também
conhecimento teórico por meio de conceitos necessários e universais. Épisteme é conhecer pelo pensamento, é
ter um conhecimento por meio do raciocínio. Em Platão, a ciência ou épisteme tem como objeto o Mundo
Inteligível, as Essências (eidos). Épisteme é aí conhecimento das
Realidades verdadeiras, do que existe em si, do Ser ou também dos Seres. Para
Platão, que opunha ciência a dóxa
(opinião), a ciência visa o Ser absoluto, ao passo que a opinião tem por objeto
o ser relativo, as aparências.
Retornando
à questão socrática da identidade entre virtude e ciência, deve-se ter em mente
que a tese socrática virtude é ciência
implica, em primeiro lugar, a reunião das virtudes tradicionais, tais como a sapiência, a justiça, a sabedoria, a temperança, a fortaleza sob o domínio de uma única virtude, a saber, a da ciência
ou do conhecimento. Ademais, a tese socrática virtude é ciência implica a redução do vício à ignorância, que é o
contrário do conhecimento. Segue-se daí a conclusão de que quem faz o mal o faz
por ignorância e não porque queira o mal sabendo que é mal. Assim também, não é
possível fazer o bem sem conhecê-lo. Para Sócrates, portanto, a virtude é
conhecimento, é ciência, mas não qualquer conhecimento ou ciência. A virtude é
a mais elevada e sublime ciência: a
ciência do que é o homem e do que é bom e útil ao homem.
Em
suma, o verdadeiro eu do homem repousa na sua alma, no seu espírito, e a alma é
a sede de todos os valores mais tipicamente humanos. Por conseguinte, os
verdadeiros valores são os valores da alma, para Sócrates.
3.2. A dialética socrática
O
diálogo é a medicina socrática da alma. A dialética socrática é o método
dialógico de Sócrates que tem, fundamentalmente, finalidades de natureza ética
e educativa. Somente, em segundo lugar, tem finalidades de natureza lógica e
gnosiológica. A dialética socrática visa a exortar o homem à virtude, visa ao
convencimento do homem de que a alma e o cuidado da alma são o sumo bem para o
homem. A dialética socrática visa à purificação da alma por meio de perguntas e
respostas que servem para libertá-la dos erros e torná-la inclinada à verdade.
Da
alma, da alma individual só se cuida com o diá-logo,
ou seja, com o lógos que, mediante
perguntas e respostas, leva mestre e discípulo a uma experiência espiritual
única de pesquisa em comum da verdade. Em face de um interlocutor, Sócrates
buscava suscitar-lhe o desejo de saber – tal como o médico suscita no paciente
o desejo de cura. A medicina socrática da alma afirma que a verdade existe e
que podemos conhecê-la. O verdadeiro e o falso, bem como a mentira e a
contradição, estão em nós, em nossa alma. A verdade provém de nossos juízos
sobre as coisas. Se a maioria dos homens tem dificuldade de encontrá-la, é que
eles vivem como autômatos que obedecem cegamente às regras e aos costumes de
sua sociedade e acolhem passivamente os preconceitos socialmente estabelecidos.
O
método socrático, expressando-se na forma de diálogo, consta de duas partes. Na
primeira parte, chamada protréptico,
que é exortação, Sócrates convida seu interlocutor a filosofar, a buscar a
verdade. Na segunda parte, chamada élenkhos,
isto é, indagação, Sócrates elabora perguntas e comenta as repostas, tornando a
perguntar, num processo dialógico no qual orienta o interlocutor na busca da
definição da coisa procurada.
O
élenkhos é dividido em duas partes,
as quais, reunidas, constituem o método socrático. Na primeira parte, tendo
feito a pergunta, Sócrates comenta as várias respostas oferecidas, com vistas a
mostrar que elas são sempre preconceitos recebidos, imagens sensoriais
percebidas, ou opiniões subjetivas e nunca a definição buscada. Esta primeira
parte é chamada ironia (eiróneia), isto é, a parte destinada à refutação.
Pela ironia, Sócrates busca destruir a pretensa solidez dos preconceitos recebidos.
Na segunda parte, Sócrates, ao perguntar, vai abrindo caminhos ao interlocutor
até que ele chegue à definição procurada. Esta segunda parte chama-se maiêutica (maieutiké), que significa ‘a arte de realizar um parto’. No caso em
questão, trata-se da arte de realizar o parto de uma ideia verdadeira.
A
ciência ou épisteme socrática resulta
de sua dialética. Consoante ensina Aristóteles, a ciência visa a encontrar as
definições universais e necessárias das coisas, ou a essência universal das
coisas, tornando-a uma ideia passível de ser alcançada pela razão apenas.
Assim, a ideia, para Sócrates, manifesta racionalmente o que a coisa é em sua
essência universal e necessária, porque apresenta a causa pela qual ela é o que
é, por que e como ela é o que é. Ao contrário das definições universais e
necessárias que nos dão a essência das coisas, as opiniões são definições
parciais, subjetivas, confusas, contraditórias.
3.2.1. O não saber socrático: só sei que nada sei
Se
a finalidade da dialética socrática foi revolucionária, igualmente
revolucionário é seu ponto de partida. Sócrates assumia constantemente a
afirmação de seu não saber, pondo-se em face de seu interlocutor como quem
deseja tudo aprender. Contrariamente aos sofistas, em virtude de sua afirmação
de não saber, Sócrates negou a pretensão de saber quase ilimitada. Ao assumir,
de partida, nada saber, Sócrates denunciou a inconsistência quase total
decorrente do fato de o saber próprio dos políticos, dos poetas e cultores de
várias artes “patinar” na superfície dos problemas. Sócrates denunciou a
presunção deles de saber tudo pelo simples fato de dominarem uma única arte.
Mas, além de sua relação com o saber dos homens, o significado do não saber
socrático se esclarece em relação com o saber de Deus. Deus é onisciente.
Quando comparado à medida do saber divino, o saber humano se revela em toda a
sua fragilidade e limitação.
3.2.2. A ironia socrática
Ironia
significa dissimulação, e a ironia
socrática é um jogo de múltiplos e variados disfarces e fingimentos que
Sócrates realizava a fim de fazer com que seu interlocutor se dê conta de seu
aparente saber. Pela ironia socrática, Sócrates dá a si, por meio de atos e
palavras, uma imagem inconsistente, uma espécie de máscara discursiva, pela
qual se mostra amigo do interlocutor, se representa como alguém que admira suas
capacidades e méritos, pede-lhe conselho, etc. No entanto, ao mesmo tempo, seu
fingimento é transparente e se combina com uma finalidade séria, pois que a
ironia de Sócrates é o meio essencial de realização da dialética moral. Nas
dissimulações, Sócrates finge adotar as ideias e opiniões do interlocutor
(mormente se este é um homem culto), para caricaturá-las ou invertê-las,
seguindo a mesma lógica que as tornou possíveis e expondo-lhes a contradição.
Entre
as máscaras discursivas empregadas por Sócrates, a principal era a máscara do
não saber e da ignorância. E era por meio dessa máscara que Sócrates suscitava a
raiva dos adversários. A máscara da ignorância empregada por Sócrates
servia-lhe como meio para demonstrar o aparente saber dos outros e de
expor-lhes a radical ignorância deles. Por outro lado, era por meio dessa
máscara que Sócrates ajudava aqueles que, com plena disponibilidade,
entregavam-se ao magistério socrático e aceitavam reconhecer-se como
possuidores de um aparente saber. A dialética socrática, enquanto tal, é ironia, ou “a ironia é a cifra da
filosofia socrática”. (Reale, ibid., p. 144).
3.3.3. Confutação (élenkhos) e
Maiêutica
Vimos
que pela ironia Sócrates levava aquele com quem dialogava a reconhecer a
própria presunção de saber, ou seja, a própria ignorância. Sócrates começava
por exigir que seu interlocutor definisse o assunto que constituiria o escopo
da pesquisa; depois aprofundava, de vários modos, a definição, explicitando as
falhas, as contradições às quais a definição levava; em seguida, convidava o
interlocutor a fazer uma nova definição e, com o mesmo método, confutava-a, até
o momento em que o interlocutor se reconhecia ignorante.
Foi
justamente o momento confutatório que acarretou a Sócrates as mais severas
aversões e as mais duras inimizades, as quais lhe valeram a condenação à morte.
E é claro que os medíocres reagiam negativamente a essa confutação; afinal,
eram eles que se viam privados de suas ingênuas certeza e segurança de saber.
Privados da segurança do saber, os medíocres experimentavam uma crise que se
expressava tanto como ofuscamento e desorientação quanto como carência de novas
certezas nas quais pudessem encontrar apoio. Tamanha era a soberba dos homens
medíocres, que eles se recusavam a admitir que nada sabiam efetivamente,
preferindo acusar Sócrates de confundir-lhes as ideias e de entorpecê-los.
Disso se seguiu a acusação que recaiu sobre Sócrates de ser ele um semeador de
dúvidas e um corruptor da juventude.
Inversamente
diferente era, contudo, o efeito da confutação sobre os homens mais bem predispostos. Neles,
ela exercia a purificação ao extirpar as certezas que julgavam ter. Perdê-las
não os perturbava, pois que compreendiam estar dispostos no caminho para
alcançar a verdade. Ora, enquanto existem na alma falsas opiniões e falsas
certezas, é impossível buscar a verdade. Todavia, uma vez que estejam
eliminadas aquelas falsas opiniões e certezas, a alma fica purificada e apta
para alcançar a verdade – se dela, é claro, estiver grávida. E daqui em diante
devemos descer a alguns pormenores sobre a arte da maiêutica socrática.
A
alma só pode alcançar a verdade se dela
estiver grávida. Enuncia-se aqui, desde o início, a aporia da maiêutica
socrática: só algumas almas são grávidas da verdade. Há almas não grávidas da
verdade e, portanto, há almas que, por encontrarem-se nessa condição, não podem
beneficiar-se da maiêutica, porque incapazes de dar à luz a verdade. Sócrates
parece, então, sugerir que nem todas as almas, ou nem todos os homens, são
predispostas para, ou estão aptas para a filosofia. A doutrina da maiêutica
consiste na arte de fazer a alma dar à luz uma ideia verdadeira. Em trabalho
conjunto com Sócrates, o interlocutor é levado a dar à luz ideias próprias e
mais fundamentadas. Sócrates era, por isso, conhecido como “parteiro”, já que
auxiliava o interlocutor a parir suas próprias ideias. Assim, graças a
Sócrates, o interlocutor ia se apossando, progressivamente, da sua própria
alma. Esse autoconhecimento é um caminho que implica a definição adequada do
significado (ou conceito) das palavras que ele vinha usando de modo
entorpecido, sem disso ter consciência clara.
De
fato, Sócrates dizia-se ignorante e negava decididamente ser capaz de comunicar
aos outros algum saber determinado. Mas, assim como a mulher que está grávida
no corpo tem necessidade de obstetra para dar à luz, assim também o discípulo
que tem a alma grávida da verdade tem necessidade de uma espécie de parteiro
espiritual, que o ajude a dar à luz essa verdade. É esta a função que cumpre a
maiêutica socrática: ela pretende parir a verdade de que está grávida a alma.
A
maiêutica é a arte de obstetra dirigida à psyché.
É a arte dominada por Sócrates que melhor representa o papel central da alma em
sua dialética.
3.4 A ética socrática: enkráteia, autarquia e eleuthería
Vimos
que virtude, para Sócrates, é ciência do que é o homem e do que é bom e útil ao
homem. O indivíduo a quem falta a enkráteia
(o autodomínio) está totalmente privado da virtude, já que, carecendo de
autodomínio, é o corpo e os instintos que passam a governá-lo. A enkráteia, é, pois, domínio de si quando
nos encontramos no estado de prazer e dor, nas fadigas e no movimento dos
impulsos e das paixões. A enkráteia
ou autodomínio constitui a base da virtude. Deve-se, assim, procurar ter na
alma autodomínio, o que significa tornar
a alma senhora do corpo, tornar a
razão senhora dos impulsos e paixões. Sócrates, ademais, identificou a enkráteia com a ‘liberdade’ ou eleuthería. Destarte, com Sócrates, a
liberdade passa a ter um significado moral mais do que exclusivamente político-jurídico.:
a liberdade é domínio da razão sobre os
impulsos, sobre as paixões do corpo. Liberdade é submeter ao domínio da razão
aquela parte de animalidade que há em nós.
Ligado
aos conceitos de enkráteia e liberdade (eleuthería), coube a Sócrates cunhar o conceito de autarquia, que designa a autonomia da
virtude e do homem virtuoso. São dois os traços semânticos do conceito de autarquia: 1) autonomia em relação às
necessidades e aos impulsos corporais, alcançada pelo controle exercido pela
razão sobre eles; 2) a suficiência da razão ou da alma para alcançar a
felicidade.
Segundo
Sócrates, aquele que se deixa arrastar pela satisfação dos desejos e dos
impulsos torna-se escravo das coisas, dos homens e da sociedade. Submetido
pelas forças que não são controláveis e necessitado de tudo quanto é dificílimo
de alcançar, o homem perde a liberdade, a tranquilidade e a felicidade. A
autarquia é, portanto, a qualidade, por excelência, do sábio. Dado o fato de
que o modo de vida do sábio calca-se sobre o modelo de vida divino, a autarquia
do sábio supõe o desdobramento das seguintes teses: 1) é divino de nada
necessitar; 2) o divino é a própria perfeição, já que de nada carece; 3) quem
está mais próximo do divino está mais próximo da perfeição. Para habitar na
vizinhança ou na proximidade com o divino, logo com a perfeição, o homem deve
limitar e dominar seus desejos, seus impulsos e tendências instintivas pelo
poder da razão.
Recapitulando
o que se expôs acerca dos conceitos de enkráteia,
liberdade e autarquia, deve-se reter,
resumidamente, que enkráteia é domínio
da razão e do conhecimento sobre os desejos e impulsos sensíveis; liberdade é a capacidade que tem a razão
de impor seu poder e domínio sobe as tendências instintivas de nossa animalidade;
e autarquia é independência das
necessidades instintivas, é a autossuficiência da razão (lógos) humana. Como observa Reale (ibid., p. 113), “(...) esses
conceitos nascem da mesma matriz da qual nasce a doutrina da virtude-ciência e
da onipotência da ciência, e carrega a mesma marca”.
4. Considerações finais: a
sabedoria socrática
Se,
quando consideramos certas tendências do comportamento socrático, o vemos como
distando do modelo de vida do sábio, não há dúvida de que o pensamento socrático
é um verdadeiro exercício de preparação para a sabedoria. E mais ainda: não
deve haver dúvida de que há uma sabedoria socrática, de que a vida de Sócrates
foi inteiramente devotada ao exercício da filosofia como modo de ser, como
atividade radicalmente transformadora do modo de ser do homem no mundo. Sócrates
foi, decerto, o primeiro filósofo a mostrar que a filosofia devia antes levar
os homens a perguntar, a colocar questões, mais do que encontrar respostas
certas e definitivas.
A
sabedoria socrática esteia-se justamente no reconhecimento de que ele nada
sabia. Ao afirmar “sei que nada sei”, Sócrates se faz sábio, o mais sábio entre
os sábios. Ele foi filósofo, por excelência, o “maior de todos”, diria mais
tarde seu discípulo Platão, porquanto exercia a filosofia no sentido pleno da
palavra (philo-shopia, amor à
sabedoria): mais que um sábio que tudo sabe, ele foi antes o amigo que ama a
sabedoria. Por isso, ele a buscou sempre, perguntando mais que respondendo, e
levando os outros a perguntarem, mais que lhes oferecendo respostas prontas.
O
sábio, então, pelo menos da perspectiva socrática, é aquele que assume sua
ignorância e sai em busca do conhecimento, mas não de qualquer conhecimento. Segundo
Platão, Sócrates foi profundamente afetado pela frase “conhece-te a ti mesmo”,
inscrita no Templo do Apolo em Delfos. A admissão da própria ignorância (“sei
que nada sei”) e a busca do autoconhecimento são, portanto, as duas características
fundamentais da sabedoria socrática.
O
que quer que seja a sabedoria, aquele que a possui é “favorecido pelos deuses”,
ou seja, é feliz. Se Sócrates não chegou a dar uma definição de sabedoria, ele
estabeleceu sua íntima ligação com a felicidade. Somos tanto mais felizes
quanto mais sábios – e não quanto mais jovens, ricos e ilustres. Quando o
conhecimento que uma pessoa tem lhe permite conduzir-se bem na vida, essa
pessoa pode ser considerada um sábio; afinal, sua sabedoria permite-lhe agir
bem e ser virtuosa. A virtude conduz à felicidade, porque leva à prática do bem
a si mesmo e ao bem da cidade. O bem da cidade clássica era o respeito às leis,
e a contribuição para a elaboração das boas leis era a atitude cidadã por excelência.
O sábio é, portanto, feliz porque faz bem a si mesmo (virtude humana, sabedoria)
e aos outros (virtude cívica, cidadania).
A
condição do agir bem e da moderação é o conhecimento, conforme nos ensina Sócrates.
Logo, o conhecimento leva à sabedoria; a sabedoria leva à virtude; e a virtude,
por fim, realiza a verdadeira vida feliz.
Por
fim, gostaria de acrescentar que o tempo despendido na meditação sobre o
pensamento socrático permitiu-me sorver o frescor, o hálito de uma sabedoria
que os tempos atuais, em que vigem como critérios do bem viver a utilidade, a
produtividade e o consumismo, desconhecem. Se é certo, conforme creio, que nem
todo indivíduo é predisposto para a filosofia, é de lamentar que a maioria dos
homens e mulheres de nossas sociedades pós-modernas viva alheia a uma sabedoria
como a de Sócrates. É oportuno aqui referir o que nos ensina Hadot acerca da (in)utilidade
da filosofia. Segundo o autor, “é precisamente o papel da filosofia revelar aos
homens a utilidade do inútil ou, caso se prefira, de lhes ensinar a distinguir
entre dois sentidos da palavra inútil”.(Hadot, 2014, p. 328). A filosofia é útil
ao homem enquanto ele é um ser pensante, mas será um luxo, ou seja, supérflua, “caso
se considere como útil apenas o que serve a fins particulares e materiais”. (ibid.). Hoje, particularmente no Brasil, encontramo-nos
num estágio de nossa vida político-cultural em que a filosofia é cada vez mais
estranha, mais inaudível nos espaços públicos onde pululam, com cada vez mais
força e vigor, o obscurantismo, a intolerância e a violência em todas as suas
formas. Nosso país é presidido e governado por autoridades que, na grande
maioria, são obtusas e avessas à norma básica da constituição do discurso filosófico,
nomeadamente do discurso socrático: o diálogo,
cujo fim último é levar as consciências a reconhecer que não sabem o que
pensavam saber. O falatório generalizado das mídias sociais, a predominância
das opiniões falsas que circulam entre as manadas de homens desprovidos de
qualquer senso crítico, a crescente onda das chamadas fake news que entorpecem e asfixiam o bom senso são sinais da decadência
intelectual e do empobrecimento ético do modo de ser e de viver de nossos
governantes e governados. Mas, com o mesmo vigor resistente do samba, a
filosofia agoniza mas não morre e por muito tempo ousará proclamar aos homens
de negócio a necessidade dignificante do ócio. Deixo aqui resplendecer, nas
palavras de Hadot, a glória da filosofia:
“A
glória da filosofia, responderão alguns filósofos, é precisamente ser um luxo e
um discurso inútil. Primeiramente, se não houvesse senão o útil no mundo, o
mundo seria irrespirável. A poesia, a música, a pintura, elas também são inúteis.
Elas não melhoram a produtividade. Mas são, todavia, indispensáveis à vida. Elas
nos libertam da urgência utilitária. É, igualmente, o caso da filosofia. Sócrates,
nos diálogos de Platão, ressalta a seus interlocutores que eles têm todo o
tempo deles para discutir, que nada os apressa. E é bem verdadeiro que, para
isso, é preciso ócio, como é preciso ócio para pintar, para compor música e
poesia. (ibid.).
É
preciso, por fim, dizer aos modernos de hoje que o discurso filosófico, tal
como se constituiu na filosofia antiga, não é um fim em si, mas está a serviço
da vida filosófica. Como lembra Hadot (ibid., p. 330), “toda a Antiguidade
reconheceu que Sócrates foi filósofo, mais por sua vida e por sua morte que por
seus discursos. E a filosofia antiga permaneceu sempre socrática na medida em
que ela sempre apresentou a si mesma como um modo de vida, mais que como um
discurso teórico”.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES.
Ética a Nicômaco. Trad. Edson
Bini. Bauru, SP: Edipro, 2013.
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.
HADOT, Pierre. O que é filosofia antiga. São Paulo: Edições Loyola, 2010.
_____________. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. São Paulo: Realizações,
2014.
REALE, Giovanni. Sofistas, Sócrates e Sócrates menores. São Paulo: Edições Loyola,
2009.