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terça-feira, 12 de maio de 2020

"Existe apenas um bem, o saber, e apenas um mal, a ignorância." (Sócrates)



Sócrates e o consumo de carne como símbolo da injustiça e das ...




A medicina socrática da alma
Sócrates ou o mais sábio entre os homens


Neste texto, tenho a tenção de discorrer sobre o que é possível determinar, levando-se em conta os testemunhos que chegaram até nós, como sendo propriamente o pensamento socrático. Ao me debruçar sobre essa tarefa, venho preencher uma lacuna que até então não fora preenchida neste blog: disponibilizar ao público leitor um texto cuja tenção central seja Sócrates e o seu pensamento. Fixado, então, o objetivo basilar da presente exposição, passo a concatenar algumas considerações preliminares que, reunidas, compõem um preâmbulo à discussão propriamente dita do assunto a ser tratado.


1. O mundo do filósofo e o mundo do homem comum

Toda a discussão que será desenvolvida nas seções seguintes esteia-se sobre o pressuposto de que a filosofia antiga, consoante propõe Hadot (2010, 2014), é exercício espiritual, é um modo de vida, uma escolha de vida. Suas mais diversas manifestações em escolas de pensamento e em discursos realizam verdadeiros exercícios existenciais, porque carreiam um valor existencial que toca à nossa maneira de viver, ao nosso modo de ser no mundo. Tais exercícios espirituais (expressão adotada e preferida por Hadot) são parte integrante de uma orientação no mundo, uma orientação que opera uma transformação radical da personalidade, do modo de ser e de viver daquele que se engaja nesses exercícios. A filosofia socrática é, pois, um exemplo de exercício espiritual, de uma escolha de vida, de uma atividade concreta e prática que visa a cunhar modos de ser.
À medida que se ia refinando e se aprofundando minha cultura filosófica, foi-se tornando cristalino para mim o abismo que se interpõe entre o mundo da vida filosófica e o mundo da vida do homem comum. Faz algum tempo, comuniquei a um amigo da sabedoria o meu sentimento que consiste em interpretar ser o modo de vida filosófico análogo, em alguma medida, ao de um esquizofrênico, não porque sofra de delírios e alucinações, mas porque marcado por uma profunda e insolúvel cisão, separação (donde o termo grego “skhízô”, que significa ‘dividir’, ‘separar’). Refiro-me, para ser mais claro, à percepção que tenho de que o filósofo parece viver como que cindido entre dois mundos: o mundo da vida filosófica, que é o mundo da prática do cuidado de si e do cuidado da vida do espírito; e o mundo da vida cotidiana, onde “habita” o homem comum cujo modo de ser é, sobremaneira, condicionado por relações de ordem prática e interesses pragmáticos pelo mundo. Essa percepção ou sentimento confirmam-se numa página em que Hadot faz a seguinte consideração, da qual vale aqui o devido registro:


“O filósofo vive, assim, num estado intermediário: não é sábio, mas não é não sábio. Ele está, pois, constantemente cindido entre a vida não filosófica e a vida filosófica, entre o domínio do habitual e do cotidiano e o domínio da consciência e da lucidez. Na medida em que ela é prática de exercícios espirituais, a vida filosófica é um desraizamento da vida cotidiana, ela é uma conversão, uma mudança total da visão, de estilo de vida, de comportamento”. (Hadot, 2014, p. 58, grifos meus).


A cisão entre a vida não filosófica e a vida filosófica a que se refere Hadot não só repercute o meu sentimento à luz do qual tomei consciência do caráter ‘cindido’ ou ‘esquizo-frênico’ do modo de ser filosófico, mas também enseja e fornece apoio a minha visão de que a vida filosófica deve ser vivida como ‘destino’, ou seja, como uma necessidade existencialmente imperiosa e inescapável. Tendo compreendido que há uma cisão inegável entre o domínio do habitual e cotidiano, onde se enraíza a vida do homem comum, e o domínio da vida filosófica, onde o filósofo faz morada e exercita a vida do espírito, impõe-se a quem quer que, como eu, aceite a inevitabilidade dessa cisão, o problema que consiste em determinar se tais “mundos” são ou não comensuráveis entre si. Como nem todos os seres humanos são predispostos para o exercício da filosofia e para a vida filosófica, tendo a acreditar que o mundo do homem comum e o mundo do filósofo são incomensuráveis entre si; jamais se confundem e estão destinados a existir numa cisão tensionada. Disso não se segue, evidentemente, que o filósofo, talvez na maior parte das vezes, não frequente esse mundo comum, não tenha de partilhar interesses e ocupações típicas do homem comum. É sempre oportuno recordar, contra o preconceito há milênios em voga, que o filósofo não é um homem alienado do mundo, alienado da experiência cotidiana do mundo; todavia, é igualmente certo que seu “mundo próprio” é outro. Assim como um transeunte que, tendo frequentado os espaços públicos da vida cotidiana precisa retornar a casa para fruir o descanso e a proteção, assim também o filósofo, tendo frequentado o mundo da rua e, por vezes, o perturbado com suas indagações, precisa retornar à sua morada onde frui do convívio com os bens do espírito e a companhia vivificante da solidão da lucidez.
É preciso, por fim, estar bem atento à radicalidade do “desenraizamento da vida cotidiana” experienciado pelo filósofo. Como bem ensina Hadot, a medida exata desse desenraizamento só pode ser compreendida, se tivermos em conta o fato de que “a prática dos exercícios espirituais implicava uma inversão total dos valores recebidos”. (ibid.). Assim, a prática dos exercícios espirituais leva o filósofo a renunciar “aos falsos valores, às riquezas, às honras, aos prazeres para se voltar para os verdadeiros valores, a virtude, a contemplação, a simplicidade de vida, a simples felicidade de existir”. (ibid.).
Se o modo de vida filosófico se caracteriza fundamentalmente por um “desenraizamento da vida cotidiana”, é porque a filosofia, enquanto prática de exercícios espirituais, visa à transformação radical do modo de ser de quem filosofa.


2.  Sócrates: o filósofo e o seu tempo

Sócrates (470 ou 469 a.C. – 399 a.C) nasceu em Atenas e viveu a maior parte de sua vida no século V a.C. Foi nesse período que a pólis  ateniense alcançou seu apogeu econômico, político e cultural. Fundada graças às reformas de Clístenes, no final do século VI, a democracia ateniense se consolidou após a derrota dos persas no século V. Seu auge aconteceu quando Péricles tornou-se arconte (magistrado). As práticas democráticas carreavam a valorização da linguagem. Assim, os homens passaram a se valer das palavras em vez da violência para resolverem seus problemas e conflitos. O uso cada vez mais frequente das palavras fez surgir os grandes oradores, a retórica, os professores da técnica da palavra e a sofística. Homens como Protágoras, Górgias e Hípias, que se autoproclamavam sábios, percorriam as grandes cidades gregas prometendo ensinar, em troca de um valor monetário, a virtude da palavra.
Evidentemente, o diálogo, gênero em que Sócrates foi mestre, é inseparável da experiência democrática. A arte do diálogo e da dialética prende-se inextricavelmente ao movimento geral de valorização da palavra e do reconhecimento do outro. Decerto, a democracia ateniense, entre todas as grandes realizações do período, ocupava um lugar central. Todavia, a democracia ateniense foi a organização estatal que começou a desenvolver, de maneira ampla, a utilização do trabalho escravo. Nela e por meio dela, desenvolveram-se projetos de opressão imperial mesmo em relação às próprias cidades gregas vizinhas de Atenas. Foram esses projetos que motivaram a Guerra do Peloponeso, que, inicialmente, envolveu Atenas e Esparta, mas, depois, quase todas as cidades gregas. Esse conflito estendeu-se por cerca de 30 anos (431-404), levando, finalmente, Atenas à ruína.
Havia grandes diferenças sociais entre os próprios cidadãos na democracia ateniense. As mulheres sofriam opressão: não tinham direitos políticos e não participavam das decisões políticas. Desde muito cedo, grupos poderosos, sempre preocupados em defender seus interesses privados, contratavam profissionais de oratória (discípulos de sofistas), manipulavam a escolha de cargos e a assembleia popular. O povo, não obstante poder decidir e votar, era enganado, e seu voto era feito, não raro, contra seus próprios interesses reais. Sócrates, assim como seus discípulos, entre os quais Platão, atento a essas contradições da democracia ateniense sempre foi crítico desse regime. Sócrates sabia quão ilusória e formal era a liberdade ateniense; por isso, nem ele nem seus discípulos jamais defenderam esta forma de democracia, jamais a consideravam como a melhor forma de todos os governos. Ao contrário, como atestam Xenofonte e Platão, Sócrates e seus discípulos idealizaram outras formas de organização da pólis.

2.1. Sócrates e suas imagens

Todo ato de enunciação, toda prática discursiva implica a construção de imagens recíprocas. O locutor, ao usar a palavra, constrói uma imagem de si (ethos, para Aristóteles), ao passo que o interlocutor constrói uma imagem da imagem que o locutor faz de si. A imagem de si é a imagem do locutor como ser do discurso. Essa imagem de si é discursivamente construída. Para construir uma imagem de si, não é necessário que o locutor fale de si explicitamente, destacando suas qualidades. Para a construção da imagem de si, são suficientes as competências linguística e enciclopédia, as crenças implícitas e o estilo de linguagem do locutor. São esses elementos que permitem ao locutor fazer uma representação de sua pessoa. A imagem que o interlocutor constrói do locutor também se baseia nas manifestações discursivas deste. Deliberadamente ou não, o locutor faz, no discurso, uma apresentação de si. Essa apresentação de si não se restringe a uma técnica aprendida, mas se realiza, frequentemente, à revelia dos parceiros de comunicação, nas circunstâncias mais corriqueiras do uso da língua.
Assim, como Sócrates nada escreveu, o que sabemos sobre ele nos vem pela pena de outros que, tendo-o conhecido pessoalmente ou não, nos contam sobre ele. Isso significa dizer que o que sabemos a respeito de Sócrates são as imagens dele discursivamente construídas por outros enunciadores. Os três testemunhos realmente diretos sobre Sócrates são os de Aristófanes, Xenofonte e Platão. Cada um fornece-nos uma imagem discursiva de Sócrates. Antes de dar a conhecer o que disseram essas fontes diretas acerca de Sócrates, convém fazer uma breve apresentação biográfica de Sócrates.
Sócrates, nascido em 470 ou 469 a.C., foi filho de Sofronisco, um talhador de pedra, e de Fainarete, uma parteira. Sua obra confunde-se com sua vida. Nasceu pobre e permaneceu assim até a sua morte, em 399 a.C, quando contava 70 anos. Orgulhoso de seu trabalho, Sócrates sempre elogiou o esforço do trabalho e fez deste o modelo para a sua filosofia. Ele costumava andar pelas ruas de Atenas, no verão e no inverno, descalço e vestindo sempre o mesmo manto simples. Sócrates teve três filhos: Lamprocles, Menexeno e outro chamado Sofronisco, que tinha, como se vê, o mesmo nome de seu pai. Sócrates foi casado com Xantipa, mulher muito famosa por suas constantes reclamações. Sócrates dizia que de tanto discutir com ela aprendeu a arte de dominar a si mesmo. É provável que tenha tido outra esposa, chamada Mirto, já que a poligamia foi permitida e incentivada por decreto durante os últimos anos do século V para solucionar o decréscimo populacional ocorrido nas sucessivas guerras.
Sócrates foi cidadão exemplar no exercício dos deveres políticos e militares. Malgrado o fato de contestar filosoficamente a sabedoria das leis que regiam a cidade, nunca deixou de obedecer a elas. Destarte, devido à sua retidão moral e à sua busca permanente da verdadeira justiça, acabou por angariar muitos inimigos e terminou sendo condenado à morte.
Logo após seu julgamento, estando Socrátes na prisão à espera da execução da sentença, Críton, um discípulo fiel, lhe propôs um plano infalível de fuga: subornaria os carceireiros e o conduziria ao exílio na Tessália. Mas Sócrates recusou a proposta que lhe salvaria a vida, alegando, conforme nos conta Platão em seu diálogo Críton, que, mesmo morrendo vítima da injustiça dos atenienses, não desobedeceria às leis da cidade. Para Sócrates, aceitar fugir através do suborno seria cometer também uma injustiça; preferiu, por isso, resignar-se à morte. As façanhas socráticas e a resistência às dificuldades da guerra e da coragem provinham, tal como a sua filosofia, do esforço e do exercício permanentes. Sócrates  exercitava-se diariamente e exortava os seus discípulos a fazerem o mesmo.
Como já disse, Sócrates nada escreveu e não existe uma obra filosófica propriamente atribuída a ele. Dele sabemos a partir do acesso ao que sobre ele nos disseram outras personalidades. Os principais testemunhos, os únicos realmente diretos, são aqueles fornecidos por Aristófanes (o autor de comédias), de Xenofonte e de Platão (estes últimos foram seus discípulos). Todos três o conheceram pessoalmente. Mas há ainda fragmentos indiretos do pensamento socrático que sobreviveram graças a outros discípulos, como Antistenes, Diógenes, Euclides de Mégara e Aristipo. Diversos outros autores antigos, tais como Aristóteles, Diógenes Laércio, Aulo-Gélio e Cícero também reproduziram indiretamente tradições a respeito dos feitos de Sócrates e comentaram os seus supostos ensinamentos.
Durante muito tempo e até hoje, os historiadores da filosofia se perguntam qual seria o verdadeiro Sócrates ou, ao menos, qual seria aquela versão mais próxima do Sócrates histórico. Muitos o consideram um enigma insolúvel e sustentam que jamais o conheceremos. O problema da identidade de Sócrates é recente. Na Antiguidade, na Idade Média, da Renascença ao Romantismo, esse problema não existia, pois, ao longo desses períodos históricos, o Sócrates de Platão ou a imagem que Platão construiu de Sócrates era considerada o verdadeiro Sócrates. O problema começa quando Hegel, em sua História da filosofia, afirma que o Sócrates histórico corresponde à versão fornecida por Xenofonte e que o Sócrates de Platão, na verdade, é o próprio Platão. O fato é que, atualmente, os estudiosos não se ocupam mais da questão de determinar o Sócrates autêntico. Os estudiosos se contentam em falar de um Sócrates provável, com base na combinação dos diferentes testemunhos sobre ele. Assim, passados duzentos anos de pesquisa e produção de um número de livros suficientemente grande para preencher uma enorme biblioteca, renunciou-se ao problema do Sócrates histórico, ou melhor, aceitou-se a aporia. (Chauí, 2002).


2.1. 2. O Sócrates dos Cristãos

Os pensadores cristãos insistiram incansavelmente em comparar Sócrates com Jesus. De fato, ambos foram condenados por causa de seus ensinamentos, ambos compareceram aos tribunais e não se defenderam, ambos nada deixaram escrito, ambos criaram uma posteridade sem limites, e tudo quanto sabemos a respeito de ambos depende de fontes indiretas, de registros escritos produzidos depois de eles morrerem. A essas características que Sócrates tem em comum com Jesus, se deve acrescentar que Sócrates levava uma vida ascética, simples e pautada pela frugalidade, tal como era o modo de vida de Jesus, segundo os Evangelhos. Também Sócrates, por meio do seu daímon, considerava-se investido de uma missão divina.
Não obstante, diferentemente de Jesus, Sócrates não se apresentava como divino, nem como a encarnação da verdade (ou como o verbo de Deus). Outrossim, não tinha nenhuma verdade divina a revelar, tampouco dogma a impor. Tudo que sabemos que Sócrates dizia é o seu célebre “só sei que nada sei”.

2.1.3. As imagens de Sócrates como herói e como sábio

Houve quem fizesse de Sócrates um herói, imagem esta que se justificaria pelo seu comportamento na guerra e sua atitude perante a Assembleia nas três ocasiões em que diante dela esteve. Contudo, ocorre que um herói não discute e questiona os valores e as ideias de sua pátria. A imagem de Sócrates como herói, portanto, não lhe parece convir. Mas, se a Sócrates não convinha associar a imagem de herói, teria ele sido um sábio? Para responder adequadamente essa questão, é preciso saber, em primeiro lugar, quem é o sábio.
Desde o Banquete de Platão, os filósofos antigos consideravam a figura do sábio como um modelo inacessível que o filósofo (aquele que ama a sabedoria) se esforça por imitar, esforço este sempre renovado por um exercício praticado a cada instante. (Hadot, 2014). Recorde-se que o pressuposto com base no qual se desenvolve o presente estudo sobre o pensamento socrático é que a filosofia não é apenas um domínio discursivo; mas é, sobretudo, uma escolha de vida, um exercício vivido, “porque ela é desejo de sabedoria”. (Hadot, 2010, p. 313). E o que é sabedoria? A sabedoria é um modo de ser, consoante ensina Hadot (ibid.):


“A sabedoria é considerada em toda a Antiguidade um modo de ser, um estado no qual o homem é de maneira radicalmente diferente dos outros homens, no qual é uma espécie de super-homem. Se a filosofia é atividade pela qual o filósofo prepara-se para a sabedoria, esse exercício consistirá necessariamente não só em falar e em discorrer de certa maneira, mas em ser, agir e ver o mundo de certa maneira”.


Em cada escola filosófica, a figura do sábio é tomada como norma transcendente pela qual se pauta o modo de vida do filósofo. Portanto, nunca é demais lembrar que o filósofo não é o sábio, pois o sábio é um modelo ideal de vida a que aspira o filósofo e em relação ao qual o modo de vida filosófico se orienta. São características prototípicas do sábio ou do modo de vida do sábio: a igualdade de alma, a ausência de necessidade e a indiferença às coisas indiferentes. Essas qualidades do sábio tornam-no um tipo humano cuja vida repousa na ataraxia: o sábio frui a tranquilidade de alma e a ausência de perturbação.
Dado que o sábio mantém uma perfeita igualdade de alma, ele é feliz em qualquer que seja a circunstância. No Banquete de Platão, Sócrates conserva as mesmas disposições de alma, quer quando tem de suportara fome e o frio, quer quando se encontra na abundância. O sábio encontra sua felicidade em si mesmo. Assim é que o sábio estoico se caracteriza pela coerência consigo e a permanência de identidade, porquanto a sabedoria, aos olhos de um estoico, consiste em querer sempre e sempre não querer a mesma coisa. Como encontre sua felicidade em si mesmo, o sábio é independente das circunstâncias e das coisas exteriores, ou seja, o sábio possui a autarquia. Sócrates, conforme relata Xenofonte, bastava-se a si mesmo e não se deixava apegar-se a coisas supérfluas.
Segundo Aristóteles, no livro X da Ética a Nicômaco, o sábio vive uma vida contemplativa, porque não tem necessidade de coisas exteriores para nela se exercitar e porque, exercitando-se na contemplação, encontra a felicidade e a perfeita autossuficiência em si:


“(...) a atividade do intelecto (...) parece tanto ser superior em mérito quanto não visar a fim algum que transcenda a si mesma, além de dispor de um prazer que lhe é próprio (o que intensifica essa atividade), e apresenta autossuficiência, a presença do lazer ou ócio, e isenção de fadiga (na medida do que é humanamente possível) – e todos os outros atributos reservados ao indivíduo bem-aventurado [o sábio] são evidentemente aqueles vinculados a essa atividade -, conclui-se que essa será a felicidade completa humana, desde que seja concedida uma completa duração da existência, pois nada que diga respeito à felicidade pode ser incompleto. (Aristóteles, 2013, p. 308, 15-27).



Na medida em que o modo de vida do sábio é completamente diferente do modo de vida comum dos mortais, o sábio tende a habitar na vizinhança com os deuses ou Deus. Como pontuou Epicuro, o sábio vive como “um deus entre os homens”. Como os deuses, o sábio vive mergulhado numa perfeita serenidade e não está, de modo algum, ocupado com os negócios humanos. Para Epicuro, dado que a essência do divino consiste na serenidade e na ausência de perturbação no prazer e na alegria, de alguma maneira, os deuses são sábios imortais; o os sábios, são deuses mortais. Aristóteles, outrossim, entendida ser o divino o modelo do sábio. O sábio vive uma vida consagrada ao exercício do pensamento. Sua condição humana, no entanto, torna frágil e intermitente esse exercício espiritual, o qual está irremediavelmente disperso no tempo e sujeito ao erro e ao esquecimento. Somente Deus é um espírito cujo pensamento se exercitará perfeita e continuamente em um eterno presente. O pensamento divino pensará a si mesmo, em um ato eterno. Deus ou o Primeiro Motor Imóvel, causa do universo, para Aristóteles, conhece eternamente a felicidade e o prazer que o espírito humano só conhece em raros e breves momentos. O que o sábio vive de maneira intermitente Deus vive de modo contínuo. Mas, ao procurar imitar o modo de vida divino, o sábio vive uma vida que transcende a condição humana comum e que corresponde ao que há de essencial no homem: a vida do espírito.
Cuidando ter esclarecido a relação entre o filósofo e o sábio, faz-se mister atender na lição de Hadot acerca do que é, deveras, filosofar:

“Contemplar o mundo e contemplar a sabedoria é, finalmente, filosofar, é, com efeito, operar uma transformação interior, uma mutação da visão, que me permite reconhecer aos mesmo tempo duas coisas às quais raramente se presta atenção, o esplendor do mundo e o esplendor da norma que é o sábio: “o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim”. (Hadot, 2010, p. 328,).

O sábio, portanto, é aquele que realiza as grandes e difíceis virtudes: o domínio de si (enkráteia), a moderação, equidade, probidade, desprezo pelos valores materiais, afastamento das coisas do mundo. Acontece que os relatos dos amigos e discípulos de Sócrates patenteiam que ele gostava da boa mesa, do bom vinho, bebia e comia à vontade nos banquetes de que participava. Ele gostava de sexo – do sexo viril dos gregos, em que um homem adulto tem amantes masculinos jovens e belos (e os jovens disputavam o amor de Sócrates). Sócrates perdia a paciência com facilidade sempre que seu interlocutor não parecia interessar-se pela discussão. Também costumava agredir verbalmente, zombar e fazer críticas virulentas aos adversários. A humanidade de Sócrates parece, portanto, proibir-nos de vê-lo como um exemplar de Sábio: ele apreciava dançar e tocar lira; entretinha-se com prostitutas e se deleitava em grandes bebedeiras.
Não resta dúvida, como se vê, de que o comportamento de Sócrates era excêntrico. Quando caminhava com um amigo, costumava parar atrás dele absorto numa meditação. Embora fosse um conviva refinado e educado, não tinha os bons modos de chegar na hora marcada. Chegava sempre no meio do banquete; vivia sempre como um maltrapilho, mas frequentava a alta sociedade. Conta-se que gostava apenas de meninos, mas adorava filosofar com as prostitutas. Dizem que ele carecia do dom da oratória, mas, quando falava, silenciava o adversário e fazia apaixonar-se um seguidor.
Malgrado todo o exposto, há uma sabedoria socrática e Sócrates é lembrado pela tradição como o mais sábio entre os sábios. É o que veremos mais adiante. Considerem-se, doravante, as imagens que Aristófanes, Xenofonte e Platão nos legaram de Sócrates.


2.1.4. O Sócrates de Aristófanes, Xenofonte e Platão

Aristófanes (450-385 a.C.), como não fosse filósofo, mas comediógrafo, constrói uma imagem de Sócrates como falso sábio. Sua comédia As nuvens, que data de 423 a.C., foi escrita com o único fito de criticá-lo e ridicularizá-lo. Nela, Sócrates se apresenta como corruptor da juventude e como um homem que destrói os valores tradicionais relacionados aos deuses.
 Importa-nos mais o testemunho de Xenofonte (? – 354 a.C.), que, embora não fosse filósofo, mas amante da vida austera, da arte da guerra e dos trabalhos agrícolas, recorda a retidão da vida de Sócrates e as regras morais que propunha aos seus seguidores. Não obstante o fato de não nos oferecer, com precisão, o desenvolvimento dos argumentos socráticos e de pouco nos falar sobre os problemas teóricos complexos de que se ocupava Sócrates, Xenofonte dá-nos uma versão imagística do filósofo que coincide, na maioria dos aspectos, com aquela fornecida por outros autores.
Nos testemunhos de Xenofonte, a despeito da simplicidade, Sócrates se apresenta como aquele que destrói as ideias dominantes. Seguindo o preceito délfico – “o conhece-te a ti mesmo” -, Sócrates começa, tanto na obra de Xenofonte quanto na de Platão, por examinar a si mesmo e por mostrar que a aparente pobreza de sua vida é a riqueza de sua liberdade. Sócrates é retratado como aquele que, ao contrário dos sofistas, não recebe dinheiro por seus ensinamentos e, por isso, é mais livre do que eles, porque não é obrigado a vender a palavra. Em Xenofonte, Sócrates é representado como aquele que faz perguntas sobre o “ser” das coisas: que é a virtude? Que é uma vida boa? Que é uma vida feliz? Tal como sucede nos diálogos de Platão, o Sócrates de Xenofonte combate os sofistas, aqueles que defendem e reproduzem as imagens dominantes, e diferencia-se deles por não aceitar dinheiro em troca de seus ensinamentos.
A Apologia de Sócrates é a obra mais importante que consta dos Memoráveis, que foi escrito, segundo Xenofonte, para provar que Sócrates foi um cidadão altamente patriota, piedoso, justo, que fazia sacrifícios aos deuses e era fiel aos amigos. Xenofonte afirma que a preocupação central de Sócrates recaía sobre a ética, ou seja, sobre a virtude que, conforme veremos, Sócrates identificava com o saber ou a ciência (só o ignorante é vicioso). Sócrates também se preocupava com a utilidade do bem (o bem é a justiça) e com o domínio de si.
A imagem de Sócrates discutindo na ágora e nas ruas, perguntando aos transeuntes o que é a virtude, o que é a justiça, o que é o bem, e deixando-os com raiva e desorientados à medida que refutava cada uma das respostas que lhe eram dadas, provando que são ignorantes e que sequer sabiam que não o são, é uma construção da escrita de Xenofonte.
A imagem de Sócrates fornecida por Platão é nossa última e mais respeitável. Platão, o discípulo amado de Sócrates, viu seu mestre como fundador da filosofia especulativa. Em Platão, Sócrates aparece como inimigo dos sofistas e avesso às ideias dos “socráticos menores”. Sócrates é, para Platão, o modelo de filósofo. Com base na imagem que construiu de Sócrates, Platão se nos desnuda as várias faces do filósofo como “amante da sabedoria”. No Fedro, o filósofo ou Sócrates é um homem-cigarra que, sem se preocupar com a sobrevivência, canta à luz um belo canto – sua filosofia – em homenagem às Musas, até morrer. No Teeteto, é aquele que se distrai em relação às coisas próximas (como Tales que cai num poço), porque justamente está muito atento às questões que investiga. No Fédon, é Sócrates que, à beira da morte e sem temê-la, desenvolve seu discurso e questiona até o fim o significado de viver e de morrer. Na República, o filósofo é aquele que se liberta da caverna das ilusões e eleva seus olhos progressivamente até o Sol que ilumina a realidade; é aquele que, por ter realizado a escalada do conhecimento até seu termo, deve encarregar-se das tarefas políticas e do governo da pólis.
Como vemos, é verdade que a imagem de Sócrates varia na obra de Platão. Os primeiros diálogos platônicos construíram uma imagem mais próxima do Sócrates histórico, enquanto, nos últimos diálogos, Sócrates é o nome de uma personagem que fala através de Platão. Nos diálogos da maturidade, que abordavam temas que constituem o núcleo da filosofia de Platão – Banquete, Fédon, Fedro, Crátilo, Teeteto, República, Sócrates representa um modo de vida, mas as teorias neles desenvolvidas são inteiramente de Platão. É certo que o Sócrates de que nos fala Platão era realmente um homem que se notabilizou como mestre da vida ética; mas não chegava a ser uma espécie de Buda iluminado. Parte da perfeição moral atribuída a Sócrates não foi mais do que resultado de um trabalho de construção imagística elaborado pelos seus discípulos que o admiravam sobremaneira. Platão, decerto, desenvolveu um pensamento completamente original. Assim, por exemplo, a Teoria das Ideias foi corretamente atribuída a Platão e não a Sócrates. Teorias como a utopia política descrita na República e nas Leis, e a do prazer no Filebo são de responsabilidade de Platão, e não de Sócrates. Não há dúvida de que a distinção entre o que pertence a Sócrates e o que é de responsabilidade de Platão encontra um limite, nem sempre facilmente determinável. Uma das tarefas deste texto é lançar alguma luz sobre o que, no limite, constitui aquilo que podemos chamar de filosofia socrática.


3. A filosofia de Sócrates

Principio por notar que a ciência do cosmo é, para Sócrates, inacessível ao homem. Quem quer que se dedique a ela tenta, em vão, conquistar um conhecimento que só um Deus pode possuir. Ademais, para Sócrates, aqueles que se detêm nessas pesquisas, permanecendo totalmente absortos nelas, se esquecem de si mesmos. Ora, o que mais importa, para Sócrates, é o homem e os problemas do homem. Daí a questão preeminentemente filosófica que deve ser examinada, na visão de Sócrates: o que é o homem?

3.1. A alma como a essência do homem

Para Sócrates, todas as contradições e todas as incertezas dos sofistas decorriam do fato de eles terem se ocupado dos problemas do homem sem que determinassem, de maneira correta, a essência do homem. À questão que é o homem?, Sócrates responde inequivocamente: o homem é a sua alma (psyché), visto que a alma é o que o distingue de todas as outras coisas. Ninguém antes de Sócrates entendeu por alma aquilo que ele entendeu. Para Sócrates, a alma é a nossa consciência pensante, a nossa razão; é a sede de nossa atividade de pensamento. A alma é o eu consciente, é a personalidade intelectual e moral do homem. Consoante ensina Reale (2009, p. 93), coube a Sócrates dar origem à tradição moral e intelectual da qual a Europa se tornou herdeira. Toda a filosofia socrática pode ser resumida nessas fórmulas convergentes: 1) conhecer a si mesmo e 2) cuidar de si mesmo. Conhecer a si mesmo não é conhecer o próprio nome nem o próprio corpo, mas examinar o interior de si mesmo e a própria alma. Cuidar de si mesmo não é cuidar do próprio corpo, mas cuidar da própria alma. Sócrates acreditava estar investido de uma tarefa por Deus: ensinar os homens a conhecer e cuidar de si mesmos.
Sócrates, no Protágoras de Platão, era apresentado como médico da alma. Ele ensinava o homem a cuidar não do corpo e das riquezas, mas antes e acima de tudo da alma, para que ela se torne virtuosíssima. É da virtude que advêm as maiores riquezas. Ora, a alma (psyché) é aquilo que em nós participa do Divino e é o que em nós tem o domínio. Platão compreendeu isso e insistiu no fato de que Sócrates, ao contrário dos sofistas, tendo compreendido que o homem se distingue de qualquer outra coisa pela sua alma, pôde determinar qual era a areté (excelência, virtude) humana. Ela é o que permite à alma ser boa, ser aquilo que pela sua natureza deve ser. Destarte, cultivar a areté ou virtude significa tornar boa a alma; significa realizar plenamente o eu espiritual, de sorte a alcançar o fim próprio do homem e também a felicidade.
A virtude, para Sócrates, é ciência (epistéme) ou conhecimento. O contrário da virtude é o vício. O vício é a privação da ciência ou do conhecimento, a saber, a ignorância. Se o homem é sua alma, e se a alma é o seu eu consciente e inteligente, então a virtude é aquilo que atualiza plenamente essa consciência e inteligência, isto é, a ciência ou o conhecimento. Eis, portanto, qual é o maior valor para o homem: o conhecimento. É o conhecimento que faz a alma ser aquilo que ele deve ser e que realiza o homem, cuja essência é a alma. Como pondera Reale (ibid., p. 101), “Sócrates revoluciona assim a tradicional tábua de valores à qual até então se atinha toda grecidade (...)”. Os valores fundamentais da tradição eram aqueles, sobretudo, vinculados ao corpo, quais sejam, a vida, a saúde, a beleza, o vigor físico, ou  os bens exteriores como a riqueza, o poder, a fama e congêneres. É clara a superioridade hierárquica da alma em relação ao corpo e a identificação da essência do homem e do verdadeiro homem com a alma e não mais com o corpo. Os valores da alma situam-se num plano ascendente e, em particular, os valores da ciência superam todos os valores ligados ao corpo. Entretanto, não devemos concluir daí que Sócrates tenha rejeitado totalmente os valores tradicionais. Apenas Platão o fará, ao distinguir entre alma e corpo e ao advogar que o corpo está hierarquicamente subordinado à alma. Na verdade, Platão contraporá o corpo à alma. É de Platão a imagem do corpo como cárcere da alma, ou prisão da alma. Sócrates, de fato, subordinou os “bens” tradicionais da grecidade ao seu bom uso, e manteve que o bom uso depende exclusivamente do conhecimento e da ciência. A ciência é um bem; a ignorância, um mal. Essa será a consequência da tese socrática que sustenta a sua teoria ética a virtude é ciência.
Cuido conveniente fazer aqui uma breve écbase a fim de esclarecer o que os antigos entendiam por “ciência” e, em particular, qual é o objeto da ciência-virtude no pensamento de Sócrates.
Os gregos chamavam “ciência” ou épisteme ao conhecimento teórico das coisas mediante raciocínios, provas e demonstrações. Épisteme é também conhecimento teórico por meio de conceitos necessários e universais. Épisteme é conhecer pelo pensamento, é ter um conhecimento por meio do raciocínio. Em Platão, a ciência ou épisteme tem como objeto o Mundo Inteligível, as Essências (eidos). Épisteme é aí conhecimento das Realidades verdadeiras, do que existe em si, do Ser ou também dos Seres. Para Platão, que opunha ciência a dóxa (opinião), a ciência visa o Ser absoluto, ao passo que a opinião tem por objeto o ser relativo, as aparências.
Retornando à questão socrática da identidade entre virtude e ciência, deve-se ter em mente que a tese socrática virtude é ciência implica, em primeiro lugar, a reunião das virtudes tradicionais, tais como a sapiência, a justiça, a sabedoria, a temperança, a fortaleza sob o domínio de uma única virtude, a saber, a da ciência ou do conhecimento. Ademais, a tese socrática virtude é ciência implica a redução do vício à ignorância, que é o contrário do conhecimento. Segue-se daí a conclusão de que quem faz o mal o faz por ignorância e não porque queira o mal sabendo que é mal. Assim também, não é possível fazer o bem sem conhecê-lo. Para Sócrates, portanto, a virtude é conhecimento, é ciência, mas não qualquer conhecimento ou ciência. A virtude é a mais elevada e sublime ciência: a ciência do que é o homem e do que é bom e útil ao homem.
Em suma, o verdadeiro eu do homem repousa na sua alma, no seu espírito, e a alma é a sede de todos os valores mais tipicamente humanos. Por conseguinte, os verdadeiros valores são os valores da alma, para Sócrates.


3.2. A dialética socrática

O diálogo é a medicina socrática da alma. A dialética socrática é o método dialógico de Sócrates que tem, fundamentalmente, finalidades de natureza ética e educativa. Somente, em segundo lugar, tem finalidades de natureza lógica e gnosiológica. A dialética socrática visa a exortar o homem à virtude, visa ao convencimento do homem de que a alma e o cuidado da alma são o sumo bem para o homem. A dialética socrática visa à purificação da alma por meio de perguntas e respostas que servem para libertá-la dos erros e torná-la inclinada à verdade.
Da alma, da alma individual só se cuida com o diá-logo, ou seja, com o lógos que, mediante perguntas e respostas, leva mestre e discípulo a uma experiência espiritual única de pesquisa em comum da verdade. Em face de um interlocutor, Sócrates buscava suscitar-lhe o desejo de saber – tal como o médico suscita no paciente o desejo de cura. A medicina socrática da alma afirma que a verdade existe e que podemos conhecê-la. O verdadeiro e o falso, bem como a mentira e a contradição, estão em nós, em nossa alma. A verdade provém de nossos juízos sobre as coisas. Se a maioria dos homens tem dificuldade de encontrá-la, é que eles vivem como autômatos que obedecem cegamente às regras e aos costumes de sua sociedade e acolhem passivamente os preconceitos socialmente estabelecidos.
O método socrático, expressando-se na forma de diálogo, consta de duas partes. Na primeira parte, chamada protréptico, que é exortação, Sócrates convida seu interlocutor a filosofar, a buscar a verdade. Na segunda parte, chamada élenkhos, isto é, indagação, Sócrates elabora perguntas e comenta as repostas, tornando a perguntar, num processo dialógico no qual orienta o interlocutor na busca da definição da coisa procurada.
O élenkhos é dividido em duas partes, as quais, reunidas, constituem o método socrático. Na primeira parte, tendo feito a pergunta, Sócrates comenta as várias respostas oferecidas, com vistas a mostrar que elas são sempre preconceitos recebidos, imagens sensoriais percebidas, ou opiniões subjetivas e nunca a definição buscada. Esta primeira parte é chamada ironia (eiróneia), isto é, a parte destinada à refutação. Pela ironia, Sócrates busca destruir a pretensa solidez dos preconceitos recebidos. Na segunda parte, Sócrates, ao perguntar, vai abrindo caminhos ao interlocutor até que ele chegue à definição procurada. Esta segunda parte chama-se maiêutica (maieutiké), que significa ‘a arte de realizar um parto’. No caso em questão, trata-se da arte de realizar o parto de uma ideia verdadeira.
A ciência ou épisteme socrática resulta de sua dialética. Consoante ensina Aristóteles, a ciência visa a encontrar as definições universais e necessárias das coisas, ou a essência universal das coisas, tornando-a uma ideia passível de ser alcançada pela razão apenas. Assim, a ideia, para Sócrates, manifesta racionalmente o que a coisa é em sua essência universal e necessária, porque apresenta a causa pela qual ela é o que é, por que e como ela é o que é. Ao contrário das definições universais e necessárias que nos dão a essência das coisas, as opiniões são definições parciais, subjetivas, confusas, contraditórias.

3.2.1. O não saber socrático: só sei que nada sei

Se a finalidade da dialética socrática foi revolucionária, igualmente revolucionário é seu ponto de partida. Sócrates assumia constantemente a afirmação de seu não saber, pondo-se em face de seu interlocutor como quem deseja tudo aprender. Contrariamente aos sofistas, em virtude de sua afirmação de não saber, Sócrates negou a pretensão de saber quase ilimitada. Ao assumir, de partida, nada saber, Sócrates denunciou a inconsistência quase total decorrente do fato de o saber próprio dos políticos, dos poetas e cultores de várias artes “patinar” na superfície dos problemas. Sócrates denunciou a presunção deles de saber tudo pelo simples fato de dominarem uma única arte. Mas, além de sua relação com o saber dos homens, o significado do não saber socrático se esclarece em relação com o saber de Deus. Deus é onisciente. Quando comparado à medida do saber divino, o saber humano se revela em toda a sua fragilidade e limitação.

3.2.2. A ironia socrática

Ironia significa dissimulação, e a ironia socrática é um jogo de múltiplos e variados disfarces e fingimentos que Sócrates realizava a fim de fazer com que seu interlocutor se dê conta de seu aparente saber. Pela ironia socrática, Sócrates dá a si, por meio de atos e palavras, uma imagem inconsistente, uma espécie de máscara discursiva, pela qual se mostra amigo do interlocutor, se representa como alguém que admira suas capacidades e méritos, pede-lhe conselho, etc. No entanto, ao mesmo tempo, seu fingimento é transparente e se combina com uma finalidade séria, pois que a ironia de Sócrates é o meio essencial de realização da dialética moral. Nas dissimulações, Sócrates finge adotar as ideias e opiniões do interlocutor (mormente se este é um homem culto), para caricaturá-las ou invertê-las, seguindo a mesma lógica que as tornou possíveis e expondo-lhes a contradição.
Entre as máscaras discursivas empregadas por Sócrates, a principal era a máscara do não saber e da ignorância. E era por meio dessa máscara que Sócrates suscitava a raiva dos adversários. A máscara da ignorância empregada por Sócrates servia-lhe como meio para demonstrar o aparente saber dos outros e de expor-lhes a radical ignorância deles. Por outro lado, era por meio dessa máscara que Sócrates ajudava aqueles que, com plena disponibilidade, entregavam-se ao magistério socrático e aceitavam reconhecer-se como possuidores de um aparente saber. A dialética socrática, enquanto tal, é ironia, ou “a ironia é a cifra da filosofia socrática”. (Reale, ibid., p. 144).


3.3.3. Confutação (élenkhos) e Maiêutica

Vimos que pela ironia Sócrates levava aquele com quem dialogava a reconhecer a própria presunção de saber, ou seja, a própria ignorância. Sócrates começava por exigir que seu interlocutor definisse o assunto que constituiria o escopo da pesquisa; depois aprofundava, de vários modos, a definição, explicitando as falhas, as contradições às quais a definição levava; em seguida, convidava o interlocutor a fazer uma nova definição e, com o mesmo método, confutava-a, até o momento em que o interlocutor se reconhecia ignorante.
Foi justamente o momento confutatório que acarretou a Sócrates as mais severas aversões e as mais duras inimizades, as quais lhe valeram a condenação à morte. E é claro que os medíocres reagiam negativamente a essa confutação; afinal, eram eles que se viam privados de suas ingênuas certeza e segurança de saber. Privados da segurança do saber, os medíocres experimentavam uma crise que se expressava tanto como ofuscamento e desorientação quanto como carência de novas certezas nas quais pudessem encontrar apoio. Tamanha era a soberba dos homens medíocres, que eles se recusavam a admitir que nada sabiam efetivamente, preferindo acusar Sócrates de confundir-lhes as ideias e de entorpecê-los. Disso se seguiu a acusação que recaiu sobre Sócrates de ser ele um semeador de dúvidas e um corruptor da juventude.
Inversamente diferente era, contudo, o efeito da confutação  sobre os homens mais bem predispostos. Neles, ela exercia a purificação ao extirpar as certezas que julgavam ter. Perdê-las não os perturbava, pois que compreendiam estar dispostos no caminho para alcançar a verdade. Ora, enquanto existem na alma falsas opiniões e falsas certezas, é impossível buscar a verdade. Todavia, uma vez que estejam eliminadas aquelas falsas opiniões e certezas, a alma fica purificada e apta para alcançar a verdade – se dela, é claro, estiver grávida. E daqui em diante devemos descer a alguns pormenores sobre a arte da maiêutica socrática.
A alma só pode alcançar a verdade se dela estiver grávida. Enuncia-se aqui, desde o início, a aporia da maiêutica socrática: só algumas almas são grávidas da verdade. Há almas não grávidas da verdade e, portanto, há almas que, por encontrarem-se nessa condição, não podem beneficiar-se da maiêutica, porque incapazes de dar à luz a verdade. Sócrates parece, então, sugerir que nem todas as almas, ou nem todos os homens, são predispostas para, ou estão aptas para a filosofia. A doutrina da maiêutica consiste na arte de fazer a alma dar à luz uma ideia verdadeira. Em trabalho conjunto com Sócrates, o interlocutor é levado a dar à luz ideias próprias e mais fundamentadas. Sócrates era, por isso, conhecido como “parteiro”, já que auxiliava o interlocutor a parir suas próprias ideias. Assim, graças a Sócrates, o interlocutor ia se apossando, progressivamente, da sua própria alma. Esse autoconhecimento é um caminho que implica a definição adequada do significado (ou conceito) das palavras que ele vinha usando de modo entorpecido, sem disso ter consciência clara.
De fato, Sócrates dizia-se ignorante e negava decididamente ser capaz de comunicar aos outros algum saber determinado. Mas, assim como a mulher que está grávida no corpo tem necessidade de obstetra para dar à luz, assim também o discípulo que tem a alma grávida da verdade tem necessidade de uma espécie de parteiro espiritual, que o ajude a dar à luz essa verdade. É esta a função que cumpre a maiêutica socrática: ela pretende parir a verdade de que está grávida a alma.
A maiêutica é a arte de obstetra dirigida à psyché. É a arte dominada por Sócrates que melhor representa o papel central da alma em sua dialética.

3.4 A ética socrática: enkráteia, autarquia e eleuthería

Vimos que virtude, para Sócrates, é ciência do que é o homem e do que é bom e útil ao homem. O indivíduo a quem falta a enkráteia (o autodomínio) está totalmente privado da virtude, já que, carecendo de autodomínio, é o corpo e os instintos que passam a governá-lo. A enkráteia, é, pois, domínio de si quando nos encontramos no estado de prazer e dor, nas fadigas e no movimento dos impulsos e das paixões. A enkráteia ou autodomínio constitui a base da virtude. Deve-se, assim, procurar ter na alma autodomínio, o que significa tornar a alma senhora do corpo, tornar a razão senhora dos impulsos e paixões. Sócrates, ademais, identificou a enkráteia com a ‘liberdade’ ou eleuthería. Destarte, com Sócrates, a liberdade passa a ter um significado moral mais do que exclusivamente político-jurídico.: a liberdade é domínio da razão sobre os impulsos, sobre as paixões do corpo. Liberdade é submeter ao domínio da razão aquela parte de animalidade que há em nós.
Ligado aos conceitos de enkráteia e liberdade (eleuthería), coube a Sócrates cunhar o conceito de autarquia, que designa a autonomia da virtude e do homem virtuoso. São dois os traços semânticos do conceito de autarquia: 1) autonomia em relação às necessidades e aos impulsos corporais, alcançada pelo controle exercido pela razão sobre eles; 2) a suficiência da razão ou da alma para alcançar a felicidade.
Segundo Sócrates, aquele que se deixa arrastar pela satisfação dos desejos e dos impulsos torna-se escravo das coisas, dos homens e da sociedade. Submetido pelas forças que não são controláveis e necessitado de tudo quanto é dificílimo de alcançar, o homem perde a liberdade, a tranquilidade e a felicidade. A autarquia é, portanto, a qualidade, por excelência, do sábio. Dado o fato de que o modo de vida do sábio calca-se sobre o modelo de vida divino, a autarquia do sábio supõe o desdobramento das seguintes teses: 1) é divino de nada necessitar; 2) o divino é a própria perfeição, já que de nada carece; 3) quem está mais próximo do divino está mais próximo da perfeição. Para habitar na vizinhança ou na proximidade com o divino, logo com a perfeição, o homem deve limitar e dominar seus desejos, seus impulsos e tendências instintivas pelo poder da razão.
Recapitulando o que se expôs acerca dos conceitos de enkráteia, liberdade e autarquia, deve-se reter, resumidamente, que enkráteia é domínio da razão e do conhecimento sobre os desejos e impulsos sensíveis; liberdade é a capacidade que tem a razão de impor seu poder e domínio sobe as tendências instintivas de nossa animalidade; e autarquia é independência das necessidades instintivas, é a autossuficiência da razão (lógos) humana. Como observa Reale (ibid., p. 113), “(...) esses conceitos nascem da mesma matriz da qual nasce a doutrina da virtude-ciência e da onipotência da ciência, e carrega a mesma marca”.


4. Considerações finais: a sabedoria socrática

Se, quando consideramos certas tendências do comportamento socrático, o vemos como distando do modelo de vida do sábio, não há dúvida de que o pensamento socrático é um verdadeiro exercício de preparação para a sabedoria. E mais ainda: não deve haver dúvida de que há uma sabedoria socrática, de que a vida de Sócrates foi inteiramente devotada ao exercício da filosofia como modo de ser, como atividade radicalmente transformadora do modo de ser do homem no mundo. Sócrates foi, decerto, o primeiro filósofo a mostrar que a filosofia devia antes levar os homens a perguntar, a colocar questões, mais do que encontrar respostas certas e definitivas.
A sabedoria socrática esteia-se justamente no reconhecimento de que ele nada sabia. Ao afirmar “sei que nada sei”, Sócrates se faz sábio, o mais sábio entre os sábios. Ele foi filósofo, por excelência, o “maior de todos”, diria mais tarde seu discípulo Platão, porquanto exercia a filosofia no sentido pleno da palavra (philo-shopia, amor à sabedoria): mais que um sábio que tudo sabe, ele foi antes o amigo que ama a sabedoria. Por isso, ele a buscou sempre, perguntando mais que respondendo, e levando os outros a perguntarem, mais que lhes oferecendo respostas prontas.
O sábio, então, pelo menos da perspectiva socrática, é aquele que assume sua ignorância e sai em busca do conhecimento, mas não de qualquer conhecimento. Segundo Platão, Sócrates foi profundamente afetado pela frase “conhece-te a ti mesmo”, inscrita no Templo do Apolo em Delfos. A admissão da própria ignorância (“sei que nada sei”) e a busca do autoconhecimento são, portanto, as duas características fundamentais da sabedoria socrática.
O que quer que seja a sabedoria, aquele que a possui é “favorecido pelos deuses”, ou seja, é feliz. Se Sócrates não chegou a dar uma definição de sabedoria, ele estabeleceu sua íntima ligação com a felicidade. Somos tanto mais felizes quanto mais sábios – e não quanto mais jovens, ricos e ilustres. Quando o conhecimento que uma pessoa tem lhe permite conduzir-se bem na vida, essa pessoa pode ser considerada um sábio; afinal, sua sabedoria permite-lhe agir bem e ser virtuosa. A virtude conduz à felicidade, porque leva à prática do bem a si mesmo e ao bem da cidade. O bem da cidade clássica era o respeito às leis, e a contribuição para a elaboração das boas leis era a atitude cidadã por excelência. O sábio é, portanto, feliz porque faz bem a si mesmo (virtude humana, sabedoria) e aos outros (virtude cívica, cidadania).
A condição do agir bem e da moderação é o conhecimento, conforme nos ensina Sócrates. Logo, o conhecimento leva à sabedoria; a sabedoria leva à virtude; e a virtude, por fim, realiza a verdadeira vida feliz.
Por fim, gostaria de acrescentar que o tempo despendido na meditação sobre o pensamento socrático permitiu-me sorver o frescor, o hálito de uma sabedoria que os tempos atuais, em que vigem como critérios do bem viver a utilidade, a produtividade e o consumismo, desconhecem. Se é certo, conforme creio, que nem todo indivíduo é predisposto para a filosofia, é de lamentar que a maioria dos homens e mulheres de nossas sociedades pós-modernas viva alheia a uma sabedoria como a de Sócrates. É oportuno aqui referir o que nos ensina Hadot acerca da (in)utilidade da filosofia. Segundo o autor, “é precisamente o papel da filosofia revelar aos homens a utilidade do inútil ou, caso se prefira, de lhes ensinar a distinguir entre dois sentidos da palavra inútil”.(Hadot, 2014, p. 328). A filosofia é útil ao homem enquanto ele é um ser pensante, mas será um luxo, ou seja, supérflua, “caso se considere como útil apenas o que serve a fins particulares e materiais”. (ibid.).  Hoje, particularmente no Brasil, encontramo-nos num estágio de nossa vida político-cultural em que a filosofia é cada vez mais estranha, mais inaudível nos espaços públicos onde pululam, com cada vez mais força e vigor, o obscurantismo, a intolerância e a violência em todas as suas formas. Nosso país é presidido e governado por autoridades que, na grande maioria, são obtusas e avessas à norma básica da constituição do discurso filosófico, nomeadamente do discurso socrático: o diálogo, cujo fim último é levar as consciências a reconhecer que não sabem o que pensavam saber. O falatório generalizado das mídias sociais, a predominância das opiniões falsas que circulam entre as manadas de homens desprovidos de qualquer senso crítico, a crescente onda das chamadas fake news que entorpecem e asfixiam o bom senso são sinais da decadência intelectual e do empobrecimento ético do modo de ser e de viver de nossos governantes e governados. Mas, com o mesmo vigor resistente do samba, a filosofia agoniza mas não morre e por muito tempo ousará proclamar aos homens de negócio a necessidade dignificante do ócio. Deixo aqui resplendecer, nas palavras de Hadot, a glória da filosofia:



“A glória da filosofia, responderão alguns filósofos, é precisamente ser um luxo e um discurso inútil. Primeiramente, se não houvesse senão o útil no mundo, o mundo seria irrespirável. A poesia, a música, a pintura, elas também são inúteis. Elas não melhoram a produtividade. Mas são, todavia, indispensáveis à vida. Elas nos libertam da urgência utilitária. É, igualmente, o caso da filosofia. Sócrates, nos diálogos de Platão, ressalta a seus interlocutores que eles têm todo o tempo deles para discutir, que nada os apressa. E é bem verdadeiro que, para isso, é preciso ócio, como é preciso ócio para pintar, para compor música e poesia. (ibid.).


É preciso, por fim, dizer aos modernos de hoje que o discurso filosófico, tal como se constituiu na filosofia antiga, não é um fim em si, mas está a serviço da vida filosófica. Como lembra Hadot (ibid., p. 330), “toda a Antiguidade reconheceu que Sócrates foi filósofo, mais por sua vida e por sua morte que por seus discursos. E a filosofia antiga permaneceu sempre socrática na medida em que ela sempre apresentou a si mesma como um modo de vida, mais que como um discurso teórico”.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Edson Bini. Bauru, SP: Edipro, 2013.
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
HADOT, Pierre. O que é filosofia antiga. São Paulo: Edições Loyola, 2010.
_____________. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. São Paulo: Realizações, 2014.
REALE, Giovanni. Sofistas, Sócrates e Sócrates menores. São Paulo: Edições Loyola, 2009.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

“O importante não é viver, mas viver bem” (Sócrates)


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                   Sobre o modo de vida superior


Começo por colocar aquilo que me proponho dizer em perspectiva. Não acompanho Deleuze, ao sustentar que “o filósofo é o amigo do conceito”. Não pretendendo fazer aqui um  arrazoado crítico da concepção deleuzeana de filosofia, contento-me em afirmar meu completo desacordo com Deleuze no que tange à redução que faz da filosofia a uma atividade de produção de conceitos. O filósofo não é mero criador de conceitos, embora criar conceitos faça parte de seu trabalho. Mas Deleuze não capta o que me parece ser o essencial da vida filosófica, do modo de ser ‘filosófico’.
Concordo, por outro lado, terminantemente, com Pierre Hadot, ao advogar que a filosofia é exercício espiritual destinado a cunhar modos de ser. A filosofia era experienciada na Antiguidade como "maneira de viver". Disso se segue que o filósofo é, ao mesmo tempo, aquele em cujo ser se exterioriza a maneira de viver filosófica e o guardião do modo de viver filosófico. Tendo a acreditar também que a filosofia, conquanto, originalmente, pretendesse conquistar as esferas da vida cotidiana, apresentando-se como uma série de questões formuladas por Sócrates ao homem comum, habitante e transeunte do "mundo da rua", ela, a filosofia, é uma experiência espiritual aristocrática. Não creio na possibilidade de "democratização da filosofia". Nem todos são capazes de filosofar. Pode-se discutir as razões por que a filosofia não é uma experiência acessível a todos; mas dificilmente se poderá negar a estranheza entre o exercício da filosofia e o homem comum. Tendo a aceitar a ideia de que o filósofo é um ser que vive à parte, não divorciado do real, como, aliás, pensa equivocadamente os não filósofos (a maioria esmagadora dos homens). Ele é um ser que vive à parte, porque, como pretendia Nietzsche, é quem deve afirmar-se como "espírito livre", a saber, aquele cujo modo de viver liberou-se da tradição, aquele que pensa de maneira diferente do que se poderia esperar; é ele quem questiona os valores do seu tempo e desvela o fundamento das crenças vulgarmente aceitas como "verdadeiras" e "inquestionáveis".
“O importante não é viver, mas viver bem”, disse Sócrates. Quase sempre, quando sou instado a prestar algum esclarecimento sobre para que me serve a filosofia, defronto-me com a persistente incompreensão de meu interlocutor – incompreensão esta cuja rígida espessura se conserva na persistência com que vigora um estado de profunda ignorância largamente compartilhada pelo homem comum acerca do valor existencial da filosofia. Em face dessa incompreensão inveterada do que faz um filósofo, do que é a sua atividade, sinto que os que se dedicam à experiência filosófica, ao estudo da filosofia, sinto que aqueles que tomam a vida filosófica como um modo de vida superior, habitam um mundo diverso do mundo habitado pelo homem comum. É claro que, na maioria das vezes, também o filósofo compartilha esse mesmo mundo comum da cotidianidade mediana com os demais homens, para os quais esse mundo esgota toda a extensão e complexidade do real. Mas sempre que ouso dizer “bem, o real é muito mais extenso e complexo que esse mundo cotidiano”, o choque, a colisão entre os dois mundos é inevitável. E a incomensurabilidade entre eles se torna evidente e insuperável. Donde advém a certeza que me é assegurada pelo sentimento que se me irrompe no espírito e o qual expresso do seguinte modo: pareço viver como um esquizofrênico, ou seja, cindido entre dois mundos – o mundo da filosofia e o mundo do senso comum. Como na maior parte do tempo convivo com aqueles que vivem e pensam segundo os padrões do senso comum, tenho necessidade premente de, na ausência daqueles que integram o círculo fechado dos “eleitos da filosofia”, refugiar-me na ocupação diária com os livros, ocupação, aliás, que se me afigura como um ato de resistência à impregnação da idiotice e vulgaridade das formas de existência do homem espiritualmente embotado pelas formas de vida em nossas sociedades da hipercomunicação, reproduzidas em redes de relacionamentos digitais - viveiros dos lugares-comuns, máquina da reprodução em massa dos clichês - esses cemitérios de significado. Todo clichê é sinal de empobrecimento de significado, de esvaziamento de sentido; é a própria morte da profundidade. Entendo bem Nietzsche, quando buscava apartar-se das multidões para viver recluso na sua fecunda solidão, própria, aliás, dos espíritos livres.
Termino, pois, este atestado de fidelidade ao modo de vida filosófico com estes meus dois aforismos, que me brotaram como duas flores na vastidão de um terreno árido e desértico. Eles me reconduzirão ao silêncio próprio daqueles que vivem imersos na ocupação com a leitura, mas não o farão sem a promessa de que esse silêncio será, em breve, interrompido para que se faça auscultar o Lógos da necessidade da filosofia.

Da necessidade da filosofia

Depois de Nietzsche, pretender que a filosofia é a busca da verdade é sinal de um inveterado mal-entendido; no entanto, me parece ainda justo falar da filosofia como uma experiência de profunda intimidade com o saber. O filósofo continua sendo o verdadeiro amigo do saber, aquele para quem a vida deve pôr-se a serviço da sabedoria, e a filosofia deve conduzi-lo na determinação da melhor maneira de viver. Na origem da filosofia, não só persiste a evidência de que há diferentes maneiras de viver, como também era evidente que algumas maneiras de viver eram inferiores e outras superiores. A filosofia era então procurada por aqueles que desejavam se tornar os melhores seres humanos e viver tão bem quanto um ser humano pudesse viver. Justificar uma forma de vida superior equivale, portanto, a justificar a própria necessidade da filosofia.

Da maturidade de espírito

A maturidade de espírito não é uma conquista da idade avançada; ela pode se dar em tenra idade, antes mesmo de aprendermos a fazer contas. O ápice da maturação espiritual se atinge quando cada um descobre, por intuição, sua irrelevância. É sinal de maturidade de espírito ousar dizer a si mesmo, todas as manhãs, "cosmologicamente, sou um ser irrelevante". A filosofia vem, em seguida, em socorro daqueles que, alcançado a beatitude de tal conhecimento, pretendem dignificar a irrelevância cósmica de sua existência, precária e sem sentido último.