Manual contra a
megalomania humana em uma lição
E pensar que, estando eu diante de outro ser humano enfatuado e crente
de sua ancestralidade divina, exibindo seu ego hipertrofiado, vejo diante de
mim apenas uma forma orgânica complexa que evoluiu, ao longo de milhões de
anos, a partir de uma célula bacteriana.
A LUCIDEZ NIILISTA
No meu esforço
por pensar o niilismo como campo hermenêutico, como um fenômeno
histórico-antropológico que diz respeito à constituição social do homem como
ser alienado de sua condição natural e animal, tenho como escopo o modo como as
significações instituídas, geradas na instituição do imaginário-simbólico,
produzem o homem, cunham seu modo de ser imaginário, um modo de ser que se
representa na ilusão de sua superioridade em relação aos demais seres vivos. É
necessário, para tanto, compreender como as significações, como a linguagem
simbólica, sem a qual aquelas não seriam possíveis, constituem o homem como um
ser à parte, como um ser que se acredita divorciado do resto da vida natural e
animal, da totalidade cósmica. Como lembra Castoriadis, a significação apenas
parece estar ligada a algo - ser natural, objeto material fabricado, entidade
lógica. Esse “algo” só tem “ser” para uma sociedade que o investe de
significado. Fora da significação, esse “algo” simplesmente não existe para a
sociedade em questão. As signifcações imaginárias centrais ou primárias -
ensina-nos Castoriadis - é que criam os objetos que se dão à cognição humana.
Essas significações primárias organizam o mundo - mundo “exterior” à sociedade
e o mundo social propriamente dito, estabelecendo entre eles uma relação
recíproca. Um exemplo de um objeto criado pelas significações instituídas no
social-histórico é Deus. Lembra Castoriadis que Deus carece de referente. Deus
tem apenas um significado como Deus; e esse significado aparece cada vez que é
reproduzido, reativado, “posto” pela sociedade - e eu diria - em suas práticas
discursivas. O que me interessa, especialmente, enquanto questão fundamental da
abordagem do niilismo como processo de desmitificação do homem, está bem
resumido no seguinte passo de Castoriadis:
“ O “referente” que seriam as representações individuais de Deus (ou dos
deuses) é criado mediante a criação e a instituição desta significação
imaginária central que é Deus. A significação Deus é ao mesmo tempo criadora de
um “objeto” de representações individuais e elemento central da organização do
mundo de uma sociedade monoteísta, posto que Deus é colocado como ao mesmo
tempo fonte do ser e ente por excelência, norma e origem da Lei, fundamento
último de todo valor e pólo de orientação do fazer social (...)”. (p. 407).
Entendo que “ser
colocado como fonte do ser e origem da Lei” quer dizer é criação do
imaginário-simbólico instituído pela sociedade. É nesse sentido que falo de
Deus como ficção tanto quanto é ficção a ordem jurídico-legislativa. Tanto um
quanto a outra são efeitos, produtos do magma de significações imaginárias
sociais que forma, por assim dizer, as “entranhas” do próprio fazer social.
Importa, tendo em
vista o exemplo da instituição de Deus como objeto de um imaginário social,
pensar o niilismo como um fenômeno inerente ao trabalho genealógico (de
inspiração nietzscheana) que se interroga sobre as origens da significação e
sobre seu funcionamento como dimensão essencial do mundo experienciado pelo
homem. Bem entendida essa ligação inerente entre niilismo e projeto genealógico
que interroga o modo de se dar a significação, é fácil estabelecer uma
continuidade de sentido (coerência) entre a minha proposta de interpretação do
niilismo e o que Giacoia diz acerca do modo como Nietzsche o entendeu, a saber,
como “experiência histórica da ausência de fundamento”. Se o niilismo expressa
a ausência histórica de fundamento, é porque o niilismo desvelou o caráter de
constructo, de ficção, de significação fabricada do próprio fundamento cujo
valor a tradição metafísica postulou como transcendente ao homem e ao mundo. O
que chamo de Lucidez niilista nada mais é, portanto, do que a exposição, o
desvelamento dos mecanismos imaginário-simbólicos que estão na origem de tudo
aquilo que o homem concebe e trata como algo que se originou de uma instância
estranha a ele, quer seja esta instância a objetividade de uma ordem social que
se impõe a ele como já pronta, definida e rígida desde sempre, quer seja esta
instância um ‘lugar’ metafisicamente imaginado.
SEDUÇÃO VERBAL
Do latim seductio -onis, sedução significa ‘separação’ ‘tomar à parte’. Dutcio formado a partir de ducere, forma arcaica de dūcō, que significa ‘conduzir’, ‘levar’,
‘puxar’, ‘atrair’, tem também o sentido poético de ‘escrever’, ‘compor’. O
verbo ou a linguagem verbal seduz, portanto, quando nos aparta, nos separa do
mundo comum do trabalho, da cotidianidade mediana. Ela nos seduz porque nos
conduz para outros lugares simbólico-imaginários, porque nos leva para longe
deste mundo das ocupações que compartilhamos com os demais seres humanos (
mundo das contas que nos fazem ser sempre endividados até o túmulo, da azáfama
do dia a dia, que nos põe na condição de operários a cumprir prazos de um tempo
fugidio). A sedução verbal é o deleite com a concatenação dos signos, com a
articulação de significantes pelos quais vazam significados imprevistos,
escorregadios, não totalmente controlados . Na sedução verbal, experiencia-se o
êxtase da incompletude que constitui a linguagem, o êxtase da impossibilidade
de esgotar o sentido, mesmo com a pretensão de gozá-lo. A linguagem nos
constitui como animais excêntricos, extravagantes, não fixados, como animais
que se habituaram a crer que o mundo da linguagem é coextensivo à realidade
como um todo, que este mundo do discurso totaliza tudo que há. Paul Veyne,
referindo-se à noção de discurso em Foucault, comparava os discursos a
aquários: o homo loquens é como peixes no aquário. Somos prisioneiros desse
aquário (discurso) cujas paredes sequer percebemos. Não temos acesso à verdade
“verdadeira”, a um mundo já ordenado atrás e para além do discurso.
Mas há os que, cientes disso, jogam o
jogo da sedução verbal como a criança que forja mundos imaginários pelo puro
prazer de brincar; e há aqueles que, compondo a maioria dos animais simbólicos,
creem que a sedução verbal os levará a acocorar-se junto à verdade. Estes se
deixam seduzir pelos trajes metafísicos que insinuam a nudez da linguagem. Mas,
tão logo se detenham a examiná-la, descobrem que a linguagem nada tem a
desvelar, que um signo tem como interpretante outro signo num processo
semiótico ad infinitum, no qual “a
coisa” mesma que se esconde sob máscaras, sob disfarces, não é ela mesma, mas
outro signo; estamos sempre em busca de um objeto perdido que, na verdade,
nunca existiu; buscamos algo por trás da semiose que insiste a furtar-se a nós,
porque não há este algo que surpreenderíamos por trás da trama simbólica. A
sedução verbal é uma promessa de completude, de deleite pleno lá onde o que nos
aguarda é a incompletude e o fracasso de quem busca o impossível.
NIETZSCHE COMO
ANTIMETAFÍSICO
UM DIÁLOGO
De acordo: pode-se ser ateu e, não
obstante, pensar Deus como problema filosófico. Mas, nesse caso, Deus é pensado
como ideia ou conceito. Nietzsche negou todas as objetividades da metafísica,
Nietzsche negou a metafísica e sua pretensão de absolutizar os valores, de
tomar como coisas existentes em si e por si mesmas o que é da ordem das ficções
humanas. Para Nietzsche, o homem inventou a metafísica porque não suporta a sua
finitude, porque não suporta o efêmero, porque teme a própria morte. Divino,
Deus, Sagrado são ideias, ou ficções humanas, ficções (no sentido etimológico
de “criação, fabricação”) de cuja origem o homem não se reconhece como agente.
O sagrado é um valor que o imaginário-simbólico constitutivo da ordem social
objetivou, de modo que os seres humanos não mais o reconhecem como valor
instituído pela própria atividade deles. Nietzsche, nesse sentido, foi o grande
desmitificador do homem, aquele que pretendeu levar o homem a se aperceber de
que aqueles supremos valores em que até então acreditaram como existentes
independentemente de si e em nome dos quais a existência humana se orientava,
se normatizava eram criações suas; e não só: - eram criações que enfraqueciam a
vida, que a negavam. O Deus cristão bem como a moral cristã para Nietzsche, eram
a antítese da vida. Nietzsche foi um antimetafísico contumaz: em sua crítica
corrosiva da metafísica platônico-cristã, ele nos fez ver duas coisas: 1) que
tudo aquilo que a metafísica tomava como dotado de caráter de substância, de
essência, ou seja, como coisas que existem por si e em si mesmas, são ficções
simbólico-imaginárias, são produtos da atividade humana; 2) que aquelas ficções
da metafísica se instituíram contra a vida, que aquelas ficções levaram ao
adoecimento do animal humano e ao enfraquecimento da vontade de potência ou da
própria vida. Em nome daquelas ficções em cuja origem o animal humano não se
reconhece como criador, o homem se pensou como um ser superior na natureza, o
homem se acreditou como ser dotado de algum privilégio metafísico, o homem
negou em si a animalidade e a vida mesma. Portanto, a metafísica edificou
catedrais como signos da elevação metafísica do homem, como signos da crença
humana em sua superioridade em relação ao todo natural existente. As catedrais
são signos da megalomania metafísica humana. Em suma, eu diria a você, que
também em nome do sagrado o homem se sacralizou, se distanciou de suas origens
animais, se compreendeu como o ser superior em relação aos demais seres, negou
a vida instintiva. E isso Nietzsche não perdoou. Se Nietzsche disse só
acreditaria num deus que soubesse dançar, é porque um deus dançarino é a
antítese do Deus metafísico, o deus da dança é deus da potência, da alegria, é
deus do movimento, do devir, é deus da leveza que quebra a tirania do
ressentimento, que supera o dualismo entre o mundo verdadeiro e o mundo
aparente. O Divino, em Nietzsche, só poderia ser pensado nesse registro da
superação da forma-homem cunhada pela tradição metafísica. Toda tentativa, meu
caro amigo, de conciliar, de algum modo, Nietzsche com a metafísica e suas
criações é não só não compreender profundamente Nietzsche, como também
distorcer sua obra. Até hoje, não ousamos realizar a grande transfiguração
pretendida por Nietzsche no modo de ser do homem, até hoje não ousamos dar à
luz este novo homem que Nietzsche imaginou, que Nietzsche desejou: um homem
verdadeiramente livre e conciliado com a vida e com sua existência mundana.