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quarta-feira, 15 de setembro de 2021

"Todos os seres vivos são membros de comunidades ecológicas ligadas umas às outras numa rede de interdependências" (Fritjof Capra)

 



LIVRANDO-ME

 

            Quando um livro se nos abre, um vasto e complexo mundo se abre também; mas este mundo que se abre em sua complexidade e vastidão não se põe ao sujeito leitor como um simples objeto a ser esquadrinhado, inspecionado, examinado, conhecido. O mundo que se abre, que se desvela no folhear das páginas de um livro, é um mundo como campo de possibilidades de experiências afetivas, cognitivas, linguísticas, dialógicas que nos inundam todo o corpo, até o profundo de suas camadas nervosas, sensoriais, emocionais. Livros não são objetos de consumo, os quais se deterioram no próprio ato de consumo. Livros são espaços de experiências cognitivas, afetivas, culturais dialogais. O mundo que se nos abre na abertura de um livro é um mundo que nos desabitua, que nos desloca, que nos retira do conforto do mundo comum cotidiano em que costumeiramente nos instalamos e em cuja superfície perambulamos, tagarelamos e vivemos a vida rala e rasa através das lentes do senso comum. Quão custoso me é externar minha paixão (páthos) pelos livros, minha afeição (philotés, philía) ao bem de que eles me dão regozijar! Quão custoso me é tornar inteligível ao outro esta minha cumplicidade fisiológica, biológica com os livros, este meu dispor-se afetuosamente a eles com a gratuidade e a alegria dos enamorados! Que fique, ao menos, claro que, para mim, os livros não são utensílios, objetos de que me sirvo para atingir fins determinados; a vida sem a leitura é, para mim, empobrecida, é uma vida esquálida, é uma vida atrofiada, uma vida desperdiçada em seu tempo finito, de uma longenvidade tão incerta; é uma vida amputada em suas capacidades de autopoiese; é uma vida deficitária, uma vida que se vive sob o modo da insuficiência; é uma vida que se arrasta, que se leva adiante por uma simples indisposição para com a morte. Que me perdoem se tomo aqueles que não comungam deste meu vínculo afetivo com os livros, que vivem divorciados da intimidade do convívio com eles, como miseráveis a mendigar e a ruminar as sobras de um mundo limitado, esquemático, simplificado pelas telas do viver comum; perdoem-me se os tomo por prisioneiros de um mundo visto pelas grades estreitas da cotidianidade fragmentada pela hiperinformatividade de nossas sociedades digitais. Pudera que todos, sem exceção, se tornassem leitores-amantes, que deixassem de ser meros consumidores de informação, de corpos-imagens, de vidas estranhas celebrizadas, do banal espetacularizado, do mundo das marcas-sonhos sem alma, para se tornarem habitantes de um outro mundo - mais vasto, mais complexo, mais profundo, mais vigoroso, mais potente, pleno de intensidades afetivas e ilhas de conhecimento: o mundo dos corpos-leitores.

 


DESCULPE-ME, VOCÊ NÃO É A COROA DA CRIAÇÃO

 

        A visão mecanicista de mundo da física newtoniana e a visão mecanicista da vida de Descartes há muito foram superadas. No século XXI, em que se tornam cada vez mais flagrantes os problemas sistêmicos que ameaçam a vida em nosso planeta, predomina, nas ciências físicas e biológicas, a visão sistêmica de mundo, calcada sobre uma ecologia profunda. Do ponto de vista sistêmico, as únicas soluções possíveis para os problemas de nosso tempo - energia, degradação do meio ambiente, mudança climática, segurança alimentar e financeira -, são soluções sustentáveis. Uma sociedade sustentável significa uma organização social cujas atividades econômicas, comerciais, tecnologias e estruturas físicas não ameacem a capacidade inerente da natureza de sustentar a vida. Contrariamente à metafísica ocidental, que com Descartes, no século XVII, entronizou a consciência como a parte distintiva e mais elevada do homem, a ponto de considerar os animais não-humanos como meras máquinas, a visão sistêmica de mundo e a ecologia profunda de que se nutre preconizam que a consciência e a cognição não são privilégios humanos. Na visão sistêmica da vida, desenvolvida por estudiosos como Humberto Maturana e Fritjof Capra, o ser humano, como todo organismo vivo, está imerso em interações mútuas com a totalidade da vida no planeta; o homem é um fio da teia complexa da vida. A dicotomia metafísica cartesiana entre “coisa pensante” e “coisa extensa” é puro devaneio idealista. Como ensina Maturana, a cognição é uma atividade intrínseca ao processo da vida, ela está implicada na autogeração e na autoperpetuação das redes vivas. Plantas, animais e seres humanos são dotados de cognição e interagem cognitivamente com o ambiente em que vivem. Assim, vida e cognição são inseparáveis: “toda a estrutura do organismo participa do processo de cognição, quer o organismo tenha ou não um cérebro e um sistema sistema nervoso”. A consciência é um fenômeno emergente; é um tipo especial de processo cognitivo que se desenvolve quando a cognição alcança certo nível de complexidade. A cognição é um fenômeno mais amplo do que a consciência. É um preconceito metafísico separar os organismos vivos entre os que possuem consciência e os que não a possuem. Como fenômeno emergente, a consciência foi se complexificando e se diferenciando apenas em termos de graus entre os organismos vivos. O que se segue vale tanto para nós, macacos pelados, quanto para outras espécies de animais e plantas: “ as interações de um sistema vivo com seu meio ambiente são interações cognitivas, e o próprio processo de viver é um processo cognitivo”. Seguem-se da visão sistêmica da vida alguns postulados que não podem mais ser ignorados:

1. O planeta Terra é um sistema vivo e autorregulador;

2. O mundo material é uma rede de interações, de padrões;

3. O cérebro, o sistema imunológico, cada tecido corporal e cada célula é um sistema vivo e cognitivo;

4. A evolução não é mais concebida como luta competitiva pela sobrevivência, mas uma espécie de dança cooperativa, na qual a criatividade e a constante emergência da novidade são forças propulsoras.

 




sexta-feira, 4 de outubro de 2019

"A ilusão é uma fé desmedida". (Balzac)


                                  Resultado de imagem para animal humano

                           POR UMA NATURALIZAÇÃO DO HOMEM

         A maneira como tenho procurado pensar apropriativamente o niilismo, reinscrevendo-o num campo de determinação semântica, à luz do qual ele vai-se descortinando como campo de expressões dinâmicas, de forças contestatórias, fenomenicamente multívocas, devenientes, plásticas, capazes de pôr-se a serviço da crítica e negação de toda interpretação/compreensão antropomórfica, antropocêntrica da vida tem como fito fazer notavelmente operante a Lucidez niilista, a qual, muito embora lastreada por uma negatividade radical, declara guerra a todas as ilusões antropomórficas em relação às quais a vida e a existência são avaliadas na tradição metafísica ocidental. Trazendo à luz o caráter ficcional das instituições humanas nas quais se organiza a realidade social, em cujo cerne está o mundo simbólico que dá sustentação à existência humana, o niilismo, tal como entendo, apura a percepção, refina o olhar, a fim de que se torne visível e reconhecível o mundo como uma pluralidade de ambientes cada qual se constituindo como uma unidade funcionalmente fechada, mas solidária, resultante de seleção prévia de uma série de elementos ou marcas, as quais, por seu turno, são objetiva e funcionalmente relacionados com os órgãos receptores dos animais não humanos, os quais percebem a marca e reagem a ela.

       O niilismo, realizando seu ataque às interpretações antropomórficas da vida, lança luzes sobre a existência de outros mundos, tempos e espaços em que se movimentam outros seres viventes. A abelha e a mosca que observamos voar em torno de nós não se movem no mesmo mundo em que vivemos. O que chamamos de 'mundo' é um complexo diverso e diferenciado de outros infinitos e até microscópicos mundos. A pluralidade dos mundos tem primazia sobre a unidade; o multi-verso, sobre o uni-verso; a diferença sobre a identidade. É preciso, assim, distinguir entre o espaço objetivo no qual vemos mover-se um vivente e o mundo ambiente constituído por uma série de 'portadores de significados', em relação aos quais se orientam os animais e os animais humanos. Também nós, animais humanos, nos movemos nesse mundo significativamente ordenado, e nosso mundo humano não tem qualquer privilégio sobre os demais mundos. Mesmo o mundo objetivo varia segundo o ponto de vista a partir do qual o consideramos. Existe, assim, uma floresta-para-o-guarda florestal, uma floresta para-o-lenhador, etc. Mesmo o caule de uma flor-do-campo, na qualidade de portador de significado, constitui a cada vez um elemento diverso, diferente em um ambiente diverso.
            


            

quinta-feira, 4 de julho de 2019

"O homem quer ser um deus com o equipamento de apenas um animal, e por isso vive de fantasias" (Ernest Becker)




                                    Imagem relacionada

                                 


                                        O ANIMAL DOENTE

                                  O HOMEM COMO DOENÇA DA TERRA


                                                          
                                                           
                                                            PARTE 2





1. A má consciência: inibição dos instintos              


Doravante, o que estará sob foco de nossa análise é o problema da má consciência, explorado por Nietzsche na Segunda Dissertação da Genealogia. O que nos chama atenção, tão logo nos aproximamos do tratamento dispensado por Nietzsche ao problema da “má consciência”, é o fato de ela formar-se a partir de um conflito entre impulsos instintivos e imposições sociais.  A má consciência é o efeito colateral do processo de domesticação social a que é submetido o homem. Para integrar-se na ordem social, o animal humano precisa ser educado em práticas disciplinadoras, castradoras de suas tendências agressivas, antissociais. É difícil evitar a tentação de aproximar as interpretações de Nietzsche e de Freud, à medida que se vai descobrindo que o tratamento dispensado por Nietzsche ao tema da má consciência parece prefigurar um horizonte de intuições valiosíssimas que viriam a dar corpo à teoria freudiana das neuroses. No entanto, evitaremos aqui ler a concepção nietzschiana de má consciência à luz da teoria das neuroses de Freud. Em todo caso, registre-se que Nietzsche soube ver muitos aspectos da neurose que Freud viria a estudar e aprofundar na Psicanálise, tais como conflitos entre o medo, a ira (agressão) e sentimento de culpa.[1] Evitaremos o uso do vocábulo “neurose” para nos referirmos aos sintomas da má consciência, já que não queremos sugerir que se tome a má consciência por neurose[2].
A fim de que possamos compreender o que é a má consciência e qual é a sua gênese, é necessário, primeiramente, compreender o que Nietzsche entende por consciência[3]. Em A Gaia Ciência, se topa um fragmento em que Nietzsche nos diz, inicialmente: “A consciência é o último e derradeiro desenvolvimento do orgânico e, por conseguinte, o que nele é mais inacabado e menos forte”.[4] A consciência não é uma faculdade superior; não se opõe ao corpo; não se identifica com um “eu”, tampouco controla a vida orgânica do vivente. A consciência é produto de processos orgânicos, é instinto entre outros instintos – um instinto, é verdade, que, segundo Nietzsche, foi tomado como instinto predominante sobre os outros.
Recorde-se que Nietzsche pensava a vida como um combate incessante de forças (e estamos autorizados a dizer: de instintos). A consciência, na medida em que é produto do desenvolvimento do orgânico, é marcada por um incessante combate. A consciência é também corpo, muito embora tenha instrumentalizado o corpo. É assim que a consciência pode sentir-se como “pessoa” ou “sujeito” e, portanto, como superior ao corpo.
Essas considerações sobre a consciência, à luz da compreensão nietzschiana, deverão ser suficientes para os nossos propósitos. Não posterguemos mais a consideração do problema da má consciência. Começaremos por compreender a sua gênese, esforço este que deverá nos encaminhar, segundo pretende Nietzsche, ao desenvolvimento da relação entre “credor” e “devedor” e o consequente aparecimento do sentimento de culpa.


1.2. A relação contratual entre credor e devedor

A relação entre credor e devedor constituirá o quadro teórico à luz do qual Nietzsche explicará a origem do  conceito moral de culpa, a funcionalidade da aplicação do castigo, a equivalência entre dor e dano e o consequente desenvolvimento da má consciência.
Segundo Nietzsche, a origem do conceito moral de culpa está no conceito muito material de dívida, a qual supõe a relação contratual entre credor e devedor. O castigo é reparação, e seu conceito se desenvolveu sem qualquer pressuposto de liberdade da vontade, a partir do qual se creria que o castigado poderia ter agido de outro modo, evitando, assim, o castigo. A aplicação do castigo como forma de reparação de um dano causado não supunha também a responsabilidade do perpetrador, conforme lemos no excerto a seguir:

Durante o mais largo período da história humana, não se castigou porque se responsabilizava o deliquente por seu ato, ou seja, não pelo pressuposto de que apenas o culpado devia ser castigado – e sim como ainda hoje os pais castigam seus filhos, por raiva devido a um dano sofrido, raiva que se desafoga em quem o causou, mas mantida em certos limites, e modificada pela ideia de que qualquer dano encontra seu equivalente e pode ser realmente compensado, mesmo que seja com a dor do seu causador.[5] (ênfases no original)

Como se pode ver, a motivação para a aplicação do castigo foi, durante um longo período da história humana, a raiva que experimenta aquele que foi lesado. O que Nietzsche buscará descrever a partir daí é o modo de funcionamento da psicologia humana antiga. O castigo permite a quem foi lesado liberar sua raiva na forma de castigo no causador do dano. A dor sofrida por este, como consequência do castigo que lhe foi aplicado, funciona como uma compensação do dano sofrido. Nietzsche fará remontar a origem da equivalência entre dano e dor à relação entre credor e devedor. Ao ocupar-se dessa relação, Nietzsche começa observando que nela é necessário que se façam promessas. As promessas constituem no devedor, isto é, naquele que promete saldar sua dívida, uma memória. No momento em que, ao se fazerem promessas, se constrói uma memória, toda uma série de punições cruéis, duras passaria a encontrar justificação. Ao prometer, o devedor não poderá alegar esquecimento na tentativa de escapar ao castigo ou de adiar o momento de sua aplicação, porque, por ocasião da promessa, tem memória e, com ela, a restituição ao credor torna-se para ele um dever ou obrigação. Assim, consoante Nietzsche,

O devedor, para infundir confiança em sua promessa de restituição, para garantir a seriedade e a santidade de sua promessa, para reforçar na consciência a restituição como dever e obrigação, por meio de um contrato, empenha ao credor, para o caso de não pagar, algo que ainda “possua”, sobre o qual ainda tenha poder, como seu corpo, sua mulher, sua liberdade ou mesmo sua vida (ou em certas circunstâncias religiosas, sua bem-aventurança, a salvação de sua alma, e por fim até a paz no túmulo (...). [6]


Mas essas formas de garantia dadas pelo devedor ao credor não subtraía a este o poder de punir o devedor com toda sorte de aflições e torturas em seu corpo. A dor causada ao devedor infunde no credor “uma espécie de satisfação íntima”; e essa satisfação funciona como um equivalente ao benefício que se seguiria do saldo da dívida. Na impossibilidade de ser ressarcido, o devedor se regozija em poder causar sofrimento no devedor. Por isso, escreve Nietzsche “a compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade”.[7]
Uma observação se impõe urgente, antes de prosseguirmos. Para Nietzsche, é na esfera das obrigações legais que devemos buscar a origem do mundo dos conceitos morais. É nessa esfera que se desenvolverá o conceito de culpa, de consciência, de “dever”, da “sacralidade do dever” – e não menos importante: é preciso reconhecer, com Nietzsche, que esse mundo dos conceitos morais se constituiu com muito derramamento de sangue e práticas de tortura, com muito gosto apurado pela prática do sofrimento. Nietzsche identifica nesse mundo o vínculo entre culpa e sofrimento, donde a necessidade da pergunta: em que medida o sofrimento pode compensar uma dívida? A resposta já pode ser inferida do que se expôs sobre a satisfação na aplicação do castigo: “fazer sofrer era altamente gratificante”[8] – escreve Nietzsche. O sofrimento causado ao devedor compensava o desprazer sentido pelo credor pelo dano que aquele lhe causou. Fazer sofrer, nota Nietzsche, torna-se assim uma “grande festa”, e a crueldade  passou a ser “o grande festivo da humanidade antiga”[9] Em Aurora, Nietzsche escreve sobre “a alegria da crueldade”, considerando-a uma experiência predominante na condição humana. Leia-se atentamente o que nos diz Nietzsche sobre ela.


A crueldade é uma das mais antigas alegrias da humanidade. Julga-se, por conseguinte, que os próprios deuses se reconfortam e se divertem quando lhes é oferecido o espetáculo da crueldade, de tal modo que a ideia do sentido e do valor superior que há no sofrimento voluntário e no martírio escolhido livremente foi introduzido no mundo. Pouco a pouco o costume estabelece na comunidade uma prática conforme essa ideia doravante se desconfia de todo bem-estar exuberante e se recobra confiança cada vez se está num estado de grande dor; então se diz que os deuses poderiam ser desfavoráveis por causa da felicidade e favoráveis por causa da infelicidade – desfavoráveis e de modo algum compassivos (...).[10]


Nesse trecho, Nietzsche alude a um tema que se prende intimamente ao tema dos ideais ascéticos: o do sofrimento voluntário e o do martírio escolhido. Por ora, é conveniente continuar com a discussão que então iniciamos nesta subseção, voltando-nos, doravante, para a questão do sentido do castigo.
Nietzsche observa que, muito embora a história do castigo (como toda história), tendo-se realizado pela condensação semiótica da experiência do castigo em conceito, não possibilite o acesso a todos os fins a que servia o castigo, é possível recuperar os diversos fins da aplicação do castigo quando nos reportamos a um estágio anterior em que a síntese dos “sentidos” ainda nos permite algum discernimento.[11] Assim, Nietzsche passará a elencar a diversidade de propósitos a que servia o procedimento do castigo. Para fins dessa discussão, importa-nos destacar dois sentidos do castigo dentre os que Nietzsche apresenta: 1) o castigo destinado à criação da memória; 2) o castigo destinado a incutir sentimento de culpa. Como criação da memória, o castigo serve de advertência tanto para aquele que sofre o castigo como para os que o testemunham. O que mais nos interessa, no entanto, é o segundo sentido do castigo: o ser ele capaz de inspirar sentimento de culpa naquele que é castigado. Nietzsche discordará dessa crença comum. Para ele, o castigo não conseguiu produzir o alegado sentimento de culpa. Isso significa dizer que o castigo não produziu a má consciência ou, o que Nietzsche entenderá, a esta altura, como “remorso”. Para ele, o castigo somente “endurece e torna frio; concentra; aguça o sentimento de distância, aumenta a força de resistência”.[12] Portanto, Nietzsche nega que a má consciência tenha surgido como sentimento de culpa decorrente da aplicação do castigo. Quem aplicava o castigo não pensava que estivesse em face de um culpado, mas de um causador de dano. Agora, devemo-nos perguntar: qual era a reação do infrator ao castigo recebido? Façamos Nietzsche dizer:


(...) durante milênios os malfeitores alcançados pelo castigo pensaram a respeito de sua “falta”: “algo aqui saiu errado” e não: “eu não devia ter feito isso” – eles se submetiam ao castigo como alguém se submete a uma doença, a uma desgraça ou à morte, com aquele impávido fatalismo sem revolta (...). Se havia então uma crítica do ato era a prudência que a exercia: inquestionavelmente se deve buscar o genuíno efeito do castigo, antes de tudo, numa intensificação da prudência, num alargamento da memória, numa vontade de passar a agir de maneira mais cauta, desconfiada e sigilosa, na percepção de ser demasiado fraco para muitas coisas, numa melhoria da faculdade de julgar a si próprio.[13]


Nietzsche não poderia ser mais claro ao nos explicar qual é, realmente, o efeito produzido pelo castigo naquele sobre o qual ele recai: “numa vontade de passar a agir de maneira mais cauta”. O que sofre o castigo não tomará como lição “nunca mais devo fazer o que fiz”, mas sim “na próxima vez, terei de ser mais cuidadoso”. Se o castigo não causa naquele que o recebe sentimento de culpa, não deixa de causar, de modo geral, o medo e o “controle dos desejos”. O castigo atende à domesticação do homem; o castigo pode servir para reprimir seus instintos agressivos, para conformá-lo às exigências da vida civilizada, mas jamais o torna melhor. Essa conformação às exigências da vida civilizada não representa, de modo algum, um aumento da vontade de potência no homem; é apenas um procedimento repressor que permite mantê-lo sob vigilância, sob controle.
Terminado esse exame do conceito de castigo, do qual demos um testemunho o mais cuidadoso possível, Nietzsche apresentar-nos-á sua hipótese provisória sobre a origem da má consciência. Essa hipótese não se nos apresenta na forma de um enunciado único e definidor, que possamos apreender diretamente sem a necessidade de elaborá-lo em consonância com os desdobramentos dela. A origem da má consciência repousa no voltar-se de todos os instintos contra o homem – a hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – que animavam a vida do homem livre e selvagem. A má consciência é, portanto, um adoecimento do homem por força desse retorno contra si mesmo dos instintos que davam à sua vida um caráter de inocência. Por que sucede esse retornar dos instintos para o interior do homem? Porque os instintos devem ser retidos, ao longo do processo de socialização, de desnaturalização do homem, como condição para o ingresso no mundo da cultura. O que o homem experiencia nesse processo é uma grande pressão interna, justamente porque seus instintos precisam ser reprimidos, inibidos, não encontrando ocasião para a descarga. Esse é o custo para que o homem ingresse no “âmbito da sociedade e da paz”[14]. A má consciência – “esse instinto de liberdade reprimido, recuado, encarcerado no íntimo” [15] - é resultado de processos disciplinadores destinados ao amansamento do animal humano. A má consciência é o próprio sofrimento do homem que se interiorizou, que foi forçado a reter seus instintos em seu interior, que se viu privado de descarregar todo o quantum de suas forças. Acompanhemos Nietzsche:


Esse homem que, por falta de inimigos e resistências exteriores, cerrado numa opressiva estreiteza e regularidade de costumes, impacientemente lacerou, perseguiu, corroeu, espicaçou, maltratou a si mesmo, esse animal que querem “amansar”, que se fere nas barras da própria jaula, este ser carente, consumido pela nostalgia do ermo, que a si mesmo teve de converter em aventura, câmara de tortura, insegura e perigosa mata – esse tolo, esse prisioneiro da ânsia e do desespero tornou-se o inventor da “má consciência”.[16]

A má consciência inscreve no interior do homem a memória do pesado custo da separação do próprio homem de sua condição originária como animal selvagem. Doravante, o homem domesticado, corroído por um profundo sentimento de mal-estar consigo mesmo, transforma-se numa arena de conflitos instintivos incessantes.


  

1.3. A má consciência: o homem como inimigo de si mesmo


A má consciência é a perversão da vontade de potência no homem, pois que, alcançado esse estado de adoecimento, o animal humano se serve dela para violentar a si mesmo, para conformar-se (‘lapidar-se’). Nietzsche se refere a isso como uma “crueldade de artista” - não do artista dionisíaco que conduzirá o homem a reconciliar-se consigo mesmo-, mas do artista que se deleita “em se dar uma forma, como a uma matéria difícil, recalcitrante, sofrente, em se impor a ferro e fogo uma vontade, uma crítica, uma contradição, um desprezo, um Não”[17]. Esse homem cindido pela má consciência faz sofrer a si mesmo. Todos os ideais ascéticos encontram aqui sua origem: ausência de si, abnegação, sacrifício, o prazer em se mortificar, o tornar-se desinteressado, etc. O não egoísmo como valor moral é consequência dessa necessidade que tem o homem, a partir de então, de se maltratar. A má consciência é a vontade de maltratar-se que dominará o homem.
Estendamos nossas considerações, doravante, aos seguintes tópicos sem cujo tratamento nosso estudo estaria analiticamente fraturado. Os tópicos que passaremos a considerar são os seguintes: 1) o desenvolvimento do sentimento de culpa; 2) a moralização da culpa e do dever; e 3) a relação entre a má consciência e a noção de Deus.


1.4. O desenvolvimento do sentimento de culpa

Devemos, pois, procurar examinar o seguinte problema: se o sentimento de culpa não surge da aplicação do castigo, como, afinal, ele apareceu? O sentimento de culpa é um estágio de agravamento da má consciência, é uma forma de doença mais terrível. Para que compreendamos como surgiu no mundo o sentimento de culpa, devemos acolher o convite de Nietzsche a retomar a relação de direito privado entre o devedor e o credor, a fim de que, a partir daí, se nos esclareçam seus desdobramentos.
Nietzsche ensina que o modelo de relação entre devedor e credor foi projetado na relação entre os vivos e os seus antepassados. Nas comunidades tribais, a geração sobrevivente reconhece ter uma obrigação jurídica com seus antepassados. Os integrantes da comunidade acalentam a crença de que a subsistência da comunidade se deve aos sacrifícios e aos grandes feitos de seus antepassados. Disso concluem que têm para com eles uma dívida, que não cessa de avolumar-se, porquanto os antepassados, sendo espíritos poderosos no além-mundo, continuam a beneficiar a sua estirpe. Os membros da comunidade lhe devem, por isso, sacrifícios e realizações. Entre esses sacrifícios e realizações, estão, segundo Nietzsche: “alimentação, festas, música, homenagem, sobretudo obediência”[18].
A relação entre os vivos e os antepassados assenta-se numa lógica de proporcionalidade que consiste na seguinte:

o medo do ancestral e do seu poder, a consciência de ter dívidas para com ele, cresce necessariamente na exata medida em que cresce o poder da estirpe, na medida em que ela mesma se torna mais vitoriosa, independente, venerada e temida. Não o contrário! E todo passo para o debilitamento da estirpe, todo acaso infeliz, todos os indícios de degeneração, de desagregação iminente, diminuem o medo do espírito de seu fundador, oferecendo uma imagem cada vez mais pobre de sua sagacidade, de sua previdência e da presença de seu poder.[19] (ênfases no original).


Essa lógica, segundo pretende Nietzsche, se levada até as últimas consequências, deverá estruturar a seguinte perspectiva. Os ancestrais das estirpes mais poderosas se transfigurarão em deuses por força da fantasia e do temor dos integrantes da comunidade. Nietzsche acredita que a origem dos deuses talvez possa estar no medo. Ainda segundo Nietzsche, a crença em que os vivos contraem dívidas para com as divindades subsistiu ao declínio das formas de organização humana baseada em vínculos de sangue. As gerações posteriores herdaram o compromisso com as dívidas não pagas e o mesmo anseio de redimir-se perante os deuses. O sentimento de culpa em face da divindade não cessou de crescer durante milênios e sempre na mesma proporção com que o conceito e sentimento de Deus se superlativizavam. No que toca ao aparecimento do conceito do Deus cristão, observa Nietzsche o seguinte:

O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa. Supondo que tenhamos embarcado na direção contrária, com uma certa probabilidade se poderia deduzir, considerando o irresistível declínio da fé no Deus cristão, que já agora se verifica um declínio considerável da consciência de culpa do homem; sim, não devemos inclusive rejeitar a perspectiva de que a vitória total e definitiva do ateísmo possa livrar a humanidade desse sentimento de estar em dívida com seu começo, sua causa prima [causa primeira]. O ateísmo e uma espécie de segunda inocência são inseparáveis.[20]


Antes de nos ocuparmos com a elucidação do segundo problema entre os três que definimos como objeto de nossas considerações, convém dilucidar alguns pontos que talvez ainda permaneçam com alguma margem de dúvida. Nietzsche propôs pensar o agravamento da má consciência, isto é, o sentimento de culpa a partir do modelo de relação contratual entre credor e devedor. A grande transformação ocorrida nesse modelo para que fosse possível o surgimento da consciência de culpa foi que a relação baseada num sentimento de dívida reúne agora os vivos como devedores e os mortos como credores. Essa consciência de ter dívida para com os mortos era sempre alimentada, renovada e mantida pela fantasia e pelo medo dos vivos. Pela fantasia, os homens tomam como credor os antepassados, e por força dela também, os que pertencem à estirpe mais poderosa transformam seus antepassados em divindades. A mesma fantasia os faz experienciar o temor crescente em face da possibilidade de serem punidos, caso negligenciem o cumprimento do dever que lhes foi herdado pelas gerações precedentes. Está, pois, constituído o mecanismo psicológico que será decisivo na moralização da culpa. O devedor imagina-se perpetuamente em dívida com seus antepassados-deuses. A consciência de culpa é um sintoma de um processo imaginativo que está na origem de uma série de crenças: crença num credor sobre-humano, crença em estar em dívida com esse credor, crença na influência benévola ou malévola desse credor, crença na “hereditariedade” do compromisso com o credor. Como seja produto de um processo imaginativo que se reproduz continuamente, a consciência de culpa encontra aí um terreno sólido para se perpetuar.
No que diz respeito à crítica avassaladora que Nietzsche dirigirá ao cristianismo, não devemos perder de vista o fato de que ele estava muito pouco interessado no problema da existência ou inexistência de Deus, ou na exatidão histórica das lendas fundadoras do cristianismo. Para ele, importava muito mais considerar o problema do valor da moral cristã. Nietzsche considerava a moral cristã “um atentado capital contra a vida”[21]
Por fim, atentando para o excerto citado anteriormente, o que deveremos, na próxima subseção, examinar é justamente o modo como o sentimento de culpa foi maximizado com o advento do Deus cristão.


1.5. A moralização da culpa e do dever e a relação da má consciência com a noção de Deus


A moralização da culpa e do dever tem como pressuposto a crença no Deus cristão, agora o novo credor do homem. Com a crença no Deus cristão, o homem contrai uma dívida que jamais conseguirá saldar. A má consciência está mais profundamente enraizada nele, e a culpa e o dever o afligem com uma força destrutiva jamais conhecida. Não lhe é possível mais realizar a penitência; sua condição é de castigo eterno. Todavia, não é só o homem que é atormentado pela culpa e pelo dever; o dever e a culpa voltam-se também contra o credor. Primeiramente, contra o ancestral do homem, Adão. A espécie humana agora carrega uma maldição (“pecado original”); ou ainda se voltam contra a natureza, agora demonizada, porque dela se origina todo mal; ou contra a existência, então destituída de qualquer valor (donde o desejo do nada, o desprezo niilista pela vida).
O cristianismo ainda legaria à história o mais eficaz paradoxo: o Deus sacrificado. Agora, é o credor que se sacrifica pela culpa do homem; o credor paga a si mesmo. Somente Deus pode redimir o homem – “o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!...”[22]
Nietzsche argumenta que a invenção da má consciência fez surgir no homem a vontade de se torturar. O homem, que inventou a má consciência, soube ainda intensificar o mal a si mesmo: passou a crer estar em dívida para com Deus e, assim, criou seu maior instrumento de suplício.


Ele apreende em “Deus” as últimas antíteses que chega a encontrar para seus autênticos insuprimíveis instintos animais: ele reinterpretou esses instintos como culpa em relação a Deus (como inimizada, insurreição, rebelião contra o “Senhor”, o Pai, o progenitor e princípio do mundo), ele se retesa na contradição “Deus” e “Diabo”; todo o Não que diz a si, à natureza, naturalidade, realidade do seu ser, ele o projeta fora de si como um Sim, como algo existente, corpóreo, real, como Deus, como santidade de Deus, como Deus juiz, como Deus verdugo, como Além, como eternidade, como tormento sem fim, como inferno, como incomensurabilidade do castigo e da culpa.[23]


Deus se torna signo de uma implacável crueldade psíquica cometida pelo homem contra si mesmo. A vontade se torna corrompida no homem. O homem quer-se culpado, quer-se castigado, quer-se desprezível, quer-se irredimível.  Nietzsche diz que o homem deseja “cortar para si a saída desse labirinto de “ideias fixas”[24]: como evitar não pensar na neurotização do homem, no adoecimento psíquico do homem - do homem que se torna um compulsivo obsessivo transtornado?

Aqui há doença, sem qualquer dúvida, a mais terrível doença que jamais devastou o homem – e quem ainda consegue ouvir (mas hoje não há ouvidos para isso!) como nessa noite de tormenta e absurdo ressoou o grito de amor, o grito do mais sequioso êxtase, da salvação no amor, voltará as costas, tomado de horror invencível... Há tanta coisa horrível no homem!... Já por muito tempo a terra foi um hospício!...[25]




1.6. Os ideais ascéticos: o autodesprezo do homem

Nesta seção, vamos enfocar a significação dos ideais ascéticos, tendo como pressuposto o fato de eles servirem como instrumento de hostilidade à vida. Embora Nietzsche se tenha ocupado com a figura do filósofo ascético, nossa atenção se concentrará exclusivamente na figura do sacerdote ascético. Essa escolha não é arbitrária. Há duas razões que a determinam: 1) o sacerdote ascético é o principal representante da espécie de moral que Nietzsche censura duramente – “o sacerdote ascético tem nesse ideal [no ideal ascético] não apenas a sua fé, mas também sua vontade, seu poder, seu interesse”[26]; 2) o asceticismo do filósofo tem sua origem no asceticismo mais “sério” do sacerdote ascético.[27]
O que nos proporemos fazer, inicialmente, não constitui, de modo algum, um desvio do fio discursivo pré-fixado no parágrafo anterior. Ao nos ocuparmos com o modo como Nietzsche busca determinar o significado do ideal ascético (pois é nisso que Nietzsche está interessado; não no que esse ideal realizou), cuidamos haver um problema central na forma como se constituiu esse ideal, qual seja, o problema do sofrimento. Sabe-se que o sofrimento para Nietzsche não deve ser razão suficiente para desaprovar a existência; ao contrário, o sofrimento deve ser para o tipo de homem forte – dionisíaco - um fortificante para a vida, para “mais vida”, não porque se deve amar o sofrimento, mas porque se deve dizer “sim” à vida, se deve querê-la, amá-la incondicionalmente, deve-se rejubilar-se em ser mais fecundo na dor. A vida do sacerdote ascético, a vontade de potência que ele afirma, por outro lado, é uma vontade corrompida, decadente; uma vontade que se volta contra si mesma, que enfraquece a vida. O sacerdote ascético é um valorador, mas seus valores são valores que conduzem o homem ao afastamento niilista da vida. O sofrimento que o sacerdote ascético causa a si próprio é um instrumento de punição. Esse homem doente transformou-se em pecador: o que ele quer não é mais vida, é mais dor; nele se enraizou o desejo de mais dor. Como vontade de potência, o tipo vital que é o sacerdote ascético também interpreta. Ele reinterpretou o sofrimento como castigo. Com o sacerdote ascético, a má consciência se chama pecado; nele se dá o agravamento mais nefasto da doença do espírito.



1.7. O ideal ascético: uma hostilidade contra a vida


O sacerdote ascético também é um valorador. A questão que precisa, pois, ser esclarecida, inicialmente, concerne ao modo como se dá a valoração da vida pelo sacerdote ascético. Para tanto, vale a leitura do seguinte trecho da Genealogia:

O pensamento em torno do qual aqui se peleja é a valoração de nossa vida por parte dos sacerdotes ascéticos: esta (juntamente com aquilo a que pertence, “natureza”, “mundo”, toda a esfera do vir a ser e da transitoriedade) é por eles colocada em relação com uma existência inteiramente outra, a qual exclui e à qual se opõe, a menos que se volte contra si mesma, que negue a si mesma: neste caso, o caso de uma vida ascética, a vida vale como uma ponte para essa outra existência. O asceta trata a vida como um caminho errado, que se deve enfim desandar até o ponto onde começa; ou como um erro que se refuta – que se deve refutar com a ação: pois ele exige que se vá com ele, e impõe, onde pode, a sua valoração da existência.[28]


Está claro, pois, que o sacerdote ascético valora, e a valoração que faz da vida se apoia na suposição da existência de um mundo metafísico – de um “em si” – em vista do qual se orienta a sua vontade de potência autodestrutiva. A sua valoração da existência consiste em retirar dela todo valor. O sacerdote ascético nutre um profundo desgosto pela vida, por si mesmo e sente prazer em causar dor a si mesmo. Ele é dominado por um profundo ressentimento; sua vontade de potência subtrai da vida toda a opulência de suas forças. Ele encontra satisfação na negação de si, na autoflagelação e no autossacrifício. O sofrimento que o asceta causa a si mesmo é uma forma de negação da força, da vida. No sacerdote ascético, a vida volta-se contra a vida. Ele tem horror ao florescimento fisiológico. O ascético trava uma luta consigo mesmo na tentativa de conservar sua existência decaída. Embora ele seja um negador da vida, está proibido de levar sua negação da vida às últimas consequências, isto é, ele está proibido de se matar. Segundo Nietzsche, “o ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, a qual busca manter-se por todos os meios”. (ênfase no original).[29] Entendamos aqui essa contradição fisiológica. A exaustão fisiológica experimentada pelo sacerdote ascético nunca é total, pois nele a vida precisa lutar contra a morte. Nesse sentido, Nietzsche vê no ideal ascético um artifício destinado à preservação da vida. Ao autoflagelar-se, o sacerdote ascético precisa continuar vivendo; suas feridas o fazem ocupar-se com a vida que resiste, mesmo que em condição doentia e enfraquecida. Tudo isso explica, para Nietzsche, por que esse tipo de homem pôde predominar sobre os homens na história da civilização ou da domesticação humana. O que é o homem domesticado senão aquele que é forçado a lutar contra seus próprios instintos? No ideal ascético, o homem luta incessantemente contra seu desejo do “fim”. O que deseja o sacerdote ascético? Nietzsche nos esclarece: ele deseja ser outro, deseja estar em outro lugar. O sacerdote ascético “é o mais alto grau desse desejo, sua verdadeira febre e paixão”[30]. Mas – outro paradoxo – justamente o poder desse desejo o acorrenta à vida. Em outras palavras, ao desejar ser outro, ao desejar estar em outro lugar, é ainda um desejante, e enquanto encarnação de um querer, é afirmador da vida. Eliminar de si o querer significaria eliminar a própria vida, mas isso é coisa proibida ao sacerdote ascético. Ele quer não mais viver, mas enquanto quer, enquanto deseja, enquanto é desejante, é afirmador. Estando inevitavelmente preso à vida da qual deseja subtrair-se, na medida em que quer ser outro, não lhe resta alternativa senão se tornar “o instrumento que deve trabalhar para a criação de condições mais propícias para o ser-aqui e ser-homem”[31]. Assim, segundo Nietzsche,

- precisamente com este poder ele mantém apegado à vida todo o rebanho de malogrados, desgraçados, frustrados, deformados, sofredores de toda espécie, ao colocar-se instintivamente à sua frente como pastor. Já me entendem: este sacerdote ascético, este aparente inimigo da vida, este negador – ele exatamente está entre as grandes potências conservadoras e afirmadoras da vida...[32]


Nietzsche chama a esse tipo doente – o sacerdote ascético – de “o grande experimentador de si mesmo”, isto é, aquele que nutre grande satisfação em mensurar sua capacidade de suportar a dor e o sofrimento a que se submete a si mesmo. Segundo Nietzsche, “o não que ele diz à vida traz à luz, como por mágica, uma profusão de Sins mais delicados; sim, quando ele se fere, esse mestre da destruição, da autodestruição – é a própria ferida que em seguida o faz viver...”[33]
O tratamento que vimos dando ao tema dos ideias ascéticos não pretende, evidentemente, exaurir toda a significação de sua problematicidade. Nosso tratamento supõe um recorte interpretativo à luz do qual certo conjunto de questões, porque consonante com nossos propósitos, é forçosamente destacado. Com vistas a conduzir a bom termo esta parte de nosso estudo, elenquemos as questões que nos cumpre ainda examinar: 1) qual é, segundo Nietzsche, o grande perigo do homem?; 2) que função exerce o sacerdote ascético?; 3) qual é a meta do ideal ascético?; 4) como o pecado foi reinterpretado pelo sacerdote ascético?; 5) como o sofrimento foi interpretado pelo sacerdote ascético?
Examinemos, pois, a primeira questão: qual é, segundo Nietzsche, o grande perigo do homem? Nietzsche oferece o caminho para a resposta, assumindo que a condição normal do homem é a condição de animal doente. Os homens que exibem pujança de alma e de corpo são casos raros e, por isso, deveriam ser “protegidos do ar ruim, do ar de doentes”[34]. O grande perigo do homem saudável são os doentes. Para Nietzsche, são os fracos a causa de todo infortúnio dos mais fortes. O tipo doente de homem é aquele que está cansado do homem, é aquele que tem grande nojo ao homem, isto é, a quem repugna “o ser homem”; em última instância, aquele que não deseja mais ser homem. Ademais, é o tipo que nutre grande compaixão pelo homem. Ter compaixão pelo homem é um modo de apequená-lo, de humilhá-lo, de tomá-lo por fraco, debilitado, doente. Se combinados o nojo ao homem e a compaixão pelo homem, teríamos o tipo de homem niilista, isto é, aquele dominado pela vontade do nada. O tipo de homem doente é também um tipo de vontade de potência,  a saber, a vontade de potência decadente. É um tipo perigoso porque sua vontade é contaminante, é envenenadora. Nietzsche vê toda a história da moral ocidental como a história da predominância da valoração dos decadentes, dos fracos, dos doentes. Acompanhemos Nietzsche no seguinte excerto:

Os doentes são o grande perigo do homem: não os maus, não os “animais de rapina”. Aqueles já de início desgraçados, vencidos, destroçados – são eles, são os mais fracos, os que mais corroem a vida entre os homens, os que mais perigosamente envenenam e questionam nossa confiança na vida, no homem, em nós. (...) “Quisera ser alguma outra pessoa”, assim suspira esse olhar: mas não há esperança. Eu sou o que sou: como me livraria de mim mesmo? E no entanto – estou farto de mim!”... Neste solo de autodesprezo, verdadeiro terreno pantanoso, cresce toda erva ruim, toda planta venenosa, e tudo tão pequeno, tão escondido, tão insincero, tão adocicado. Aqui pululam os vermes da vingança e do rancor; aqui o ar fede a segredos e coisas inconfessáveis; aqui se tece continuamente a rede da mais malévola conspiração.[35]

Nosso convívio com os escritos de Nietzsche avivou-nos a sensibilidade para identificar esses tipos conspiradores. Estamos à volta com eles! Conhecemo-los bem, afinal! Eles nutrem profundo ressentimento contra a vida, contra os logrados, os vitoriosos; eles odeiam os vitoriosos. Eles apreciam censurar os que gozam da “grande saúde”, os que encarnam força e orgulho. Consideram essas qualidades coisas viciosas. O que querem eles? Querem sobrepujar os sãos; querem se tornar seus superiores – “em toda parte a luta dos enfermos contra os sãos – uma luta quase sempre silenciosa, com pequenos venenos, com agulhadas, com astuciosa mímica de mártir”[36]. Nesses tipos doentes cresce subterraneamente o veneno do ressentimento que aguarda o instante para ser inoculado nos sãos. É interessante atentar para o fato de que Nietzsche procura descrever o modo como uma moral que condena a alegria, que quer que o homem se envergonhe de ser alegre, ou seja, potência afirmadora, pôde se tornar vitoriosa no Ocidente. O tipo doente toma como razão para condenar a alegria a grande quantidade de miséria, de sofrimento no mundo. Querer ser alegre, afirmar a alegria de viver neste mundo é indecoroso. E Nietzsche soube bem ver que o caráter corrosivo da vontade de viver que essa moral encarna levou  os mais fortes, os mais logrados a começar a suspeitar de seu direito à alegria, como potência de viver, como vida potencializada.
Tomemos, agora, a segunda questão cuja resposta é impreterível elucidar: que função exerce o sacerdote ascético? Não cabe aos sãos, observa Nietzsche, assistir os doentes. Os sãos não devem tornar sãos os doentes.  O avanço da moral dos decadentes tem necessidade de médicos também doentes que se ocupem de proteger e defender o rebanho doente contra os sãos e também contra a inveja que esse rebanho tem dos sãos. É preciso, afinal, ser puro de coração! Esse médico doente é o sacerdote ascético. O sacerdote ascético ensinará ao rebanho o desprezo pela saúde. Ele é o salvador, o pastor, o defensor do rebanho doente. Ele estenderá sua dominação sobre os que sofrem e seu reino compreenderá a extensão dessa dominação. Dominar os que sofrem é sua função e sua felicidade. Obviamente, somente um tipo também doente é capaz de dispor da necessária empatia para atender às necessidades dos doentes. Mas o sacerdote ascético deve ser também o senhor de si, deve conservar a integridade de sua vontade de potência para que obtenha a confiança e o temor dos doentes. Deve, além disso, representar um novo tipo de animal de rapina, tem de combinar uma nova ferocidade com a astúcia, porque precisa combater os animais de rapina.
O rebanho também precisa ser defendido de si mesmo, pois que ele pode ser consumido pela perfídia e pela malevolência. O sacerdote ascético opera uma grande mudança na direção do ressentimento. O ressentimento, agora, volta-se contra o próprio ressentido. Se, no ressentimento, há a necessidade instintiva de identificar um culpado do mal sofrido – dessa forma raciocinam todos os doentes: “eu sofro, logo alguém tem de ser culpado” -, o sacerdote ascético ensinará ao ressentido: “somente você mesmo é culpado de seu sofrimento”. Nisso consiste a mudança na direção do ressentimento: a culpa recai sobre o próprio sofredor que cumula ressentimento.
A terceira questão que nos compete examinar agora toca ao fato de o sacerdote ascético dispor de uma meta. Devemos responder, portanto, qual é a meta do ideal ascético. Vejamos o que nos ensina Nietzsche a respeito:

O ideal ascético tem uma finalidade, uma meta – e esta é universal o bastante para que, medidos por ela, todos os demais interesses da existência humana pareçam estreitos e mesquinhos; povos, raças, épocas e homens são por ele interpretados implacavelmente em vista dessa única meta, ele não admite qualquer outra interpretação, qualquer outra meta, ele rejeita, renega, afirma, confirma somente a partir da sua interpretação (- e houve jamais um sistema de interpretação mais elaborado?); ele não se submete a poder algum, acredita, isto sim, na sua primazia perante qualquer poder, na sua incondicional distância hierárquica em relação a qualquer poder – ele acredita que nada existe com poder na Terra que não receba somente dele um sentido, um valor, um direito à existência, como instrumento para a sua obra, como meio e caminho para a sua meta, para uma meta...[37]


Precisamos, nesse momento, ativar alguns conhecimentos pressupostos em nossa memória. Lembremo-nos de que todo processo interpretativo produz um sentido que é, ao mesmo tempo, sintetizador e hierarquizador dos elementos múltiplos relacionais que determinam o mundo. O ideal ascético é vontade de potência e, como tal, um sistema de interpretação do mundo que pretende fixar o sentido hegemônico (perspectiva). O que essa vontade de potência quer é tornar sua interpretação a única interpretação possível do mundo. Seu querer é um querer de primazia sobre outras vontades de potência. Tudo o mais de potência que há deve seu valor, seu sentido a este único sentido fixado pela interpretação efetuada pelo ideal ascético. Qual é, portanto, a meta desse sistema de interpretação que é o ideal ascético? É tornar seu sentido o sentido universal, o seu valor o valor universal. Sua meta consiste em querer impor-se como a única interpretação possível do mundo, reduzindo todas as demais vontades de potência ou forças a instrumentos para a realização e a consolidação dessa meta. Tal foi a influência que sobre a ciência exerceu o ideal ascético. Nietzsche viu na ciência “a mais nova manifestação do ideal ascético”[38]; isso significa dizer que a interpretação ascética conseguiu destilar seu veneno na consciência científica, de sorte que a própria ciência tornou-se “um esconderijo para toda espécie de desânimo, descrença, remorso, despectio sui [desprezo de si, má consciência] – ela é inquietude da ausência de ideal”. (ênfases no original).[39]
As duas últimas questões que se nos impusemos examinar deverão ser contempladas em conjunto. Nietzsche nota que o sacerdote ascético soube muito bem aproveitar-se do sentimento de culpa, cuja gênese – já o sabemos – encontra-se na nova forma assumida pela relação entre devedor e credor. Nietzsche vê o sacerdote ascético como “verdadeiro artista em sentimentos de culpa”[40]. Para que compreendamos como o sacerdote ascético fez uso do sentimento de culpa, é preciso antes dizer que coube ao sacerdote ascético reinterpretar a má consciência como pecado. Corroído por aflições, o animal humano enjaulado é ávido de remédios que possam aliviar seus males. Na dificuldade de encontrá-los, acaba por socorrer-se dos conselhos do sacerdote ascético, grande conhecedor “das coisas ocultas”. O sacerdote ascético indica a primeira causa do sofrer  daquele que se desespera em aflições: busque-a em si mesmo! Buscar em si mesmo significa buscar aquilo que explique o sofrimento. O sofredor identifica em si uma culpa: ele é culpado de seu próprio sofrimento. O sofrimento se lhe afigura, agora, como um instrumento de punição. A culpa torna-se agora a única causa do sofrimento do doente, isto é, do pecador. É oportuno citar Nietzsche:

(...) o doente foi transformado em “pecador”... E agora estamos condenados à visão desse novo doente, “o pecador”, durante alguns milênios – jamais nos livramos dele? – para onde quer que nos voltemos, em toda parte o olhar hipnótico do pecador, movendo-se sempre na mesma direção (na direção da “culpa”, como a única causa do sofrer); em toda parte a má consciência, “essa besta abominável”, no dizer de Lutero, em toda parte o passado ruminado, o fato distorcido, o “olhar belicoso” para toda ação; em toda parte, a incompreensão voluntária do sofrer como sentimento de culpa, medo e castigo; em toda parte o flagelo, o cíclico, o corpo macilento, a contrição; em toda parte o auto-suplício do pecador na roda cruel de uma consciência inquieta, morbidamente lasciva; em toda parte o tormento mudo, o pavor extremo, a agonia do coração martirizado, as convulsões de uma felicidade desconhecida, o grito que pede “redenção”.[41]


Confesso a Deus-Todo poderoso que pequei muitas vezes... por minha culpa, minha tão grande culpa![42]- o pecador reconhece-se como o único grande culpado de seu sofrimento; sua má consciência torna-se exacerbada e ele se consome numa profunda violência psicológica. O sofrimento é seu único verdadeiro remédio contra o sentimento de culpa. Agora, segundo nota Nietzsche, a vida, embora esgotada na fonte de suas forças, não se apresenta mais cansada. Vencida a luta contra o desprazer, o sacerdote ascético se satisfaz na chegada do seu reino. Ele, agora, quer mais dor.
Nietzsche argumenta que o ideal ascético sempre significou o reconhecimento de que há uma falta, uma lacuna em torno do homem. O ascético sofreu, durante longo tempo, porque não conseguia encontrar um sentido para essa falta. Afligia-o a questão do “para que sofrer”. Esse animal doente não negava em si o sofrimento; foi até bastante acostumado a ele. Sua vontade orienta-se para o sofrer, desde que houvesse um sentido para seu sofrer. O homem sofria por não encontrar esse sentido de seu sofrer. O sacerdote ascético lhe ofereceu o sentido. Com ele, o sofrimento foi interpretado. Consideremos este trecho de Nietzsche antes de terminar:

Nele [no ideal ascético] o sofrimento foi interpretado, a monstruosa lacuna parecia preenchida; a porta se fechava para todo niilismo suicida. A interpretação – não há dúvida – trouxe consigo novo sofrimento, mais profundo, mais íntimo, mais venenoso e nocivo à vida: colocou todo o sofrimento sob a perspectiva da culpa... Mas apesar de tudo – o homem estava salvo, ele possuía um sentido, a partir de então não era mais uma folha ao vento, um brinquedo do absurdo, do sem-sentido, ele podia querer algo – não importando no momento para que direção, com que fim, com que meio ele queria: a vontade mesma estaria salva. Não se pode em absoluto esconder o que expressa realmente todo esse querer que do ideal ascético recebe sua orientação: esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal, mais ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, o anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio – tudo isto significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida, mas é e continua sendo uma vontade... E para repetir em conclusão o que afirmei no início: o homem preferirá ainda querer nada a nada querer...[43]


O ideal ascético, segundo pretende Nietzsche, ao fixar um sentido para o sofrimento do homem, livrou-o do desespero do niilismo radical, ou seja, o homem não é mais “uma folha ao vento, um brinquedo do absurdo”. Assim, pode conservar-se enquanto vontade de potência. A questão é: a que custo? A vontade que pode continuar querendo é uma vontade de renúncia à vida. Toda a avidez que move esse homem doente, cuja vontade foi, apesar de tudo, preservada, é uma avidez de fugir ao modo como a própria vida se conforma. Ele quer escapar ao devir, à morte, ao desejo, em suma, a tudo que se apresenta como pressupostos da vida. Mas, uma vez orientando para esse fim a sua vontade, essa mesma vontade torna-se vontade de nada – vontade niilista, portanto. Essa vontade niilista se afirma como aversão à vida. Ao querer escapar a tudo quanto é um pressuposto do viver – seu caráter fenomênico, seu devir, o tender para a morte inevitável, etc. -, a vontade desse tipo de homem produzido pelo asceticismo religioso, então acalentado na crença de que conseguiu transpor o abismo aberto pelo niilismo radical, conservou em si mesma seu pendor niilista, na medida em que foi forçada a orientar-se para seu novo ideal: o querer estar em outro lugar. Pode-se concluir, com Nietzsche, que, ao pretender ter consumado a radicalidade do movimento niilista, o ideal ascético deu-lhe apenas outra direção, outro sentido.



1.8. Cultura e civilização: cultivo e adestramento

Reymond Williams se debruçou sobre a investigação da complexa história do desenvolvimento do conceito de cultura. Ele distinguiu entre três significados modernos da palavra. O primeiro deles, remontando às raízes etimológicas – “cultura” tomou seu sentido do domínio da “agricultura” -  era o “cultivo de conhecimentos”. No século XVIII, passou a ser sinônimo de civilização, no sentido de que designava um processo geral de progresso intelectual, espiritual e material. Civilização recobria aí os costumes e a moral: ser civilizado inclui não cuspir no tapete e não decapitar pessoas, por exemplo. Como sinônimo de civilização, cultura inscrevia-se no espírito geral do Iluminismo, com seu culto de autodesenvolvimento secular e sua crença no progresso. Civilização era, em grande medida, uma noção francesa: supunha-se que somente os franceses tivessem o privilégio de ser um povo civilizado. Nesse sentido, cultura era o mesmo que refinamento social. Se a civilização francesa se caracterizava por uma vida dedicada à política, à economia e à técnica, a cultura germânica se caracterizava por seus gostos religioso, artístico e intelectual. Nesse contexto sócio-histórico, por cultura entendia-se o refinamento intelectual de um grupo ou indivíduo, donde a crença na possibilidade de discriminar entre os que têm cultura e os que são incultos.
No século XIX, o conceito de cultura deixa de ser sinônimo de civilização, torna-se seu antônimo. O conceito de civilização, como sinônimo de cultura, tem uma parte descritiva e uma parte normativa, porquanto tanto pode designar uma forma de vida (civilização asteca) como prescrever tacitamente um padrão de vida considerado harmonioso, esclarecido e refinado.
Atualmente, o adjetivo “civilizado” tem essa orientação normativa. Civilização recobre práticas artísticas, a vida urbana, política cívica, tecnologias complexas, etc., e tudo isso tende a ser considerado um avanço em relação ao que havia antes.
Na medida em que os caracteres descritivo e normativo da palavra “civilização” se separam, a noção de civilização passa a recobrir as boas maneiras, o refinamento, politesse, a desenvoltura elegante nos relacionamentos de grupos que compunham a classe média europeia pré-industrial. “Cultura” é, assim, uma questão de desenvolvimento total e harmonioso da personalidade. Mas tal desenvolvimento só pode ser realizado nas relações sociais. Como são necessárias certas condições sociais para que seja possível tal desenvolvimento, supõe-se que o Estado deve contribuir para favorecê-las. Passou-se, então, a crer que a cultura tem também uma dimensão política. É o intercurso social que tornaria possível desfazer a rusticidade rural e conduzir os indivíduos para relacionamentos complexos.
É na ordem das práticas culturais, definidas como práticas de produção de símbolos e significados (na esteira de Geertz), que se deve, portanto, pensar a constituição da rede de sentido e amparo da existência humana.
No tocante à visão nietzschiana de cultura, cumpre dizer que Nietzsche já distinguia entre cultura e civilização. Para Nietzsche, os homens organizam suas vidas em complexos culturais. Cultura envolve, pois, todos os tipos de expressão humana, na qual não se separam produções espirituais e materiais. A cultura, para Nietzsche, é vista como um estilo artístico, em todas as suas manifestações da vida de um povo. Essa unidade de estilo expressa a predominância de uma determinada interpretação ou perspectiva sobre a existência. Assim, o modo de existência cristão se caracterizaria pelo predomínio da moral de rebanho, ela mesma responsável pela produção de uma vida decadente, adoecida, enfraquecida.
A abordagem da cultura feita por Nietzsche se orienta por uma interpretação fisiológica com a concepção de vontade de potência. No registro da vontade de potência, instancia-se a perspectiva da dinâmica das forças ou instintos em luta por mais potência. A cultura, assim, passa a ser vista como uma configuração de arranjos de instintos, sendo ela saudável se favorece o aumento da potência em seus tipos humanos; sendo, ao contrário, decadente, se produz a redução, o enfraquecimento da potência. A cultura, portanto, é a expressão da conformação do arranjo de forças de um corpo vital. Uma cultura elevada é aquela que produz arranjos instintuais, pulsionais que engendrarão uma interpretação da vida à luz da qual ela é afirmada como um fluxo contínuo de autossuperação, como ação criadora que renuncia a fixar para o mundo um fim suprassensível, a felicidade do repouso. A cultura elevada deve ser capaz de se superar, ou melhor, de favorecer a sua superação, quando se esgota.
Em suma, o que preocupa Nietzsche, nos primeiros anos de sua reflexão sobre a cultura, é como a cultura cunha a estrutura instintual do homem. A questão que ocupa Nietzsche é a da disciplina dos instintos, à luz da qual a produção das interpretações é vista como resultado de uma educação operada sobre os instintos. A questão da disciplina dos instintos nos leva, forçosamente, a considerar o que Nietzsche entende por ‘cultivo’ e ‘adestramento’.
Tomadas da zoologia, essas duas noções designam dois modos distintos de tratamento dos instintos ou pulsões. Em princípio, por meio delas, Nietzsche pretende assinalar o caráter animal do homem: o homem é, como todo vivente, um complexo fisiológico de instintos hierarquizados. É a moral que empreenderá um trabalho de adestramento, pelo qual se dá a manipulação dos instintos com vistas a enfraquecê-los, a ponto até de erradicá-los. Domesticar, domar é o que fez o cristianismo aos representantes da aristocracia guerreira. Essa técnica que produz o enfraquecimento dos instintos no homem culmina com seu adoecimento. O homem, como animal doente, é o resultado desse trabalho pernicioso de domesticação, de dilapidação de sua animalidade, levado a efeito pela moral.
Ao contrário, o cultivo é, segundo Nietzsche, uma técnica educativa que favorece o surgimento e a conservação de um tipo específico de homem: o homem superior, donde talvez sairá o além-do-homem. Nesse processo educativo, é o corpo que cumpre educar, sobretudo, dando-lhe uma conformação instintual que seja a expressão fisiológica da potência afirmadora da vida. É nesse contexto de análise que Nietzsche inscreverá a distinção entre uma moral natural e uma moral antinatural. O naturalismo na moral é a moral sadia, visto que nela predomina um instinto da vida que afasta “algum impedimento e hostilidade no caminho da vida”[44]. Por outro lado, nota Nietzsche: “a moral antinatural, ou seja, quase toda moral até hoje ensinada, venerada e pregada, volta-se (...) justamente contra os instintos da vida – é uma condenação, ora secreta, ora ruidosa e insolente, desses instintos”. (ibid.). Essa moral antinatural (essa antinatureza de moral, dirá Nietzsche) “concebe Deus como antítese e condenação da vida”. (ibid., § 5)., mas ela é tão-só um juízo de valor da vida, mas não de qualquer tipo de vida, mas de uma espécie de vida “declinante, enfraquecida, cansada, condenada” (ibid.). Segundo Nietzsche, “a moral, tal como foi até hoje entendida – tal como foi formulada também por Schopenhauer enfim, “como negação da vontade de vida” – é o instinto de décadence mesmo, que se converte em imperativo: ela diz: “pereça””.(ibid.).
Detenhamo-nos, então, na questão que nos reclama uma resposta: de que modo a compreensão nietzschiana de cultura como forma de adestramento, de domesticação e de moral como produção de vidas declinantes, enfraquecidas nos ajuda a pensar a afirmação que, para nós, é quase axiomática, segundo a qual a crueldade é característica intrínseca ao homem? Como bem lembra Schöpke (2016, p. 300),

O homem é o único capaz de matar sem necessidade, por prazer e diversão. O homem sabe que está ferindo, machucando, torturando, sabe que está privando o outro de seu maior bem, sua liberdade, e o faz sem compaixão.

  É inegável que, à medida que o animal humano foi sendo submetido aos processos de domesticação, normatização culturais, se lhes foi sendo inculcada uma série de preconceitos, preconceitos alguns dos quais, tomando forma nas vivências em coletividade, alcançaram o estatuto de verdades científicas. Morin, em seu Cultura e Barbárie europeias (2009, p. 11-12), observa que as noções de homo sapiens, homo faber e homo economicus, são claramente hoje insuficientes para definir o homem, porque:

O Homo sapiens, racional, pode ao mesmo tempo ser Homo demens, capaz de delirar, de experimentar a loucura. O Homo faber, que sebe fabricar e utilizar instrumentos, também é capaz, desde o início da humanidade, de produzir inumeráveis mitos. O Homo economicus, que se determina em função de seus interesses próprios, é, também, o Homo ludens – (...) ou seja, o homem do jogo, do gosto, do desperdício. É preciso integrar e relacionar essas características contraditórias. Na origem do que se considera barbárie humana, encontra-se evidentemente esse lado “demente”, produtor de delírio, de ódio, de desprezo e do que os gregos chamaram hybris, a desmedida”.

Morin nos adverte de que a razão não serve de antídoto contra “demens”, porque não podemos supor seja possível definir univocamente a racionalidade. Segundo Morin, “nós muitas vezes acreditamos estar na racionalidade quando na verdade estamos na racionalização, um sistema perfeitamente lógico, mas que não possui base empírica que permite justificá-lo”. (ibid.). A racionalização pode servir ao delírio: “existe um delírio na racionalidade fechada” – diz o autor. Prossegue Morin notando que o homo faber, o homem que fabrica, cria também mitos delirantes. Por exemplo, ele cria deuses cruéis, à sua imagem e semelhança, capazes de cometer atrocidades: “nós moldamos deuses que nos modelam”. (ibid., p. 13). No tocante ao homo ludens, ele também inventa jogos cruéis, como o jogo do circo ou a tauromaquia. Por fim, o homo economicus tende a adotar comportamentos egocêntricos, os quais se pautam pela indiferença para com os outros e produzem uma forma própria de barbárie. A conclusão a que chega Morin deve ser aqui referida: “podemos ver as potencialidades, as virtualidades da barbárie aparecerem em todos os traços característicos da nossa espécie humana”. (ibid., p. 14). A essa conclusão devem-se acrescer outras duas. A primeira é que a barbárie já se deixa apreender nas sociedades civilizadas como manifestações do poder do Estado e da desmedida da sua loucura ou delírio. Se as conquistas, em tempos de guerra, levadas a cabo garantem, por um lado, matérias-primas ou reservas de subsistência para os períodos de escassez; por outro lado, não raro, ultrapassam a simples necessidade vital e se efetivam como massacres, destruições em massa, estupros, escravidão, etc. A segunda conclusão é que a barbárie toma forma e se desencadeia com a civilização. O homem domesticado se habitou a pensar a barbárie como a antípoda do modo de vida civilizado, mas isso é um dos preconceitos que lhes foi incutido ao longo do processo de sua domesticação. Como bem lembra Morin, “a barbárie não é apenas um elemento que acompanha a civilização, ela é uma de suas partes integrantes. A civilização produz barbárie e, principalmente, ela produz conquista e dominação”. (ibid., p. 17). Urge reiterar este trecho em negrito: a civilização produz barbárie, a barbárie é uma de suas partes.
Se Nietzsche admitia a possibilidade de tornar mais potente o animal humano através de uma educação cultural, via, ao contrário, a civilização como um modo de vida que o enfraquece. A civilização não fortalece o homem, pois que realiza a domesticação do animal humano. O enfraquecimento dos instintos do homem o transforma no ‘homem bom’, no homem “bem ajustado” para viver em sociedade: produz-se o cidadão obediente, o funcionário eficiente, o ser humano dócil e útil como peça da engrenagem da máquina social. O processo civilizatório, para Nietzsche, está indissoluvelmente ligado ao cristianismo e à sua moral, ou seja, ao ódio contra o desenvolvimento dos instintos humanos. O enfraquecimento dos instintos agrava o adoecimento do homem: problemas nervosos psiquiátricos, ou seja, exigências muito grandes para o sistema nervoso, enormes excitações a que o cérebro não está habituado produzem neuroses e histeria. Tais condições só podem propiciar o aumento do número de criminosos. Nietzsche, muito antes do autor de O mal-estar na civilização, soube denunciar quão profundo seria ao homem o sacrifício que deveria fazer em favor do modo de vida civilizado. Do que se disse acerca dos efeitos patológicos da vida civilizada não se segue que supomos ser a civilização a causa ou origem da agressividade no animal humano. A agressividade é um impulso biologicamente inato no animal humano, e esse impulso se pode encontrar em outras espécies de animais. Nietzsche não ignora isso. Freud, aliás, via a agressividade como resultado da pulsão de morte no homem, em cujo psiquismo se trava um conflito permanente entre Eros e Tânatos. A questão está em determinar de que modo o instinto de agressividade, que tanto no animal humano quanto nos animais não humanos está a serviço da preservação da espécie e do indivíduo, assume, no animal humano, a forma da crueldade, a forma de um impulso destrutivo, aniquilador da vida. De fato, Nietzsche reconhece que a agressividade nem sempre é destrutiva, que ela surge como uma tendência inata de crescer e dominar a vida que parece ser característica comum aos viventes. O que se torna um problema é a obstrução excessiva dessa tendência levada a efeito pela vida civilizada.



1.9. A natureza como domínio da estranheza


Para Nietzsche, a natureza é o conjunto de forças e impulsos, é o reino das necessidades irracionais. O que Nietzsche condenará é a espiritualização das paixões a que o animal humano foi submetido quando do seu ingresso na vida civilizada. Ao propor trazer de volta o homem à natureza, o que pretendia era fazer triunfar o imperativo do instinto sobre as más interpretações e falsificações antropomórficas da natureza. O imperativo do instinto é uma nova interpretação da natureza como vontade de potência, a partir das relações de obediência e de mando.
Sem pretender passar em revista o desenvolvimento histórico do conceito de natureza, cuidamos válido tecer algumas considerações sobre os momentos em que a variação na forma de definir e compreender a natureza foi decisiva para fixar para o homem um lugar de transcendência em relação à natureza.
Natureza, em grego, se diz phýsis, palavra polissêmica, da qual podemos, apesar disso, colher três significados principais: 1) derivado do verbo phýo, que significa ‘faço crescer, nascer’, temos o significado ‘processo de nascimento, surgimento, crescimento’; 2) pode ainda significar ‘disposição espontânea e natureza própria de um ser’; ‘a essência ou substância de um ser’; 3) finalmente, há também o significado de ‘força criadora e originária de todos os seres, responsável pelo surgimento, transformação e perecimento deles’.
Aristóteles, passando em revista os sentidos de phýsis, chega a estabelecer um sentido primeiro e principal, a saber, a substância ou essência dos seres que têm em si mesmo o princípio de seu próprio movimento.
Para os estoicos, a Natureza é o Todo e o absoluto. O mundo é um organismo vivo, composto de uma única substância e de uma única alma. A Natureza é, assim, a ordem que o governa, é o Lógos, a Razão Universal imanente ao Cosmo. É bem verdade que também, para os estoicos, a Natureza é, ao mesmo tempo, a natureza de um ser. Nós, seres humanos, somos também manifestações desse Lógos e, portanto, devemos agir e viver consoante a racionalidade do Cosmo em geral. A Razão Universal imanente ao Cosmo é o Lógos. Viver, pensar e agir em conformidade com a Natureza é viver, pensar e agir em conformidade com a Razão Universal imanente ao Cosmo. É nisso que consiste a sabedoria estoica. A adesão e a conformidade à Natureza são próprias do sábio. Viver em conformidade com a Natureza nada mais é do que viver em conformidade com a razão, tanto  com a Razão Universal como com a razão individual de cada ser humano, parcela que é da Razão Universal, centelha do fogo universal, ou seja, do Lógos.
Desde muito cedo, na história do pensamento, à concepção de natureza como totalidade se opôs uma concepção de natureza em cuja base está a demarcação em relação a um polo oposto, como, por exemplo, “natureza vs. cultura” ou “natureza vs. história”. A concepção de natureza como o que existe independentemente da atividade humana já se encontrava no pensamento dos primeiros filósofos da Antiguidade. Mas remonta a Platão e a Aristóteles a distinção entre três domínios ontológicos (artifício, natureza e acaso). O domínio da natureza seria um terceiro estado da natureza situado entre o artifício (homem) e o acaso (a matéria). Nas palavras de Rosset (1989, p. 15):

Essa trilogia ontológica é afirmada desde Platão e Aristóteles, concordes em definir a natureza como instância alheia tanto à arte como ao acaso. O domínio da natureza ocupa uma zona intermediária entre o domínio material e o domínio artificial: assim como existe, na escala dos seres biológicos, um reino animal, intermediário ao vegetal e ao humano, existe, na escala geral dos seres, um reino intermediário entre a matéria e o artifício: a natureza.

A hierarquização da vida começou com Platão, cabendo a Aristóteles conservá-la e legá-la à posteridade. Nessa hierarquização, o homem, por ser dotado de uma alma racional, que o levaria a conhecer o imaterial e o eterno, alcançando, em breves momentos, certa tangência com o divino, sobressai aos animais.
O cristianismo radicaliza a tendência a definir a natureza em oposição a algum outro domínio. Ele introduz a doutrina da Revelação, considerada sobrenatural. A partir daí, opera-se uma distinção entre a natureza e a sobrenatureza. É bem verdade que a submissão da natureza e dos seres vivos ao homem já encontra registro e chancela no livro do Gênesis da Bíblia hebraica. Em Gênesis 1, versículo 28, lê-se: “Sejam férteis e multipliquem-se. Encham e subjuguem a terra. Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra”. Na visão de mundo judaico-cristã, a natureza não é um ser, pois o único Ser é Deus. Ela é uma potência viva, que tudo anima, mas que está subordinada ao Ser Primeiro e Supremo, que é Deus.
Foi no começo do século XVII, no entanto, que se deu uma cisão fundamental em nossa compreensão de natureza. Encontramo-nos num período profundamente marcado pelo humanismo, o qual impregnou as mentalidades de um antropocentrismo que, colocando o homem no lugar de Deus, delegou àquele a missão de conquistar o universo. É a missão que Descartes conferirá à ciência: fazer do homem mestre e senhor da natureza. Liberado de Deus, o homem tomará para si o lugar de sujeito e centro do universo. É, quiçá, o momento decisivo da cientificização da natureza que levaria ao desenvolvimento do que, nos séculos XVIII e XIX, se passaria a chamar História Natural. Nesse período, a natureza passa a designar simplesmente o substrato ontológico da ciência matemática da natureza. No século XVII, Galileu chegaria a dizer que o livro da Natureza fora escrito com letras matemáticas. Foi já nesse período que a ciência logrou empregar na natureza, que então se converteu em objeto de estudo, experimentos passíveis de reprodução, métodos quantitativos e instrumentos matemáticos.



2. A loucura da condição humana: a negação da animalidade

O homem quer ser um deus com o equipamento de apenas um animal, e por isso vive de fantasias
Ernest Becker

No aforismo 14 de O Anticristo (2012), Nietzsche faz lembrar ao homem aquilo que, durante muito tempo, ele imaginou ter apartado de si: a sua animalidade.
                                       
(...) Nós nos tornamos mais modestos em tudo. Não derivamos mais o homem do “espírito”, da “divindade”, nós o recolocamos entre os animais. Nós o consideramos o mais forte dos animais porque é o mais astuto: uma consequência disso é a sua espiritualidade. Por outro lado, resistimos a um vaidade que também aqui gostaria de se fazer ouvir: como se o homem tivesse sido o grande propósito oculto da evolução animal. Ele não é de modo algum a coroa da criação; toda criatura, comparada com ele, se encontra em um mesmo nível de perfeição... E ao afirmar isso, ainda afirmamos demais: tomado relativamente, o homem é o mais malogrado dos animais, o mais doentio, o que mais perigosamente se desviou de seus instintos (...). (grifo nosso).

Ora, somente um animal que pôde viver em desacordo com seus instintos ousaria crer em sua ascendência divina. Somente um animal capaz de produzir uma teia de ficções, capaz de tomar os símbolos pelas vivências com as coisas, poderia inventar um Deus no início e esquecer-se de que “no início está o macaco” (Nietzsche, 2013, §49). Mas aqui é preciso acrescer aquilo que nos permite reavivar a força da crítica de Nietzsche: somente porque é um animal simbólico pôde o homem inventar a moral como mentira necessária que o protege contra a consciência de sua condição de animal.

A besta que existe em nós quer ser enganada; a moral é mentira necessária, para não sermos por ela dilacerados. Sem os erros que se acham nas suposições da moral, o homem teria permanecido animal. Mas assim ele se tomou por algo mais elevado, impondo-se leis mais severas. Por isso tem ódio aos estágios que ficaram mais próximos da animalidade: de onde se pode explicar o antigo desprezo pelo escravo, como sendo um não-humano, uma coisa. (Nietzsche, 2005, § 40).

Já encaminhando este texto para o seu termo, gostaríamos de retomar a questão do adoecimento do animal humano para reinscrevê-la e examiná-la num outro horizonte perspectivístico, qual seja, o da loucura como nossa condição culturalmente normal. Para tanto, será necessário evocar Becker, em seu A negação da morte (2013). No excerto abaixo, numa relação intertextual implícita com Nietzsche, podemos depreender do que se diz do homem a sua condição de animal de rebanho.

(...) o homem molda para si mesmo um mundo governável: ele se lança à ação sem usar de crítica, sem pensar. Aceita a programação ditada pela sua cultura, que lhe diz para onde ele deve olhar (...). Usa todos os tipos de técnicas, que chamamos de “defesa do caráter”: aprende a não se expor, a não se destacar, aprende a inserir-se no jogo dos poderes externos, tanto de pessoas concretas como de coisas e ordens de sua cultura. (Becker, 2013, p. 44).

O homem culturalmente normal, dirá Becker, “é aquele que não ousa defender seus próprios significados” (ibid., p. 85). O que julga ser o comportamento normal – aliás, esse homem apenas se comporta, nunca é verdadeiramente livre – é o ajustar-se ao regime de obrigações e deveres sociais e culturais. A esse homem culturalmente normal se lhe será fixado um caráter, que é “uma espécie de automatização de uma determinada maneira de reagir”. (ibid., p. 60-61). O caráter é uma “mentira vital” que protege o animal humano contra o desespero do qual seria tomado se pudesse aperceber-se da condição que compartilha com todos os demais animais: a de ser um alimento para vermes. Consoante lembra Becker,

(...) A prisão do caráter da pessoa é trabalhosamente construída para negar a sua condição de criatura. Isso é o terror. Uma vez admitido o fato de ser uma criatura que defeca, você convida o oceano primitivo da angústia animal a desaguar sobre você. Mas isso é mais do que angústia da criatura, é também a angústia homem, a angústia que resulta do paradoxo humano de que o homem é sim um animal, porém cônscio de sua limitação animal. A angústia é o resultado da percepção da verdade de nossa condição. O que significa ser um animal consciente de si mesmo? A ideia é absurda, se não for monstruosa. Significa saber que se é alimento para vermes. (ibid., p. 115).


À semelhança de Becker, Nietzsche também insistiu em reavivar no homem a consciência de sua radical insignificância cósmica. Desferindo duros golpes na megalomania desse animal extravagante, atormentado, Nietzsche também pretendeu despertá-lo de seu torpor metafísico.

O homem, uma pequena e inquieta espécie de animal que – afortunadamente tem o seu tempo. A vida sobre a Terra em geral, não passa de um instante, de um incidente, de uma exceção sem consequências, algo que permanece insignificante para o caráter global da Terra; a Terra ela mesma, como de resto todo astro, é um hiato entre dois nadas, um acontecimento sem planos, razão, vontade, autoconsciência a pior espécie de necessidade; a necessidade cega... (Nietzsche, 2008, § 303).
  
Retomando ainda a lição de Becker, o que podemos chamar de rotina cultural é o que vai assegurar o ajustamento dos indivíduos ao modo de funcionamento do sistema social. É o que evita que eles enlouqueçam. Mas há outra forma de loucura, que não é a do esquizofrênico. Há uma loucura na normalidade, no ajustamento à vida normalizada. Nesse caso, a loucura é estruturante da condição humana, conforme nota Becker (ibid., p. 228-229):

Houve uma época em que eu ficava imaginando como é que as pessoas aguentavam trabalhar em torno daqueles infernais fogões de hotéis, o frenético torvelinho de servir uma dúzia de mesas ao mesmo tempo, a loucura do escritório de um agente de viagens no auge da temporada de turismo, ou a tortura de trabalhar o dia inteiro na rua com uma perfuratriz pneumática, num verão calorento. A resposta é tão simples, que nem a percebemos: a loucura dessas atividades é exatamente a da condição humana. Elas estão “certas” para nós, porque a alternativa é o desespero natural. A loucura diária desses empregos é uma repetida vacina contra a loucura do hospício. (grifos meus).

O aspecto dessa forma de loucura que pretendemos sublinhar não repousa propriamente no fato de os homens terem de fazer o que fazem, já que, dada a forma histórica de nossas sociedades contemporâneas, eles, expropriados dos meios de produção, alienados no próprio processo da divisão do trabalho, se veem constrangidos pelas necessidades da subsistência a trabalharem como trabalham; o aspecto que nos interessa destacar da loucura própria da condição humana é que o animal humano acredita que o que faz tem alguma importância transcendente, algum profundo significado para a totalidade ordenada do universo. Sua loucura, que, na verdade, é seu delírio de grandeza, é acreditar que, ao fazer o que faz, ao participar coletivamente, na condição de animal gregário, da fabricação desse mundo (de ficções) que lhe torna possível viver, esgota a totalidade e a complexidade do mundo e garante para si um status especial, uma posição privilegiada relativamente às demais espécies de animais com as quais ele coexiste nesse mundo mais vasto, cheio de beleza, terror e mistério.  

O homem literalmente se entrega a um esquecimento cego utilizando-se de jogos sociais, truques psicológicos, preocupações pessoais tão distantes da realidade de sua situação que se constituem em formas de loucura – loucura admitida pelo consenso, loucura compartilhada, disfarçada e digna, mas ainda assim loucura. (Becker, ibid., p. 49-50).

Essa forma de loucura, que é a própria condição do animal humano culturalmente “normal”, que, ao contrário do que diz Becker, não é tão digna assim, tem sido, em todos os tempos, o lastro da reprodução e da permanência da condição niilista do animal simbólico e gregário que é o homem. Devemos aqui, para terminar, endossar o que nos diz Schöpke (2016, p. 283): “É o homem, e não o animal em nós, que precisa ser superado, ser reinventado. E reinventar o homem passa por recriar seu mundo e seus afetos”.



[1] Não só isso, evidentemente. Nietzsche, antes de Freud, soube divisar a influência determinante do inconsciente sobre a vida consciente do homem. Freud, posteriormente, viria a assumir a radicalidade dessa visão, identificando todo o psiquismo com o inconsciente, destituindo o “eu” do lugar de “senhor em sua própria casa”.
[2] Não se segue daí que essa interpretação seja desautorizada nos escritos de Nietzsche. Cremos, por conseguinte, ser possível ler a má consciência à luz da concepção de neurose.
[3] Consciência e espírito não se distinguem em Nietzsche. Tomemo-los como termos equivalentes.
[4] Livro I, § 11.
[5] Genealogia, Segunda Dissertação, § 4.
[6] Ibid., § 5.
[7] Ibid.
[8] Ibid., § 6.
[9] Ibid.
[10] Aurora, § 18
[11] É interessante a observação de Nietzsche segundo a qual “definível é aquilo que não tem história”, porque nos sugere que o registro semiótico do vivido, sem o qual não há história, opera sempre por processos de “apagamento” das condições originais do registro. Ademais,  não devemos perder de vista o fato de que a semiotização é já uma re-apresentação (ou transformação de ‘dados sensoriais’ em conteúdos da consciência) de tudo aquilo com que nossa consciência pode entrar em contato ou pode conceber, o que já supõe uma interpretação que, por sua vez, envolve abstração e generalização das propriedades da coisa ou acontecimento significado. O que o conceito nos fornece é sempre o resultado de uma síntese; ou melhor, a síntese já é o conceito. Assim, por exemplo, quando se cria o conceito de “castigo”, o que fica no registro semiótico (no signo) é apenas as propriedades gerais que contribuam para a identificação de uma prática ou ato como pertencente à categoria ‘castigo’; e desse registro se exclui toda uma gama de especificidades implicadas nas experiências ou nas práticas diversas de aplicação do ‘castigo’. Certas distinções só serão codificadas, se forem relevantes à vida prática de uma comunidade.
[12] Ibid., § 14.
[13] Ibid., § 15.
[14] Ibid. § 16.
[15] Ibid. § 17.
[16] Ibid.
[17] Ibid., § 18.
[18] Ibid., § 19.
[19] Ibid.
[20] Ibid. § 20.
[21] Vontade de Potência, § 162.
[22] Op.cit. § 21.
[23] Op. cit. § 22.
[24] Ibid.
[25] Ibid.
[26] Terceira dissertação, § 11.
[27] Segundo Nietzsche, “a atitude à parte dos filósofos, caracteristicamente negadora do mundo, hostil à vida, descrente dos sentidos, dessensualizada, e que foi mantida até a época recente, passando a valer quase como a atitude filosófica em si – ela é sobretudo uma consequência da precariedade das condições em que a filosofia surgiu e subsistiu: na medida em que, durante muitíssimo tempo, não teria sido absolutamente possível filosofia sobre a terra sem o invólucro e disfarce ascético, sem uma auto-incompreensão ascética (...)” (§ 10, ênfases no original).
[28] § 11.
[29] § 13.
[30] Ibid.
[31] Ibid.
[32] Ibid.
[33] Ibid.
[34] § 14.
[35] § Ibid.
[36] Ibid.
[37] § 23.
[38] Ibid.
[39] Ibid.
[40] § 20.
[41] Ibid.
[42] Trecho da oração Confissão pronunciada pelos católicos na celebração da missa.
[43] § 28.
[44] Crepúsculo dos Ídolos, A moral como antinatureza, § 4.



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