domingo, 17 de fevereiro de 2019

"Por mais que haja o amor perfeito e desinteressado a alguém, o supremo fim é a geração de um novo ser" (Schopenhauer)


                                      Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.... Frase de Machado de Assis.



                                   Eros e a afirmação da vontade de viver
                                             O amor segundo Schopenhauer

Convém não perder de vista que é a insignificância radical do indivíduo que está sob foco de nossas considerações. A mais enérgica, imperiosa e irresistível forma pela qual o homem e o animal afirmam a vontade de viver repousa na satisfação do instinto sexual. A compreensão da maneira como funciona esse instinto desvela, mais uma vez, a insignificância radical do indivíduo.
Partindo-se da premissa segundo a qual a natureza tem por essência a vontade de viver (e considerando-se que o homem é um ser integrante da natureza), segue-se que o objetivo primeiro do homem é a sua conservação. É importante que não percamos de vista essa inclinação premente da Vontade em Schopenhauer, já que se trata de uma característica que não encontrará acolhida na concepção nietzschiana de “vontade de poder”: a vontade no homem e nos animais não humanos é esforço para a conservação.  Segundo Schopenhauer, uma vez que o homem tenha garantido sua subsistência, sua conservação, ele quererá apenas garantir a propagação da espécie. Deve-se, no entanto, fazer aqui uma ressalva: na verdade, não é o homem que quer conscientemente a conservação da espécie, mas a vontade nele que a quer. Portanto, escreve Schopenhauer “(...) a natureza, que tem por essência a vontade de viver, impulsiona com todas as suas forças quer o animal, quer o homem a perpetuarem-se”. (ibid., p. 346).
Reencontramos expressa aí a insignificância radical do indivíduo: este não é mais do que um meio a serviço da Vontade para a satisfação de seu desígnio. A Vontade é completamente indiferente ao indivíduo.

Portanto, a natureza que tem por essência a vontade de viver, impulsiona com todas as suas forças quer o animal quer o homem a perpetuarem-se. Feito isso, ela tirou do indivíduo o que queria e fica bastante indiferente a sua morte, visto que para ela – que, semelhante à vontade de viver, apenas se ocupa com a conservação da espécie – o indivíduo é como nada. (ibid.).


Para Schopenhauer, os órgãos sexuais são a verdadeira sede da vontade de viver; nenhum outro órgão está tão submetido ao império da Vontade. Essa submissão à Vontade exclui toda a influência da inteligência. Por isso, os órgãos sexuais

(...) são o verdadeiro foco da vontade, o polo oposto ao cérebro, que representa a inteligência, a outra face do mundo, o mundo como representação. Eles são o princípio conservador da vida e que lhe assegura a infinitude do tempo; é por causa desta propriedade que eles eram adorados pelos gregos no falo, e pelos hindus na linga: símbolo duplo da afirmação da vontade, vemo-lo agora. Pelo contrário, a inteligência torna possível a supressão da vontade, a salvação pela liberdade, o triunfo sobre o mundo, o aniquilamento universal. (ibid., p. 346-347).



Schopenhauer atribui à inteligência um papel fundamental na libertação do homem da tirania do querer viver. Devemos, no entanto, protelar a consideração desse aspecto da doutrina schopenhaueriana, que será examinado quando nos ocuparmos da negação da vontade de viver.
A sexualidade é vista por Schopenhauer como uma ilusão vital, tese esta longamente desenvolvida em sua Metafísica do Amor. Ela é uma ilusão vital porque procura ardentemente, à revelia dos amantes, os atributos físicos indispensáveis à geração da criança, a qual deve reproduzir o modelo de espécie mais resistente e adequado à perpetuação da Vontade. Em outras palavras, os amantes creem que escolhem cuidadosamente seu amado, que é o amor apaixonado, desinteressado que os impulsiona nessa busca, mas, na verdade, Eros está a serviço da Vontade; é uma espécie de ardil desta, pelo qual ela quer realizar, através dos amantes, seu desígnio, qual seja, a perpetuação da espécie. Assim, para Schopenhauer, o homem é essencialmente instinto sexual que, tomando corpo, se esforçará, movido pelo apetite sexual, que é a própria essência do homem, para conservar a espécie.
O profundo pessimismo do qual a filosofia schopenhaueriana é um sintoma vigoroso calca-se sobre a convicção de que a essência íntima do universo é uma Vontade cega, absurda e irracional de viver, vontade esta que impulsiona todo o mundo e cada ser vivo a desejar incessantemente a vida. A vida do ser humano, especialmente, é um contínuo e incessante movimento de alternância de desejos que jamais logram satisfação plena e duradoura, do que resulta que a vida seja experienciada pelo homem como uma trama marcada por luta sem trégua, esforços inúteis, dores intermináveis, pálidas satisfações intermitentes e tédio profundo.
À tirania da Vontade, impulso cego sempre diligente em perpetuar a vida, nem mesmo Eros escapa. O amor é, para Schopenhauer, portanto, essencialmente instinto sexual, e dele a Vontade se serve como um estratagema para perpetuar a si própria (já que a Vontade é vontade de viver). Os protagonistas da relação amorosa acreditam estar vivendo livremente essa relação, à qual eles associam toda sorte de significados, anseios, valores, sem saberem que a natureza os usa como meros instrumentos para atingir seu fim fundamental: a conservação da espécie pela reprodução. Assim, o amor, tanto quanto o casamento, é um simples artifício empregado para um fim. Nem um nem outro comporta qualquer valor sagrado. Que o amor esteja submetido à Vontade cega, absurda e irracional o prova a loucura de que está impregnada a experiência amorosa. Assim, Schopenhauer manterá que o amor é realmente poderoso e astuto, pois sabe iludir o ser humano com promessa de felicidade duradoura, que jamais pode ser realizada.
O próprio prazer sexual é efêmero e insatisfatório, porquanto a união sexual não visa nunca a tornar felizes os amantes, mas tão só a possibilitar a geração de novas vidas, e com esta geração garantir a preservação da espécie. Schopenhauer, portanto, opera uma radical desmitificação do amor. Toda pessoa apaixonada é vítima de uma ilusão, por mais que creia no caráter sublime, etéreo, celeste, transcendente do amor, vive-o na ignorância a respeito de sua realidade: ele é instinto sexual a serviço da perpetuação da espécie. É através dele que se afirma de maneira mais enérgica e imperiosa a vontade de viver. Quando um indivíduo é tomado do instinto amoroso, é a vontade que expressa ardentemente seu desejo de se perpetuar num ser novo e distinto. Em A Vontade de Amar (2008, p. 16-17), assinala Schopenhauer:

O instinto do amor é meramente subjetivo, mas sabe iludi-los, ocultando-se sob a máscara de uma admiração objetiva. Por mais que haja o amor perfeito e desinteressado a alguém, o supremo fim é a geração de um novo ser. É prova disso não se satisfazer o amor com sua reciprocidade sentimental, mas ter necessidade da posse do gozo físico.


Conclui, pois, o filósofo  de modo severo e desalentado:


As almas nobres, os espíritos sentimentais, ternamente apaixonados, protestarão em vão contra o realismo rude de minha teoria; seus protestos carecem de razão. A constituição e o caráter da geração futura é uma finalidade do amor muito mais elevada que os sentimentos fantásticos e seus sonhos de idealismo. (ibid., p. 17, grifo nosso).


O frenesi de que é tomado um homem que encontra numa mulher o modelo vivo de seu ideal de beleza é tão só a forma pela qual se agita a índole da espécie, sempre ávida de perpetuar-se. Eis então, no excerto seguinte, como se nos apresenta outro aspecto da constante e insuperável ilusão a que estão destinados os amantes. Note-se que o amante nutre a crença ilusória de que a natureza trabalha para preservar a união dele com o/a amado/a; mas, na verdade, não é isso que acontece, segundo Schopenhauer:

É também uma ilusão a sua crença [do homem apaixonado] de que unicamente a posse de uma mulher, entre todas do mundo, lhe assegura uma ventura infinita. Entretanto, imaginando embora que seus esforços e trabalhos visam apenas lograr um gozo, na realidade trabalha só para perpetuar o tipo integral da espécie, criando um indivíduo determinado, que carece dessa união para existir. (ibid., 2008, p. 21).


O exame levado a efeito por Schopenhauer sobre a natureza do amor se inscreve num horizonte de desconstrução do ideal do amor romântico, ideal cujas raízes remontam ao cristianismo. Há, na crítica schopenhaueriana do amor, um verdadeiro desencantamento de Eros. Esse desencantamento pode ser interpretado como uma verdadeira dessacralização do amor, cujo resultado é devolver a Eros sua natureza instintiva, grosseira, que, ao longo de dois mil anos, foi encoberta por ideais que o imaginário coletivo não fez mais do que reproduzir. Mas, na verdade, a experiência não cansa de nos mostrar que tais ideais, que foram decisivos na construção imaginária do amor ocidental, são incompatíveis com a sua verdadeira natureza: a de ser instinto de reprodução, de procriação, e nada mais.
No passo a seguir, Schopenhauer nos faz ver que o destino de todo amante é a decepção, o desencanto. O amante se engana ao pretender colher do gozo amoroso as mais excelsas alegrias.


Todo amante experimenta, uma vez satisfeito o desejo, uma decepção singular. Surpreende-se de que sua paixão só lhe proporciona um prazer efêmero seguido de um rápido desencanto. (...) [Ele] não tem consciência de que a espécie é quem unicamente lucra com a satisfação de seu desejo; todos os sacrifícios que realizou voluntariamente, impelido pelo gênio da espécie, serviram para obter uma finalidade que não era sua. (ibid., p. 22).


Se nos for permitido empregar um vocábulo que, embora estranho ao pensamento schopenhaueriano, caracteriza bem a condição do amante, esse vocábulo é o adjetivo “alienado”. O amante, ao viver seu amor, o vive na inconsciência de ser um alienado, isto é, na ignorância do fato de que jamais é ele quem se realiza no amor, de que não é ele, amante, que realmente se beneficia do amor. Todo amante é, portanto, um ser alienado na medida em que não tem consciência de que não é sobre ele que recai a vantagem do amor, mas sobre a espécie, que garante, no ato da reprodução, sua perenidade.


terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

"Um saber múltiplo não ensina a sabedoria". (Heráclito)


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                  A filosofia como exercício espiritual
                                A busca da sabedoria


A filosofia, enquanto exercício espiritual, congrega práticas, quer de ordem física, como regime alimentar, quer discursiva, como diálogo e meditação, quer ainda intuitiva, como a contemplação, todas elas destinadas a cunhar modos de ser. A filosofia como exercício espiritual se destina a operar uma transformação radical na personalidade, na estrutura psicofisiológica, na sensibilidade e na visão de mundo daquele que se dedica a nela exercitar-se numa entrega que mobiliza não só a cognição, mas também sua disposição afetiva. A filosofia é um tipo de exercício que demanda o envolvimento não de um sujeito de razão, mas de um corpo vital individual, certamente dotado de uma capacidade intelectiva, mas não redutível a ela. Esse corpo vital individual é um complexo psicofisiológico, uma totalidade orgânica estruturada não só com habilidades e/ou faculdades cognitivas (percepção, atenção, associação, memória, raciocínio, imaginação, pensamento, linguagem), mas também com pulsões, afetos, necessidades várias. É, portanto, todo o corpo vital individual que é solicitado na prática do exercício da filosofia, de modo que a prática de leitura de textos filosóficos (aliás, como toda prática de leitura, em geral) não consiste numa atividade puramente intelectiva, pois o sujeito-leitor é um corpo emocionalmente afetado, e suas emoções influenciam o exercício dessa prática. Cingindo, no entanto, nossas considerações sobre a influência das emoções ou afetos no exercício da leitura à relação entre estrutura afetiva e prática da leitura filosófica, queremos frisar que a leitura filosófica não só demanda certo modo de envolvimento que se dá na ordem dos afetos, mas também produz outros modos de afecções. Em outras palavras, se, por um lado, somos movidos para a filosofia por uma disposição afetiva determinada por nossas experiências de mundo; por outro lado, o próprio exercício da filosofia, na medida em que é parte de nossas experiências de mundo (é ele um tipo de experiência feita por um corpo vital individual engajado no mundo), o próprio exercício da filosofia – repitamos – produzirá em nós disposições afetivas que passarão a integrar nosso modo de ser no mundo e de nos relacionar com o mundo.
À luz da concepção de filosofia como exercício espiritual, a sabedoria, para cuja busca se orienta a atividade filosófica, é um modo de vida. O que está em jogo nessa busca a que se entrega obstinadamente o filósofo é a transmutação de seu modo de ser; conforme sublinha Davidson em prefácio de Hadot (2014, p. 13),

a norma da sabedoria pode e deve realizar uma transformação da relação entre o eu e o mundo, “graças a uma mutação interior, graças a uma mudança total da maneira de ver e viver” (O Sábio e o Mundo, p. 326). A percepção estética, conforme destaca Hadot, é (...) um modelo da conversão da atenção e da transformação da percepção habitual que o exercício da sabedoria exige.



A filosofia, por conseguinte, não deve ser reduzida a uma prática discursiva teórica; por outro lado, Hadot não propõe qualquer divórcio entre sabedoria e discurso filosófico. O discurso filosófico integra o modo de vida. Não se deve mais contrapor discurso a modo de vida, muito embora seja verdade que a escolha de vida que o filósofo faz determinará a produção do seu discurso. Assim, segundo Hadot (1999, p. 18-19),


(...) a filosofia é, antes de tudo, uma maneira de viver, mas está estritamente vinculada ao discurso filosófico (...). A filosofia não é senão o exercício preparatório para a sabedoria. Não se trata de opor, de um lado, a filosofia como discurso filosófico teórico e, de outro, a sabedoria como um modo de vida silencioso que será praticado a partir do momento em que o discurso tiver atingido seu acabamento e sua perfeição (...).


Por isso, para Hadot, os discursos filosóficos não podem ser considerados independentemente do filósofo que os produziu. Os discursos filosóficos devem ser vistos como a materialização linguístico-histórica de um exercício espiritual, isto é, de uma filosofia que é, ela mesma, um exercício preparatório para a sabedoria.
A concepção de filosofia como exercício espiritual não está circunscrita à Filosofia Antiga, muito embora essa concepção tenha sido a forma característica como a filosofia se desenvolveu e foi praticada pelos antigos. Hadot admite, no entanto, que é possível encontrá-la no pensamento de muitos filósofos modernos e contemporâneos, “influenciados pelo modelo da filosofia antiga, [os quais] conceberam a filosofia como uma atividade concreta e prática e como uma transformação da maneira de viver ou de pensar o mundo” (ibid., p. 380). Entre os filósofos citados por Hadot, que praticaram a filosofia segundo o modelo da filosofia antiga, se topam Descartes, Kant, Montaigne, Rousseau, Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard, entre outros.


1. A filosofia como exercício espiritual: a escolha de vida e a  figura do sábio


Rechacemos, desde já, a concepção de sabedoria, típica do senso-comum, como acúmulo de conhecimento enciclopédico, como erudição. A sabedoria para a qual se volta a atividade filosófica não tem nada a ver com encontrar-se na posse de um saber profundo sobre alguma coisa em uma esfera do conhecimento humano. Portanto, o sábio não é o erudito. Mas o sábio também não é o filósofo. Este, não dispondo da sabedoria, devota toda a sua vida a persegui-la, sem nunca definitivamente alcançá-la. O filósofo se faz justamente nessa busca da sabedoria em que ele se empenha. Nessa busca, reside seu gozo, sua felicidade. A vida do filósofo é, fundamentalmente, desejo de sabedoria. A filosofia que ele produz não é tão somente um discurso teórico, mas, sobretudo, uma escolha de vida – uma escolha existencial e um exercício que ele vive ao exercitar seu pensamento.
 A sabedoria deve ser compreendida como um modo de ser, um modo de viver. Cabe agora explicitar as características gerais desse modo de viver que constitui a própria sabedoria. Ao explicitá-las, podemos ir compondo a figura do sábio.
Na Antiguidade, a sabedoria, dado que é um modo de viver (ou um modo de ser), caracterizará a condição que torna o homem que nela se encontra radicalmente diferente dos demais. Se a filosofia é uma atividade de preparação para a sabedoria, o exercício filosófico consistirá não apenas em discorrer de certa maneira, em falar segundo princípios lógicos, “mas em ser, agir e ver o mundo de certa maneira” (ibid.,  p. 313). Leia-se sobre qual é o estatuto do sábio em cada escola filosófica da Antiguidade, nas palavras seguintes de Hadot:

Em cada escola, a figura do sábio é a norma transcendente que determina o modo de vida do filósofo. E deve-se constatar que, na descrição dessa norma, há, para além das diferenças que aparecem nas diversas escolas, acordos profundos, tendências comuns que se pode descobrir (...). (ibid., p. 314).


Vejamos, então, quais são as tendências comuns que definem a figura do sábio na Antiguidade. De início e de maneira geral, o sábio é um tipo humano ideal cuja alma permanece idêntica a si mesma. O sábio, nesse sentido, não conhece conflitos em sua alma; sua alma encontra-se em perfeita harmonia com o corpo, de sorte que somente ele é verdadeiramente feliz em quaisquer circunstâncias. Tendo a alma imperturbável, o sábio vive permanentemente no estado de ataraxia. O sábio conserva as mesmas disposições, quer se encontre tendo de suportar a fome, a doença, quer se encontre fruindo a abundância. Segundo Hadot (ibid.), “ele sabe, com o mesmo desembaraço, abster-se e usufruir as coisas”.
Quando tomamos o exemplo do sábio estoico, encontramo-lo num estado de coerência consigo e de permanência de identidade. Essa coerência consigo e permanente identidade só são possíveis, porquanto o sábio encontra sua felicidade em si mesmo. A felicidade do sábio – vale frisar – independe das circunstâncias e das coisas exteriores. Nesse sentido, a vida do sábio se caracteriza principalmente pela autarquia, ou seja, pela autossuficiência, já que o sábio se basta a si mesmo; sua vida e sua felicidade não dependem de coisas supérfluas. Assim, consoante ensina Hadot (ibid., p. 315):

(...) segundo Aristóteles, o sábio leva a vida contemplativa porque não tem necessidade de coisas exteriores para se exercitar e porque encontra, com isso, em si a felicidade e a perfeita independência. Só depende de si, basta a si mesmo, e reduzir ao máximo as suas necessidades é especialmente o ideal dos filósofos cínicos.


O sábio está preocupado em reduzir ao máximo suas necessidades. Encontramos esse ideal nos filósofos cínicos. Os epicuristas, por seu turno, reduziam suas necessidades pela limitação e domínio dos desejos. Os estoicos, por seu turno, viviam para o exercício da virtude como condição necessária e suficiente da vida feliz. O estoicismo nos fornece, juntamente com o cinismo, o modelo de vida do sábio antigo. O sábio estoico - acompanhado, como exemplos paradigmáticos, dos modos de viver dos cínicos e de um cético como Pirro - é o tipo humano que não é perturbado pelas coisas exteriores, visto que não considera que as coisas sejam boas nem que sejam más em si mesmas. Por diversas razões, os sábios estoico e cínico se recusam a emitir um juízo de valor sobre as coisas, tratando-as com indiferença. O cético Pirro, por exemplo, sustentava que tudo é indiferente, porque não podemos saber se as coisas são boas ou más; não nos é possível, segundo ele, estabelecer diferença entre elas.
A indiferença do sábio não deve ser interpretada como desinteresse por tudo, mas uma conversão da atenção, um deslocamento do interesse para algo diverso daquele que atrai e domina a atenção e o interesse (o cuidado) dos demais homens. Destarte, segundo Hadot, “essa indiferença do sábio corresponde a uma transformação total da relação [dele] com o mundo”. (ibid.).
“Viver na terra como um deus entre os homens”, disse Epicuro. Eis o ideal do sábio antigo. Podemos, então, discriminar três qualidades fundamentais do sábio: igualdade de alma, ausência de necessidade, indiferença às coisas indiferentes. Nessas três qualidades, baseia-se a sua tranquilidade de alma e sua ausência de perturbação, quer na alma, quer no corpo (ataraxia).
A sabedoria antiga nos ensina que as perturbações da alma têm origem diversa. Platão, por exemplo, dizia que é o corpo, em virtude de seus desejos e paixões, que provoca a desordem e a inquietude da alma. Xenócrates, discípulo daquele, por sua vez, sustentava que a filosofia tem como meta fazer cessar a perturbação decorrente dos cuidados com os negócios humanos. Aristóteles endossa a mesma visão de Xenócrates. A vida contemplativa, à qual fez elogio Aristóteles por meio de sua obra Ética a Nicômaco, está apartada dos negócios da política, das incertezas da ação. É por isso que ela pode conduzir o homem à serenidade.
Epicuro pensava que tanto os terrores da morte e o temor dos deuses quanto os desejos desmedidos e o compromisso com os negócios da pólis carreiam inquietação aos homens. Na opinião de Epicuro, o sábio, porque conhece os limites de seus desejos e de sua ação e porque sabe eliminar suas dores, obterá a serenidade da alma e poderá, em decorrência disso, viver na Terra “como um deus entre os homens”.
Como não pretendamos discorrer exaustivamente sobre a figura do sábio na Antiguidade, vamo-nos cingir a enunciar, separadamente, as características essenciais da figura do sábio.

1)         A figura do sábio cumpre um papel fundamental na escolha de vida filosófica;

2)         A figura do sábio é, para o filósofo, mais um ideal descrito pelo discurso filosófico, do que um modo de vida encarnado num tipo humano concreto;

3)         Uma vez que o sábio representa um modo de vida radicalmente diverso do modo como vivem os mortais, a figura do sábio tende a aproximar-se da figura de Deus ou dos deuses, de modo que os desuses são sábios imortais; e os sábios, deuses mortais.


1.2. A conversão filosófica

Faz-se mister discutir brevemente e delimitar semanticamente o conceito de conversão.


1.2.1. A conversão na Antiguidade

Do latim conversio, conversão significa ‘giro’, ‘mudança de direção’ (Hadot, 2014, p. 203). Em sua acepção religiosa e filosófica, a conversão recobre a ideia de modificação da estrutura mental, que se estende desde uma simples mudança de opinião até a transformação radical da personalidade.
O termo latino conversio, segundo Hadot, corresponde a dois termos gregos cujo sentido diverge. De um lado, conversio equivale ao grego epistrophé, que quer dizer ‘mudança de orientação’ e que abriga a ideia de retorno a si; de outro lado, se acha o correspondente grego metanoia, que significa ‘mudança de pensamento’, ‘arrependimento’ e envolve a ideia de ‘mutação’ ou ‘renascimento’. Consoante ensina Hadot (ibid.), “(...) na noção de conversão, há uma oposição interna entre a ideia de ‘retorno a si’ e a ideia de ‘renascimento’. Essa polaridade de fidelidade-ruptura marcou profundamente a consciência ocidental desde o surgimento do cristianismo.”
Hadot vê na ideia de conversão um poder constitutivo da consciência ocidental. Em outras palavras, a ideia de conversão se acha entre as ideias que constituíram a consciência do homem ocidental, de tal sorte que “pode-se conceber toda a história do Ocidente como um esforço incessantemente renovado para aperfeiçoar as técnicas de conversão”. (ibid., p. 204, ênfase nossa). Tais técnicas seriam destinadas a transformar a realidade humana, “seja reconduzindo-a a sua essência original (conversão-retorno), seja modificando-a radicalmente (conversão-mutação)”. (ibid.).
Quando volvemos nossa atenção para a determinação das formas históricas de conversão, somos levados a reconhecer um fato importante: na Antiguidade, o fenômeno de conversão aparece mais frequentemente nas ordens política e filosófica, e é menos frequente na ordem religiosa. Segundo Hadot, isso se explica pela própria natureza das religiões da Antiguidade: elas eram religiões assentadas no equilíbrio relacional entre Deus e o homem, ou seja, elas dispunham de ritos que asseguravam um tipo de troca de serviços entre Deus e o homem. Ainda segundo Hadot (ibid., p. 205),

É sobretudo no domínio da política que os homens da Grécia antiga fizeram a experiência de conversão. A prática da discussão judiciária e política, na democracia, revelou-lhes a possibilidade de “mudar a alma” do adversário pelo manejo hábil da linguagem, pelo emprego de métodos de persuasão. As técnicas de retórica, arte da persuasão, constituem-se e se codificam pouco a pouco. Descobre-se a força política das ideias, o valor da “ideologia”, para retomar uma expressão moderna. A guerra do Peloponeso é um exemplo desse proselitismo político.


Escapa à alçada desta exposição uma descrição detida e aprofundada das formas históricas das práticas de conversão. Por isso, vamo-nos limitar a enfatizar o que se segue. Em primeiro lugar, segundo Hadot, embora menos difundida, a conversão filosófica, na Antiguidade, é a mais radical. Em suas origens, a conversão realizada pela filosofia é inseparável da conversão política. Em segundo lugar, a conversão, entendida como um tipo de experiência interior, atinge sua mais elevada intensidade nas religiões de “consciência infeliz”, para retomar aqui uma expressão usada por Hegel com a qual caracterizou as religiões que assentam na crença de que há uma ruptura radical entre o homem e a natureza. Constituem dois exemplos dessas formas de religião o judaísmo e o cristianismo.


A conversão religiosa reveste-se nessas religiões de um aspecto radical e totalitário que as assemelha à conversão filosófica. Ela assume, porém, a forma de uma fé absoluta e excessiva na palavra e na vontade salvadora de Deus.  No Antigo Testamento, Deus frequentemente convida seu povo a se “converter”, isto é, a se voltar na direção dele, a regressar à aliança outrora feita no Sinai. (ibid., p. 206).



            1.3. Aspectos psicofisiológicos e filosóficos da conversão

No que toca aos aspectos psicofisiológicos da conversão, limitar-nos-emos a sublinhar seu poder de transformação da personalidade. Essa transformação pode estar a serviço de certos regimes políticos que aspiram à adesão absoluta ao seu projeto, à sua ideologia, casos em que tal transformação redunda no que chamamos vulgarmente de “lavagem cerebral”.
No entanto, a transformação da personalidade pode atender a propósitos mais humanamente elevados. Na Antiguidade, por exemplo, a filosofia era essencialmente uma prática, um exercício de retorno a si, mediante “um violento desenraizamento da alienação da inconsciência”. (Hadot, ibid., p. 211). A filosofia antiga, enquanto atividade espiritual, tem todos os aspectos de uma verdadeira conversão. Mas a conversão filosófica pretende promover “o acesso à liberdade interior, a uma nova percepção do mundo, à existência autêntica” (Hadot, ibid., p. 212). Portanto, na filosofia, a conversão é depurada de suas forças totalitárias, as quais visam à adesão irrestrita às verdades da doutrina, aos dogmas, como no caso das religiões monoteístas, por parte do convertido. O filósofo, em contraste com a autoridade de uma seita religiosa ou de um regime totalitarista, tenderá a pensar que a verdadeira conversão é a conversão filosófica, visto que ela não se faz à custa da liberdade, da prática da reflexão. Por isso, segundo Hadot,

Sob todas essas fórmulas [as que desfilam na história da conversão filosófica], a conversão filosófica é desenraizamento e ruptura com relação ao cotidiano, ao familiar, à atitude falsamente “natural” do senso comum; ela é retorno ao originário, ao autêntico, à interioridade, ao essencial; ela é recomeço absoluto, novo ponto de partida que transmuta o passado e o futuro. (ibid.).



quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

"Todo erro é nocivo; é por ter se enganado que o gênero humano se tornou infeliz" (Holbach)




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                  A crítica antimetafísica de Holbach



Paul Heinrich Dietrich, chamado pelos franceses de Paul-Henri Thiry, foi popularmente conhecido como Barão de Holbach (1723-1789). A força de seu pensamento é facilmente sentida na afirmação inquebrantável de um ultramaterialismo a serviço do combate à tirania dos valores, das ideologias, do poder estabelecido, das confabulações da imaginação humana. Na esteira da interpretação deleuzeana de filosofia como “máquina de guerra”, também a filosofia holbachiana, tanto quanto a de Nietzsche, se presta adequadamente a essa interpretação. Com efeito, o pensamento antimetafísico e ultramaterialista de Holbach tem o poder combativo e destrutivo de uma “máquina de guerra”. Nesse tocante, não há diferença significativa entre os pensamentos de Holbach e de Nietzsche, visto que tanto um quanto o outro compartilham entre si o pendor de um pensamento que é, ao mesmo tempo, combativo de uma tradição axiológica, filosófica, religiosa enfraquecedora da vida e inegavelmente afirmativo da vida.
Na apresentação que faremos do pensamento holbachiano, que toma como referência os capítulos 1 e 2 de Sistema da Natureza ou das leis do mundo físico e do mundo moral (2010), buscaremos dar conta dos aspectos que sinalizam para o seu caráter ultramaterialista e, por consequência, de sua força antimetafísica. O caráter antimetafísico do pensamento holbachiano é consequência da constituição de um sistema que se esteia na afirmação segundo a qual a natureza é o grande todo fora do qual nada pode existir. Assim, segundo Holbach, a natureza “é a reunião de todos os seres e de todos os movimentos que conhecemos, assim como de muitos outros que não podemos conhecer, porque são inacessíveis aos nossos sentidos” (p. 44). A natureza, portanto, recobre o domínio de tudo que existe; fora da natureza, nada pode existir. Essa tese é a própria afirmação de um materialismo radical: só existe a matéria ou a substância. Como a crítica antimetafísica de Holbach é consequência das alegações ultramaterialistas de sua filosofia, convém dar a conhecer, em linhas gerais, os postulados da doutrina materialista.
A despeito do fato de existir uma variedade de materialismos, pode-se dizer que o materialismo mantém que a matéria é a causa e o princípio de todas as coisas No Dicionário Básico de Filosofia (2010), de Danilo Marcondes e Hilton Japiassú, topa-se uma definição de materialismo cuja apresentação é pertinente à compreensão do pensamento holbachiano. Segundo os autores, o materialismo é a “doutrina que reduz toda a realidade à matéria”. Ainda que a definição não nos esclareça muito sobre o que é o materialismo, ela nos permite inferir que o que chamaríamos de imaterial é rejeitado pelo materialismo. Assim, o materialismo nega a existência da alma ou da substância pensante cartesiana; nega também a realidade de um mundo espiritual ou divino, que existiria independentemente do mundo material. Aqui já se pode entrever sua relação com o ateísmo. No início da era moderna, o mecanicismo da física pode ser visto como uma variedade de materialismo, visto que busca explicar o real com base única e exclusivamente em mudanças sofridas quantitativamente pela matéria. O mecanicismo moderno sustenta que todos os fenômenos naturais devem ser explicados por alusão à matéria em movimento, entendendo-se por movimento toda modificação sofrida pelas coisas, que faz com que o mundo esteja num permanente devir.
O materialismo é – parece-nos - mais bem elucidado, quando contraposto ao idealismo, doutrina esta que afirma a existência independente, primeira e exclusiva do pensamento. Ao contrário, o materialismo afirma o primado da matéria. O materialismo se define, negativamente, pela recusa do dualismo e do espiritualismo (não existe nem mundo inteligível nem alma imaterial), do ceticismo e do criticismo (pois a realidade em si não é incognoscível). É incompatível com toda religião cujo corpo doutrinário se sustenta pela crença num Deus imaterial, criador e legislador. O materialismo é uma filosofia de recusa, de embate. É também um empreendimento de desmitificação. É importante salientar que o materialismo não nega, de modo algum, a existência do espírito. O materialismo é uma filosofia que, elegendo como primeira a realidade do corpo, se desenvolve a partir dele. O materialismo pensa o mundo a partir do corpo. A noção de corpo aqui não se limita ao corpo humano, mas recobre toda substância material. Ser materialista é ser, em alguma medida, epicurista e antiplatônico. É, por um lado, não admitir a separação entre corpo e alma; é tratar a alma como uma substância material tanto quanto o corpo. Por outro lado, é também rejeitar a separação entre mundo sensível e mundo inteligível. O materialismo também se caracteriza por uma rejeição ao espiritualismo, embora não se reduza a isso.
Em suma, o materialismo erige-se e se desenvolve contrariamente a todas as filosofias que assumem a prioridade da alma sobre o corpo; nesse sentido, o materialismo é uma filosofia do corpo. Denominam-se materialistas os filósofos que afirmam que só existem seres materiais ou corpos. O materialismo é um monismo, conforme nos permite depreender a definição anteriormente referida. Isso significa dizer que o materialismo só admite uma espécie de substância, que é a própria matéria ou os corpos. Ele afirma a materialidade da alma, portanto, nega que ela tenha uma existência autônoma. Para um materialista, o pensamento resultaria de um movimento da matéria. 
Supondo suficientemente esclarecida a significação do conceito de materialismo, passaremos, doravante, a considerar, sem aspirar à exaustão, de que modo algumas afirmações fundamentais do materialismo holbachiano culminam com sua crítica ao pensamento metafísico. Em primeiro lugar, devemos ter em mente o fato de que Holbach toma como pressuposto a existência da matéria (obviamente, sem esse pressuposto todo o seu sistema materialista ruiria). Uma vez que existe a matéria, ela deve necessariamente conter algumas qualidades, tais como a impenetrabilidade, a extensão, a densidade, etc. Como no universo, segundo Holbach, tudo está em movimento, segue-se daí que a matéria é matéria em movimento. Assim, “a existência da matéria é um fato; a existência do movimento é outro fato” (p. 59). A existência da matéria pressupõe que a matéria age. A essência da natureza é agir: nada que existe mantém-se em repouso. Segundo Holbach, “tudo aquilo que nos parece em repouso não permanece, portanto, um instante no mesmo estado: todos os seres nada mais fazem que continuamente nascer, crescer, decrescer e se dissipar com mais ou menos lentidão ou rapidez” (p. 48). Holbach não poderia ser aqui mais consonante com o pensamento heraclitiano: tudo é devir. Os movimentos ou as diversas formas de agir da matéria decorrem de suas qualidades, de sua existência ou essência. O movimento é um modo de ser da própria matéria. É importante assinalar o que está em jogo aqui, para efeito de compreensão da crítica antimetafísica holbachiana. Holbach mantém que o movimento é consequência da essência da matéria; a matéria age pelas suas próprias forças; ela não precisa de um agente externo e transcendente para lhe conferir movimento. Em outras palavras, Holbach nega que o movimento e a própria existência da matéria precise de um Primeiro Motor Imóvel (Aristóteles) como o representado pelo Deus metafísico cristão. Para Holbach, é por puro preconceito e ignorância acerca da natureza que os homens supuseram a existência de tal Ser Supremo. Ao contrário, escreve o autor “se tivessem observado a natureza sem preconceito, teriam há muito se convencido de que a matéria age pelas suas próprias forças e não tem necessidade de nenhum impulso externo para ser posta em movimento” (p. 53). É porque negligenciaram o que se lhes apresentava aos sentidos, que os homens foram “buscar fora da natureza uma força distinta dela mesma que a pusesse em ação e sem a qual eles acreditam que ela não podia se mover” (p. 55). Ora, a suposição da necessidade da existência de tal força distinta e transcendente é produto do erro humano. Erra quem supõe que a natureza é “um amontoado de matérias mortas, desprovidas de todas as propriedades, puramente passivas” (ibid.). Somente se assim fosse, teriam razão aqueles que buscam “fora da natureza o princípio dos seus movimentos”. Sucede, contudo, que, para Holbach, a natureza é “um todo do qual as diversas partes têm propriedade diversas, que a partir daí agem segundo essas mesmas propriedades, que estão em ação e reação perpétuas umas sobre as outras, que pesam, que gravitam em direção a um centro comum (...)”. (p. 55-56). Os que creem numa causa exterior responsável pelos movimentos da matéria supõem também que esta começou a existir. A doutrina da criação ex nihilo supostamente presente na narrativa bíblica (crença rejeitada pelo próprio Holbach) está baseada na crença de que a matéria começou a existir. O problema é que essa hipótese jamais fora até hoje demonstrada. Ademais, para Holbach, ela encerra outro problema: como um ser espiritual, ou seja, um ser que não tem extensão, nem partes, e tampouco é suscetível de movimento, pode ter criado do nada a matéria e lhe ter conferido movimento? Holbach, aderindo à posição dos gregos, sustenta o caráter eterno da matéria: “quando perguntarem de onde vem a matéria, diremos que ela sempre existiu”. (p. 58).
Iluminadas, pois, as bases sobre as quais assenta a radicalidade do materialismo sustentado por Holbach, que toma forma no enunciado “não existe e não pode existir nada fora do círculo que contém todos os seres” (p. 31), isto é, nada existe ou pode existir fora da natureza, vamo-nos concentrar na discussão das proposições que conferem à crítica antimetafísica holbachiana seu poder bélico. Tomaremos para consideração o capítulo 1, intitulado Da natureza, no qual Holbach denuncia o fato de os homens até então (diríamos até os dias atuais) terem vivido num profundo estado de ignorância acerca da natureza e de suas origens naturais. Já nesse primeiro capítulo podemos perceber o tom bélico, combativo e pretensamente libertador do pensamento holbachiano, o qual, para citar novamente Schöpke, é “uma espécie de grito de guerra contra a metafísica e a religião que sempre obscureceram a percepção dos homens, levando-os à produção de ideias fantasmagóricas sobre a realidade e si mesmos”.
Começaremos, pois, referindo todo o primeiro parágrafo no mencionado capítulo. Importa que estejamos sensíveis ao tom combativo, ao tom acusador, à força de denúncia que permeia todo o parágrafo. A tese basilar e inicial é demais evidente: os homens viverão sempre equivocados, atolados em erros e embustes sempre que se desviarem da experiência, sempre que ignorarem as evidências fornecidas pelos seus sentidos.


Os homens se enganarão sempre que abandonarem a experiência por sistemas criados pela imaginação. O homem é obra da natureza, existe na natureza, está submetido às suas leis; ele não pode livrar-se dela, não pode, nem mesmo pelo pensamento, sair dela. É em vão que seu espírito quer lançar-se para além dos limites do mundo visível; ele é sempre forçado a voltar. Para um ser formado pela natureza e circunscrito por ela, não existe nada além do grande todo do qual ele faz parte e do qual sente as influências. Os seres que são considerados acima da natureza ou dela distintos serão sempre quimeras, das quais nunca será possível constituir ideias verdadeiras, tanto do lugar que eles ocupam quanto da sua maneira de agir. Não existe e não pode existir nada fora do círculo que contém todos os seres. (p. 31).



A natureza é constituída por leis inflexíveis; a experiência concreta deve ser sempre o tribunal de nossas crenças e ideias; não é possível ao homem sair da natureza. Determinismo, empirismo e fatalismo enunciados como se formassem uma partitura da música da natureza, música com a qual Holbach pretenderá reconduzir o homem à natureza, ao mundo da experiência sensível, o único verdadeiramente existente. Quanto mais aferrados aos sistemas criados por sua imaginação, forjados por sua tendência a confabulações,  tanto mais os homens continuarão enganados não só acerca da realidade e de si mesmos, mas suscetíveis à dominação pelos poderes constituídos. As ideias forjadas pela imaginação humana são ilusórias, e sempre que os homens insistirem em tomá-las pela realidade, continuarão domesticados, submissos, dominados, escravos daqueles cujo poder só consegue afirmar-se e manter-se tirando proveito da ignorância humana.
Todo erro, segundo Holbach, é nocivo - nocivo, porque, mantendo os homens num estado de ignorância acerca da natureza, torna-os infelizes: “o homem só é infeliz porque desconhece a natureza”. Em termos nietzschianos, podemos dizer que, para Holbach, o homem se tornou cansado de si, esgotado, decadente, despontencializado quando “desprezou as realidades para meditar sobre quimeras”, quando “negligenciou a experiência para se fartar com sistemas e conjecturas”. (p. 25).
A crítica antimetafísica de Holbach alinha-se com o espírito iluminista que marcou profundamente seu tempo. Como iluminista, Holbach manteve a crença no inestimável papel da razão na justa condução do espírito humano e na orientação do homem para a assunção de uma vida virtuosa. O Aufklärung ou o Esclarecimento foi definido por Kant como “a saída do homem de sua menoridade da qual ele próprio é culpado”. Para Kant, o Esclarecimento deveria levar os homens a fazer uso do seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. Trata-se de conquistar a autonomia e a liberdade de pensamento, livrando-se da submissão a um poder tutelar alheio (heteronomia). Conquanto não estejamos preocupados em rastrear os traços iluministas do pensamento holbachiano, é importante que não nos olvidemos de que Holbach acreditava no poder emancipador da razão – e essa crença é algo de que a crítica antimetafísica nietzschiana não comunga (e veremos em que sentido isso se dá).  Para Holbach, é por terem negligenciado o valor da razão na busca de uma vida sem erros, conciliada com o real e feliz, que os homens permaneceram “em uma longa infância”. O tom iluminista de seu pensamento se deixa ouvir no seguinte excerto.



Foi assim que, por ter desconhecido a natureza e os seus caminhos, por ter desdenhado a experiência, por ter desprezado a razão, por ter desejado o maravilhoso e o sobrenatural, enfim, por ter temido, o gênero humano permaneceu em uma longa infância, da qual se tem tanta dificuldade para tirá-lo. Ele não teve senão algumas hipóteses pueris, das quais nunca ousou examinar os fundamentos e as provas. Acostumou-se a considerá-las sagradas, como verdades reconhecidas, das quais não lhe era permitido duvidar nem por um instante. (p. 39).



Os deuses são seres imaginários forjados em virtude da ignorância humana acerca da natureza. Por força dessa forma de ignorância, os homens esperam desses seres imaginários toda sorte de prazeres e bem-aventurança; a eles também atribuem a responsabilidade por seus infortúnios. Para Holbach, o desconhecimento da natureza como um todo levou os homens a desconhecerem sua própria natureza, suas próprias tendências e necessidades. A ignorância da natureza acarretou uma série de consequências nefastas para a vida humana. Ignorando a natureza, os homens passaram a ignorar seus próprios direitos enquanto seres sociais: passaram, assim, da liberdade para a escravidão. Eles foram forçados a sufocar seus desejos (estes se voltaram contra eles, se lhes tornaram nocivos, envenenados). Os homens passaram a se submeter ao domínio dos seus superiores. Consequentemente, não conseguiram mais reconhecer a finalidade da associação e do governo: se submeteram docilmente a outros homens, aderiram sem reservas aos preconceitos destes, tomaram-nos como seres superiores à semelhança de deuses na Terra. E esses homens superiores se aproveitaram dos erros dos homens submissos para subjugá-los, para corrompê-los, para tornar suas vidas miseráveis. Também a ignorância acerca de sua própria natureza impediu que o homem se esclarecesse sobre a moral. Em suma, seguindo o tom de denúncia de um discurso sóbrio, lúcido mas não menos acusatório, completa Holbach: “Foi ainda por falta de estudar a natureza e suas leis, de procurar descobrir os seus recursos e as suas propriedades, que o homem se estagnou na ignorância e deu passos tão lentos e tão incertos para melhor sua sorte”. (p. 37).
Em vários momentos, no referido capítulo, Holbach exorta seu leitor e todos os homens a que se libertem da ignorância e dos preconceitos que os distanciaram da natureza. Tais momentos de exortação expressam bem a tonalidade afetiva de que estava imbuída a crítica iluminista aos excessos e erros de todo pensamento que ousasse romper os limites da razão e  que ultrapassasse os limites de toda experiência possível. Num desses momentos – na verdade, o último momento em que essa exortação se deixa perceber -, Holbach anuncia os caminhos que devem ser percorridos pelos homens que pretendam tornar-se verdadeiramente livres, potencializados e felizes:



Elevemo-nos, pois, acima da nuvem de preconceito. Saiamos da espessa atmosfera que nos cerca para considerar as opiniões dos homens e seus diversos sistemas. Desconfiemos de uma imaginação desregrada; tomemos a experiência como guia. Consultemos a natureza; tratemos de buscar nela mesma as ideias verdadeiras sobre os objetos que contém. Recorramos aos nossos sentidos, que falsamente nos fizeram considerar como suspeitos; interroguemos a razão, que tem sido vergonhosamente caluniada e degradada. Contemplemos atentamente o mundo visível e vejamos se ele não é suficiente para nos fazer julgar as terras desconhecidas do mundo intelectual. Talvez descubramos que não se tem nenhuma razão para distingui-las e que foi sem motivos que foram separados dois impérios que são igualmente do domínio da natureza. (p. 39-40).



A razão não pode pretender alçar voos que a levem para longe da experiência, sob pena de ela enredar-se em especulações vazias que não fazem senão manter os homens presas da ignorância e do erro. À moda kantiana, numa clara fidelidade ao espírito iluminista, Holbach argumenta que os homens devem se guiar pela experiência a fim de alcançarem um conhecimento verdadeiro do mundo e de si mesmos. É para a natureza que eles devem se voltar se quiserem formar no espírito ideias verdadeiras acerca das coisas existentes. Ademais, é preciso revalorizar os sentidos, os quais, ao longo da tradição metafísica, cuja forma sistemática de constituição remonta a Platão, foram tomados como fonte de erros, como meios inapropriados para atingir o conhecimento verdadeiro. Também a razão – adverte Holbach - foi depreciada, negligenciada em proveito da construção de ficções, de opiniões infundadas, de crenças ilusórias que levaram os homens a projetar suas esperanças num além-mundo, num mundo suprassensível. Fiel aos pressupostos materialistas de sua filosofia, a crítica antimetafísica de Holbach mantém que os sentidos e o intelecto são igualmente partes do mundo natural, não constituindo, portanto, dois impérios separados. Segue-se daí que um sistema metafísico que segmenta a realidade em dois mundos – o mundo sensível e o mundo das Ideias, das Essências -, como a metafísica platônica, ou qualquer sistema metafísico que, por definição, combina a postulação da existência da transcendência (de um mundo verdadeiro, situado para além do mundo sensível) com um dualismo, que supõe a existência de duas substâncias de natureza radicalmente distintas e inconciliáveis, não passam de ficções, de embustes, já que não encontram razão de ser quando nos ocupamos de examinar a natureza; além disso, trazem muitos prejuízos ao homem, pois que os mantêm em estado de ignorância acerca de si mesmos, cansados de si mesmos e divorciados da vida aqui e agora.



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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


HOLBACH, Barão de. Sistema da Natureza ou das leis do mundo físico e do mundo moral. Tradução de Regina Schöpke e Mauro Baladi. 1.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010