sexta-feira, 10 de agosto de 2018

"O niilismo está à porta: de onde vem a nós este mais sinistro de todos os hóspedes." (Nietzsche)


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                     A filosofia na vizinhança do niilismo


Assumiremos como pressuposto tácito e inquestionável para quem quer que se ocupe da filosofia que a confiança na razão é a essência de toda empresa filosófica. Não nos parece custoso rastrear, ao longo da história da filosofia, as diferentes figuras pelas quais essa confiança na razão se expressa. Essa confiança na razão nasce com a filosofia e perdura até os dias de hoje, a despeito de a razão, em vários momentos da história do pensamento, ter sido convocada a comparecer perante o tribunal da suspeita[1]. Não resta dúvida de que a confiança na razão – entendendo-se por razão, nesse momento, a faculdade que nos habilita a produzir discursos coerentes e inteligíveis que são eles mesmos modelos de representação do mundo – não poderia sucumbir, sob pena não só de a filosofia ser condenada ao silêncio eterno dos museus da história, mas também sob pena de a totalidade da existência humana submergir num irracionalismo balbuciante[2]. Mesmo a crítica da razão levada a efeito por aqueles que Ricouer chamou “filósofos da suspeita” não deve ser vista como uma convocação à adesão ao irracionalismo, mas sim, no que diz respeito mais propriamente ao trabalho fabulador da razão, como um exame radical e desmitificador das ideologias “progressistas”, em nome da razão, da moral, da História, as quais querem subjugar a vida em favor de pretensos valores superiores.
Retornemos, então, ao momento em que sublinhávamos o fato de que a filosofia surge e se desenvolve historicamente como uma atividade discursiva em cujo cerne repousa a confiança na razão. Dissemos que essa confiança na razão pode ser mapeada pelo exame das diversas formas como ela se expressa no decurso do desenvolvimento histórico da filosofia. A filosofia nascente afirma essa confiança na razão a partir de uma série de pressupostos, dentre os quais destacamos os quatro seguintes:

1º o mundo constitui uma totalidade ordenada e inteligível, que pode ser racionalmente explicada;

2º “Nada vem do nada e nada retorna ao nada”: o mundo é um cosmo eterno e imperecível;

3º Seu princípio perene e imortal de origem e constituição é a phýsis, de onde tudo brota e para onde tudo regressa;

4º A essência do mundo ou o ser é alcançado exclusivamente pelo pensamento e, portanto, é invisível, embora seja um invisível racional e lógico.

Mesmo a preocupação (que perpassa toda a história do pensamento filosófico e constitui uma questão fundamental em torno da qual muita tinta correu) em explicar como o uno, isto é, o idêntico em si mesmo (phýsis) se transforma no múltiplo e diferente de si mesmo (kósmos); ou, em sentido inverso, mesmo a preocupação em explicar como o múltiplo e o diferente  (os entes do mundo) pode originar-se do uno e a ele retornar supõe uma confiança na razão que se expressa na crença na identidade entre o real e o racional – crença esta que encontrará longo e persistente eco na história da filosofia, sendo quiçá Hegel, no século XIX, seu mais obstinado defensor. Essa confiança na razão também se manifesta, na tradição, na concepção de razão como uma força que nos liberta dos preconceitos, do mito, das opiniões arraigadas e falsas, das aparências, ou ainda como uma força que permite estabelecer um critério universal ou comum para a conduta do homem.
Parece-nos um truísmo dizer que, desde suas origens, a filosofia pautou-se pela busca de princípios capazes de conferir sentido ao conjunto da experiência humana. A experiência filosófica, que supõe a determinação de um sentido para o mundo, ancorava-se, entre os gregos, na crença de que o cosmos apresenta uma ordem eterna, divina, bela e inteligível, à qual a vida humana deveria ajustar-se. O sentido da vida humana consistia, segundo acreditavam os antigos, em ajustar-se a essa ordem. Na época de Hegel, havia uma crença disseminada de que a história humana tem um sentido e um significado – essa é, aliás, uma crença que sobrevive nos dias atuais em contextos religiosos, sobretudo porque o pensamento religioso sempre admitiu que o curso da história humana tem sentido e que esse sentido, no caso do cristianismo (para nos ater a uma experiência religiosa mais próxima), é resultado dos propósitos de um Deus pessoal e Criador, que governa todo o processo determinando-o da origem ao fim.
A partir de Platão, a filosofia deduziu do eterno o sentido e a normatividade para a vida humana. Com Platão, a filosofia passa a acalentar a esperança de alcançar o bem pela harmonia com o sumamente real, o sumamente eterno e perfeito. Evidentemente, essa ascensão ao sumamente real supõe uma confiança na razão, ou, em termos platônicos, no conhecimento inteligível, na dialética que educa a alma para que ela atinja ascensionalmente o conhecimento inteligível do incondicionado, da Verdade em si mesma, do Ser. Escapa à alçada deste estudo deslindar as formas como se afigura na filosofia platônica essa confiança na razão. Não obstante, vale dizer que a Alegoria da Caverna constitui um exemplo paradigmático dessa confiança na razão. Em síntese, da Alegoria da Caverna podemos colher a seguinte lição: só podemos conhecer a verdade quando ultrapassamos o domínio das aparências sensíveis para, num movimento ascendente, contemplar os arquétipos ou as Ideias eternas e imutáveis que constituem o mundo inteligível, este que é dotado de mais realidade que o mundo sensível, onde nós habitamos. É necessário omitir alguns pormenores da escalada de conhecimento rumo à contemplação da Forma do Bem, ponto de irradiação da luz para todo o campo das Formas Perfeitas. A confiança platônica no conhecimento inteligível, na luz da inteligência tem desdobramentos em sua ética que cumpre aqui tão-só assinalar de passagem. Platão advogará que as opiniões não conduzem ao conhecimento verdadeiro; as opiniões são aparências de um saber; não o verdadeiro saber. As opiniões pertencem ao mundo das coisas sensíveis e não nos permitem desvelar a essência das coisas. Por outro lado, o conhecimento é um processo ascendente que nos encaminha à realidade imutável, pela qual todas as coisas são o que são. A Cidade justa depende, portanto, do conhecimento do Bem em si e da Justiça em si. Os homens só serão justos e bons conhecendo o Bem e a Justiça em si, isto é, a Forma do Bem e a Forma da Justiça. Enquanto permanecem confundidos por aquilo que parece bom e justo, mudando continuamente de opinião, eles serão injustos e infelizes. Particularmente importante é lembrar que Platão via na razão a parte superior da alma humana. A razão é responsável por dar a medida. A parte racional da alma – repetimos - cumpre a função de dominar as outras duas partes, harmonizando-as com a razão. A parte racional é a parte espiritual e imortal da alma. É a função superior da alma, o princípio divino em nós. A razão é uma força que possibilita a libertação do homem do jugo dos apetites, das paixões pela submissão destas e daqueles ao controle e à justa medida determinada pela própria razão.
É preciso insistir em que, ao advogarmos que a filosofia se caracteriza essencialmente como uma atividade discursiva e/ou reflexiva baseada na confiança na razão como precondição para sua própria realização enquanto tal, não estamos ignorando que, ao longo de toda a história da filosofia, antes mesmo de o trabalho da desconstrução começar a solapar os fundamentos do legado da tradição, a confiança na razão foi, de algum modo, questionada. Nossa argumentação se orienta no sentido de sustentar que sempre (ou quase sempre) que essa confiança na razão encontrou-se às voltas com as vozes da suspeição, da desconfiança, a filosofia viu-se nas proximidades da sombra do niilismo. Basta pensarmos, por exemplo, na crítica vertiginosa empreendida pelo romantismo alemão de um Novalis ou Schlegel à ideia de uma arquitetônica em Kant. Todo um paradigma da racionalidade legado pela tradição se encontrou profundamente abalado; tudo se acha fraturado no romantismo alemão: o próprio paradoxo é lugar de sentido; o ser é um efeito e todo efeito é ser; sujeito e objeto se confundem; a lógica é subvertida, o rigor romântico transforma todas as coisas em coisas indiscerníveis; o sujeito é uma criação da linguagem; a linguagem não comunica nada (não há elemento fundante da linguagem); não há coisas ou mundo antes da linguagem: não há estrutura última do mundo; falta a garantia da referencialidade da verdade; os românticos recusam a evidencialidade da vinculação entre linguagem e homem. O movimento romântico, em suma, se caracterizou, fundamentalmente, como ruptura com o modelo identitário da filosofia.
 A série de abalos provocados pelo romantismo alemão não se esgota aí evidentemente. O que importa é ver que, ao subverter radicalmente toda uma série de pressupostos do paradigma tradicional da racionalidade, o romantismo alemão foi acusado de ser um movimento niilista. Niilista também, por um lado, porque celebrou unicamente o livre jogo da fantasia, a atividade espontânea de um eu que não mais reconhece o não eu, a matéria, o universo e até mesmo Deus. Niilista também, segundo seus acusadores, é a operação filosófica por meio da qual o romantismo alemão pretendeu suprimir o objeto da reflexão para mostrar que ele é produto de uma atividade invisível e inconsciente de um sujeito que é ele mesmo criação da linguagem.
A história da filosofia se caracteriza por uma tendência constante, a qual consiste na depreciação de toda forma de diferença e mudança. Em grande medida, a Metafísica, no Ocidente, se expressou como aversão a todo tipo de pensamento do devir. Nesse contexto, o que vimos chamando “confiança na razão” significa crença na existência de um mundo de identidades estáveis, de um mundo do qual as diferenças, a alteridade são ou excluídas ou relegadas à condição de possibilidade para se pensar as identidades.
Se, por um lado, um exame acurado do desenvolvimento do pensamento filosófico demonstraria, sem grande custo, a validade da tese por nós esposada, segundo a qual a filosofia nasce e se desenvolve com base numa confiança na razão; por outro lado, pode não ser imediatamente evidente a proposição segundo a qual o niilismo, enquanto uma forma de pensamento obcecado pelo nihil – o nadaé encontrado em toda a história do pensamento ocidental: de Górgias, com sua célebre fórmula “nada é, e se alguma coisa fosse, não poderia ser conhecida; e, se fosse conhecível, seria inexprimível” – à teologia negativa do poeta e filósofo Giordano Leopardi, para quem o nada é o princípio de Deus e de todas as coisas, o niilismo também impregnou o existencialismo francês de Sartre e Camus. Mas foi, sem dúvida, Nietzsche o maior profeta e teórico do niilismo. É com ele que o niilismo se erige em categoria histórica e em objeto de reflexão filosófica. Dedicaremos uma seção específica para apresentar a interpretação nietzschiana do niilismo. O niilismo já estaria suposto no cerne da doutrina paradoxal do cristianismo do Deus que assume a forma humana, do Deus que se faz homem. Nessa doutrina, Deus é situado na empiricidade dinâmica da história. O niilismo é a inesgotável nova narração da vida-morte do além imanentizado, ou seja, do Deus feito homem.
Niilismo, a despeito de seu significado multívoco, pode ser definido como uma doutrina que opera segundo uma série de reduções: os entes, as coisas, o mundo e, em particular, os valores e os princípios – são negados e reduzidos a nada. Do ponto de vista ontológico, o niilismo é a afirmação de um mundo do qual não se pode sair, de um mundo sem transcendência, sem valores superiores, sem alhures. Estar sempre de luto, reconhecer que nossa relação com o sentido originário, com os deuses, com o fundamento é uma relação marcada pela ausência, pela perda, pelo desaparecimento – eis, em suma, a essência da experiência niilista.
Parece-nos razoável dizer que toda a filosofia subsequente ao anúncio da morte de Deus constituiu um esforço de ultrapassamento do niilismo, uma busca por fazer viger alguma experiência de sentido no deserto que se tornou o mundo, após a devastação levada a cabo pelo trabalho da desconstrução. A filosofia, por razões que suponho estejam claras, não pode coexistir com o niilismo; o niilismo constitui uma ameaça à própria possibilidade da experiência filosófica. Pelo menos, nos parece ser esse o perigo que mesmo Nietzsche - a seu modo - e os filósofos que o sucederam souberam entrever. [3]
Não obstante, a par do aspecto negativo do niilismo, há nele um aspecto positivo. Num sentido positivo, o niilismo, na esteira de Nietzsche, permite uma nova posição de valores baseada na vontade de poder como caráter fundamental de tudo que é. Quando nos admiramos da insistência com que o niilismo, no seio do próprio trabalho filosófico de instituição de um horizonte de sentido vinculativo que torne possível ao homem viver neste mundo, faz ressoar seu eco, já não podemos então ignorar a questão como fazer filosofia em face da presença impregnante e perturbadora desse hóspede sinistro, que resiste a toda ordem de despejo. Em suma, o filósofo de hoje não deveria esforçar-se por responder a premente questão  - como é possível filosofar em face da presença do signo da Morte, da tentação do suicídio, da natureza emergente do Nada, que ameaça, por todos os lados, a pretensão de conferir sentido à série de esforços mobilizados pelos homens na tentativa de suportar o que eles, não raro, pressentem como um fardo, um peso, a saber, a própria existência?





[1] Não temos a pretensão de esclarecer quais são esses momentos. Basta-nos apenas observar que essa confiança na razão, embora seja uma precondição histórica para o desenvolvimento da filosofia, não passou incólume aos ruídos da vozes da suspeita, dentre as quais se destaca como a mais devastadora a de Nietzsche. É bem verdade que a crítica nietzschiana da razão não tinha em mira a razão em si, mas um modo específico de constituição da racionalidade grega: a racionalidade socrático-platônica, que, aos olhos de Nietzsche, produziu a fábula do mundo suprassensível, do mundo-verdade, cuja consequência mais evidente foi a negação da própria vida.
[2] Essa advertência não deve mascarar o fato de que posturas irracionalistas frequentaram a história do pensamento filosófico.
[3] No caso de Nietzsche, o ter entrevisto o perigo não significa que, ao fazer a crítica do niilismo, Nietzsche estivesse pretendendo “salvar” a filosofia do envenenamento niilista; sua preocupação, na verdade, era restabelecer a unidade entre a vida e o pensamento, era reconduzir o pensamento para a sua verdadeira morada – a vida -, para dela se ocupar, potencializando-a, e para que a vida, sob o cuidado potencializador do pensamento, se potencializasse. Mas foi justamente porque pretendeu liberar a vida de uma tradição de pensamento que não fazia senão enfraquecê-la que ele entreviu para que estéreis abismos caminhava o pensamento.

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